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RESUMO ABSTRACT
Este artigo aborda o tratamento que Can- This article deals with the treatment that
guilhem e Foucault oferecem da medicina. Canguilhem and Foucault offer to medicine.
Passando pelas distintas análises da clínica, Going over different analysis of clinics, of
da medicina em sua história e de seu aspecto medicine in its history and its social and po-
social e político, observaremos desdobra- litical aspect, it is possible to point out irre-
mentos irredutíveis em torno de uma pro- ducible unfolding around a shared issue.
blemática compartilhada.
*
Este artigo é fruto de pesquisa de pós-doutorado financiada pela FAPESP e realizada junto ao Departamento
de Filosofia da UNICAMP sob a supervisão do Prof. Dr. Luiz Benedicto Lacerda Orlandi.
188 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina
Introdução
Duas décadas separam o célebre Essai sur quelques problèmes concernant le normal et
le pathologique (1943), tese de medicina de Canguilhem, filósofo-médico, e Nasci-
mento da clínica (1963), obra na qual Foucault se dedica de maneira exaustiva à ques-
tão médica — mais tarde abordada com outro viés e de maneira diluída através de
seus escritos. Muitos afirmam uma suposta complementaridade entre as duas obras,
Foucault fornecendo o estofo histórico dos corolários filosóficos que Canguilhem
extraiu do exame da clínica (Bing e Braunstein, 1999, p. 51; Gutting, 1999, p. 136).
Não nos cabe refutar essa suposição: afinal o método clínico e anatômico-clínico,
parcialmente questionado pela medicina experimental de Claude Bernard, tem uma
longa história no século XVIII. Mas é certo que as relações de Canguilhem e de Fou-
cault em torno da problemática médica não se resumem a uma suposta complemen-
taridade. Para Canguilhem, a clínica tem um sentido biológico ao qual a história
arqueológica traçada por Foucault permaneceu indiferente. Canguilhem esperava
da medicina, no Essai, uma “introdução a problemas humanos concretos”, que o
levaram a defini-la como “uma técnica ou arte na encruzilhada de muitas ciências,
mais do que como uma ciência propriamente dita” (Canguilhem, 2013, p. 8).
Foucault, por sua vez, ao tomar a medicina como objeto de análise observa nela
algo diferente. Em La Volonté de savoir, quando a noção de biopoder já se encontra
assentada em seu itinerário de reflexões, Foucault é categórico: “Uma sociedade nor-
malizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada sobre a vida”.
Trata-se de um poder que “tem de qualificar, medir, apreciar, hierarquizar”, que
“opera distribuições ao redor da norma” (Foucault, 1976, p. 191), que “não se efetua
somente pela consciência ou pela ideologia, mas também no corpo e com o corpo”.
Nesse quadro a medicina se apresenta como “estratégia bio-política” (Foucault,
2001a, p. 210). Senão a única, decerto decisiva, tal qual pressentiu, aliás, Naissance
de la clinique. Se é verdade que a medicina toma na gestão da existência humana
“uma postura normativa” (Foucault, 2015, p. 60), ela é mais que uma prática ou um
saber informado em seu funcionamento por uma tecnologia ubíqua de poder que a
coloniza. Ela apresenta uma legitimidade originária e transferível, por exemplo, às
ciências do homem do século XIX. Seus “conceitos eram dispostos em um espaço
cuja estrutura profunda correspondia à oposição do saudável e do mórbido”.
Quando se fala da vida dos grupos, das sociedades, da raça e da vida psicológica não
se pensa propriamente “na estrutura interna do ser organizado, mas na bipolaridade
médica do normal e do patológico”. Mais que “biologicamente subentendidas”, as ci-
ências do homem “o eram medicamente” (ibid., p. 62). Levando ao termo esse poder
conferido à medicina, reconhecendo-lhe uma amplitude ainda inimaginável em
Naissance de la clinique, Foucault não hesitará em afirmar alhures que em uma so-
ciedade “articulada sobre a norma” ela se torna a “ciência reinante”. Na sociedade
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aquém e além de seu domínio” (ibid., p. 9). Gênese, pois, do que pode ver o clínico
no hospital e o anatomista nas vísceras do cadáver, mas gênese também, simultânea,
do sujeito armado do olhar e da linguagem que permite ver e dizer.
