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dezembro :: 2022
p. 142-161
Resumo
Nossa intenção neste artigo é apresentar uma forma de articulação entre uma
grande mostra de arte contemporânea e acervos de instituições museológicas, num
cômpito entre projetos curatoriais e programas de visibilidade distintos. Para tanto,
tomamos a 11ª Bienal de Berlim, de 2020, como ponto de reflexão, especialmente
porque nela não apenas observamos a presença de instituições museológicas latino-
americanas, como também identificamos o desejo do projeto curatorial de utilizar o
fenômeno do acervo para debater memórias dissonantes, e não hegemônicas, para
além dos rótulos que tentam conter o fenômeno da arte contemporânea. Assim,
analisaremos como os acervos do Museu de Imagens do Inconsciente, do Museu
de Arte Osório César e do chileno Museu de Solidariedade Salvador Allende são
articulados pela bienal alemã. Nos deteremos em cada uma das instituições para
compreender quais intenções motivaram sua presença numa bienal abertamente
decolonial e, a seu modo, contrainstitucional.
Palavras-chave: Bienal de Berlim; Curadoria contemporânea; Exposições de
arte; Acervos e coleções permanentes.
1
Docente e pesquisador do
Abstract Departamento de Artes Visuais
The intention of this paper is to present a form of articulation between a no Programa de Pós-graduação
large contemporary art show and collections from museological institutions, in a em Artes Visuais e no Programa
de Ciência da Informação
conflict between curatorial projects and different visibility programs. To this end,
da Universidade de Brasília.
we use the 11th Berlin Biennale, in 2020, as a point for reflection; especially since
Pesquisador PQ2 – CNPq. Colíder
we observe the presence of Latin-American museological institutions and identify do Grupo de Pesquisa Musealização
the desire of the curatorial project to use the phenomenon of the collection to da Arte. E-mail: dionisio@unb.br;
debate dissonant, non-hegemonic memories, beyond labels trying to contain the Orcid: https://orcid.org/0000-0002-
phenomenon of contemporary art. Thus, we will analyze how the collections from 3705-1667.
the Images of the Unconscious Museum, Osório César Art Museum, and the Chilean 2
Museum of Solidarity Salvador Allende are articulated at the german biennial. We
Pesquisadora, Graduada em
focus on each institution to understand which intentions motivated their presence in Museologia pela Universidade de
an openly decolonial and, in its own way, counter-institutional biennial. Brasília. E-mail: ana99luisa@hotmail.
Keywords: Berlin Biennale; Contemporary curatorship; Art exhibitions; com. Orcid: https://orcid.org/0000-
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Introdução
políticas e culturais após a reunificação da Alemanha em 1990: “Diante da entre os dias 5 de setembro a 1
de novembro de 2020. Afetada
ideia de que Berlim era uma cidade dividida, criamos o título de “Berlim/ pela pandemia COVID19, a
Bienal alemã foi dividida em
Berlim”, as duas Berlins em uma, e concebemos uma Bienal baseada nos quatro espaços: ExRotaprint,
muitos artistas que viviam e trabalhavam na cidade” (BIESENBACH, daadgalerie, Gropius Bau e o KW
Institute for Contemporary Art
2018). Criada por gestores culturais, curadores e colecionadores, a (GERMAN FEDERAL CULTURAL
bienal berlinense, desde o início, buscou se articular com outros eventos e FOUNDATION).
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“a rachadura começa por dentro”, para refletir sobre o lugar da maternidade Johann Heinrich Wilhelm Wagener.
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em sociedades desiguais e violentas. A equipe curatorial buscou, com isso, Um dos pontos em comum entre
pensar formas de perceber e produzir “rachaduras” na contemporaneidade os quatro curadores é a experiência
com a gestão de instituições
que atravessassem não só a produção artística, mas sobretudo formas museológicas ou eventos bienais
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Sistina, do brasileiro Pedro Moraleida Bernades. O discurso anticlerical pôde Durante a bienal a artista brasileira
Virginia de Medeiros foi convidada
ser percebido também na exposição Storefront for Dissident Bodies, que pelo FHCRG a compartilhar suas
pesquisas e suas experiências
apresentou diferentes poéticas destinadas a ampliar o conceito de corpo,
(GERMAN FEDERAL CULTURAL
a cidade como corpo, o cotidiano como corpo, as narrativas e memórias FOUNDATION).
