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DOI 10.11606/issn.2318-8863.discurso.2019.

138092

Canguilhem, Foucault e a medicina*


Canguilhem, Foucault and Medicine

Rafael Henrique Teixeira


Pós-Doutorando no Departamento de Filosofia
Universidade Estadual de Campinas [UNICAMP] | FAPESP

RESUMO ABSTRACT
Este artigo aborda o tratamento que Can- This article deals with the treatment that
guilhem e Foucault oferecem da medicina. Canguilhem and Foucault offer to medicine.
Passando pelas distintas análises da clínica, Going over different analysis of clinics, of
da medicina em sua história e de seu aspecto medicine in its history and its social and po-
social e político, observaremos desdobra- litical aspect, it is possible to point out irre-
mentos irredutíveis em torno de uma pro- ducible unfolding around a shared issue.
blemática compartilhada.

PALAVRAS-CHAVE KEY WORDS


Medicina; Clínica; História; Vida; Poder. Medicine; Clinics; History; Life; Power.

*
Este artigo é fruto de pesquisa de pós-doutorado financiada pela FAPESP e realizada junto ao Departamento
de Filosofia da UNICAMP sob a supervisão do Prof. Dr. Luiz Benedicto Lacerda Orlandi.
188 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

Introdução
Duas décadas separam o célebre Essai sur quelques problèmes concernant le normal et
le pathologique (1943), tese de medicina de Canguilhem, filósofo-médico, e Nasci-
mento da clínica (1963), obra na qual Foucault se dedica de maneira exaustiva à ques-
tão médica — mais tarde abordada com outro viés e de maneira diluída através de
seus escritos. Muitos afirmam uma suposta complementaridade entre as duas obras,
Foucault fornecendo o estofo histórico dos corolários filosóficos que Canguilhem
extraiu do exame da clínica (Bing e Braunstein, 1999, p. 51; Gutting, 1999, p. 136).
Não nos cabe refutar essa suposição: afinal o método clínico e anatômico-clínico,
parcialmente questionado pela medicina experimental de Claude Bernard, tem uma
longa história no século XVIII. Mas é certo que as relações de Canguilhem e de Fou-
cault em torno da problemática médica não se resumem a uma suposta complemen-
taridade. Para Canguilhem, a clínica tem um sentido biológico ao qual a história
arqueológica traçada por Foucault permaneceu indiferente. Canguilhem esperava
da medicina, no Essai, uma “introdução a problemas humanos concretos”, que o
levaram a defini-la como “uma técnica ou arte na encruzilhada de muitas ciências,
mais do que como uma ciência propriamente dita” (Canguilhem, 2013, p. 8).
Foucault, por sua vez, ao tomar a medicina como objeto de análise observa nela
algo diferente. Em La Volonté de savoir, quando a noção de biopoder já se encontra
assentada em seu itinerário de reflexões, Foucault é categórico: “Uma sociedade nor-
malizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada sobre a vida”.
Trata-se de um poder que “tem de qualificar, medir, apreciar, hierarquizar”, que
“opera distribuições ao redor da norma” (Foucault, 1976, p. 191), que “não se efetua
somente pela consciência ou pela ideologia, mas também no corpo e com o corpo”.
Nesse quadro a medicina se apresenta como “estratégia bio-política” (Foucault,
2001a, p. 210). Senão a única, decerto decisiva, tal qual pressentiu, aliás, Naissance
de la clinique. Se é verdade que a medicina toma na gestão da existência humana
“uma postura normativa” (Foucault, 2015, p. 60), ela é mais que uma prática ou um
saber informado em seu funcionamento por uma tecnologia ubíqua de poder que a
coloniza. Ela apresenta uma legitimidade originária e transferível, por exemplo, às
ciências do homem do século XIX. Seus “conceitos eram dispostos em um espaço
cuja estrutura profunda correspondia à oposição do saudável e do mórbido”.
Quando se fala da vida dos grupos, das sociedades, da raça e da vida psicológica não
se pensa propriamente “na estrutura interna do ser organizado, mas na bipolaridade
médica do normal e do patológico”. Mais que “biologicamente subentendidas”, as ci-
ências do homem “o eram medicamente” (ibid., p. 62). Levando ao termo esse poder
conferido à medicina, reconhecendo-lhe uma amplitude ainda inimaginável em
Naissance de la clinique, Foucault não hesitará em afirmar alhures que em uma so-
ciedade “articulada sobre a norma” ela se torna a “ciência reinante”. Na sociedade
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moderna “a medicalização é sem limites”, e, na medida em que “a preponderância


conferida à patologia se torna uma forma geral de regulação da sociedade”, a medi-
cina não mais possui “campo exterior” (Foucault, 2001a, p. 53 e 76). Com Foucault,
perdemos de vista a vitalidade de fundo que Canguilhem encontrou na medicina.

Foucault e a sistematização do a priori histórico da clínica


“A clínica aparece como uma dimensão essencial do hospital. Entendo aqui por
“clínica” a organização do hospital como lugar de formação e de transmissão do
saber” (ibid., p. 521). Algo novo irrompe, portanto, na medicina de finais do sé-
culo XVIII. A medicina como ciência clínica “apareceu sob condições que definem,
com sua possibilidade histórica, o domínio de sua experiência e a estrutura de sua
racionalidade”. Preciosa admissão, pois permite dar cabo de algumas obviedades
enganosas. Primeiramente, combater a tendência da medicina em contar sua própria
história, “como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experiência
constante e estável, por oposição a teorias e sistemas em perpétua mudança” (ibid.,
p. 83). Não é a única desmistificação que Foucault julga possível ao se voltar para a
medicina francesa de finais do século XVIII até os primeiros decênios do século XIX,
quando, com Broussais, o “a priori histórico e concreto do olhar médico moderno”
tem sua constituição acabada, fixando uma “maneira de ver” na qual, enfim, o olhar
médico pode “se endereçar a um organismo doente” (ibid., p. 267). A própria ideia
da doença enquanto mal que coincide com o espaço corporal é destituída de sua
pretensa obviedade pela “sistematização progressiva do que se propõe abusivamente
como dado natural” (Dagognet, 1965, p. 440). Em se tratando das ciências médicas,
uma desmistificação desse gênero guarda a força do que poderia parecer um para-
doxo. “A coincidência exata do ‘corpo’ da doença e do corpo do homem doente é
um dado histórico e transitório”, pois os espaços “de configuração da doença” e “de
localização do mal no corpo foram superpostos, na experiência médica, durante um
curto período: aquele que coincide com a medicina do século XIX e com os privilé-
gios concedidos à anatomia patológica” (Foucault, 2015, p. 20).
O que Foucault propõe para o exame do nascimento da clínica é um projeto ao
mesmo tempo histórico e crítico, que visa determinar “as condições de possibilidade
da experiência médica tal qual a época moderna conheceu” pelo discernimento, “na
espessura do discurso”, das “condições de sua história” (ibid., p. 18). Trata-se de des-
crever a mutação que permitiu “que o ‘leito’ do doente” se tornasse “campo de in-
vestigação e de discurso científicos” (ibid., p. 13). Novo perfil, na experiência do mé-
dico, “entre o perceptível e o enunciável” (ibid., p. 17). Não descoberta de um pathos
presente e a-histórico, dissimulado sob as ilusões que antecedem a racionalidade do
discurso, este localizado na história para decretar seu arremate pela revelação do para
sempre dado, mas mudança na relação entre o visível e o invisível, “necessária a todo
saber concreto”, que faz aparecer “sob o olhar e na linguagem o que se encontrava
190 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

aquém e além de seu domínio” (ibid., p. 9). Gênese, pois, do que pode ver o clínico
no hospital e o anatomista nas vísceras do cadáver, mas gênese também, simultânea,
do sujeito armado do olhar e da linguagem que permite ver e dizer.
Seria inexato […] ver na medicina clínica do final do século XVIII um simples
retorno à pureza de um olhar muito tempo sobrecarregado de falsos conheci-
mentos. Sequer se trata simplesmente de um deslocamento desse olhar, ou de
uma mais fina aplicação de suas capacidades. Novos objetos se oferecerão ao
saber médico na medida em que e ao mesmo tempo que o sujeito que conhece
se reorganiza, se modifica e coloca-se a funcionar de um novo modo. Não é
então a concepção da doença que foi primeiramente modificada, depois a
maneira de reconhecê-la; não é também o sistema de sinais que foi modificado
depois a teoria; mas todo um conjunto e mais profundamente a relação da
doença com esse olhar ao qual ela se oferece e que ao mesmo tempo ela con-
stitui (Foucault, 2015, p. 129).