Seria inexato […] ver na medicina clínica do final do século XVIII um simples
retorno à pureza de um olhar muito tempo sobrecarregado de falsos conheci-
mentos. Sequer se trata simplesmente de um deslocamento desse olhar, ou de
uma mais fina aplicação de suas capacidades. Novos objetos se oferecerão ao
saber médico na medida em que e ao mesmo tempo que o sujeito que conhece
se reorganiza, se modifica e coloca-se a funcionar de um novo modo. Não é
então a concepção da doença que foi primeiramente modificada, depois a
maneira de reconhecê-la; não é também o sistema de sinais que foi modificado
depois a teoria; mas todo um conjunto e mais profundamente a relação da
doença com esse olhar ao qual ela se oferece e que ao mesmo tempo ela con-
stitui (Foucault, 2015, p. 129).
1
Não à toa Foucault (1969, p. 74) reconhecerá que a expressão “olhar médico” mobilizada em Naissance de la
clinique pode não ter sido absolutamente feliz.
2
Foucault deteve sua análise em Naissance de la clinique onde Canguilhem, no Essai, inicia a sua: com Brous-
sais. Cl. Bernard é praticamente ausente de Naissance de la clinique e há razões para isso. Fundando uma
“percepção” e moldando uma “sensibilidade médica”, a anatomia patológica de Bichat e a medicina fisioló-
gica de Broussais seriam da alçada de uma “estética transcendental da patologia” (Dagognet, 1965, pp. 436 e
444). Ao primado da observação Claude Bernard acrescentará seu protocolo experimental visando percorrer
o determinismo do meio interior. E pela prática da vivissecção, o experimentador, além de observador, é um
“inventor de fenômenos, um verdadeiro contramestre da criação” (Bernard, 2008, p. 59). Para tanto, “Toda
ciência experimental exige um laboratório” (ibid., p. 247). O hospital não é o laboratório do médico, apenas
seu campo de observação. Aí ele pratica a clínica, “estudo tão completo quanto possível no leito do doente”.
A medicina começa necessariamente pela clínica, pois é ela quem determina e define seu objeto. Mas isso não
faz da clínica a base da medicina científica. O hospital e a observação clínica apenas são seu “vestíbulo”: é o
laboratório o “verdadeiro santuário da ciência médica; é somente” nele que o médico deve buscar “as expli-
cações do estado normal e patológico por meio da análise experimental” (ibid., p. 256).
194 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina
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Canguilhem precisa que não existe propriamente “a-normal”, no sentido de “privação de um caráter positivo
prévio” (2015, p. 104), pois não há vida sem normas. O julgamento que permite qualificar de patológico deter-
minado estado ou circunstância é informado por uma norma que orienta a apreciação axiológica em questão.