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divulgação propostos por críticos como Pedrosa, outros críticos e artistas (SANT’ANNA, 2011; SILVA, 2016).
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de seu acervo, foram paralisados (MAGALDI, 2018, p. 17). Mesmo com Cabe ressaltar que, em 1952, o
critério que se estabeleceu para a
a visibilidade conquistada em mostras nacionais � como a Bienal de criação do MII foi prioritariamente
científico. Seguindo os critérios
Internacional de São Paulo de 1981 (sob a ótica da “Arte Incomum”) ou a
de análise propostos pela
Mostra do Redescobrimento de 2000 � e internacionais � como itinerância teoria junguiana, as obras foram
catalogadas como “documentos
da exposição “Os Inumeráveis Estados do Ser” na Fundação Gulbenkian, plásticos”, podendo ser estudados
em Lisboa, Portugal, no ano de 1994 ou no ano seguinte, no Instituto Ítalo em série. (TOLEDO, 2011).
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Latinoamericano de Roma �, a instituição permanece inscrita num capítulo
Processo de Tombamento número:
à parte da produção artística brasileira, em seu caráter contra-hegemônico. 1507-T-03. Disponível em: http/
acervodigital.iphan.gov.br. Acesso
em: mar, 2021.
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muitas das exposições organizadas pelo e sobre o museu, justamente porque criação da instituição.
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justamente Carvalho que se associou ao psiquiatra e crítico de arte Osório foram iniciados em 1943, mas a
sistematização do serviço se deu
Thaumaturgo César para organizar a mostra “Mês das crianças e dos loucos”, com a entrada do psicanalista Mário
Yahn, momento que a empreitada
em 1933, no então Clube de Artistas Modernos de São Paulo. Marco crucial
se tornava a Seção de Arte do
para compreender a aproximação dos modernistas com as produções ditas complexo hospitalar (RIVERA, 2021).
Embora enfatizemos o papel de
“ingênuas”, tal mostra antecipava o papel de César na disseminação, por Osório Cesar para o museu, pois sua
meio da arte, de práticas terapêuticas oriundas no complexo hospitalar do atuação antecedeu em décadas a
de Yahn, este último é personagem
Juquery, em Franco da Rocha. fundamental para a constituição do
acervo, especialmente pela doação
Da mesma forma que a história do MII é indissociável da história de sua coleção ao museu por sua
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Pode-se pressupor que o corpo
curatorial da bienal, buscou na
“loucura”, em sua linguagem
problematizada pela história desses
acervos, o que Foucault denominou
Figura 2. Obras do acervo do Museu de Arte Osório Cesar, Franco da Rocha, vista
como “reserva de sentido”. E nesse
da instalação, 11º Bienal de Berlim, Gropius Bau. Foto Mathias Völzke. Fonte: tocante, é preciso indicar o que
isso significou para o filósofo: “... a
https://11.berlinbiennale.de/ loucura apareceu, não como a astúcia
de uma significação escondida, mas
como uma prodigiosa reserva de
sentido. É preciso ainda entender,
As seleções dos artistas e acervos produzidos em hospitais como convém, essa palavra ‘reserva’:
muito mais do que uma provisão,
psiquiátricos brasileiros podem ser facilmente creditadas pela presença de trata-se de uma figura que retém
e suspende o sentido, ordena um
uma curadora brasileira na equipe responsável pela 11ª edição da bienal. vazio no qual não é proposta senão
a possibilidade ainda não cumprida
Certamente Lagnado estava familiarizada com tais acervos, especialmente de que tal sentido venha ali alojar-se,
ou um outro, ou ainda um terceiro,
em razão de sua proximidade com a obra de Arthur Bispo do Rosário � e isso ao infinito, talvez. A loucura
abre uma reserva lacunar que designa
outro ícone da produção oriunda do sistema manicomial. Contudo, não e faz ver esse oco no qual língua e
fala implicam-se, formam-se uma
se pode esquecer que María Berríos era, naquela ocasião, colaboradora a partir da outra e não dizem outra
coisa senão sua relação muda”
permanente do Hospital Prison University Archive (Copenhagen), um (FOUCAULT, 2006, p.216, grifo nosso).
