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RevistadoDepartamentodeFilosofiadaUSP
n.362007
Osartigospublicadosnadiscursosãoindexados
por The Philosopher’s Index, Clase e Répertoire
BibliographiquedelaPhilosophie
UniversidadedeSãoPaulo
Reitora:SuelyVilela
Vice-reitor:FrancoMariaLajolo
FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanas Índice
Diretor:GabrielCohn
Vice-diretora:SandraMargaridaNitrini
DepartamentodeFilosofia ÀsvoltascomBentoPrado 05
Chefe:MoacyrAyresNovaesFilho
HomenagemaBentoPradoJúnior
Vice-chefe:CaetanoErnestoPlastino
RobertoSchwarz
ComissãoExecutiva
MariaLúciaCacciola(editoraresponsável)
MoniqueDavid-Ménard: 11
MariadasGraçasdeSouza,MárcioSuzukiePabloRubénMariconda
DeleuzeouFreud/Lacan?
BentoPradoJúnior
discurso RepetireinventarsegundoDeleuzeesegundoFreud 17
RevistadoDepartamentodeFilosofiadaUSP MoniqueDavid-Ménard
n.362007ISSN0103-328X-publicaçãoanual/annualpublication
Sobresaúdemental: 35
ConselhoEditorial anaturezaproteiformedaspulsões
BaltazarBarbosa(UFRGS),BeneditoNunes(UFPA),BentoPradoJúnior(UFSCar/USP),DaniloMarcondes OsvaldoGiacoiaJúnior
(PUC-RJ),FrancisWolff(ÉcoleNormaleSupérieure–Paris),GerdBornheim(UFRJ),Gilles-GastonGran-
ger(CollégedeFrance),GuidodeAlmeida(UFRJ),HenriqueC.deLimaVaz(UFMG),JoãoPauloGomes
Cérebro,percepçãoelinguagem: 53
Monteiro(USP),JoséArthurGiannotti(Cebrap/USP),MarcosMuller(Unicamp),MariaSylviadeCarvalho
elementosparaumametapsicologiadarepresentaçãoem
Franco(USP/Unicamp),MarilenadeSouzaChauí(USP),MichePaty(UniversidadedeParisVII),Newton
Sobreaconcepçãodasafasias(1891)deFreud
CarneiroAffonsodaCosta(USP),OswaldoChateaubriand(UFRJ),OswaldoPorchatdeAssisPereiradaSilva
RichardTheisenSimanke
(USP),OtíliaBeatrizFioriArantes(USP),PauloEduardoArantes(USP),RaulLandimFilho(UFRJ),Rubens
RodriguesTorresFilho(USP),RuyFausto(UniversidadedeParisVIII/USP),VictorKnoll(USP)
Umalibradecarne: 93
Endereçoparacorrespondência(Addressforcorrespondence): aleituralacanianad’Ovisíveleoinvisível
discurso-DepartamentodeFilosofia–FFLCH–USP CharlesShepherdson
Av.Prof.LucianoGualberto,315.CEP:05508-900–SãoPaulo–SP–Brasil
SubjetividadeeculturaemFreud: 191
ressonânciasno‘mal-estar’contemporâneo
VincenzodiMatteo
ÀsvoltascomBentoPrado
Ontologianegativaempsicanálise: 215 RobertoSchwarz
entreéticaeepistemologia
ChristianIngoLenzDunker
Sobreoprazerexcedente: 241
deMarcuseaAristóteles
EdgardoGutiérrez
Oestatutodoinconscienteéético 255 HomenagemaBentoPradoJr.(1937–2007)
BrunodeAlmeidaGuimarães ProfessorEméritodaFaculdadedeFilosofia,Letras
eCiênciasHumanasdaUniversidadedeSãoPaulo1
Daenunciaçãodaverdadeaoenunciadodogozo: 271
omito
CláudioOliveira
Antígona: 285
heroínadapsicanálise?
PhillipevanHaute
Ensaiosobreasublimação 311
TaniaRivera
Observaçõessobreotemadaatemporalidade 325
emFreud,KanteBergson
HélioLopes 1
Estenúmerojáestavaemfasedeproduçãoquandoseteveatristenotíciadofalecimento
doProfessorBentoPradoJr.AcomissãoeditorialagradeceaRobertoSchwarzpelage-
nerosidadecomquepermitiuareproduçãoaquideseuartigo,publicadonaFolhadeS.
Paulododia28dejaneirode2007.
Nosanos60e70,aresistênciaàditaduradeuprojeçãoextra-
universitáriaaalgunsprofessoresdeesquerda,permitindoquemais
adiante,nahoradaaberturapolítica,elessecandidatassemacargos
eletivos. O exemplo inicial em São Paulo foi Fernando Henrique
Cardoso, que se elegeu suplente de senador. O salto da Faculdade
de Filosofia ao parlamento, sem a passagem prévia pelo liquidifi-
cadordapolíticaprofissional,criavaexpectativasaltaseagitavaos
espíritos.Ohábitodosestudosedadiscussão,aintimidadecomas
ciênciassociaisecomomarxismofariamdiferençanogoverno?
BentoPradonaocasiãoinventouumsloganparadivertirosami-
gos:“Quemsabeescrever,sabegovernar;BentoPradoparasenador”.
Aalegriafoigeralnafaculdade.Afórmulaperemptóriafaziarirpor
muitoslados.Asuainverdadeclamorosaeraumapiada,naverda-
deumaaulapelaviaparódica,oswaldianaoubrechtiana,sobreas
presunçõesdaoligarquianumpaísdealfabetizaçãoprecária.Havia
tambémotemperobiográfico.AinteligênciaincomumdeBentoera
uma unanimidade, assim como a sua inapetência para lidar com
ascomplicaçõesdavidaprática.Alémdisso,eleeraodescendente
filósofodeumafamíliadefazendeirosquebradospelacrisede29,
aosquaisotomautoritário–tãobemimitado–parecerianatural.
Enfim,sehaviaalguémquenãoaspiravaaomandonemqueriaser
mandadoeraele.
Amalíciadasmalíciasentretantonãoestavaaí.Seosloganfazia
troçacomaspretensõespolíticasdasclassesqueredigembem,ele
nãoobstanteafirmavaquedentreosmuitoscandidatosquemsabia
escreverdeveraseraBentoPradoelemesmo.Sobaauto-propaganda
humorísticahaviaaestocadanoscolegasmenossonhadoreseeste-
tas,oumaisafeitosàpolíticareal.Atrásdetudo,aequiparaçãocômi- EntreosbelostraçosdeBentoestavamoigualitarismoradicalea
co-polêmicaentreasLetraseaPolítica:seasprimeirasnãolevamao irajuvenilcontraoprivilégio,quefaziamdeleumhomemindiscu-
senado,nãocedemàsegundaemvalor,nemsedeixamabafar.Um tivelmentedeesquerda.Suponhoqueoobjetoinicialdesuarevolta
duelonasnuvens,mascarregadodeconvicção. tenhasidoaprerrogativaoligárquica,àqualosecundaristaconver-
OfatoéqueBentoescreviaadmiravelmenteequeasuaprosase tidoaocomunismoopunhaaigualdadeeajustiça.Contudo,como
impunha–eseimpõe–àprimeiravista,porrazõesquealiásnãosão elelogonotou,oautoritarismoeoconchavoqueoindignavamna
fáceisdeexplicar.Asuafrase,decaimentosempreperfeito,éampla, oligarquiaeramanormatambémnoPartidoComunista,oqueo
muitoorganizadaeclara,ligeiramenteretóricaeforademoda,com colocouparasempreàmargemdapolíticaprática.
miolofilosóficomoderno.OmodelocomcertezaéoDrummonddo AconversaçãocomBentoeraalgoespecial.Eleerabrincalhãoe
períodoclassicizante,agilizadotalvezpelamultiplicaçãomalabarís- farsante, mas sobretudo sério. Na discussão gostava de um pouco
ticadeaspectos,àlaSartreeMerleau-Ponty,alémdeacompanhado deesgrima,masnãosetratavadejogoapenas.Haviaodesejoreal
pelocultoparnasianodavisibilidadecompleta,quenãodeixanada deesclarecerasquestões,enãolheocorrialevaramelhordequal-
nasombra.Oamordaclareza–umaformadedecoro,massobre- querjeito.Alealdadeeofairplayeramparteabsolutadoprocesso,
tudoderacionalidadeeuniversalismo–eraafeiçãodominanteda queultrapassavaadimensãopessoale,meiometaforicamente,re-
elegânciabuscadaporBento.Apareciaigualmentenasuamaneira presentavaointeressecoletivo.Oespíritodemocrático,quenapo-
muitocorretaeatenciosadeconversar,napronúnciadeprofessor lítica tinha pouca chance, aqui dava fruto e criava padrão. Assim,
que não engolia sílabas nem cedia a modismos e regionalismos, e nasegundaediçãodeseusensaioselepublicoucomoposfáciouma
tambémnabelacaligrafiaenosenvelopesbemsobrescritados.Do discussãomuitocrítica–emboranotavelmentecompreensiva–de
pontodevistaliterário,remavanacontracorrentedoModernismo, PauloArantesarespeito.Namesmalinha,quandosaiuomeupri-
quepesquisavaasirregularidadesbrasileiras,agramáticapopular,a meirolivroBentopublicouumexcelenteartigoqueoquestionava
informalidade,aformaelípticaefragmentária,osujeitosocialmente noessencial.Sãoprocedimentosquevaleapenamencionarpornão
enacionalmentemarcado. seremhabituaisemnossomeio.