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Avisados que fomos acerca dos riscos dessas objetivações analíticas do patológico,
uma questão se impõe: de que maneira esses saberes se relacionam com a subjetivi-
dade axiológica ao redor da qual orbitava a medicina? Primeiramente, mobilizadas
pelo médico na clínica, elas podem se anexar ao caráter técnico e normativo da ars
medica. Mas essa não é a única maneira de abordar a história da medicina que Can-
guilhem mobiliza na contramão de Foucault, para quem a doença apenas ganha
significado no interior de um enquadramento epistêmico e social. O patológico é
também investido de uma dignidade epistemológica: ele é, de direito, solo originário
do saber, o que não se dá sem nova valorização da clínica. Não mais do lado dos
serviços prestados ao doente, mas do corpus teórico que uma “uma informação clí-
nica prévia” (id., 2013, p. 65) torna possível. “A doença se encontra no princípio da
atenção especulativa que a vida liga à vida por intermédio do homem”. Essa propri-
edade, válida no plano da subjetividade doente, é capturada por certo gênero de
saber. “A vida apenas se eleva à consciência e à ciência de si mesma pela inadaptação,
pelo malogro e pela dor”, de modo que é possível afirmar que “é o pathos que con-
diciona o logos” (ibid., pp. 76 e 183). Não se trata, a bem dizer, de um axioma indis-
tintamente aplicável a todos os saberes biomédicos, mas notadamente a certa fisio-
logia, cuja história “não pode ser absolutamente estranha à história da clínica e da
patologia médicas” (id., 2002b, p. 237). Essa preeminência da clínica se justificaria
pois — a despeito “dos assaltos das técnicas do laboratório”, da anatomia que “dis-
seca o cadáver” e da fisiologia que “traumatiza os animais” — somente ela “conduz
ao homem concreto-completo” (Dagognet, 1955, p. 87).
Esse é um fio condutor que Canguilhem encontrou para o trato da história da
fisiologia que poderíamos dizer ser uma primeira incursão, tributária das conquistas
teóricas do Essai4, pela história das ciências biomédicas. Tributária de uma clínica
que, de significação biológica, parece colocada fora da história, mas que figura como
sendo, ao menos de direito, o solo originário de todo saber que se localiza na histó-
ria. Ora, quando redigiu o Essai, Canguilhem não tinha ainda iniciado sua obra de
4
Se as investigações fisiológicas possuem uma história, trata-se de “uma história da formação, da deformação
e da retificação de conceitos” (ibid., 2002b, p. 235). Somos com isso remetidos a Bachelard (1968, p. 16), para
quem a retificação do passado é “o princípio fundamental que sustenta e dirige o conhecimento”. Mas Can-
guilhem introduz uma realidade estranha à epistemologia bachelardiana, aquela do pathos que obseda o saber
fisiológico. Pois “Do mesmo modo que os povos felizes não tem história, homens imperturbavelmente sau-
dáveis não conheceriam ciência da saúde, fisiologia” (Canguilhem, 2002b, p. 258).
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historiador das ciências da vida, o que “não lhe permitirá revelar o primado da clí-
nica na origem e nos fundamentos conceituais dessas ciências” (Morange, 2013,
p. 160). De fato, quando Canguilhem se volta à análise das mutações dos saberes
biomédico posteriormente ao Essai, a clínica, até então saturada de valores vitais e
epistemológicos, perde terreno. Não obstante, algo persiste. De um lado, a indivi-
dualidade doente. Não mais enquanto fonte dos saberes que se anexam à terapêu-
tica, mas como realidade colocada entre parênteses pelos progressos do saber. A me-
dicina perde de vista a dinâmica axiológico-normativa que parecia destinada a ser a
sede de um imanentismo absoluto entre a exigência que ela colocava e a realização
dessa exigência por um saber que se originaria nela própria. Uma medicina que po-
deria ser dita, no Essai, técnica ou arte da vida, será caracterizada como “um saber
cujos progressos são parcialmente devidos à colocação entre parênteses do doente
enquanto eleito da solicitude médica” (Canguilhem, 2002a, p. 36). De outro lado,
persiste a função terapêutica da medicina. “Não há medicina sem diagnóstico, sem
prognóstico, sem tratamento” (id., 2002b, p. 418). Uma inalienável função terapêu-
tica, progressivamente eficaz, mediante uma colocação entre parênteses da indivi-
dualidade doente: tal é o fio condutor pelo qual Canguilhem abordará a história da
medicina ao longo dos séculos XIX e XX.
Canguilhem (2009b, p. 72) afirma que o projeto comum a Bacon e Descartes,
preservar a saúde e prolongar a vida, não manifestava nenhuma realização assinalável
na medicina francesa de meados do século XVIII, tragicamente impotente em realizar
seu projeto”, situação que começa a mudar na virada dos séculos XVIII e XIX.