Essa reorganização do campo perceptivo da doença na sua articulação com códi-


gos de saber é descrita a partir de um complexo regime de modificações, articulações
e sobreposições entre diferentes projeções espaciais do elemento patológico. A aná-
lise de Foucault começa pelas nosologias classificatórias de finais do século XVIII,
“onde nunca o espaço de configuração da doença foi mais livre” e “independente de
seu espaço de localização” (ibid., p. 20), e termina, em início do século XIX, com
Broussais, que, segundo Foucault, leva ao limite tendências da anatomia patológica
de Bichat ao encerrar a doença “em certo movimento complexo dos tecidos em
reação a uma causa irritante”. Nas nosologias classificatórias a doença não coincide
com a série cronológica de suas causas e efeitos, com seu “trajeto visível no corpo
humano”. Antes de ser tomada na espessura do corpo, ela “recebeu uma organização
hierarquizada em famílias, gêneros e espécies” (ibid., p. 21).
As doenças são ao mesmo tempo espécies naturais e ideais, “naturais, pois as
doenças nelas enunciam suas verdades essenciais, ideais, na medida em que jamais
são dadas na experiência sem alteração ou perturbação” (ibid., p. 25). Quando a
doença aparece através dos corpos e de suas qualidades o doente se apresenta como
um acidente indesejável. Para conhecer “a verdade do fato patológico, o médico
deve abstrair o doente”. Não é o patológico que funciona como “contra-natureza”,
mas o próprio doente com relação à doença, que a leitura médica deve considerar
apenas para “colocar entre parênteses”, bem como o médico, cuja intervenção é “vi-
olência” caso não se submeta à ordenação ideal da nosologia (ibid., p. 26). Mesma
desnaturação no espaço social. Seu “lugar natural” é a família. No artificialismo do
hospital ela “corre o risco de perder seu rosto essencial” (ibid., p. 38).
Médicos e doentes não se encontram implicados de pleno direito; eles são
toleráveis enquanto interferências difíceis de evitar: o papel paradoxal da me-
dicina consiste, sobretudo, em neutralizá-los, em manter entre eles o máximo
de distância para que a configuração ideal da doença, no vazio que se abre de
um ao outro, se torne forma concreta, livre, totalizada enfim em um quadro
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imóvel, simultâneo, sem espessura nem segredo onde o reconhecimento se


abre por si mesmo sobre a ordem das essências. O pensamento classificatório
se apresenta como um espaço essencial. A doença apenas existe nele, pois ele
a constitui como natureza; no entanto, ela aparece sempre um pouco deslo-
cada com relação a ele, pois se oferece em um doente real, aos olhos de um
médico previamente armado (Foucault, 2015, p. 27).

Essa livre espacialização do patológico se choca, para Foucault, com as exigências


de uma medicina de Estado. Necessidades ligadas ao controle das epidemias e da
própria atividade de uma medicina da assistência familiar em domicílio exigiram
uma “estrutura coletivamente controlada e que recobre a totalidade do espaço social”
(ibid., p. 42). O lugar onde se forma o saber deixa de ser o “jardim patológico onde
Deus tinha distribuído as espécies” para se ligar “à vida coletiva da nação” (ibid.,
p. 56). A doença é cercada no espaço social, investida medicamente e redistribuída.
Trata-se de uma forma de “espacialização institucional da doença” desconhecida até
o século XVIII, na qual a medicina das espécies se perderá (ibid., p. 42). Em sua des-
crição é possível observar o caráter complexo das unidades discursivas e de seus siste-
mas de positividade: instituições heterogêneas, reformas hospitalares e pedagógicas,
lutas políticas, reivindicações e utopias, coerções econômicas, reformulações e novas
disposições conceituais, etc. Rede complexa cujo efeito é uma “reorganização formal
e em profundidade” que abre a possibilidade de uma experiência clínica” capaz de
“realizar sobre o indivíduo um discurso de estrutura científica” (ibid., p. 12).
Um elemento decisivo é a reorganização do hospital, que se torna “máquina de
curar” (Foucault, 2001a, p. 23) em vez de local de assistência aos pobres. “Na história
dos cuidados trazidos ao doente no Ocidente” há duas “categorias distintas que não
se superpunham, que se encontravam por vezes, mas que diferiam fundamental-
mente”: a medicina e o hospital. O hospital enquanto instrumento terapêutico é
um conceito relativamente moderno. Data da segunda metade do século XVIII “a
ideia que o hospital poderia e deveria ser um instrumento destinado a curar a do-
ença” (ibid., pp. 508 e 510). A família era o lugar no qual a verdade da patologia
aflorava sem alteração. Doravante o conhecimento médico exige não um domínio
suposto natural do mal, mas neutro, “homogêneo em todas as suas partes para que
uma comparação seja possível e aberto, sem princípio de seleção ou de exclusão, a
toda forma de acontecimento patológico” (Foucault, 2015, p. 156).
A um “olhar armado de seus privilégios e de suas competências” é transportada
a ideia de um domínio transparente no qual a doença deveria formular, a partir de
si mesma, “uma verdade inalterada e oferecida, sem equívocos, ao olhar do médico”.
Termo ideal mais que condição suficiente, a soberania do olhar não carrega, sozinha,
as condições de “restituir pela fala o que se sabia apenas ser oferecido ao olhar” (ibid.,
pp. 80 e 81). Pois a clínica não busca reduzir todos os seus conhecimentos, “por um
ceticismo metódico, à simples constatação do visível”, a uma observação que se faria
“no mutismo das teorias”, a uma experiência “que se transmite abaixo das palavras”
192 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

(ibid., pp. 82 e 108). Correlativamente à “definição de uma experiência prática feita


a partir do leito do próprio doente” insistiu-se sobre a necessidade de equipar o olhar
de “uma armadura lógica que exorciza de saída a inocência de um empirismo não
preparado” (ibid., pp. 108 e 153). O domínio clínico apenas tem organização e sen-
tido “se a interrogação e o exame se articulam um sobre o outro, definindo ao nível
de um código que lhes é comum o ‘lugar de encontro’ do médico e do doente”
(ibid., pp. 158 e 159). Com efeito, para os clínicos dessa geração, “todo o visível é
enunciável” e “inteiramente visível pois enunciável […] ver, dizer e aprender a ver,
dizendo-se o que se vê, se comunicam em uma transparência imediata” (ibid.,
pp. 165 e 167). Para tanto, algo se alia ainda à conjugação do exame e da interrogação
no leito agônico: uma estrutura quase gramatical da doença. A verdade ou essência
da doença, outrora habitante do jardim das espécies patológicas, reside em seu sin-
toma. “Para além dos sintomas não há mais essência patológica: tudo na doença é
fenômeno de si mesma”. O significante, signo-sintoma, será então, para o olhar
clínico, “inteiramente transparente para o significado que aparece, sem ocultação
nem resíduo, em sua própria realidade”, de modo que o “ser do significado — o
coração da doença — se esgotará inteiramente na sintaxe inteligível do significante”
(ibid., p. 131).
À presença exaustiva da doença nos seus sintomas corresponde a transparência
sem obstáculo do ser patológico à sintaxe de uma linguagem descritiva: iso-
morfismo fundamental da estrutura da doença e da forma verbal que a en-
cerra. O ato descritivo é […] uma apreensão do ser, e inversamente, o ser não
se oferece à visão em suas manifestações sintomáticas, logo essenciais, sem se
oferecer à dominação de uma linguagem que é a própria fala das coisas […];
na clínica ser visto e ser falado se comunicam de saída na verdade manifesta da
doença (Foucault, 2015, p. 137).

Entre a livre espacialização da nosologia classificatória e a espacialização tissular


que identifica um suporte ao mal a clínica, com o protocolo de observação que de-
fine seu gênero de empirismo médico, ocupa uma posição transitória. Não é errôneo
afirmar que será ainda um olho clínico que será determinante na sequência. Porém,
“a experiência clínica se arma para explorar um novo espaço: o espaço tangível do
corpo” com suas “invisíveis lesões” (ibid., p. 174). Com sua espacialização sintoma-
tológica e isomorfa à verbalização do pathos “a medicina clínica se desfez tão logo
apareceu” (Foucault, 2001b, p. 741), quando Bichat “substitui o recolhimento dos
sintomas e a lição de seu arranjo pelo negro realismo do lesional” (Dagognet, 1965,
p. 441). Nessa mudança não se trata, a despeito de o médico continuar a ser “o olho
que olha” (Foucault, 1969, p. 72), de um aperfeiçoamento ou “redução da distância
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entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento”1, mas de “um aconteci-


mento que atinge a disposição do saber” em sua totalidade (id., 2015, p. 192). Mu-
tação tão radical quanto aquela que substituiu a clínica à medicina classificatória, da
qual não nos ocuparemos.