Entretanto,ouniversalismodeBentonãodeixavadeterasuafi- Quandotínhamosvinteanos,Bentomefezacomunicaçãofor-
sionomiasocial.Orefinamentosintático,avisãoabrangenteecon- maldesuarepulsapeloanti-semitismo.Erapartedaconsolidação
catenada,ovocabuláriojusto,apitadadeeloqüênciaetc.tinhama denossaamizade,eumaafirmaçãodesuasconvicçõesuniversalis-
notasenhorial–éclaroquemodificadapelonaufrágiohistóricodo tas,paraasquaisopreconceitocontraosjudeuseraoarquétipode
senhorenquantoclasse,eporumajustedecontasfilosóficocoma todosospreconceitos.Comoeunãocorriaoriscodeseranti-semita,
suafigura.Aseutempo,alinguagemescoimadadebrasileirismos, masnemporissotinhagrandeopiniãodemeuspatrícios,aconversa
seguradagramáticaportuguesaedoLatim,terásidoumpadrãode tomourumoengraçado,comogóiadvogandoacausadoopositor.
autoridade,enãosóumesforçocultural.AprosadeBentolhecon- Outravertentedeseuuniversalismoeraoabsolutorespeitopelades-
servou o arcabouço, com suas possibilidades formais e sua altura, graça.Tendobastantedepríncipe,elenãoseachavamelhordoque
masobedecendoaoutrosujeito. ninguém. Num fim de noite, quando os bares decentes já haviam
fechado,elemearrastouparaumbotecoatrásdaPraçadaRepú-
blica,ondeasuaatençãosefixounamunhecafechadaenasunhas
sujasdeumpobrehomemadormecido,queporumbommomento
resumiramparaeleaangústiadaexistência.
Comocombinarocultordaclarezasuperlativa,ofarsanteeono-
tívagoatormentado,quepreferiaqueanoitenãoterminasseeque
temiaaluzdodiaseguinte?Lutavam,umderrubandoooutro,mas
nãosemisturavam,enaturalmentecompunhamumenigmaparaos MoniqueDavid-Ménard:
amigoseparaelemesmo.ApoesiadeBento,quenãoestáreunida, DeleuzeouFreud/Lacan?
dátestemunhodoimpassereinantenoseuLaboratóriodeMetafísica
Geral–expressãodele.Elegostavaderecitaro“RelógiodoRosário”
deDrummond,especialmenteosversosseguintes:“(...)Enadabas-
ta,/nadaédenaturezaassimtãocasta//quenãomaculeouperca BentoPradoJúnior
suaessência/aocontactofuriosodaexistência.//Nemexistirémais
queumexercício/depesquisardevidaumvagoindício,//aprovar
Professortitulardefilosofiada
anósmesmosque,vivendo,/estamosparadoer,estamosdoendo.”
QuefaltaoBentofaz! UniversidadeFederaldeSãoCarlos(UFSCar)
MoniqueDavid-Ménard:DeleuzeouFreud/Lacan?
EstetextofoiescritotendoemvistaaapresentaçãodeRepetireinventarsegundo
DeleuzeesegundoFreud,deMoniqueDavid-Ménard,àocasiãodoIEncontro Gostariadedizer,inicialmente,comofiqueifelizaosaberqueata-
NacionaldePesquisadoresdeFilosofiaePsicanálise. refadecomentaraconferênciadeMoniqueDavid-Ménardmefora
Palavras-chave:repetição,infinito,Deleuze,David-Ménard
atribuída.ÉverdadequeminhadescobertadaobradeMoniquefoi
tardia,atravésdabelatraduçãobrasileiradeseulivroLafoliedans
DeleuzeorFreud/Lacan?
la raison pure (cujo título, que parece contrariar o senso comum,
ThispaperisacommentaryofDavid-Ménard’sRépétitionetinventionenDe-
recebeuemnossalínguaumsuplementodesentidonarimainter-
leuzeetFreud.
naAloucuranarazãopura).Masrapidamentepudeencontrá-lae
Keywords:repetition,infinite,Deleuze,David-Ménard
discutir um pouco questões que são as nossas hoje. Tal felicidade
estavaumpoucocomprometidaporumacertainquietação.Como
eu,quenãosouanalistaenuncafuianalisando,emminhacondição
desimplesfilósofoouneurótico(ouaindamelancólico,comosugere
aantigatradiçãofilosóficaretomadaporKantemseupequenolivro
DieKopfkrankenheiten),comoeupoderiaestaràalturaexigidapelo
comentáriodosescritosdealguémqueé,aomesmotempo,filósofo
epsicanalista,equeécapazdecircularpelosdoisdomíniossempre-
juízo?MasaleituraantecipadadeRepetireinventarsegundoDeleuze
esegundoFreudmetranqüilizou.Pois,comele,estamosdoladoda
filosofia,mesmoqueaclínicaaítambémseencontre.Alémdomais,
recebiestasemanaoúltimonúmerodarevistaRueDescartesonde
encontreiumaoutraconferênciadeMoniqueDavid-Ménard(1)que
escutaraemParisnoanopassadoecujosentidoeunãohaviaapre-
endido completamente. Ao relê-la, as coisas se esclareceram e me
ajudaram a compreender melhor a conferência de hoje, pois estes
doistextosseentrecruzameseiluminam.
14 Discurson.362007 MoniqueDavid-Ménard:DeleuzeouFreud/Lacan? 15
Meucomentáriodasduasconferênciasseránecessariamentebre- Oquemefaltava,parabemverascoisas,eraomomentodafilosofia
BentoPradoJúnior
DossiêFilosofiaePsicanálise
ve, tendo em vista os limites de tempo, assim como os limites de crítica.Tantoéverdadeque,emumtextomaisantigo(dofinaldos
minhacompetência.Grossomodo,digamosqueosdoistextoscolo- anos1970),procediàanálisedeumparágrafodeDiferençaerepetição,
camemcenaumamesmaeduplaoperação.Trata-sededescreveras lidoemumadireçãoqueiadeHumeaBergson,istoafimdesituara
relaçõesentreDeleuzeeapsicanálise,levandoemcontaduasfases diferençaentreFreudeSkinner.Otítulodoartigoera“Hume,Freud,
deseupensamento:aprimeira,naqualopensamentodeDeleuzese Skinner(emtornodeumparágrafodeGillesDeleuze)”(3).
alimentatambémdapsicanálise,eumasegunda,naqualficaeviden- Trata-sedoparágrafoquevaidapágina129à130,consagradoàten-
teodistanciamentocríticoemrelaçãoaFreudeLacan.Nofundo, tativadecorrigiraversãocorrentedaidéiadehábito,comsuasconse-
apenasumaquestão:quaissãoasrazõespropriamentefilosóficasque quênciasparaaidéiadeprincípiodoprazer.Éumparágrafodocapítulo
obrigaramDeleuzeataldistanciamento? “Arepetiçãoporelamesma”muitopróximodosparágrafosdomesmo
Seriapossível,creioeu,pensarnadimensãobiográficadetalcorte. capítulo comentados por Monique David-Ménard na conferência de
Nãoestariam,naorigemdestedesvio,aassociaçãocomGuattarie hoje.Comosetratadeumparágrafomuitolongo,nãopossomeper-
apráticaclínicadeLaborde?Elenãocomeçaria,senãoestouenga- mitircitá-lonaíntegra.Noentanto,possoresumi-lo.Ohábitonãopode
nado,comapublicaçãodeOanti-édipo? serreduzidoàreproduçãodeumprazerobtido.Aidéiadeumprazer
Masvoltemosaoessencial.Oquedescobridenovonestesdoistex- obtidoouaobtersópodeagirapartirdeumprincípio:
tos,oqueescaparaamim,queescrevosobreDeleuzeháquasetrinta
anos? Parece-me que o essencial do encaminhamento de Monique Masohábito,comosíntesepassivadasligações,aocontrário,prece-
David-Ménardéoseguinte:emsuasegundafase,Deleuzeperdeua deoprincípiodeprazereopossibilita”.Aofinal,lemos:“Maisumavez,
possibilidadedediálogocomapsicanálisedevidoaumretorno(tal- nãodevemosconfundiraatividadedereproduçãoeapaixãoderepeti-
vez não pensado) à filosofia pré-crítica. Em uma palavra, retorno à çãoqueelarecobre.Arepetiçãodaexcitaçãotem,porobjetoverdadeiro,
filosofiadoinfinito:Leibniz,certamente,aquemDeleuzedirecionou elevarasíntesepassivaaumapotênciadaqualderivamoprincípiode
explicitamentesuaatenção,mas(surpresa!)aHegel.OuaindaàDia- prazeresuasaplicações,futurasoupassadas.(Deleuze2,pp.129-30)
léticadoAbsoluto,quesemprefoioadversárioprincipaldafilosofia
dadiferençaedarepetição(porsinal,atradiçãoqueconsisteaopora Aoladodaluzlançadasobreoprincípiodeprazer,euinsistia,em
idéiaderepetiçãoàidéiadesíntesedialéticaéantiga:bastalembrarde meutexto,queaidéiadereforçonadatinhaavercomumreflexo
KierkegaardedeNietzsche,assimcomoobergsonianoCharlesPéguy (umasíntese,digamos,passiva),poiselaimplicava,naidéiaderepe-
deClio,quesesituanopontodepartidadeDiferençaerepetição). tiçãoaqueestávinculada,umaformadetemporalidadeinvertida
Éverdadequeemumtextodemaisoumenosdezanoseudizia –comoseapenasosefeitosposterioresdeumgestopudessemdefini-
queaidéiadeimersãonocaosnãoestavadistantedaidéiaexpri- locomoumgestopropriamentedito.Écomose(maisumasurpresa)
midanoprefáciodaFenomenologiadoEspíritoondeHegelafirma encontrássemos,nomuitonorte-americano,pragmatistaenaturalista
que,paraseadvirRazão,osimplesEntendimentodeveriaimergirno Skinner,opontodepartidadeClio,deCharlesPéguy,queiniciacoma
delíriodionisíacodaSubstância!Paramim,tratava-sedeumcruza- tesedequearepetiçãonuncaimplicaemumacontecimentoprimeiro.