O critério para essa assertiva é prático, sem ser imediatamente técnico no sentido do
Essai. Canguilhem se voltará a um gênero de medicina que, “muito mais eficaz”, é
acompanhado de um “déficit de clínica” (Debru, 2007, p. 50). Tomemos um caso
exemplar mobilizado por Canguilhem. Pasteur, “químico, sem formação médica”,
bem como Koch e seus alunos “paradoxalmente mais fizeram pela medicina clínica
que os clínicos de sua época”. Pela descoberta de “uma forma de etiologia não fun-
cional”, impõe-se “à medicina uma mudança de destinação e um deslocamento de
seus lugares de exercício. Cuidar em vista de curar se fazia no domicílio ou no hos-
pital. Vacinar para prevenir iria se dar no dispensário, na caserna, na escola (Cangui-
lhem, 2002b, p. 421). Pela primeira vez em sua história, admite Canguilhem, a me-
dicina “pôde sustentar efetivamente sua ambição de curar indivíduos, prevenir e ex-
tinguir doenças contagiosas […], prolongar, e com efeito dobrar, a esperança da
vida” (ibid., p. 399). Ora, à primeira vista torna-se difícil observar, nesse gênero de
prática médica, o que Canguilhem afirmava no Essai: apenas há medicina na medida
em que indivíduos se sentem e se comportam como doentes. Igualmente a dignidade
epistemológica do pathos, salvaguardada no Essai, não mais parece orientar de saída
os saberes que se anexam à medicina. Mas falar em termos de sua eficácia não seria
uma maneira de reintroduzir o indivíduo doente no campo de ação da medicina?
200 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina
Não seria admitir que o primado de direito que Canguilhem lhe reconheceu no Essai
se afirma, doravante, como destino de fato de toda objetivação sobre o mal orgânico?
É o que Canguilhem admite ao se voltar à questão do estatuto epistemológico da
medicina. Como toda ciência “a medicina teve de passar pelo estado de eliminação
provisória de seu objeto inicial concreto”, o que, no seu caso, diz respeito à “colo-
cação entre parênteses do doente tomado como alvo de cuidados” (ibid., p. 428).
Mas colocar entre parênteses é coisa distinta de perder de vista aquilo que é, no
limite, sua razão de ser. A medicina “pode ser dita uma ciência aplicada ou uma soma
evolutiva de ciências aplicadas”, pois “conserva o rigor teórico dos conhecimentos
que ela toma de empréstimo para uma melhor realização de seu projeto terapêutico,
tão originário quanto o projeto de saber, ao qual, aliás, ela própria trouxe seu con-
curso” (ibid., p. 423). Se na descrição da ars medica do Essai, pela insistência em
delimitar seus direitos de anterioridade em relação ao saber que ela informa,
Canguilhem chamava a atenção para os riscos das objetivações analíticas do pathos,
esse cuidado parece ter cedido lugar a uma confiança na impossibilidade de perder
de vista o vetor da atividade médica. A precariedade da vida que tornava necessária
a clínica como instância normativa torna a aparecer, federando, ao seu redor, aqui-
sições científicas convertidas em “mediações restauradoras de uma ordem orgânica
perturbada”. E se da medicina foi dito ser uma técnica da vida, enquanto “ciência
da esperança e do risco”, tributária de suas realizações históricas e extra-clínicas, ela
pode ser dita “autenticamente uma ciência da vida” (ibid., p. 425) em um sentido
outro que não de mera exclusividade objetal.