arquivo sem coleção, veiculado por meio de uma estação de rádio gerida 13
pelo artista Jakob Jakobsen, cujo objetivo é desestabilizar o sentido de É nesse contexto de vitória e
confrontação com um inimigo
normalidade para as estruturas de controle e confinamento. Já Renata ainda tímido que se dá uma
série de eventos para angariar
Cervetto tem em seu currículo a curadoria da exposição Ventanas, realizada simpatias internacionais ao governo
de Allende. Entre eles está a
no hospital público Dr. Alberto Eurnekian, em Buenos Aires, ao passo que chamada Operación Verdad, cujo
objetivo era ganhar, como aliados
Agustín Pérez Rubio foi, de 2014 a 2018, diretor artístico do Museo de Arte midiáticos, uma importante fonte de
legitimação social ao imediato pós-
Latinoamericano de Buenos Aires (MALBA), para o qual desenvolveu um 68: a intelectualidade, sobretudo a
intelectualidade de esquerda. Assim,
programa sociopolítico dedicado às mulheres artistas latino-americanas. utilizando-se de um mesmo nome
já empregado em Cuba, realiza-se
Ou seja, direta ou indiretamente, os curadores estavam cientes da tortuosa a Operación Verdad em outubro
de 1971, com o objetivo de furar
história que atravessa as chaves interpretativas entre arte, loucura12, o bloqueio midiático internacional
patrocinado por El Mercúrio
institucionalização e os movimentos sociais a elas associadas. (CÁCERES, 2010, p. 88).
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Pela primeira vez fora do Chile, a obra, da artista chilena Gracia Barrios, foi
executada no verão de 1972 com a ajuda da artista Graciela Córdova. Uma
peça figurativa cujo teor político, a monumentalidade, o trato cromático
e seu vocabulário a filia à pintura mural latino-americana da primeira
metade do século XX. Inicialmente exposta no edifício da UNCTAD, com
o golpe militar de 1973, a obra fora enviada para uma casa de penhores e,
posteriormente, seu paradeiro tornou-se obscuro até 2001. Apenas em 2005
a obra foi reintegrada à coleção do MSSA e tornou-se um dos símbolos de
resistência da ideia original dos criadores do museu. O retorno de Multitud
III dirigiu a política de visibilidade do acervo em direção à premissa de Mário
Pedrosa no momento de sua criação: “este museu que se cria pela doação
dos artistas do mundo, espontaneamente movidos pela solidariedade
com um pequeno povo na periferia da Terra” (PEDROSA apud ESCOBAR,
2007, p. 10). Desde então, a instituição permanece a salvaguardar-se como
símbolo da democracia e ancora sua política de aquisição na economia da
doação como modelo de solidariedade entre o museu e os criadores e, por
conseguinte, como memória de resistência.
Conclusão
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Referências
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BREHME, K. Time after time: a history of the Berlin Biennale for Contemporary
Art and its relationship with urban space. 2020. Tese (Doutorado em Filosofia)
– Technische Universität Berlin, Berlin, 2020.
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SNEED, G. Berlin Biennial 11: The Crack Begins Within. The Brooklyn Rail:
Critical Perspectives on Arts, Politics, and Culture, Oct. 2020. Disponível
em: https://brooklynrail.org/2020/10/artseen/Berlin-Biennial-11-The-Crack-
Begins-Within. Acesso em: 03 fev.2022.