Significação biológica da clínica e


historicização da medicina por Canguilhem
Segundo Debru (2004, p. 31) é “enigmático constatar que a aproximação clínica,
símbolo da medicina francesa desde o fim do século XVIII”, permanece “no segundo
plano do Essai”, ao passo que seria “mais tarde magnificamente tratada por Fou-
cault”. Enquanto Canguilhem procede à crítica da pretensão de objetividade do po-
sitivismo biológico a partir da “experiência concreta do vivo”, Foucault o faz situando
a clínica “no desenvolvimento de um processo social e político”, ou seja, “do lado
das instituições médicas bem mais que daquele do doente, […] grande ausente de
Naissance de la clinique”. E se a noção de experiência clínica não é ausente na análise
foucaultiana, sua significação é distinta daquela que recebe no Essai. “Não se trata
mais de uma experiência do vivo”, mas “de uma experiência histórica, ao mesmo
tempo anônima e coletiva”, que acaba por apresentar uma “figura completamente
desindividualizada da clínica” (Macherey, p. 103). Canguilhem naturaliza tudo o que
Foucault se esforçou por circunscrever a uma história responsável por sua configura-
ção: a clínica (no esforço que ela prolonga), o doente (que busca na clínica esse pro-
longamento) e a doença (em detrimento de regimes de espacialização tributários de
reorganizações do campo do saber). Canguilhem encontra nas ciências da vida uma
esperança paradoxal, pois um conhecimento que se pretende objetivo acaba por ne-
gar “as desigualdades axiológicas” que o vivo identifica à vida “segundo a consciência
que ele possui do que é para ele viver”, a saber, “valorizar os objetos e circunstâncias
de sua experiência” (Canguilhem, 1976, p. 766). No Essai essa pretensão de objetivi-
dade aparece nas figuras de Broussais, Comte e Cl. Bernard2, e sua contraparte nas

1
Não à toa Foucault (1969, p. 74) reconhecerá que a expressão “olhar médico” mobilizada em Naissance de la
clinique pode não ter sido absolutamente feliz.
2
Foucault deteve sua análise em Naissance de la clinique onde Canguilhem, no Essai, inicia a sua: com Brous-
sais. Cl. Bernard é praticamente ausente de Naissance de la clinique e há razões para isso. Fundando uma
“percepção” e moldando uma “sensibilidade médica”, a anatomia patológica de Bichat e a medicina fisioló-
gica de Broussais seriam da alçada de uma “estética transcendental da patologia” (Dagognet, 1965, pp. 436 e
444). Ao primado da observação Claude Bernard acrescentará seu protocolo experimental visando percorrer
o determinismo do meio interior. E pela prática da vivissecção, o experimentador, além de observador, é um
“inventor de fenômenos, um verdadeiro contramestre da criação” (Bernard, 2008, p. 59). Para tanto, “Toda
ciência experimental exige um laboratório” (ibid., p. 247). O hospital não é o laboratório do médico, apenas
seu campo de observação. Aí ele pratica a clínica, “estudo tão completo quanto possível no leito do doente”.
A medicina começa necessariamente pela clínica, pois é ela quem determina e define seu objeto. Mas isso não
faz da clínica a base da medicina científica. O hospital e a observação clínica apenas são seu “vestíbulo”: é o
laboratório o “verdadeiro santuário da ciência médica; é somente” nele que o médico deve buscar “as expli-
cações do estado normal e patológico por meio da análise experimental” (ibid., p. 256).
194 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

observações clínicas de Goldstein e nas iniciativas terapêuticas de Leriche. Cangui-


lhem concluirá que, malgrado “esforços louváveis para introduzir” na medicina “mé-
todos de racionalização científica”, o essencial se encontra do lado da clínica e da
terapêutica, “uma técnica de instauração e de restauração do normal que não se deixa
inteiramente e simplesmente reduzir ao simples conhecimento” (ibid., p. 8).
Quando se pensa que a observação anatômica e histológica, que o teste fisio-
lógico, que o exame bacteriológico são métodos que permitem realizar cien-
tificamente, e alguns pensam até na ausência de todo interrogatório e ex-
ploração clínica, o diagnóstico da doença, somos vítimas de nosso ponto de
vista da confusão filosoficamente a mais grave, e terapeuticamente por vezes a
mais perigosa […]. Para realizar o diagnóstico é preciso observar o comporta-
mento do doente […]. Em matéria de patologia, a primeira palavra, histori-
camente falando, e a última palavra, logicamente falando, remetem à clínica
(Canguilhem, 1976, p. 200).

O homem “conhece as categorias da saúde e da doença” — categorias “biologi-


camente técnicas e subjetivas” antes de se tornarem “biologicamente científicas e
objetivas” — sobre o plano da experiência, “provação no sentido afetivo do termo”
(ibid., p. 196). Se a ciência visa explicar a experiência por objetivações analíticas ela,
contudo, não a anula. Esse gênero particular de experiência é a razão de ser do métier
terapêutico e, ao menos de direito, solo originário dos conhecimentos elaborados
pela medicina científica. Não é “um método objetivo” que permite “qualificar de
patológico um fenômeno biológico dado”, mas um “conceito axiológico […], de
modo que é sempre a relação com o indivíduo doente, por intermédio da clínica”,
que justifica semelhante qualificação. Por isso a dificuldade em se falar em termos
de uma patologia objetiva. Ela bem pode ser dita objetiva pelo médico que a pratica,
mas sua intenção não faz com que “seu objeto seja esvaziado de subjetividade” (ibid.,
p. 205). Colocando no centro da atividade médica essa subjetividade axiológica Can-
guilhem fornece uma definição da clínica que, embora não pareça contrariar os im-
perativos de observação que Foucault encontrou elaborados em finais do sé-
culo XVIII, a investe de outros valores.
A clínica não é uma ciência e jamais será uma ciência, mesmo que ela se utilize
de meios cuja eficácia seja cada vez mais garantida cientificamente. A clínica
não se separa da terapêutica e a terapêutica é uma técnica de instauração ou
de restauração do normal cujo fim, a satisfação subjetiva de saber que uma
norma está instaurada, escapa à jurisdição do saber objetivo. Não se dita cien-
tificamente normas à vida. Mas a vida é essa atividade polarizada de debate
com o meio que se sente ou não normal, segundo ela se sente ou não em
posição normativa. O médico tomou o partido da vida. A ciência o serve no
cumprimento dos deveres que nascem dessa escolha. O apelo ao médico parte
do doente. É o eco desse apelo patético que faz qualificar de patológica todas
as ciências que a técnica médica utiliza em socorro da vida. É por isso que há
discurso, v. 49, n. 2 (2019), pp. 187–210 195

uma anatomia patológica, uma fisiologia patológica, uma histologia pato-


lógica, uma embriologia patológica. Mas sua qualidade de patológica é uma
noção de origem técnica, logo de origem subjetiva (Canguilhem, 1976, p. 201).

A subjetividade doente, ao redor da qual é legitimada a prática médica na clínica,


não é o termo da análise. O Essai não é um manifesto que visa humanizar a medi-
cina. Terapêutica médica e subjetividade doente são dois aspectos da clínica que se
definem em sua relação com a normatividade biológica. A doença é, “no sentido
biológico da palavra”, viver uma outra vida, outro modo de ser da “totalidade fun-
cional” representada pelo organismo e por ele apreendida, em seu proceder axioló-
gico, como “totalidade indivisível de um comportamento individual”. Ela guarda a
“originalidade de um acontecimento” (ibid., p. 64), apresentando-se como uma “ex-
periência de inovação positiva do vivo”, não como um “fato diminutivo”, modifi-
cação sem alteração qualitativa do que seria designado por normal. Daí Canguilhem
ter reconhecido que a doença não é propriamente a ausência de toda norma, mas
uma “incapacidade de ser normativo” (ibid., p. 160). De maneira correlata, a saúde
não se define estaticamente. Enquanto “modo de abordar a existência sentindo-se
não somente possuidor”, mas também “instaurador de normas vitais”, a saúde ex-
pressa um gênero de criação propriamente vital. Um homem saudável não é o ho-
mem normal, “mas normativo, capaz de seguir novas normas de vida” (ibid., p. 174).
Se a saúde é tida por um “luxo biológico” é porque, nessa vitalidade expansiva, o
homem pode “cair doente e se recuperar”, sem estar condenado à monotonia de
uma norma unívoca. A saúde não se opõe à doença por visar manter ou restituir um
estado anterior. O que a caracteriza “é a possibilidade de ultrapassar a norma que
define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual
e de instituir novas normas em situações novas” (ibid., pp. 171 e 173). A saúde é
“normatividade autêntica”, pois “aberta à sua correção eventual”, ao passo que a
doença, se ela é, de um lado, categoria subjetiva tributária de um julgamento de
valor, ela é, de outro, com relação à modificação na qual deveria se desdobrar uma
vez apanhada sob o crivo axiológico, uma “normalidade desabitada pela intenção
normativa” (Canguilhem, 2015, p. 104). Para investir de valores positivos e negativos
sua própria existência e, a partir de então, suscitar sua modificação, o vivo humano
é dotado de um poder que se enraíza na vida.
Para um ser vivo o fato de reagir por uma doença a uma lesão, a uma infestação,
a uma anarquia funcional, traduz o fato fundamental que a vida não é in-
diferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e por
isso mesmo posição inconsciente de valor, logo, que a vida é de fato uma ati-
vidade normativa. Por normativo entende-se em filosofia todo julgamento que
aprecia ou qualifica um fato relativamente a uma norma, mas esse modo de
julgamento é, no fundo, subordinado àquela que institui normas. No sentido
pleno da palavra, normativo é o que institui normas. E é nesse sentido que
propomos falar de uma normatividade biológica (Canguilhem, 2013, p. 103).
196 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

O patológico implica um “sentimento direto e concreto de vida contrariada”.