O objeto do qual ela suspende, por escolha metodológica, a presença inter-
rogativa, é, não obstante, sempre presente, desde que ele tomou a forma hu-
mana, indivíduo que vive uma vida da qual ele não é nem o autor nem o
mestre e que deve por vezes confiar, para viver, a um mediador. Qualquer que
seja a complexidade e a artificialidade da mediação […], qualquer que seja a
duração da colocação em suspenso do diálogo entre médico e doente, a
resolução de eficácia que legitima a prática médica é fundada sobre essa
modalidade da vida que é a individualidade do homem […]. E quando o es-
tatuto epistemológico da medicina surge na consciência como questão, vê-se
realmente que a busca de uma resposta levanta questões algures que não em
epistemologia da medicina (ibid., p. 428).
jogo moderno das coerções sobre o corpo, os gestos e os comportamentos” (id., 1975,
p. 224), parte, portanto, de um “sistema histórico” que se liga às determinações de
“um sistema de poder” (Foucault, 2001a, p. 58). Não há sociedade que não tenha
elaborado uma “noso-política” (ibid., p. 14), reconhece Foucault, voltando-se à espe-
cificidade daquela elaborada na França do século XVIII. Especificidade que não se liga
apenas aos elementos ali coordenados, mas também aos efeitos de longo prazo para
os quais eles apontam. No século XVIII ocorre “um desbloqueio técnico e epistemo-
lógico da medicina de uma importância considerável” (ibid., p. 44), uma abertura na
direção da ingerência de realidades que excedem sua função terapêutica.
Essa é uma das características da medicina atual, ainda que possamos facil-
mente mostrar que se trata de um velho fenômeno, ligado à decolagem mé-
dica. Desde o século XVIII, a medicina não cessou de se ocupar do que não lhe
dizia respeito, ou seja, do que não se relaciona com os diferentes aspectos dos
doentes e das doenças. Foi precisamente dessa maneira que se efetuou o
desbloqueio epistemológico do fim do século XVIII. Até os anos 1720-1750, as
atividades dos médicos se concentravam sobre a demanda dos doentes e de
suas doenças […]. Até o século XVIII, a medicina não tinha se libertado de seu
encurralamento científico e terapêutico no qual ela se encontrava desde a
época medieval. A partir desse momento, ela começou a considerar outros
domínios distintos das doenças, a se interessar por outros aspectos que não
eram os doentes (ibid., p. 50).
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As disciplinas são uma “técnica geral de governo dos homens” elaborada ao longo da Era clássica (Foucault,
1999, p. 45). Elas não se identificam com uma instituição ou aparelho particular, dizem respeito a uma mo-
dalidade de exercício de poder “que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedi-
mentos, de níveis de aplicação, de alvos” (id., 1975, p. 271).
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Com as variáveis que lhe são próprias (natalidade, morbidade, duração da vida, fecundidade, estado de saúde,
frequência das doenças, forma de alimentação e de habitação) e “que se encontram no ponto de cruzamento
dos movimentos próprios à vida e dos efeitos particulares nas instituições” (id., 1976, p. 36).
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A noso-política do século XVIII opera então na intersecção dos dois pólos ao redor dos quais se desenvolveu,
desde o século XVII, a “organização do poder sobre a vida”: “disciplinas: anatomo-política do corpo humano” e
“controles reguladores: uma bio-política da população”. Enquanto as primeiras são centradas sobre o corpo in-
dividual visando a majoração de suas aptidões e a extorsão de suas forças, os segundos se ocupam do corpo
enquanto suporte de processos biológicos. Tecnologia de dupla face de “um poder cuja mais elevada função
[…] é investir a vida de uma ponta a outra” (ibid., p. 183).
204 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina
terapêuticas nem mesmo médicas no sentido estrito”, pois dizem respeito “às con-
dições e aos modos de vida, à alimentação, ao habitat, ao meio, à maneira de criar
os filhos” (ibid., p. 727). A medicina deixa de ser simplesmente “uma técnica im-
portante nessa vida e nessa morte dos indivíduos” para se tornar, pelo “controle das
formas de existência e de coexistência”, elemento essencial para a manutenção e de-
senvolvimento da coletividade (ibid., pp. 727 e 731). De duas maneiras Foucault
observa a interpenetração do político e do médico na noso-política do século XVIII,
na higiene pública e na medicalização da família.