mentopuramentelocalesemmuitaimportância.
16 Discurson.362007
Assim,sempassarporKant,eumeaproximavadoquenosdizMo-
DossiêFilosofiaePsicanálise
niqueDavid-Ménard,mesmoprivilegiandoostextosdaprimeirafase,
sugerindoque,comGuattari,esobreofundodamesmatradiçãoempi-
rista,DeleuzeseaproximavamaisdeSkinnerdoquedeFreud–como
seaconcepção“maquínica”doinconscientenosaproximassemaisda
práticadoreforçoedaextinçãodobehaviordoquedapráticadainter-
pretação.Comefeito,aexplicarofuncionamentodaprática,Deleuze Repetireinventar
fazemalgumlugarumbelotrocadilhoaoelogiaronomedeumestado segundoDeleuzeesegundoFreud
norte-americano: Connecticut – literalmente, ligar e cortar, ou talvez,
reforçareextinguir.
Eraumamaneiramenosrica,doqueestadeMoniqueDavid-Mé-
nard,dedescreverodesviodeDeleuzeemrelaçãoàpsicanálise.Mas MoniqueDavid-Ménard
queéconvergentecomadela.OfatoéqueeunãohavialidoAlou-
curanarazãopura.Nãopoderiafazê-lonosanos1970,etpourcause. ProfessoradaUniversidadedeParisVIIDenisDiderot
MesmoapósterlidoecomentadoOqueéafilosofia?,emparticularo
misteriosoparágrafosobreosmovimentodevelocidadeinfinitaque
atravessamocaos,eunãotinhaadivinhadooretornosubterrâneoà
filosofiadoinfinito.Apósestaconferênciaeosoutrostextosdenossa
colegaMonique,precisareirelertodaaobradeDeleuze.Masestaé
talvezafelicidadedapráticadafilosofia:podersemprerecomeçar.
SãoCarlos,27deoutubrode2004
ReferênciasBibliográficas
1.DAVID-MÉNARD,MoniqueCréerdesconcepts,dessinerl’impenséinRueDes-
cartes,no45-46,Paris:PUF,2004.
2.DELEUZE,Gilles.Différenceetrépétition.Paris:PUF,1999.
3. PRADO JR.,“Hume, Freud, Skinner (em torno de um parágrafo de Gilles
Deleuze)”inAlgunsEnsaios,SãoPaulo:PazeTerra,2000.
Tradução:LucianoLafacedeAlmeida
RepetireinventarsegundoDeleuzeesegundoFreud
Nesteartigo,trata-se,porumlado,decompreenderatéquepontoaexistência
humanaeopensamento,naquiloqueelestêmdeinventivo,sãofeitosdesínteses Seháumaexpressãoquepoderesumir,nafilosofiadeGillesDeleu-
disjuntivas.Equaltipoderepetiçãoentreoselementos,ligadosdemaneiranão- se,oquepermiteàvidaeaopensamentoseinventarem,estaexpres-
casual,masnãosistemática,supõeestasíntesetãoimportantenopensamento
sãoé“síntesedisjuntiva”.Síntesedisjuntivaéumaligaçãodeelemen-
deGillesDeleuze.Poroutrolado,trata-sedesaberseesseconceitoderepetição
tos que são aproximados e colocados juntos de uma maneira que
convergecomaquelequereclamaapsicanálise.
inaugura um pensamento ou uma forma nova de existência, pois
Palavras-chave:repetição,síntesedisjuntiva,criação,Deleuze,psicanálise
esseselementosnãosãohomogêneos:elesnãopodemserlevadosà
identidadedeumamedidacomum.Umdoselementosmaissimples
TorepeatandtoinventaccordingtoDeleuzeandaccordingtoFreud
dessasdessemelhançasinventivaspertenceàcriaçãopictórica:quan-
ThispaperinvestigatestheDeleuzeanconceptionaccordingtowhichtheinven-
tiveaspectofhumanthoughtandexistenceistheresultofadisjunctivesynthe-
doVanGoghpintaseuauto-retrato,seurostoéumgirassolquenão
sisofdiverseelementsinterconnectedinanon-casual,non-systematicway,soas separececomele,umpavorantesnuncavistoseinventaporesse
toshowthecompatibilityofhisphilosophywithpsychoanalysis. “tornar-segirassol”dorosto.
Keywords:repetition,disjunctivesynthesis,creation,Deleuze,psychoanalysis. Talaproximação,quenãotemmodeloenemesquemaapriori,não
épuramentemomentânea:essaligaçãoproduzefeitosrelativamente
duráveis,poisaíumespaçodevidaouumtrajetodepensamentose
desenhademaneirainédita.Nemtodadisjunçãoéumasíntesedisjun-
tiva: em certas experiências delirantes, as imagens e os significantes
colocadosjuntosfracassamaoproduzirumasíntese,ouseja,umter-
ritóriodeligaçãoquenãoexistiaantesdesuapresençaerelação.
Mas para que uma síntese seja inventiva, para que ela produza
umterritórionovodeexistênciaoudepensamento,éprecisoqueos
termosligadossejamheterogêneos–eisosentidodapalavrasíntese
desdeHumeeKant–equeafórmuladesualigaçãosejacontem-
porâneadapróprialigação.Taléoplanodeimanênciaoudecon-
sistênciaquecaracterizaainvençãoconceitualnaobradeDeleuze.
Osconceitosnãosãoaprioricomoascategoriaseosesquemaskan-
tianos–elesinauguramproblemáticas.AidéiadeDeleuzeéqueos
pensamentosinventivos,comoosãoasgrandesfilosofias,juntamos
20 Discurson.362007 RepetirinventarsegundoDeleuzeesegundoFreud 21
elementosheterogêneosquesãoligadosporaquiloqueelechama, Deoutrolado,trata-sedesaberseesseconceitoderepetiçãocon-
MoniqueDavid-Ménard
DossiêFilosofiaePsicanálise
emQu’est-cequelaphilosophie,deuma“razãocontingente”:Kant vergecomaquelequereclamaapsicanálise.Poderíamosdescrever
“junta”umacríticadoCogitocartesiano;umateoriadotempoedo o processo de uma análise como a produção, tanto na palavra do
espaço;apersonagemconceitual,ouseja,ojuizemfunçãoindispen- analisandoquantonosdestinosetransformaçõesdesuaspulsões,de
sávelparaqueafilosofiasejaredefinidacomocrítica;eumaconcep- síntesesdisjuntivas?Poderíamossustentarquearegressão,empsica-
çãodoconhecimentocomojulgamentoscapazesdeformularoque nálise,éumarepetiçãoqueproduzumaligaçãotípicaentreexperi-
fazaexperimentaçãonasciências.Umaproblemáticafilosóficaliga ênciasdesofrimentoedegozoqueformaramtalsujeitodedesejo.
essescomponentesqueemnadasedestinamaseremreagrupados. O objetivo de uma cura, com efeito, não é nunca o de simples-
Eisomotivopeloqualarazãoéaquicontingente;mastrata-seainda mente encontrar a fórmula dessas repetições, mas o de encontrar
assimdeumarazão,ouseja,decomponentescujaligaçãoseorgani- arranjosinéditos,menoscustososemsintomas,entreoscomponen-
zapeloviésderepetiçõesderelaçõesdiscursivasqueaobraproduz. tespulsionaisesignificantesquedesenharamoplanodeimanência
Opensamentoconceitualseformapor“variaçõesinseparáveis”. sobreoqualsedesenrolaumaexistência.Avertentepositivadare-
Entendamososeguinte:oselementossetornaminseparáveisporva- petiçãoempsicanáliseéumasíntesedisjuntiva?