Ele é relativo à vida de um ser vivo que é “apto a qualificar essa mesma vida segundo
o que a favorece ou a entrava” (ibid., pp. 103 e 110). O estado patológico representa,
para o organismo, um gênero de vida “regulado por normas vitalmente inferiores
ou depreciadas”, que “interditam ao vivo a participação ativa e tranquila, geradora
de confiança e de segurança, em um gênero de vida que era anteriormente o seu”
(Canguilhem, 2009a, p. 214). O valor do patológico enquanto tal é relativo à inten-
ção que ele incita, ele é a alteridade interior à dinâmica da vida que exige sua modi-
ficação, prelúdio negativo à positividade criadora do vital. No mais, seu índice ne-
gativo é relativo a uma apreciação de valor, ou seja, a uma norma que faz qualificar
algo de patológico anteriormente à modificação que ele incita3. É somente nesses
termos que o pathos vivido enquanto tal pode suscitar sua modificação e, no limite,
é essa modificação que uma norma visa. Rigorosamente “uma norma não existe, ela
desempenha seu papel, que é desvalorizar a existência para permitir sua correção”
(Canguilhem, 2013, p. 53). Para um vivo humano capaz de qualificar sua própria
condição, atribuir-lhe valores e solicitar uma solução terapêutica à medicina de seu
tempo, a doença figura como “um estado contra o qual é preciso lutar para poder
continuar a viver”, um “estado anormal relativamente à persistência da vida que
desempenha aqui o papel de norma” (ibid., p. 114). O que é submetido a uma in-
tenção normativa no prolongamento da qual se encontra a medicina é a própria
existência do vivo e a norma, nesse caso, é a própria persistência da vida. A vida é uma
“atividade de oposição à morte e à indiferença” (ibid., p. 224).
Uma urgência normativa colocada pela doença e pelo horizonte de finitude que
ela assinala faz com que, na clínica, a vida seja a norma. Nela as normas “são pro-
duzidas pelo próprio movimento da vida”, intermitentemente “confrontada com os
riscos da doença” e “da morte” (Macherey, 2009, p. 102). No espaço da clínica,
portanto, Canguilhem introduz uma dimensão orgânica — e agônica — estranha
aos quadros descritos por Foucault. Afinal “é a própria vida, pela diferença que ela
faz entre seus comportamentos propulsivos e repulsivos, que introduz na consciên-
cia humana as categorias da saúde e da doença” (Canguilhem, 2013, p. 196). Ora, a
vida não é normativa por passatempo axiológico, mas para resistir ao que a entrava
e promover inovações somáticas. E é pelo fato de a vida ser normativa que o vivo
humano pode recorrer à terapêutica médica, por intermédio da clínica, para corro-
borá-la nesse intento. É nessa intenção normativa que a medicina encontra seu sen-
tido e a clínica sua razão de ser. Se há algo que se apresenta como signo objetivo da
“universal reação subjetiva de afastamento” e de “depreciação vital da doença” é
justamente a existência, “coextensiva da humanidade no espaço e no tempo, de uma

3
Canguilhem precisa que não existe propriamente “a-normal”, no sentido de “privação de um caráter positivo
prévio” (2015, p. 104), pois não há vida sem normas. O julgamento que permite qualificar de patológico deter-
minado estado ou circunstância é informado por uma norma que orienta a apreciação axiológica em questão.
discurso, v. 49, n. 2 (2019), pp. 187–210 197

medicina como técnica mais ou menos científica da cura de doenças” (Canguilhem,


2009a, p. 215). Um esforço, como o foucaultiano, em delimitar as razões históricas
da clínica, é diluído na universalidade de exigências vitais que justificam o recurso
do vivo humano à medicina.
Perguntamo-nos como uma necessidade humana de terapêutica teria engen-
drado uma medicina progressivamente mais clarividente sobre as condições da
doença se a luta da vida contra os inumeráveis perigos que a ameaçam não fosse
uma necessidade vital permanente e essencial. Do ponto de vista sociológico, é
possível mostrar que a terapêutica foi inicialmente atividade religiosa, mágica,
isso não acarreta de modo algum que a necessidade terapêutica não seja uma
necessidade vital, necessidade que suscita, mesmo nos vivos muito inferiores
aos vertebrados quanto à organização, reações de valor hedônico ou compor-
tamentos de autocura e de auto-regeneração (Canguilhem, 2013, p. 103).

Hipócrates tem “a glória legendária de ter introduzido o conceito de natureza no


pensamento médico”. Ao fazê-lo, a “analogia entre a arte do médico e a natureza
medicadora não esclarece a natureza pela arte, mas a arte pela natureza” (id., 2002,
p. 17). Canguilhem não visa ressuscitar o naturismo hipocrático da vis medicatrix
naturae — muitas das estratégias terapêuticas que a medicina colocou historica-
mente em prática já deram conta de subvertê-lo. Mas sua concepção da atividade
médica não perde de vista a relação descrita, em Hipócrates, entre a natureza e a arte
médica. Na medicina, “arte da vida” pela qual “o vivo humano prolonga […] um
esforço espontâneo, próprio à vida, para lutar contra o que faz obstáculo à sua ma-
nutenção e ao seu desenvolvimento tomados por normas” (id., 2013, p. 102), natu-
reza e arte “não são discriminadas por um índice infalível” (id., 2002b, p. 385).
A medicina é uma técnica biológica “exercida intencionalmente e mais ou menos
racionalmente pelo homem”, prolongando “impulsões vitais ao serviço das quais ela
tenta colocar um conhecimento sistemático” (ibid., p. 105). Razão pela qual “sem
ser ela própria uma ciência, a medicina utiliza os resultados de todas as ciências a
serviço das normas da vida”. E Canguilhem insiste: é no esforço espontâneo do vivo
que ela prolonga “que a medicina encontra seu sentido” (ibid., p. 205). A necessi-
dade da medicina se liga à doença como “risco do vivo enquanto tal”, que, distinta-
mente do risco que “nasce da resolução de agir”, nasce do próprio “fato de nascer”,
e que é “muitas vezes inevitável” (id., 2002a, p. 35). A rede de razões históricas que
justificaram, para Foucault, uma medicina científica a partir de finais do século XVIII
é diluída, por Canguilhem, em necessidades vitais no sentido mais geral do termo:
orgânicas e urgentes. Mas as soluções que o homem elaborou em face dessa necessi-
dade não deixam de se acompanhar de notórias mutações.
O conhecimento atual das doenças somáticas é o acabamento, sem dúvida
provisório, de uma sucessão de crises e de invenções do saber médico, de pro-
gressos concernentes às práticas de exames e à análise de seus resultados, tendo
por efeito obrigar os médicos a deslocar a sede e a revisar a estrutura do agente
198 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

patógeno e, consequentemente, a mudar o alvo da intervenção terapêutica.


Correlativamente, foram deslocados os lugares de observação e de análise das
estruturas orgânicas suspeitas em função de aparelhos e de técnicas próprias
ou tomadas de empréstimo. É assim que as doenças foram sucessivamente
localizadas no organismo, no órgão, no tecido, na célula, no gene, na enzima.
E trabalhou-se em identificá-las sucessivamente na sala de autópsia, no la-
boratório de exames físicos (óptico, elétrico, radiológico, escanográfico,
ecográfico) e químicos ou bioquímicos (Canguilhem, 2002a, p. 37).