No espaço urbano são isoladas “regiões a medicalizar […], pontos de aplicação
do exercício de um poder médico intensificado”. Cabe à instituição médica identi-
ficar os lugares que gerariam e difundiriam fenômenos epidêmicos ou endêmicos,
elaborar medidas visando uma boa circulação do ar e da água, estabelecer as diretri-
zes de uma organização sanitária da cidade. Não se trata de uma “medicina do ho-
mem, do corpo e do organismo, mas uma medicina das coisas: do ar, da água, das
decomposições, das fermentações […], das condições de vida do meio de existên-
cia”. Surge a noção de salubridade, que diz respeito “ao estado do meio ambiente e
aos seus elementos constitutivos”, bem como de higiene pública, “técnica de con-
trole e de modificação dos elementos do meio” que podem favorecer ou prejudicar
a saúde (ibid., p. 222). É a função de higienista, não de terapeuta, que garante ao
médico do século XVIII uma posição politicamente privilegiada. Por meio de uma
medicina que é “técnica geral da saúde” mais que “arte das curas”, o médico adquire
progressivamente um lugar proeminente nas estruturas administrativas, em uma
“maquinaria de poder que não cessa, ao longo do século XVIII, de se estender e de
se afirmar”, fixando-lhe tarefas que se traduzem em “prescrições que dizem respeito
não somente à doença, mas às formas gerais da existência e do comportamento”
(ibid., p. 23). O segundo elemento determinante da noso-política do século XVIII é
a “organização da família […] como instância primeira e imediata de medicalização
dos indivíduos” (ibid., p. 21). A família se torna “o agente mais constante da medi-
calização”. Ela não é apenas uma rede de relações inscrita em um sistema estatutário
de parentesco ou de transmissão de bens, mas um “meio físico, denso, saturado,
permanente, contínuo, que envolve, mantém e favorece o corpo da criança” (ibid.,
p. 19), capaz de articular os “objetivos gerais concernentes à boa saúde do corpo
social e o desejo ou a necessidade de cuidados dos indivíduos”, ou seja, uma “ética
privada da boa saúde” e um “controle coletivo da higiene” (ibid., p. 21). Com a
noção de família medicalizada-medicalizante, Foucault introduz um operador im-
portante em se tratando do fenômeno da “medicalização indefinida” (ibid., p. 48).
Ela reaparece como um dos elementos que permite à psiquiatria do século XIX se
tornar “instância de controle geral das condutas” e “dos comportamentos em geral”
(Foucault, 1999, p. 290).
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Não foi a medicina que instaurou um gênero de poder que, ocupando-se dos
processos da vida para controlá-los e modificá-los, lança mão de “mecanismos con-
tínuos, reguladores e corretivos” (Foucault, 1976, p. 189). Foucault observou que “a
normalização se torna um dos grandes instrumentos de poder ao fim da era clássica”
(id., 1975, p. 216), além de presente, ao longo do século XVIII, “em todos os níveis
do corpo social” e em “instituições muito diversas” (id., 1976, p. 185). Por que então
reconhecer à medicina, em uma sociedade obsedada em seu funcionamento pela
normalidade, um polo de irradiação normalizadora? Desde Naissance de la clinique
Foucault deixou entrever a resposta, vimo-lo: a medicina é a “ciência por excelência
do normal e do patológico” (id., 2001a, p. 76). O modo como ela partilha a realidade
sobre a qual se aplica originariamente, o doente e a doença, não se distingue da
maneira pela qual é operada a partilha (normal-anormal) daquilo que se apresenta
como superfície sobre a qual será aplicada, a partir do século XVII, um poder nor-
malizador — e não necessariamente medicalizado no sentido dos processos que Fou-
cault encontra na noso-política do século XVIII. Por um lado, seria possível dizer
206 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina
que, na forma pela qual ele se exerce, o poder normalizador é de tipo médico.