riaçõesqueafilosofiaefetua,equecaracterizamsuaproblemática.Para
variarasrelaçõesentreoselementosdopensamento,éprecisorepetir,
repetirligaçõessemmodelodefinidoapriori,taléarazãocontingente. AsrepetiçõesemDeleuze
Essetermoseopõe,segundoDeleuze,àquiloquedefineaciência:
ligarvariáveisindependentespormeiodeumarazãonecessária,ou Noestadoacabadodeseupensamento–tomemoscomoreferên-
seja,porfunçõesquedeterminamahomogeneidadedeelementos cia1995,oanodeQu’est-cequelaphilosophie?–,Deleuzefazmenos
escolhidoscomovariáveis.Asfunçõesdeterminam,então,estados- referênciaàpsicanálisedoquequandoeleformavaseusconceitos:
de-coisas;aciênciapreocupa-secomareferênciadessesenunciados, em1963,PrésentationdeSacherMasochdesvendavaoselosarbitrá-
enquantoasproblemáticasdafilosofiavisamàconsistência,ligando riosqueunemduasformaçõesdedesejodistintos.Eem1968,Diffé-
eventosquesãoincorpóreos. renceetrépétitiondavaasgrandeslinhasdeumafilosofiadotempoe
Noentanto,meupropósitonãoéoderetomaressaconfrontação dopensamentocomopotênciadiferenciante.
entreafilosofiaeaciência.Procuro,deumlado,compreenderaté Noentanto,comoumasínteseéumaligação,ecomoumasíntese
que ponto a existência humana e o pensamento, naquilo que eles disjuntivaéumaligaçãoquevalorizaemvezdeanularadisparidade
têmdeinventivo,sãofeitosdesíntesesdisjuntivas.Equaltipodere- dostermosqueelajunta,háumanotávelcontinuidade,emDeleuze,
petiçãoentreoselementos,ligadosdemaneiranãocasual,masnão entreoperíododeseudebatecomFreud,Lacan,MélaineKleineo
sistemática, supõe essa síntese: até que ponto a ligação de termos seguimentodesuaobra,francamentepolêmica,contraapsicanálise,
heterogêneos, e que permanecem em uma disjunção, produz um ouaelafazendoreferênciademaneiramaisdiscreta.
pensamentonovoquandosetratadeconceitos,eumanovaforma Descrevamos esse encontro em forma de debate freqüentemente
deexistência,maisintensa,quandosetratadedesejosouaindade violentocomFreud:todavida,tododesejo,todopensamento,segundo
“devires”,segundoaexpressãodeMille-Plateaux? Deleuze,abreseucaminho–eledirámaistarde‘traçaseuplanodeima-
22 Discurson.362007 RepetirinventarsegundoDeleuzeesegundoFreud 23
nência”–graçasatrêsrepetiçõesquesãomodosdeligaçõesdenosso nohábito.AcríticadeFreud,emcompensação,consisteemmostrar
MoniqueDavid-Ménard
DossiêFilosofiaePsicanálise
corpo,denossosafetos,denossospensamentos:aprimeiraligação quenãosecompreende,empsicanálise,atéquepontooprazeréum
é a do hábito.Viver, desejar, pensar, é tornar presentes ao mesmo princípioparaaindividuaçãobiopsíquica.DesdeaPrésentationdeSa-
tempoelementosqueformamoqueofilósofochamade“presente cherMasoch,Deleuzemostraqueaimportânciadesseromancistapara
vivo”. O hábito é uma síntese passiva que efetua junções para um anossaculturaestánofatodequeelemanifestaqueoimportante,
“sujeitolarvário”: nodesejo,nãoéaprocuradoprazer.Definirodesejopelaprocura
doprazeré,porumlado,terumaconcepçãomuitopobredoprazer
Todo organismo está em seus elementos receptivos e perceptivos, comodescargae,poroutro,subjugarodesejoaumtermotranscen-
mastambémemsuasvísceras,umasomadecontradições,deretenções dente,oobjeto,queéaquilopeloqual,segundoFreud,oobjetivodo
edeesperas.Noâmbitodestasensibilidadevitalprimáriaopresentevi- prazerserealiza;é,enfim,nãocompreenderqueoprazer,aoemvezde
vidojáconstituinotempoumpassadoeumfuturo.Essefuturoaparece serumpurofato,éumprincípioparaavidadaalma,comosustenta
nanecessidadecomoformaorgânicadaespera,opassadodaretenção Freud.Eparacaptaressafunçãodo“princípio”deprazer,épreciso
aparecenahereditariedadecelular.(Deleuze1,p.100) pensarotemporepetitivodohábito,primeirasíntesedisjuntiva.
Masalinhadotempoassimconstituídaacorrentaapenaspresen-
OencontrocomFreudjásemarcaaquipeladimensãodeprazer tes. Ora, nós somos memória: a segunda síntese do tempo, que é
alucinatórioqueacompanhanecessariamenteessaprimeirarepeti- tambémumsegundoencontrocomFreud,consisteemexploraros
çãodohábito: elosdeMnémosyne,deusadamemória,edeEros.Bergsonmostrou
filosoficamente, em Matéria e memória, de 1900, que a lembrança
Nósnãonoscontemplamosanósmesmos,masnósnãoexistimos pura, aquela que constitui nossa singularidade, não é um passado
senão contemplando, ou seja, contraindo aquilo de que procedemos. queembranqueceu.Tudooquenósvivemoscomporta,jáàprimei-
Aquestãodesaberseoprazeréelemesmoumacontração,umaten- ravista,umadimensãodepassadosematualidade,masquecolore
são, ou se ele está sempre ligado a um processo de relaxamento, não nossos presentes a vir quando nossa memória se contrai e investe
estábemcolocada[...]Oprazeréumprincípio,enquantoexcitaçãode certospresentes.OqueBergsonnãodisse,masqueProust,deum
umacontemplaçãopreenchedora,quecontrainelamesmaoscasosde lado, e Freud, de outro, destacaram, é que a memória é erótica.A
relaxamentoedecontração.Háumabeatitudedasíntesepassivaeso- sériedosobjetosqueformanossosdesejosseimaginaporrepetições
mostodosNarcisopeloprazerquenósexperimentamoscontemplando, que projetam em um tempo mítico, ancestral e edipiano – Freud
aindaquecontemplemosoutracoisaquenãonósmesmos.Nóssomos diziafilogenéticoeontogenético,Lacandirámíticoeestrutural–as
sempreActéonpeloquenóscontemplamos,aindaquenóssejamosNar- figurasdospersonagensedosenredosdosquaissomostributários.
cisopeloprazerquenósdaítiramos.Contemplarésubtrair.(Deleuze Masaquiainda,DeleuzeestámuitopróximodeFreudeaomesmo
1,p.102) tempooperaumacríticadapsicanálise.Poderíamosdizerqueeleé
Opresentevivoextorqueumadiferençadarepetiçãodecasos,que, maisestruturalistaqueopróprioLacan,poiscolocaqueésomente
semessesujeitolarváriodohábito,continuariamsomenteexteriores porumailusãonecessária,umcertoefeitodeótica,queopassadoda
unsaosoutros.OencontrocomFreudconsisteeminscreveroprazer infânciaéprimeiro.Nasíntesedamemória
24 Discurson.362007 RepetirinventarsegundoDeleuzeesegundoFreud 25
Nãohátermoúltimo,nossosamoresnãoremetemàmãe;simples- elemento,éincontestável.Seriaprecisoavançaredizerqueaidéia
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DossiêFilosofiaePsicanálise
menteamãeocupa,nasérieconstitutivadenossopresente,umcerto desepararopassadodopresentepelarepetiçãotransferencialéum
lugarcomrelaçãoaoobjetovirtual,queénecessariamentepreenchido puromito?Eanoçãodevirtualidadedosobjetosdedesejosubstitui
por uma outra personagem na série que constitui o presente de uma aexigênciadotrabalhodehistoriadorqueumanalisandofaz?Eiso
outrasubjetividade,considerando-sesempredeslocamentosdesteobje- pontododebate.Masantesdecolocarostermosdeconfrontoentre
to=x.UmpoucocomooheróidaRecherche,que,amandosuamãe,já aclínicaeastesesdeleuzianas,convémfalardaterceirasíntesedo
repeteoamordeSwannporOdette.(Deleuze1,p.140) temposegundoDeleuze,quefaztambémoterceiroencontrocom
Freud,semduvidaomaisfundamental,equeconcerneàpulsãode
Éentãoumailusãocolocarcomoumprincípioqueaestruturade morte(queDeleuzepreferechamardeInstintodemorte).