Avisados que fomos acerca dos riscos dessas objetivações analíticas do patológico,
uma questão se impõe: de que maneira esses saberes se relacionam com a subjetivi-
dade axiológica ao redor da qual orbitava a medicina? Primeiramente, mobilizadas
pelo médico na clínica, elas podem se anexar ao caráter técnico e normativo da ars
medica. Mas essa não é a única maneira de abordar a história da medicina que Can-
guilhem mobiliza na contramão de Foucault, para quem a doença apenas ganha
significado no interior de um enquadramento epistêmico e social. O patológico é
também investido de uma dignidade epistemológica: ele é, de direito, solo originário
do saber, o que não se dá sem nova valorização da clínica. Não mais do lado dos
serviços prestados ao doente, mas do corpus teórico que uma “uma informação clí-
nica prévia” (id., 2013, p. 65) torna possível. “A doença se encontra no princípio da
atenção especulativa que a vida liga à vida por intermédio do homem”. Essa propri-
edade, válida no plano da subjetividade doente, é capturada por certo gênero de
saber. “A vida apenas se eleva à consciência e à ciência de si mesma pela inadaptação,
pelo malogro e pela dor”, de modo que é possível afirmar que “é o pathos que con-
diciona o logos” (ibid., pp. 76 e 183). Não se trata, a bem dizer, de um axioma indis-
tintamente aplicável a todos os saberes biomédicos, mas notadamente a certa fisio-
logia, cuja história “não pode ser absolutamente estranha à história da clínica e da
patologia médicas” (id., 2002b, p. 237). Essa preeminência da clínica se justificaria
pois — a despeito “dos assaltos das técnicas do laboratório”, da anatomia que “dis-
seca o cadáver” e da fisiologia que “traumatiza os animais” — somente ela “conduz
ao homem concreto-completo” (Dagognet, 1955, p. 87).
Esse é um fio condutor que Canguilhem encontrou para o trato da história da
fisiologia que poderíamos dizer ser uma primeira incursão, tributária das conquistas
teóricas do Essai4, pela história das ciências biomédicas. Tributária de uma clínica
que, de significação biológica, parece colocada fora da história, mas que figura como
sendo, ao menos de direito, o solo originário de todo saber que se localiza na histó-
ria. Ora, quando redigiu o Essai, Canguilhem não tinha ainda iniciado sua obra de

4
Se as investigações fisiológicas possuem uma história, trata-se de “uma história da formação, da deformação
e da retificação de conceitos” (ibid., 2002b, p. 235). Somos com isso remetidos a Bachelard (1968, p. 16), para
quem a retificação do passado é “o princípio fundamental que sustenta e dirige o conhecimento”. Mas Can-
guilhem introduz uma realidade estranha à epistemologia bachelardiana, aquela do pathos que obseda o saber
fisiológico. Pois “Do mesmo modo que os povos felizes não tem história, homens imperturbavelmente sau-
dáveis não conheceriam ciência da saúde, fisiologia” (Canguilhem, 2002b, p. 258).
discurso, v. 49, n. 2 (2019), pp. 187–210 199

historiador das ciências da vida, o que “não lhe permitirá revelar o primado da clí-
nica na origem e nos fundamentos conceituais dessas ciências” (Morange, 2013,
p. 160). De fato, quando Canguilhem se volta à análise das mutações dos saberes
biomédico posteriormente ao Essai, a clínica, até então saturada de valores vitais e
epistemológicos, perde terreno. Não obstante, algo persiste. De um lado, a indivi-
dualidade doente. Não mais enquanto fonte dos saberes que se anexam à terapêu-
tica, mas como realidade colocada entre parênteses pelos progressos do saber. A me-
dicina perde de vista a dinâmica axiológico-normativa que parecia destinada a ser a
sede de um imanentismo absoluto entre a exigência que ela colocava e a realização
dessa exigência por um saber que se originaria nela própria. Uma medicina que po-
deria ser dita, no Essai, técnica ou arte da vida, será caracterizada como “um saber
cujos progressos são parcialmente devidos à colocação entre parênteses do doente
enquanto eleito da solicitude médica” (Canguilhem, 2002a, p. 36). De outro lado,
persiste a função terapêutica da medicina. “Não há medicina sem diagnóstico, sem
prognóstico, sem tratamento” (id., 2002b, p. 418). Uma inalienável função terapêu-
tica, progressivamente eficaz, mediante uma colocação entre parênteses da indivi-
dualidade doente: tal é o fio condutor pelo qual Canguilhem abordará a história da
medicina ao longo dos séculos XIX e XX.
Canguilhem (2009b, p. 72) afirma que o projeto comum a Bacon e Descartes,
preservar a saúde e prolongar a vida, não manifestava nenhuma realização assinalável
na medicina francesa de meados do século XVIII, tragicamente impotente em realizar
seu projeto”, situação que começa a mudar na virada dos séculos XVIII e XIX.
O critério para essa assertiva é prático, sem ser imediatamente técnico no sentido do
Essai. Canguilhem se voltará a um gênero de medicina que, “muito mais eficaz”, é
acompanhado de um “déficit de clínica” (Debru, 2007, p. 50). Tomemos um caso
exemplar mobilizado por Canguilhem. Pasteur, “químico, sem formação médica”,
bem como Koch e seus alunos “paradoxalmente mais fizeram pela medicina clínica
que os clínicos de sua época”. Pela descoberta de “uma forma de etiologia não fun-
cional”, impõe-se “à medicina uma mudança de destinação e um deslocamento de
seus lugares de exercício. Cuidar em vista de curar se fazia no domicílio ou no hos-
pital. Vacinar para prevenir iria se dar no dispensário, na caserna, na escola (Cangui-
lhem, 2002b, p. 421). Pela primeira vez em sua história, admite Canguilhem, a me-
dicina “pôde sustentar efetivamente sua ambição de curar indivíduos, prevenir e ex-
tinguir doenças contagiosas […], prolongar, e com efeito dobrar, a esperança da
vida” (ibid., p. 399). Ora, à primeira vista torna-se difícil observar, nesse gênero de
prática médica, o que Canguilhem afirmava no Essai: apenas há medicina na medida
em que indivíduos se sentem e se comportam como doentes. Igualmente a dignidade
epistemológica do pathos, salvaguardada no Essai, não mais parece orientar de saída
os saberes que se anexam à medicina. Mas falar em termos de sua eficácia não seria
uma maneira de reintroduzir o indivíduo doente no campo de ação da medicina?
200 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

Não seria admitir que o primado de direito que Canguilhem lhe reconheceu no Essai
se afirma, doravante, como destino de fato de toda objetivação sobre o mal orgânico?
É o que Canguilhem admite ao se voltar à questão do estatuto epistemológico da
medicina. Como toda ciência “a medicina teve de passar pelo estado de eliminação
provisória de seu objeto inicial concreto”, o que, no seu caso, diz respeito à “colo-
cação entre parênteses do doente tomado como alvo de cuidados” (ibid., p. 428).
Mas colocar entre parênteses é coisa distinta de perder de vista aquilo que é, no
limite, sua razão de ser. A medicina “pode ser dita uma ciência aplicada ou uma soma
evolutiva de ciências aplicadas”, pois “conserva o rigor teórico dos conhecimentos
que ela toma de empréstimo para uma melhor realização de seu projeto terapêutico,
tão originário quanto o projeto de saber, ao qual, aliás, ela própria trouxe seu con-
curso” (ibid., p. 423). Se na descrição da ars medica do Essai, pela insistência em
delimitar seus direitos de anterioridade em relação ao saber que ela informa,
Canguilhem chamava a atenção para os riscos das objetivações analíticas do pathos,
esse cuidado parece ter cedido lugar a uma confiança na impossibilidade de perder
de vista o vetor da atividade médica. A precariedade da vida que tornava necessária
a clínica como instância normativa torna a aparecer, federando, ao seu redor, aqui-
sições científicas convertidas em “mediações restauradoras de uma ordem orgânica
perturbada”. E se da medicina foi dito ser uma técnica da vida, enquanto “ciência
da esperança e do risco”, tributária de suas realizações históricas e extra-clínicas, ela
pode ser dita “autenticamente uma ciência da vida” (ibid., p. 425) em um sentido
outro que não de mera exclusividade objetal.
O objeto do qual ela suspende, por escolha metodológica, a presença inter-
rogativa, é, não obstante, sempre presente, desde que ele tomou a forma hu-
mana, indivíduo que vive uma vida da qual ele não é nem o autor nem o
mestre e que deve por vezes confiar, para viver, a um mediador. Qualquer que
seja a complexidade e a artificialidade da mediação […], qualquer que seja a
duração da colocação em suspenso do diálogo entre médico e doente, a
resolução de eficácia que legitima a prática médica é fundada sobre essa
modalidade da vida que é a individualidade do homem […]. E quando o es-
tatuto epistemológico da medicina surge na consciência como questão, vê-se
realmente que a busca de uma resposta levanta questões algures que não em
epistemologia da medicina (ibid., p. 428).