Por outro, há o funcionamento efetivo da medicina enquanto estratégia bio-política,
que a faz tomar parte na grade ubíqua do poder que normaliza. Mas eis o ponto:
essa captura da medicina por um intento normalizador que a ultrapassa não se faz
sem uma extensão da medicina além de seu campo habitual. Medicalizar realidades
extramédicas não é simplesmente buscar na medicina uma legitimação científica
para controles jurídicos ou administrativos. A medicina não poderia se ocupar de
um campo de intervenção que “não é mais unicamente ligado às doenças” (ibid.,
p. 49) sem o que Foucault denominou seu desbloqueio epistemológico. Elencando
os elementos que permitiram à psiquiatria estender sua ingerência a um universo
ilimitado de condutas, Foucault observa algo que, de nosso ponto de vista, se apli-
cado à noso-política do século XVIII e à tendência da qual ela é a expressão, aponta
para uma operação fundamental nesse processo.
A partir do meio do século XIX observa-se uma relação de poder que apenas se
exerce (e ainda hoje) na medida em que é um poder medicamente qualificado,
mas um poder medicamente qualificado que submete ao seu controle um
domínio de objetos que são definidos como não sendo processos patológicos.
Despatologização do objeto: essa foi a condição para que o poder, contudo
médico, da psiquiatria, pudesse assim se generalizar […]. Poder médico sobre
o não-patológico: é esse, creio, o problema central (Foucault, 1999, p. 292).
Considerações finais
Podemos nos perguntar se o trato canguilheniano da clínica e da história dos saberes
biomédicos não acaba por colocar a própria medicina entre parênteses, sempre re-
metida, em seus contornos epistêmicos, históricos e institucionais à precariedade da
vida humana. Canguilhem se ocupa da medicina ao longo de sua trajetória de inves-
tigações sempre a remetendo à vitalidade que ela ora sufoca, ora prolonga direta ou
indiretamente, ora justifica, e que ele pôde definir, justamente, ao observar na clínica
sua expressão antropológica na atenção ali dirigida ao pathos. Podemos também nos
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perguntar se Foucault não fez algo análogo, se por meio da medicina não é outro
fenômeno que se encontra em questão, mais profundo. Enquanto estratégia bio-po-
lítica, o valor da medicina para Foucault não reside no hermetismo de seu desenvol-
vimento enquanto ciência ou arte da cura, mas na maneira como ela expressa um
poder que, por meio dela — mas não somente por ela — “investiu o que há de mais
material, de mais vivo” nos corpos, ligando o biológico e o histórico “segundo uma
complexidade crescente à medida que se desenvolvem as tecnologias modernas de
poder que tomam por alvo a vida” (Foucault, 1976, p. 200). Poderíamos também
nos perguntar, sem a intenção de oferecer, aqui, uma resposta definitiva — quando
muito apontando a direção de uma análise que apenas pode ser empreendida à parte
— se essas duas maneiras de proceder não guardariam certa complementaridade.
Segundo Dagognet (1997, p. 51), a hostilidade canguilheniana à “estandardização
do corpo” antecipa as análises de Foucault. É fato que Foucault reconheceu que as
forças que resistem contra esse poder “se apoiaram sobre aquilo mesmo que ele in-
vestia — ou seja, sobre a vida e o homem na medida em que ele é vivo” (Foucault,
1976, p. 190). As grandes lutas que colocam em questão o sistema geral de poder
reivindicam um direito à vida, “entendida como necessidades fundamentais, essên-
cia concreta do homem, realização de suas virtualidades, plenitude do possível”
(ibid., p. 191). Porém, a vida que retorna para Foucault contra seu investimento
político não guarda o mesmo estatuto que a espontaneidade vital que Canguilhem
encontrou em suas análises. Enquanto para Canguilhem “todas as atividades huma-
nas” — notoriamente a medicina, pelas razões que apontamos — “são da alçada de
uma vivacidade própria à vida que, no homem, se esforça por se colocar como vida
vivível”, Foucault mostra que elas “são tomadas em dispositivos que integram rela-
ções de poder e ordens de discursos particulares”, de modo que, para Foucault, não
se coloca a questão de “reportar-se à vida sob os dispositivos para escavar sua evi-
dência matinal” (Le Blanc, 2002b, p. 11).