nossosdesejosseformanopassado.Noentanto,essasínteseeróticada Nãosecompreendebemarelaçãodoamorsexuadocomamemó-
memóriatemumafunçãodecisivanavidadenossosdesejosedenosso riasenãoquandoseatentaparaamaneiracomqueumapotênciade
pensamento.Nessaprocurailusóriadeumaorigemdenossosamores, morteobrigaavidaaseultrapassar,abandonandoabuscadasori-
desenha-seaestruturadenossospensamentos:pensamentosbanais, gens:oInstintodemorte,lidonaperspectivadoeternoretornode
pensamentosdenossossonhosoudenossasexperiências,mastambém Nietzsche,éessacapacidadederenunciar,porumacriação,àbusca
estruturadasproblemáticaspelasquaisseagenciamnossosconceitos. eróticadenossasorigens.Deleuzeque,aíainda,lêFreudàsuama-
Amemóriaéaartedasquestõescomoohábitoeraaartedasesperas: neira,estáatentoaumtemadecisivodeAlémdoprincípiodeprazer:
nas neuroses traumáticas, mas também nas formações do incons-
As questões e os problemas não são atos especulativos que, a este cientenasquaisaviolênciadeumeventofezvoarpelosaresaorga-
título,permaneceriamtotalmenteprovisóriosemarcariamaignorância nizaçãopréviadapsique,há,dizFreud,umatarefapréviaàprocura
momentâneadeumsujeitoempírico.Sãoatosvivos,investindoasob- doprazer.Trata-sedeumtrabalhodeligaçãodoselementosdeuma
jetividadesespeciaisdoinconsciente,destinadosasobreviveraoestado experiênciaquandoelanãoémaisadquirida.Aameaçadocaos,se-
provisórioeparcialqueafeta,aocontrário,asrespostaseassoluções[...]. gundootermodeDeleuze,oudodesligamento,segundoaexpressão
MesmoosconflitosdeÉdipodependemantesdaquestãodoSphinx.O deFreud,é,porumadesuasfaces,umquestionamentodoprincípio
nascimentoeamorte,adiferençadossexos,sãoostemascomplexosde deprazer,seesteúltimoconsisteemencontrarcircuitospulsionais
problemasantesdeserostermossimplesdeoposição.Antesdaopo- relativamenteestáveisquetornempossíveissatisfaçõesparciais.Mas
siçãodossexos,determinadapelaposseepelaprivaçãodopênis,háa opróprioFreuddizqueaomesmotempohá,paradoxalmente,uma
“questão”dophalusquedeterminaemcadasérieaposiçãodiferencial atraçãopeladestruiçãodetodaorganizaçãonaprópriapulsão.Essa
daspersonagenssexuadas.(Deleuze1,p.141) atraçãoé,paraFreud,tambémacondiçãodetodarenovaçãodavida
daalma.Porém,secompararmosasformulaçõesdeFreudcomasde
Nossasegundaquestãoseráadenosperguntarmosseapráticada Deleuze,chocamo-nospelofatodequeDeleuzeémaisunilateralna
psicanálisepodefazerdopassadodasexualidadeinfantilummito, atençãodadaàaproximaçãodocaos.Ofatodeasínteseserdisjunti-
comosugereDeleuzedesde1968.Queapulsãodosaberformaem va,ofatodeostermosligadosaumaobraouaumaexistênciaserem
nósaartedasquestões,equetodacuraanalíticasedesenvolvenesse heterogêneoseopermanecerem,garantiriaofatodearepetiçãoser
26 Discurson.362007 RepetirinventarsegundoDeleuzeesegundoFreud 27
inventiva,emvezdeserprisioneiradaspotênciasdoidêntico.Freud fomequeaimportunava,edemostraraosseuspróximosqueelaera
MoniqueDavid-Ménard
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insistemaisnaambigüidadedarepetição,tantoemsuasformula- capazdetransformarseucorpo.
çõesmaisespeculativasquantoemseustextosclínicos.Trata-sede Seu corpo havia então se transformado no teatro de uma louca
compreenderporqueapráticadapsicanálisenãopodesereclamar transformação,éverdade,masdaqualelanãopôdedizerseuexces-
unicamenteumaconcepçãocriadoradarepetição.Poderia-sedizer sosenãodepoisdoocorrido.Elahaviaparadodecomerdepoisda
também:oqueproduzumacuraéumasublimação? mortedeumaavóimportantenasuavida,poissomenteaexistência
deMathilde–chamaremosaquiestagarotadeMathilde–haviasido
capaz de reunir sua mãe e sua avó, que não se viam havia muitos
Ambiguidadedarepetiçãoempsicanálise anos.Elatrabalhavaparareuni-las,esuasúbitaincapacidadedetra-
balharafaziacairnumaexperiênciadeinexistênciaqueelaretomava
Antes de voltar à confrontação dos textos, precisemos com um pegandoparasiumoutrodesafio,destavezalimentar.Elahavia,no
exemplocomoseapresentanaclínicaarepetição,segundosuaver- momentoemqueeurelato,declinadosuaatraçãopeladoçurados
tentedestruidoraesegundosuavertenteinventiva. casacosdepeledesuaavó,nosquaiselaseroçavafreqüentemente
Apráticadapsicanáliseconsisteemdar,dediversasmaneiras,um depoisdamortedestaúltima.Sesuamãeesuaavóesperavamdela
espaçodetransformaçãoaoscircuitosdedesejosdiferentesunsdos queelafosseoquesechamade“umaboaaluna”,étambémporque
outros,masqueumdevirligouequesecristalizaramemsintomas. elas comungavam um rigor extremo que havia marcado todos os
Esserearranjonãoéumaunificação,éantesinvençãodeumaoutra anosdaexistênciadeMathilde.
relaçãoentreestasséries:sériesderepresentações,ousériesdesigni- Mathilde,emseunascimento,adoeciacomfreqüência,oqueexas-
ficantes,nalinguagemdeLacan. peravasuamãe,decepcionavaseunarcisismoerequisitavarepetidas
Tomemosoexemplo:umagarotajovem,bonita,elegante,muito intervençõesmédicasecirúrgicas.
inteligenteesaturadadelamesma,falamuitodesuarecenteanore- Nopresentemomentoelaestavabem,masguardavaaindaaexi-
xia;suaanáliselheserveparapodervoltaraoquesepassoucomela gênciadenãorenegaressaexperiênciaextremaqueelaespantava-se
nessaexperiênciaextrema,suficientementegraveparaqueelaseja detercompletado.Oqueaangustiavaaindaemsuavidaera,porum
hospitalizada um certo tempo, e que acompanhou o início de sua lado, ter dificuldades em superar o desgosto pelo sexo do homem
análise.Nomomentoemqueeuescolhoexpor,elapassaporestados comoqualelaviviae,deoutrolado,ofatodequeelaseinterrogava
deangústialigadosaoseutrabalhodepesquisa,estadosdeangústia sobreasaída,destavez,dasangústiasemseutrabalho.
análogos àqueles que ela havia atravessado logo antes de parar de Elasonhoucomestasituação:“Euestavanohospital,eumaenfer-
comer. meira,queeratambémrelojoeira,medavaummedicamento,doli-
Elaveiodizerqueseelanãoconseguissemaistrabalharelanão prane”.Nohospital,comentaela,“duranteaanorexia,nãotínhamos
teriamaisexistência,eodesafioqueafaziatrabalharatéomomento direitoamedicamentos.Curiosamente,omeurelógiohaviaparado
comoumapessoajovem,daqualseuspróximospoderiamseorgu- duranteminhaestadianohospital.Quemhaviamedadoorelógio
lhar,haviasetransformadoemumoutrodesafio:odenãocederà eraomeuavô,logoapósamortedeminhaavó,quehaviaaconte-
cido praticamente no dia de meu aniversário. Eu havia retornado
28 Discurson.362007 RepetirinventarsegundoDeleuzeesegundoFreud 29
recentementecommeuavôàrelojoariaondeelecompraraorelógio, unificamosnuncaoqueestáligado,eéocaráterdisjuntivodasséries
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poisdestavezeleestavafuncionando,masumdosponteirosestava ligadasquefaztodaasurpresaeautilidadedessasmetamorfosesou
quebrado.Eutiveessesonhoapósaúltimasessão,naqualeufalei dessesdeviresdosintoma.Elaliberavasuarelaçãocomumhomem
sobreamaneirapelaqualasminhasangústiaspelosmeusestudos desuarelaçãocomosmédicos,eissomodificavaasuaangústiaao
entravamnolugardaangústiadeestardoenteedeestarnasmãos mesmotempoemquealibertavadaempresadesuahistória:nãose
demédicos,poisemminhacasa,tínhamosodireitodenosangus- tratavamaisnemdesuaavónemdesuamãenessesdeviresdosin-
tiarmospelosestudos,masnãopeloresto.Minhamãeestavamuito toma,masdesuamaneiradeviverasperipéciasdosexosemmodelo
decepcionadaporterumafilhadoente.Ora,oqueeraimportante exterioreprévio.