Donde o retorno de uma conclusão do Essai: a impossibilidade de “anular na


objetividade do saber médico a subjetividade da experiência vivida do doente” (ibid.,
p. 409). Não à toa Canguilhem falará em termos de um “dever de experimentação
clínica” (ibid., p. 390) no trato de saberes que perderam seu laço originário com a
clínica e que a ela retornam por um longo desvio pelos progressos da racionalidade
médica. Pois cuidar é sempre “decidir realizar, em proveito da vida, alguma experi-
ência”, no sentido de colocar à prova da individualidade orgânica, levando em conta
a “urgência das situações e a individuação dos objetos” (ibid., pp. 391 e 389), meios
cujos contornos foram decididos sob condições técnicas e científicas impessoais.
discurso, v. 49, n. 2 (2019), pp. 187–210 201

Persistência, pois, da doença e do doente além de sua versão clínica no horizonte da


prática médica. Seria possível dizer que, para Canguilhem, visando contrastar sua
postura com a maneira pela qual Foucault encontrou historicamente determinada a
medicina no breve limiar cronológico percorrido em Naissance de la clinique, as ra-
zões históricas da medicina se encontram além da história?
À primeira vista isso pareceria contraditório diante da atitude canguilheniana em
face da historicidade do discurso científico, “efetuação de um projeto interiormente
normalizado, mas atravessado por acidentes, retardado ou desviado por obstáculos,
interrompido por crises” (ibid., p. 17). Nada de refratário ao trato canguilheniano
da história da medicina, que inclui a “história das relações de evicção do inautêntico
pelo autêntico” (Canguilhem, 2009b, p. 39). Decerto isso exclui “uma escatologia
da verdade médica” ou uma sequência contínua de precursores que se sucedem, mas
Canguilhem não deixa de se referir “à continuidade de certa eficácia médica” e “ao
horizonte de uma cura sempre possível” (Moulin, 1993, p. 126). Não haveria algo
análogo no valor epistemológico reconhecido à clínica? Fonte dos saberes, logo, de
suas próprias rupturas pelos novos problemas que ela não cessa de oferecer ao olhar
analítico, ela não atenta menos para uma precariedade vital de fundo. Teríamos
então um duplo enxertamento da história do saber médico sobre a vida: de destina-
ção e originário, horizonte de aplicação terapêutica e solo a partir do qual se crista-
lizam soluções positivas. A medicina possui uma história, mas aquilo que Foucault
localizaria no interior de uma mutação no campo geral do saber, em distintos regi-
mes de espacialização do patológico, Canguilhem apresenta como o núcleo trans-
histórico ao redor do qual orbita, por vezes colocada em movimento na urgência
normativa da clínica, sua historicidade. Daí Canguilhem ter falado em termos de
um projeto terapêutico originário que imanta a prática e o saber médico na direção
de uma realidade que, por assim dizer, se encontra além das determinações da his-
toricidade do discurso científico. Fonte ou destinação, ela aponta para algo exterior
ao enquadramento epistêmico e político — logo histórico — que, para Foucault,
seria capaz de explicar sua gênese e decidir acerca de seus contornos. A medicina,
diz Foucault (2001a, p. 209), é sempre uma prática cujo fundamento é uma “tecno-
logia do corpo social” e a doença, “a maneira pela qual o doente a experimenta e
exprime”, é “sempre mais que uma infelicidade ou um sofrimento individuais”
(ibid., p. 726). Nada menos canguilheniano que essa caracterização do mal orgânico.

Medicina, sociedade, poder em Foucault


Quando Foucault retoma, nos anos 1970, suas análises em torno da medicina, o ele-
mento poder — no sentido muito preciso de “situação estratégica complexa em uma
sociedade dada” (Foucault, 1976, p. 123) —, que em Naissance de la clinique aparecia
diluído no campo geral do saber, será determinante. A própria clínica de finais do
século XVIII será dita edificada sobre os “arquivos de pouca glória onde se elaborou o
202 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

jogo moderno das coerções sobre o corpo, os gestos e os comportamentos” (id., 1975,
p. 224), parte, portanto, de um “sistema histórico” que se liga às determinações de
“um sistema de poder” (Foucault, 2001a, p. 58). Não há sociedade que não tenha
elaborado uma “noso-política” (ibid., p. 14), reconhece Foucault, voltando-se à espe-
cificidade daquela elaborada na França do século XVIII. Especificidade que não se liga
apenas aos elementos ali coordenados, mas também aos efeitos de longo prazo para
os quais eles apontam. No século XVIII ocorre “um desbloqueio técnico e epistemo-
lógico da medicina de uma importância considerável” (ibid., p. 44), uma abertura na
direção da ingerência de realidades que excedem sua função terapêutica.
Essa é uma das características da medicina atual, ainda que possamos facil-
mente mostrar que se trata de um velho fenômeno, ligado à decolagem mé-
dica. Desde o século XVIII, a medicina não cessou de se ocupar do que não lhe
dizia respeito, ou seja, do que não se relaciona com os diferentes aspectos dos
doentes e das doenças. Foi precisamente dessa maneira que se efetuou o
desbloqueio epistemológico do fim do século XVIII. Até os anos 1720-1750, as
atividades dos médicos se concentravam sobre a demanda dos doentes e de
suas doenças […]. Até o século XVIII, a medicina não tinha se libertado de seu
encurralamento científico e terapêutico no qual ela se encontrava desde a
época medieval. A partir desse momento, ela começou a considerar outros
domínios distintos das doenças, a se interessar por outros aspectos que não
eram os doentes (ibid., p. 50).

Ocupando-se do “fato que a existência, a conduta, o comportamento” e “o corpo


humano se integram em uma rede de medicalização cada vez mais densa”, que
“deixa escapar cada vez menos coisas” (ibid., p. 208), Foucault demonstra que a
medicina será, em certo sentido, medicina de praticamente tudo, menos, no limite,
do mal orgânico. Em Naissance de la clinique Foucault mostrou que a doença era
localizada algures, que não no corpo, antes de ser identificada aos seus volumes e
massas pela anatomo-clínica. Essa livre espacialização do patológico, que sinalizou
para uma desnaturalização radical da relação doença-organismo, será seguida de
uma desnaturalização não menos radical da relação medicina-terapêutica. Despato-
logização dos objetos da medicina tem seu ponto de partida justamente na medica-
lização do hospital, que apenas adquire estatuto terapêutico, vimos, em finais do
século XVIII, quando se torna “em sua própria materialidade um operador terapêu-
tico” (Foucault, 1975, p. 203). Foi a “introdução de mecanismos disciplinares5 no
espaço desordenado do hospital” que permitiu essa mutação (id., 2001a, p. 517).
O hospital deve doravante permitir a observação dos doentes e um melhor ajuste
dos cuidados; a disposição de seus cômodos deve impedir os contágios. É o médico,
não mais os membros de ordens religiosas, que assume a responsabilidade por sua

5
As disciplinas são uma “técnica geral de governo dos homens” elaborada ao longo da Era clássica (Foucault,
1999, p. 45). Elas não se identificam com uma instituição ou aparelho particular, dizem respeito a uma mo-
dalidade de exercício de poder “que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedi-
mentos, de níveis de aplicação, de alvos” (id., 1975, p. 271).
discurso, v. 49, n. 2 (2019), pp. 187–210 203

organização, surgindo o “personagem do médico de hospital, que não existia antes”.


De sua presença constante e obrigatória decorre a organização de um sistema de
registros permanentes. Assim se constitui “não somente um lugar de cura, mas tam-
bém um lugar de produção de saber médico” que, até então localizado nos tratados
clássicos, “começa a ocupar um lugar que não é o texto, mas o hospital” (ibid.,
pp. 520 e 521). Foucault já havia chamado a atenção para a centralidade do hospital
na gênese de uma clínica que se ocupa do indivíduo. Mas esse mesmo hospital é
também capaz de conduzir a medicina algures.
Pela aplicação da disciplina ao espaço hospitalar e pelo fato que é possível
isolar cada indivíduo, instalá-lo em um leito […], somos conduzidos para uma
medicina individualizante. Com efeito, é realmente o indivíduo que será ob-
servado, vigiado, conhecido e cuidado. O indivíduo emerge então como ob-
jeto do saber e da prática médica. Ao mesmo tempo, pelo sistema do espaço
hospitalar disciplinado, é possível observar um grande número de indivíduos.
Os registros realizados cotidianamente, quando são comparados àqueles de
outros hospitais ou àqueles de outras regiões, permitem estudar os fenômenos
patológicos comuns a toda a população. Graças à tecnologia hospitalar, o in-
divíduo e a população se apresentam simultaneamente como objetos do saber
e da intervenção médica (Foucault, 1975, p. 521).