Foucault admite que a “história do homem e a vida se encontram profundamente
implicadas”. Não porque a história humana continua aquela da vida, mas porque
ela “a retoma até certo ponto e pode exercer sobre seu processo certo número de
efeitos fundamentais” (Foucault, 2001a, p. 48). Essa entrada da vida na história, não
por um prolongamento de seus desígnios, mas por uma direção e controle de seus
mecanismos, é coextensiva à “entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie hu-
mana na ordem do saber e do poder”, no “campo das técnicas políticas”, no “domí-
nio de cálculos explícitos” (Foucault, 1976, pp. 186 e 188). Algo que podemos reme-
ter, por exemplo, à noso-política do século XVIII e aos seus efeitos de longo prazo.
Foucault reconhece que não se trata da primeira vez que a vida e a história entraram
em contato. A “pressão do biológico sobre a história” foi durante muito tempo ine-
gável, “a epidemia e a fome constituíam as duas grandes formas dramáticas dessa
208 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina
relação que permanecia, assim, colocada sob o signo da morte” (ibid., p. 186). Lida-
mos aqui com uma rara ocasião na qual o biológico parece figurar nos desenvolvi-
mentos foucaultianos como realidade cuja ação se faz sentir à revelia de sua captura
pelo campo do discurso e do poder. Breve licença que não conduz Foucault a uma
definição do vital, tampouco ao reconhecimento, como será o caso para Cangui-
lhem, de que esse horizonte de precariedade representado pela morte daria conta de
atentar — ou melhor, a negativa antropológica a ele endereçada tal qual testemunha
a clínica médica — para a normatividade definidora do vital. Uma vez afastados os
riscos iminentes da morte em massa ao longo do século XVIII, quando a era das
grandes devastações da fome e da peste “começam a não mais fustigar diretamente
a vida” (ibid., p. 187), Foucault observa outro gênero de relação entre o biológico e
o histórico, o segundo dirigindo o primeiro em vez de sofrer seus insidiosos efeitos.
No terreno assim conquistado, organizando-o e ampliando-o, os processos da
vida são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que tentam
controlá-los e modificá-los. O homem ocidental aprende pouco a pouco o que
é ser uma espécie viva em um mundo vivo, ter um corpo, condições de ex-
istência, probabilidades de vida, uma saúde individual e coletiva, forças que é
possível modificar e um espaço onde é possível reparti-las […]. Pela primeira
vez sem dúvida na história o biológico se refletiu no político; o fato de viver
não é mais esse sustentáculo inacessível que apenas emerge de tempos em tem-
pos, no acaso da morte e sua fatalidade; cai, em parte, no campo do controle
do saber e da intervenção do poder (ibid.).
vida é produzida” (ibid., p. 9). Concluamos com uma questão: de uma vida sem
conceito, sem cuidado de definição, pura pressão avassaladora sinalizada pela morte,
a uma vida objeto de controle e modificação — e Foucault admitiu, lembremos, que
as forças que resistem a esse poder se apoiam justamente sobre o que ele investia —,
não seria possível, em todo caso, dizer que persiste uma vida, sem com isso reconhe-
cer um retorno à normatividade biológica que Canguilhem colocou no centro de
suas análises? Não nos cabe levar a cabo esse questionamento, o que exigiria percorrer
outros terrenos. Apenas apontemos o caminho que Canguilhem (1986, p. 40) ele
próprio entreviu: “Face à normalização e contra ela, Le Souci de soi”.
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210 Rafael Henrique Teixeira Canguilhem, Foucault e a medicina