paramimeraomedodeestarnasmãosdemédicos.Eumelembro Acontece que, nessa análise, a síntese disjuntiva que inventa a
daangústiadaanestesia,dequandomecolocavamumamáscarade maneira pela qual se determina a sexuação para um sujeito não é
clorofórmioeeudesmaiava.Eraestemomentoquemeaterroriza- suficienteparadarcontadoprocessomesmodacura.Háumduplo
va:aperdadaconsciência”.Elaacrescenta,semtransição:“écomo aspectodarepetição,eainvençãonãoéevidente.Apotênciadain-
quandooespermaescorreentreminhaspernaseeunadapossofa- vençãopodesedestacardasforçasdestrutivasqueseintensificavam
zerparaimpedir.Umdesmaio”. nesseperíododacuradeMathilde.Apartirdajunçãodeumafemi-
Asignificantesériedoença–estudos–julgamentodamãeedaavó, nilidadeatéaíinviáveleimpensável,elavoltou,comefeito,aoque
quefoipormuitotempoaúnicamaneiradeexistirsobomodode ahaviaprendidoaosideaisdalinhagemmaternal.Issosomenteé
umdesafio,secolocavasubitamenteemrelaçãocomasuavidade possívelgraçasàtransferência,noqueelatemderadicaledearris-
mulher:gozardosexodeumoutroquelhedeixaescorrerespermaé cado:depoisdeterseaproveitadodeseusonhoedeassociaçõesque
impossível.Aexperiênciadadoençasecolocavaemrelaçãoinédita lhe permitiam abordar sua vida sexual, ela retornou ao que a im-
comosexoporessacriaçãoqueaproximaoquenãoésemelhante: pediaatéentãodeirnessadireção.Elatinhaaimpressãodequeeu
estaradormecidaparaumaoperaçãoepassearcomoespermaes- exigiadelanaanáliseaquiloqueexigiamnaescola,ouseja,queela
correndoentreaspernas.Omesmo“nadapossofazer”insuportável. viesseatersempreumbomdesempenho,equetodomomentode
Omesmoecontudonão-mesmo,logo,ligaçãodeexperiênciashe- fraquezaoudedepressãoiriamedecepcionar.Elatinhaumaobriga-
terogêneasequeapermanecerão,forjandoacordavidasexualde çãoderesultadosesesentiaeternamenteabaixodosideaisexigidos.
Mathilde.Ofatodeterpodidosentiroque,paraela,eraomesmo Aliás,seelatinhaparadodecomernoperíodoqueseguiuoinício
receio – o de ser anestesiada e o de gozar pelo sexo de um outro desuaanálise,eratãosomenteporqueelarepetiaaexperiênciade
–libertava-aderepentedaangústiadenãopodertrabalhar,criando falharparacomasuamãe.Quandodamortedesuaavó,suamãe
umaligaçãoinéditadeexperiênciasdessemelhantes–ligaçãoimpos- haviadeixadoohospitalporalgumashorasparalevarMathildeaté
síveldeinventarenquantootrabalhoremetiaàdoençaeadoençaao suacasa.
trabalho.Ora,seissolhepermitiariraoinvésdelevá-laaodesafio Parardecomereraoferecerumareparaçãoàsuamãe.Elaatinha
deparardecomer,eraporqueelajogavacomessenon-sense,com impedidodeassistiraosúltimosmomentosdesuaprópriamãe,e
essa disjunção do sentido, que aproximava para ela o desmaio da agoraelaacabavadelhedarumcadávernolugardaquilodoqualela
anestesiaeoabandonodoorgasmo.Aoescutarumanalisando,não ahaviaprivado.Pronunciandoessasfrases,quelhefaziamrevivero
30 Discurson.362007 RepetirinventarsegundoDeleuzeesegundoFreud 31
períododesuaanorexia,nãosepodedizerqueelasimplesmentein- Captamosaquiporqueapsicanálisenãopodefazer“simplesmen-
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ventavasuaexistência.Omomentodainvenção,quandoelacome- te” uma filosofia das sínteses disjuntivas e criadoras, como Deleu-
çavaafazerjunçõesinéditasentresuahistóriaesuavidademulher, ze: Freud, em Au delá du principe de plaïsir, constrói seu conceito
nãotinhaporsisóopoderdecolocarumtermoaessatentaçãoda derepetiçãoaproximandoquatrofenômenosquesãoambíguos,e
mortificaçãocomoúnicomeiodeexistir.E,sobretudo,osmomentos nãopuramentecriadores.Oprimeirosãoasneurosesdeguerra,nas
deinvençãosãodecisivossomentepelofatodedestacarem-setendo quaisossoldadosdaguerrade1914-1918haviamperdidoainventi-
comopanodefundooriscodarepetiçãonoqueelatemdemor- vidadedesuavidadevigíliaetinhamtodasasnoitesomesmopesa-
tífera.Mathildetinhaparadodefreqüentarsuassessõesdeanálise delo,querepetia,semmodificaçãoimaginária,acatástroferealque
durante o período de seu espantoso emagrecimento. Ela retomou haviacristalizadosuacapacidadeemdesconhecersuasfragilidades
contatoaovirmemostrarseucorpoesquelético.Nãoqueelatenha internas.Osegundofenômenoéojogobemconhecidodascrianças
simplesmentemetomadocomosuamãeemumarepetiçãoqueLa- querepetem,brincando,porexemplo,demédico,oqueashorroriza,
canchamariadeimaginária,equeelateriasimplesmentesubstituído tirando daí um prazer paradoxal. (Poderíamos dizer que a minha
umafiguraporoutracomoduascópiasdamesmaimago.Elatinha analisandaMathildefoiimpedida,peloseulugarnagenealogia,de
antes, nesse desafio que colocava em jogo um risco de destruição brincar de médico.) O terceiro exemplo é o prazer que os adultos
delamesma,umagravantenatransferênciadadestrutividadedeseu têmnosespetáculostrágicos,graçasaosquaisossereshumanossão
desejo.Eisafaceobscuradarepetição,aquelaqueFreudchamava capazes,comodiziaAristótelesnaPoética,dereconheceralógicados
de pulsão de morte – não para dizer que ela coloca forçosamente eventoshumanosqueelesdesconheciamemsuavidahabitual.Por
em jogo a morte biológica, mas antes porque ela desencadeia esse fim,ofenômenoquepermiteaproximarostrêsprimeiroséa“rea-
tipodeatonoqualumsujeitosomenteconseguemanifestaralguma çãoterapêuticanegativa”,ouseja,amaneirapelaqualadestrutivi-
coisadesimesmoporseusatosparadoxaisemarcadospeloexcesso, dadeseradicalizanatransferência,semqueestejamospreviamente
equearriscamtornarvãoseuobjetivodesereconhecerporumou segurosqueelatermineemumarecriaçãodaexistência.Poderíamos
pelosoutros. dizer que o dispositivo da cura seleciona essa ambigüidade da re-
Ointeresse–mastambémoperigo–deumaanáliseécolocarem petição.EquandoFreudselançaemseguida,emseutexto,sobreo
obraesseaspectodarepetição,circunscrevendo-onoespaçodacura, queelechamadeespeculaçãobiológica,afirmandoqueaspulsões,
ou seja, dando a possibilidade, como nos espetáculos de tragédia, emumperíodoantigodaevolução,caminhavamparaamortepelo
detransformaremjogooreconhecimentodalógica,normalmen- caminhomaiscurto,eleprojetadefatoaambigüidadedarepetição
te não percebida, dos eventos humanos.A cura provoca e contém emumasupostaunidadedosprocessosdedesejossexuaisedasleis
aomesmotempoessafaceobscuradarepetição,eénessacondição davidabiológica.Masessasíntese,quenãoéseguramentedisjunti-
queasinvençõessignificantespodemsedestacardadestrutividade, va,masantesmetafórica,permiteconceberqueaspulsõesditas“de
emprestando desta última certos materiais significantes. As sínte- morte”–efetuandoumtrabalhodeligaçãoqueaindanãoésexual,
sesdisjuntivasnãoseefetuamemquaisquercondições;arepetição comovemosnopesadelodasneurosesdeguerra–são,noentanto,
transferencialastornaimpossíveis,maselasnãosãoumaproprie- pulsões:assíntesessãodisjuntivasporqueosmateriaisdasexuali-
dadedoconceito.
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dadesãoemprestadosdascenastraumáticas.Osexualemprestado Contudo essa noção de infinito, em Deleuze, não considera so-
MoniqueDavid-Ménard
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traumáticoemascaraodesligamento. mente a ciência e a filosofia. Cabe também à arte colocar em jogo
Semepareceimportantesublinharavizinhançaentreadestru- esseinfinitopelasaproximaçõesinéditasqueelainventa.Trabalhar
tividadedodesejonarepetiçãoeasreorganizaçõesinventivasque adessemelhançaé,comefeito,mostrarempinturacomoasformas
atransferênciapermiteemumacura,nãoésimplesmenteparade- produzemdevirescomacondiçãodeseaproximardovaziodocaos:
fenderaespecificidadedapráticaclínicanasuadiferençaparacom
oexercícioconceitualdafilosofia,quedecidiriarápidodemais,de AcasadeManetseencontraininterruptamentetragadapelasforças
algummodo,quepassamosparaoladodacriação.Étambémpara vegetaisdeumimpetuosojardimoperadoporuminfinitomonocromo,
introduzirumelementodecríticaconceitualnopensamentodeDe- eaporta-janela,emMatisse,nãoseabresenãosobreumfundonegro...
leuze,queestá,aliás,apesardaviolênciadosataques,tãopróximoda afiguranãomaiséohabitantedolugar,dacasa,masohabitantedeum
psicanálise.Criticooseguinteponto:Deleuzequalificadeinfinitaa universoquesustentaacasa.Écomoumapassagemdofinitoaoinfini-
maneirapelaqualosconceitosdafilosofiaouosobjetosdapercep- to,mastambémdoterritórioàdesterritorialização.(Deleuze2,p.171)
ção da arte circulam no caos de partida do qual eles se destacam.