Não é o hospital o responsável pela introdução da população no campo das es-


tratégias bio-políticas que irão investir “o espaço inteiro da existência” (Foucault,
1976, p. 189). É o aumento demográfico que a Europa assiste ao longo do sé-
culo XVIII, a necessidade de controlá-lo, que faz aparecer a população6 não apenas
como “problema teórico, mas como objeto de vigilância, de análise, de intervenções,
de operações modificadoras” (id., 2001a, p. 18). Novos mecanismos de controle, ir-
redutíveis às disciplinas, elaboram “intervenções específicas” (ibid., p. 730), toda
uma “tecnologia da população” da qual a medicina toma parte.7 Quando a saúde e
o bem-estar físico da população aparecem como “um dos objetivos essenciais do
poder político” (ibid., pp. 16 e 18) é possível observar algumas mudanças no exercício
da medicina. Primeiramente, o “sentido normativo tradicional” da saúde enquanto
aquilo que “a opõe à doença” se desdobra em uma “significação descritiva; a saúde
é então o resultado observável de um conjunto de dados” de uma coletividade.
Em segundo lugar, o “desenvolvimento de tipos de intervenção que não são nem

6
Com as variáveis que lhe são próprias (natalidade, morbidade, duração da vida, fecundidade, estado de saúde,
frequência das doenças, forma de alimentação e de habitação) e “que se encontram no ponto de cruzamento
dos movimentos próprios à vida e dos efeitos particulares nas instituições” (id., 1976, p. 36).
7
A noso-política do século XVIII opera então na intersecção dos dois pólos ao redor dos quais se desenvolveu,
desde o século XVII, a “organização do poder sobre a vida”: “disciplinas: anatomo-política do corpo humano” e
“controles reguladores: uma bio-política da população”. Enquanto as primeiras são centradas sobre o corpo in-
dividual visando a majoração de suas aptidões e a extorsão de suas forças, os segundos se ocupam do corpo
enquanto suporte de processos biológicos. Tecnologia de dupla face de “um poder cuja mais elevada função
[…] é investir a vida de uma ponta a outra” (ibid., p. 183).
204 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

terapêuticas nem mesmo médicas no sentido estrito”, pois dizem respeito “às con-
dições e aos modos de vida, à alimentação, ao habitat, ao meio, à maneira de criar
os filhos” (ibid., p. 727). A medicina deixa de ser simplesmente “uma técnica im-
portante nessa vida e nessa morte dos indivíduos” para se tornar, pelo “controle das
formas de existência e de coexistência”, elemento essencial para a manutenção e de-
senvolvimento da coletividade (ibid., pp. 727 e 731). De duas maneiras Foucault
observa a interpenetração do político e do médico na noso-política do século XVIII,
na higiene pública e na medicalização da família.
No espaço urbano são isoladas “regiões a medicalizar […], pontos de aplicação
do exercício de um poder médico intensificado”. Cabe à instituição médica identi-
ficar os lugares que gerariam e difundiriam fenômenos epidêmicos ou endêmicos,
elaborar medidas visando uma boa circulação do ar e da água, estabelecer as diretri-
zes de uma organização sanitária da cidade. Não se trata de uma “medicina do ho-
mem, do corpo e do organismo, mas uma medicina das coisas: do ar, da água, das
decomposições, das fermentações […], das condições de vida do meio de existên-
cia”. Surge a noção de salubridade, que diz respeito “ao estado do meio ambiente e
aos seus elementos constitutivos”, bem como de higiene pública, “técnica de con-
trole e de modificação dos elementos do meio” que podem favorecer ou prejudicar
a saúde (ibid., p. 222). É a função de higienista, não de terapeuta, que garante ao
médico do século XVIII uma posição politicamente privilegiada. Por meio de uma
medicina que é “técnica geral da saúde” mais que “arte das curas”, o médico adquire
progressivamente um lugar proeminente nas estruturas administrativas, em uma
“maquinaria de poder que não cessa, ao longo do século XVIII, de se estender e de
se afirmar”, fixando-lhe tarefas que se traduzem em “prescrições que dizem respeito
não somente à doença, mas às formas gerais da existência e do comportamento”
(ibid., p. 23). O segundo elemento determinante da noso-política do século XVIII é
a “organização da família […] como instância primeira e imediata de medicalização
dos indivíduos” (ibid., p. 21). A família se torna “o agente mais constante da medi-
calização”. Ela não é apenas uma rede de relações inscrita em um sistema estatutário
de parentesco ou de transmissão de bens, mas um “meio físico, denso, saturado,
permanente, contínuo, que envolve, mantém e favorece o corpo da criança” (ibid.,
p. 19), capaz de articular os “objetivos gerais concernentes à boa saúde do corpo
social e o desejo ou a necessidade de cuidados dos indivíduos”, ou seja, uma “ética
privada da boa saúde” e um “controle coletivo da higiene” (ibid., p. 21). Com a
noção de família medicalizada-medicalizante, Foucault introduz um operador im-
portante em se tratando do fenômeno da “medicalização indefinida” (ibid., p. 48).
Ela reaparece como um dos elementos que permite à psiquiatria do século XIX se
tornar “instância de controle geral das condutas” e “dos comportamentos em geral”
(Foucault, 1999, p. 290).
discurso, v. 49, n. 2 (2019), pp. 187–210 205

Medicalização das coisas e da família são elementos de uma tendência de exten-


são do controle médico. Enquanto tendência, admite Foucault (2001a, p. 57), “Vi-
vemos uma situação que alguns fatos conduziram ao paroxismo”. Se esse é um velho
fenômeno, o que caracteriza mais particularmente o período atual “é que a medicina
desses últimos decênios […] começa a não ter mais domínio que lhe seja exterior”
(ibid., p. 51). Seus efeitos de poder aparecem “na família, na indústria, nos tribunais,
a propósito da sexualidade, da educação, do trabalho e do crime” (ibid., p. 76).
Limitemo-nos a um exemplo indicativo do paroxismo supracitado. Com as técnicas
de que dispõe a atual medicina, “a possibilidade de modificar a estrutura genética
das células não afeta somente o indivíduo ou sua descendência, mas a espécie hu-
mana inteira”, de modo que “é o conjunto do fenômeno da vida que se encontra
doravante colocado no campo de ação da intervenção médica”. Logo, se o campo
tradicional da medicina é delimitado pela demanda do doente e pela doença, “não
há dúvida que a medicina atual foi muito além dele” (ibid., p. 48). Medicalização
indefinida que, “do nascimento à morte, sugere uma obsessão de normalidade”
(Le Blanc, 2002a, p. 145).
A intervenção autoritária da medicina em um domínio cada vez mais vasto da
existência individual ou coletiva é um fato absolutamente característico. Hoje
em dia, a medicina é dotada de um poder autoritário de funções normaliza-
doras que vão muito além da existência das doenças e da demanda do doente.
Se os juristas dos séculos XVII e XVIII inventaram um sistema social que deveria
ser dirigido por um sistema de leis codificadas, podemos afirmar que os mé-
dicos do século XX encontram-se em vias de inventar uma sociedade da norma
e não da lei. O que rege a sociedade não são os códigos, mas a distinção per-
manente entre o normal e o anormal, a tentativa perpétua de restituir o
sistema de normalidade (Foucault, 2001a, p. 50).

Não foi a medicina que instaurou um gênero de poder que, ocupando-se dos
processos da vida para controlá-los e modificá-los, lança mão de “mecanismos con-
tínuos, reguladores e corretivos” (Foucault, 1976, p. 189). Foucault observou que “a
normalização se torna um dos grandes instrumentos de poder ao fim da era clássica”
(id., 1975, p. 216), além de presente, ao longo do século XVIII, “em todos os níveis
do corpo social” e em “instituições muito diversas” (id., 1976, p. 185). Por que então
reconhecer à medicina, em uma sociedade obsedada em seu funcionamento pela
normalidade, um polo de irradiação normalizadora? Desde Naissance de la clinique
Foucault deixou entrever a resposta, vimo-lo: a medicina é a “ciência por excelência
do normal e do patológico” (id., 2001a, p. 76). O modo como ela partilha a realidade
sobre a qual se aplica originariamente, o doente e a doença, não se distingue da
maneira pela qual é operada a partilha (normal-anormal) daquilo que se apresenta
como superfície sobre a qual será aplicada, a partir do século XVII, um poder nor-
malizador — e não necessariamente medicalizado no sentido dos processos que Fou-
cault encontra na noso-política do século XVIII. Por um lado, seria possível dizer
206 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

que, na forma pela qual ele se exerce, o poder normalizador é de tipo médico.
Por outro, há o funcionamento efetivo da medicina enquanto estratégia bio-política,
que a faz tomar parte na grade ubíqua do poder que normaliza. Mas eis o ponto:
essa captura da medicina por um intento normalizador que a ultrapassa não se faz
sem uma extensão da medicina além de seu campo habitual. Medicalizar realidades
extramédicas não é simplesmente buscar na medicina uma legitimação científica
para controles jurídicos ou administrativos. A medicina não poderia se ocupar de
um campo de intervenção que “não é mais unicamente ligado às doenças” (ibid.,
p. 49) sem o que Foucault denominou seu desbloqueio epistemológico. Elencando
os elementos que permitiram à psiquiatria estender sua ingerência a um universo
ilimitado de condutas, Foucault observa algo que, de nosso ponto de vista, se apli-
cado à noso-política do século XVIII e à tendência da qual ela é a expressão, aponta
para uma operação fundamental nesse processo.
A partir do meio do século XIX observa-se uma relação de poder que apenas se
exerce (e ainda hoje) na medida em que é um poder medicamente qualificado,
mas um poder medicamente qualificado que submete ao seu controle um
domínio de objetos que são definidos como não sendo processos patológicos.
Despatologização do objeto: essa foi a condição para que o poder, contudo
médico, da psiquiatria, pudesse assim se generalizar […]. Poder médico sobre
o não-patológico: é esse, creio, o problema central (Foucault, 1999, p. 292).