Dondeaimportânciadevariaçõesinseparáveisqueoexercíciodo Emumacriaçãodaarte,nãosetratamaisdeumsujeito,masde
conceitocolocaequesedesenham,naproximidadedocaos,àdeter- blocosdeobjetosdapercepção,justamenteporqueoqueécolocado
minaçãodeumaproblemática juntonasínteseéextraídodadisjunçãodocaos.Masporquecha-
mardeinfinitoaquiloparaoqualadisjunçãoremete?
Define-seocaosmenospelasuadesordemdoquepelarapidezin- PoderíamosresponderqueDeleuzeéleibniziano,queseuinfini-
finitapelaqualsedissipatodaformaqueaíseesboça.Éumvazio,que toéaqueledocálculoinfinitesimal,edasdiferençasdepercepção.
nãoéumnada,masumvirtualcontendotodasaspartículaspossíveis, Haveriapassagemdofinitoaoinfinito,poisadistinçãodasformas,
e tirando todas as partículas possíveis, que surgem para tão logo de- dosvolumesdascores,emumateladeMatisse,colocaemjogoo
saparecerem,semconsistêncianemreferência..Ocaoséumarapidez fundo,aaboliçãodasformas,dascores,dosvolumes.Mastrata-se
infinitadenascimentoedesaparecimento.(Deleuze2,pp111-2) sempre do mesmo infinito nos três casos considerados (a arte, a
Encontramos nesse curto texto a alusão à diferença entre ciên- filosofiaeaciência).
ciaefilosofia,jáqueaprimeiraseafastadocaos:construindouma Senosreferimosaocampodatransferênciaempsicanálise,não
referência para seus enunciados e a segunda o faz desdenhando diremos que as sínteses disjuntivas que reorganizam os destinos
planos de consistência do pensamento. Duas maneiras diferentes pulsionaiseaorganizaçãosignificantedeumahistóriapassampelo
desereportaraocaos,aciênciadesaceleraavelocidadepelaqualo infinito.Insistirsobreafacenegativadarepetição,emvezdetomar
pensamentoaícircula,graçasàescolhaengenhosadevariáveisinde- partidodainvençãoquecircularia“emumarapidezinfinita”nocaos,
pendentesligadasporfunções,enquantoafilosofiapermanecemais éabordaradestruiçãointernadosdesejosporumdispositivoque
próximadocaosgraçasaessarapidezinfinitaqueassinalaadisjun- confereaonegativododesejoumcaráterlúdicoenãometafísico.
çãonassíntesesdisjuntivas. A polêmica de Deleuze contra a idéia freudiana e lacaniana do
desejo como falta de seu objeto desconhece que o importante, no
34 Discurson.362007
papeldoobjeto,épermitiroaparecimentodaspulsõesdemorte:o
DossiêFilosofiaePsicanálise
masoquismo,segundoFreud,consistemenosemignoraroobjetoe
asatisfaçãopeloprazerdoqueeminventarumexteriornoqualas
pulsõespodematribuiraprópriaviolência.Éporqueodispositivo
datransferênciaéassimlimitadoquearepetiçãopodeconvocaras
forçasdedesligamentosemaíseestragar.Adisjunçãoemumasín-
tesedisjuntivanãofaznecessariamentereferênciaauminfinitoque Sobresaúdemental:
unificaria,sobapotênciametafísicadoMesmo,aarte,aciênciaea anaturezaproteiformedaspulsões
filosofia.Inventarsuaexistência,mastalveztambémpensarconcei-
tualmente,éumamaneiradesedesfazerdailusãodoinfinito.
OsvaldoGiacoiaJúnior
Referênciasbibliográficas
Professordodepartamentodefilosofiada
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2.–––––.Qu’est-cequelaphilosophie?.Paris.Minuit.1995. UniversidadeEstadualdeCampinas(Unicamp)
3.–––––.PrésentationdeSacher-Masoch.Paris.Minuit.1963.
4.FREUD,Sigmund.Audeláduprincipedeplaisir.Paris.Payot,1996.
Sobresaúdemental:anaturezaproteiformedaspulsões
Ao analisar as relações entre Nietzsche e Freud, o presente trabalho pretende
seguirumcaminhodiversodododescentramentodamodernasubjetividade. Numareflexãosobreaherançadapsicanálise,Paul-LaurentAssoun
Oquesesugereaquiécomooproblemadaspulsõesedasublimação,quecons- lembraque,comoumsaberdosprocessosinconscientes,ela“podeser
titui em Nietzsche um dos mais importantes vetores de compreensão de sua
inscritanaposteridadedaquele[Fr.Nietzsche,OGJ.]queseapresenta-
críticadaculturaedamodernidadepolítica,poderiaservirdeocasiãoparauma
vacomooprimeiropsicólogodamoralidade”(Assoun1,p.99).
discussãoprodutivacomapsicanálise.
Opinião tanto mais plausível quanto se considera a insistência
Palavras-chave:Nietzsche,Freud,instinto,sublimação
comqueumcerto“nietzscheo-freudismo”(Assoun1,p.99)seapre-
sentoudesdemuitocedo,praticamenteemseguidaàmortedeNiet-
Onmentalsanity:theproteiformnatureofinstinctordrive
zsche. A esse respeito, cabe fazer menção à recepção de Nietzsche
FocusingontherelationbetweenFreudandNietzsche,thepaperaimsatpoint-
ingtoanalternativepathtothedisplacementofsubjectivityamongthemod-
porpsicanalistascomoOttoGrosseOttoRank,porexemplo,bem
erns. Nietzschean notions of instinct and sublimation, which are among the comoàssessõesdaSociedadePsicanalíticadeVienaemqueo“caso
central tenets of his critique of culture and modernity, could be the starting Nietzsche”foiconvenientementedebatidoesubmetidoaexame(1o
pointforaproductivediscussionwithpsychoanalysis. deabrile28deoutubrode1908,porexemplo).Masnãosepode
Keywords:Nietzsche,Freud,instinctorDrive,sublimation deixardemencionartambém,doladodosfilósofos,oempenhocom
queapesquisasobreNietzsche,tantomaisantigacomoamaisre-
cente,temseocupadoemestabelecerasrelaçõespertinentesentreos
empreendimentosteóricosdessesdois“mestresdasuspeita”.
ComolembraomesmoAssoun,muitossãoostemaseproblemas
queaproximamFreuddeNietzsche,podendo-semesmoreconhecer
que,entreumeoutro,éamesma“revoluçãocopernicana”àsavessas
quesedesenrola:deumlado,ohomem,comosujeito,éremovidoda
antigaposiçãocentralnograndepalcodomundo;poroutrolado,a
unidadesimplesdaconsciênciadeixadeseronúcleodecentramen-
todoeuedasubjetividade.Este,aliás,tantopraNietzschequanto
paraFreud,nãoésenhorsequerdaprópriacasa.
No presente trabalho, todavia, pretendo seguir um caminho di-
verso de problematização, que não o descentramento da moderna
subjetividade.Oquesugiroaquiécomooproblemadaspulsõese
38 Discurson.362007 Sobresaúdemental:anaturezaproteiformedaspulsões 39
dasublimação,queconstituiemNietzscheumdosmaisimportantes IniciocomumadastesesmaisfortesepolêmicasdeParaagenealogia
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vetoresdecompreensãodesuacríticadaculturaedamodernida- damoral:ohomemcivilizadoéoanimaldoente,eleé“maisenfermo,
depolítica,poderiaservirdeocasiãoparaumadiscussãoprodutiva maisinseguro,maisalterável,menosfixadodoquequalqueroutro
comapsicanálise. animal,dissonãohádúvida,eleéoanimaldoente”,atémesmo“o
Iniciocomduaspassagensquemeserviramdefontedeinspira- maisduradouraeprofundamenteenfermoentretodososanimais
ção:umadelasdeFreud,outradeLaplancheePontalis: doentes”(Nietzsche5,vol.V,pp.125ess);Aessaconstataçãoseria
necessárioacrescentar:étantomaisdoentequantomaiscivilizado.