Desbloqueio epistemológico da medicina e despatologização de seu objeto são opera-


ções importantes, dada a contraposição que autorizam com a questão canguilheniana
em torno do estatuto epistemológico da medicina. Canguilhem considera seus desen-
volvimentos históricos além do núcleo clínico como índices de uma eficiência tera-
pêutica senão sempre aumentada, ao menos jamais perdida de vista. Foucault, ao
contrário, observa como a medicina, estendendo seu campo de ação, perde justa-
mente de vista o mal orgânico, o doente e o intento terapêutico. Se para Canguilhem
o indivíduo doente é, ao longo da história, colocado entre parênteses pela medicina
para ser em seguida alcançado por um saber que sobre ele se aplica, para Foucault ele
o é, digamos, colocado em suspenso pois inserido nessa “rede de controle médico
que se encontra em vias de se estabelecer por toda parte” (Foucault, 2001a, p. 77).

Considerações finais
Podemos nos perguntar se o trato canguilheniano da clínica e da história dos saberes
biomédicos não acaba por colocar a própria medicina entre parênteses, sempre re-
metida, em seus contornos epistêmicos, históricos e institucionais à precariedade da
vida humana. Canguilhem se ocupa da medicina ao longo de sua trajetória de inves-
tigações sempre a remetendo à vitalidade que ela ora sufoca, ora prolonga direta ou
indiretamente, ora justifica, e que ele pôde definir, justamente, ao observar na clínica
sua expressão antropológica na atenção ali dirigida ao pathos. Podemos também nos
discurso, v. 49, n. 2 (2019), pp. 187–210 207

perguntar se Foucault não fez algo análogo, se por meio da medicina não é outro
fenômeno que se encontra em questão, mais profundo. Enquanto estratégia bio-po-
lítica, o valor da medicina para Foucault não reside no hermetismo de seu desenvol-
vimento enquanto ciência ou arte da cura, mas na maneira como ela expressa um
poder que, por meio dela — mas não somente por ela — “investiu o que há de mais
material, de mais vivo” nos corpos, ligando o biológico e o histórico “segundo uma
complexidade crescente à medida que se desenvolvem as tecnologias modernas de
poder que tomam por alvo a vida” (Foucault, 1976, p. 200). Poderíamos também
nos perguntar, sem a intenção de oferecer, aqui, uma resposta definitiva — quando
muito apontando a direção de uma análise que apenas pode ser empreendida à parte
— se essas duas maneiras de proceder não guardariam certa complementaridade.
Segundo Dagognet (1997, p. 51), a hostilidade canguilheniana à “estandardização
do corpo” antecipa as análises de Foucault. É fato que Foucault reconheceu que as
forças que resistem contra esse poder “se apoiaram sobre aquilo mesmo que ele in-
vestia — ou seja, sobre a vida e o homem na medida em que ele é vivo” (Foucault,
1976, p. 190). As grandes lutas que colocam em questão o sistema geral de poder
reivindicam um direito à vida, “entendida como necessidades fundamentais, essên-
cia concreta do homem, realização de suas virtualidades, plenitude do possível”
(ibid., p. 191). Porém, a vida que retorna para Foucault contra seu investimento
político não guarda o mesmo estatuto que a espontaneidade vital que Canguilhem
encontrou em suas análises. Enquanto para Canguilhem “todas as atividades huma-
nas” — notoriamente a medicina, pelas razões que apontamos — “são da alçada de
uma vivacidade própria à vida que, no homem, se esforça por se colocar como vida
vivível”, Foucault mostra que elas “são tomadas em dispositivos que integram rela-
ções de poder e ordens de discursos particulares”, de modo que, para Foucault, não
se coloca a questão de “reportar-se à vida sob os dispositivos para escavar sua evi-
dência matinal” (Le Blanc, 2002b, p. 11).
Foucault admite que a “história do homem e a vida se encontram profundamente
implicadas”. Não porque a história humana continua aquela da vida, mas porque
ela “a retoma até certo ponto e pode exercer sobre seu processo certo número de
efeitos fundamentais” (Foucault, 2001a, p. 48). Essa entrada da vida na história, não
por um prolongamento de seus desígnios, mas por uma direção e controle de seus
mecanismos, é coextensiva à “entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie hu-
mana na ordem do saber e do poder”, no “campo das técnicas políticas”, no “domí-
nio de cálculos explícitos” (Foucault, 1976, pp. 186 e 188). Algo que podemos reme-
ter, por exemplo, à noso-política do século XVIII e aos seus efeitos de longo prazo.
Foucault reconhece que não se trata da primeira vez que a vida e a história entraram
em contato. A “pressão do biológico sobre a história” foi durante muito tempo ine-
gável, “a epidemia e a fome constituíam as duas grandes formas dramáticas dessa
208 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina

relação que permanecia, assim, colocada sob o signo da morte” (ibid., p. 186). Lida-
mos aqui com uma rara ocasião na qual o biológico parece figurar nos desenvolvi-
mentos foucaultianos como realidade cuja ação se faz sentir à revelia de sua captura
pelo campo do discurso e do poder. Breve licença que não conduz Foucault a uma
definição do vital, tampouco ao reconhecimento, como será o caso para Cangui-
lhem, de que esse horizonte de precariedade representado pela morte daria conta de
atentar — ou melhor, a negativa antropológica a ele endereçada tal qual testemunha
a clínica médica — para a normatividade definidora do vital. Uma vez afastados os
riscos iminentes da morte em massa ao longo do século XVIII, quando a era das
grandes devastações da fome e da peste “começam a não mais fustigar diretamente
a vida” (ibid., p. 187), Foucault observa outro gênero de relação entre o biológico e
o histórico, o segundo dirigindo o primeiro em vez de sofrer seus insidiosos efeitos.
No terreno assim conquistado, organizando-o e ampliando-o, os processos da
vida são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que tentam
controlá-los e modificá-los. O homem ocidental aprende pouco a pouco o que
é ser uma espécie viva em um mundo vivo, ter um corpo, condições de ex-
istência, probabilidades de vida, uma saúde individual e coletiva, forças que é
possível modificar e um espaço onde é possível reparti-las […]. Pela primeira
vez sem dúvida na história o biológico se refletiu no político; o fato de viver
não é mais esse sustentáculo inacessível que apenas emerge de tempos em tem-
pos, no acaso da morte e sua fatalidade; cai, em parte, no campo do controle
do saber e da intervenção do poder (ibid.).

O homem canguilheniano, na miríade de seus expedientes normativos, não dirige


também de certo modo a vida, não visa controlar seus mecanismos? Na clínica, por
exemplo, não lidaríamos com uma tentativa de modificação de sua própria condição
somática? Decerto. Porém, em um cenário onde a norma é a própria vida e as modi-
ficações realizadas se confundem com o viver e com uma vitalidade que elas prolon-
gam. Foucault admitiu, na passagem acima, que no investimento político da vida o
homem percebe pouco a pouco o que é ser uma espécie viva em um mundo vivo.
Ele não agiria, então, enquanto vivo? Lembremos que em Les mots et les choses Fou-
cault (1966, p. 319) lançou o veredicto: antes do fim do século XVIII o homem não
existia, “criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há
menos de duzentos anos”. Dizer então que esse homem se descobre vivo em um
mundo de vivos não implica reconhecer que sua vida de vivo não escapa às determi-
nações contingentes de um surgimento, logo, sem essência anterior a uma determi-
nação? Nas palavras de Le Blanc (2002b, p. 12), do choque entre Canguilhem e Fou-
cault a tarefa que se coloca é “articular a vida sem condição à vida sob condição”.
Enquanto Canguilhem revela uma “lógica pura da vida criadora, conectando-se par-
cialmente com as filosofias da vida de Bergson e de Nietzsche”, Foucault abandona
toda tentativa de retorno direto e imediato à vida “em proveito de uma construção
dos quadros epistemológicos, políticos e normativos nos quais certa codificação da
discurso, v. 49, n. 2 (2019), pp. 187–210 209

vida é produzida” (ibid., p. 9). Concluamos com uma questão: de uma vida sem
conceito, sem cuidado de definição, pura pressão avassaladora sinalizada pela morte,
a uma vida objeto de controle e modificação — e Foucault admitiu, lembremos, que
as forças que resistem a esse poder se apoiam justamente sobre o que ele investia —,
não seria possível, em todo caso, dizer que persiste uma vida, sem com isso reconhe-
cer um retorno à normatividade biológica que Canguilhem colocou no centro de
suas análises? Não nos cabe levar a cabo esse questionamento, o que exigiria percorrer
outros terrenos. Apenas apontemos o caminho que Canguilhem (1986, p. 40) ele
próprio entreviu: “Face à normalização e contra ela, Le Souci de soi”.

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