Nãoéfácilentendercomosetornapossívelsubtrairumapulsãoà Ésobretudoapsiquehumana,ou,paradizê-loteologicamente,a
satisfação.Demodoalgumissoéisentodeperigo;seissonãoécompen- alma,quetemumaorigemtortuosa;elasedesenvolveapartirdade-
sado economicamente, pode-se contar com sérios distúrbios. Porém, bilitaçãoanimaleinstintiva,comoresultadodeumrepressivopro-
se queremos saber que valor pode pretender nossa concepção do de- cessodeautoviolentação,cujadinâmicaédeterminadapelainibição
senvolvimentodacultura,manifestamentetemosquetomaremmãos epelarenúnciaàsatisfaçãopulsional.Dessemodo,umaeconomia
umoutroproblema,odecolocaraquestão:aqueinfluênciasdevesua dasenergiaspulsionaiseumacertadinâmicarepressivapertencem
origemodesenvolvimentodacultura,comoelesurgiueporquemeio inevitavelmenteà“pré-históriadaalma”.
sedeterminaseucurso.(Freud2,vol.IX,p.228)
Todososinstintosquenãosedescarregamparaforavoltam-separa
Como sabemos, o próprio Mal-estar na civilização se encarre- dentro–éistoqueeudenominoainteriorizaçãodohomem;écomisso
gará de responder que esse desenvolvimento é devido, em grande quecresceprimeiramentenohomemaquiloquemaistardesedenomi-
medida,àrenúnciaàsatisfaçãodapulsãoemsuametaoriginaleà nasua“alma”.Ocompletomundointerior,originariamentefinocomo
sublimação. algoretesadoentreduaspeles,separou-seeaumentou,ganhouprofun-
Nãohácomonãoreconhecer,portanto,aimportânciadasubli- didade,largura,altura,namedidaemqueadescargadohomempara
maçãoparaoestudodasorigensedodesenvolvimentodacultura. forafoiinibida.Aquelesterríveisbaluartescomosquaisaorganização
Por isso, Laplanche e Pontalis observam o seguinte:“na literatura estatal se protegia contra os velhos instintos de liberdade – as penas
psicanalíticarecorre-sefreqüentementeaoconceitodesublimação; fazem parte, antes de tudo, desses baluartes – acarretaram que todos
eleéefetivamenteoíndicedeumaexigênciadadoutrina,edificil- aquelesinstintosdohomemselvagem,livre,errante,sevoltassempara
mente se vê como poderia dispensar-se”. Todavia, prosseguem os trás,contraohomemmesmo.3(Nietzsche5,vol.V,pp.321ess.)
autores,adespeitodessaimportância“aausênciadeumateoriaco-
erentedasublimaçãomantêm-secomoumadaslacunasdopensa-
mentopsicanalítico”.(Laplanche4,p.640)Talvezumacomparação
comNietzschepossacontribuirparaumareflexãoaesserespeito.
2
Osalgarismosromanosremetemàdissertação,osarábicosàpaginação.Salvoindicação
emcontrário,todasascitaçõesdeNietzschesãoreferentesaessaedição,sendoastradu-
çõesdeminhaautoria.
Nãohavendoindicaçãoemcontrárioastraduçõessãodeminhaautoria.
1 3
Idem,II,16.
40 Discurson.362007 Sobresaúdemental:anaturezaproteiformedaspulsões 41
Comosepodeperceber,nabasedesseprodigiosoesforçodeau- (ouumindivíduo)lida(oupodelidar)comsuasenergiaspulsionais
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tocriação,encontra-seopatrimôniobiopsíquicodaspulsões.Com (Triebe),comseusafetosecomossentimentosquedelesderivam.
efeito, a passagem do bicho-homem ao animal político se faz so- A esse respeito, pode-se dizer que, para Nietzsche, a história da
bretudo pela“organização do caos pulsional”. É nesse sentido que civilizaçãoocidentalémarcadaporumradicalantagonismoentre
a genealogia nietzscheana pode ser entendida como tentativa de duasmodalidadesbásicasdeeconomiapulsional,oposiçãoquede-
reconstituiçãodapré-históriadaalmahumana–arenadecombate sempenhaumafunçãodeterminantenaconfiguraçãoenodestino
ealiançaentreaspotênciastelúricasdafome,sexualidade,agressi- dostiposhumanosquepormeiodelaforamgerados.
vidade,crueldade,desejodeposse,sededevingançaeseusderiva- Esseantagonismo,Nietzscheoformuladistinguindotiposopostos
dos–contidosemoldadospormeiodeinstituições,demodoase depráxismoral:deumlado,amoraldacastração;deoutrolado,o
transformarememumconjuntodesistemaspsíquicosestruturados tipoantitético,quepoderíamosdenominarimoralismodaspaixões
eorganizadosemaparelhosefunções. oupráxissintetizadora.
Essarepressãodotelúricocaldeirãopulsionalfazdobicho-homem O“castratismo”,emsuaversãoclássica,éidentificadoporNietzs-
o“animalnãofixado”(Nietzsche5,volXII,pp.71ess),oúniconana- checomapedagogiamoraleclesiástica,decunhosocrático-platôni-
turezaadarasimesmoasériedesuasconfigurações.Estas,porsua co-cristão.
vez,representamoutrastantastentativasdefixaçãodetiposhuma-
nos,resultadosdesucessivosedolorososexperimentosdohomem Oafeto,ograndedesejo,aspaixõesdopoder,doamor,davingança,
consigomesmo. da posse: os moralistas quiseram extingui-las, extirpá-las, “purificar”
Se tomarmos o termo economia em seu sentido etimológico de delasaalma.
ordenação, divisão, administração de recursos, energias e valores, Alógicaé:essesdesejosfreqüentementeproduzemgrandedesgraça
entãopoderemosdecifraralógicadoprocessocivilizatório,talcomo – conseqüentemente, eles são malvados, condenáveis. O homem tem
o considera a genealogia nietzscheana, como uma economia das quesedesvencilhardeles:antesdisso,nãopodeserumhomembom...
pulsões.Énesseterreno,ameuver,quesedesenvolveoessencialda Essa é a mesma lógica que:“se um membro te escandaliza, então
reflexãonietzscheana,tantoarespeitodasfigurasemqueohumano arranca-o”. No caso particular, como o aconselhou a seus discípulos
se deu na história, quanto sobre as permanentes possibilidades de aquela perigosa“inocência da terra”, o fundador do Cristianismo, no
sua(auto-)superação. casodairritabilidadesexual,infelizmentenãosesegueapenasquefalta
Essaeconomiapermitediferenciarentreumacondiçãoenfermi- ummembro,masqueocaráterdohomemfoicastrado...Eomesmo
çaeumacondiçãosaudável–pelomenostomadasemrelaçãode valeparaodelíriodosmoralistasque,emlugardacontinência,exigem
mútuadependência–paraindivíduosepovos,assimcomoparape- aextirpaçãodaspaixões.Aconclusãodelesésempre:sóohomemcas-
ríodosinteirosdeumacultura.Sobtalprisma,podemosdiscernir, tradoéohomembom.
nagenealogiadeNietzsche,umespecíficoindicadordesaúde–espe- As grandes fontes de força, aquelas tão freqüentemente perigosas
cialmentedesaúdepsíquica–,asaber,nomodocomoumacultura águasselvagensdaalma,ajorraravassaladoramente–emlugardeeco-
nomizá-las e tomar em serviço seu poder, aquela mais míope e per-
Nietzsche,F.Fragmentopóstumo.Nr.2[13].Outonode1885-Outonode1886.
4
42 Discurson.362007 Sobresaúdemental:anaturezaproteiformedaspulsões 43
niciosa maneira de pensar, a maneira moral de pensar, quer fazê-las emquese“espiritualizam”.Outrora,porcausadaestupideznapaixão,
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secar.(Nietzsche5,vol.XIII,p.347)5 fazia-seguerraàprópriapaixão:agenteseconjuravaparaaniquilá-la
–todososvelhosmonstrosdamoralsãounânimessobreque“ilfaut
Em Crepúsculo dos idolos – mais uma vez analisando a maneira tuerlespassions”.7
tipicamentemoral-eclesiásticadelidarcomosimpulsoseaspaixões
–,Nietzscheescreve: Essa unanimidade, porém, é a idiossincrasia psicológica da pe-
núria – típico credo ideológico dos“cultivadores seletivos para o
Aniquilaraspaixõeseosdesejos,apenasparaprevenirsuaestupidez pequeno”–, cuja mentalidade extirpadora é avessa ao conceito de
easconseqüênciasdesagradáveisdessaestupidez–issoparece-noshoje espiritualização.Ocastratismoéumaeconomianegativadaampu-
apenasumaformaagudadeestupidez.Jánãoadmiramosmaisosdentis- taçãoedafalta;sendoimpotenteparaconvivercomoexcesso,não
tasquearrancamdentes,paraqueelesnãodoammais...AIgrejacombate podetambémvivenciarapossibilidadedaconversãodeumextremo
apaixãocomaextirpação,emtodosossentidos:suaprática,sua“cura”éo emseucontrário–justamenteaquiloqueNietzschevislumbracomo
castratismo.Elajamaispergunta:“comoespiritualizar,embelezar,divini- gravidezdefuturo.
zarumdesejo?”-Emtodosostemposelacolocouopesodadisciplinano A práxis das paixões, recomendada pela dietética nietzscheana,
extermínio(dasensualidade,doorgulho,daânsiadedomínio,daânsiade consiste antes na reapropriação do excesso, daquela imensa gama
posse,daânsiadevingança).Porématacaraspaixõesemsuaraizsignifica deimpulsoseafetosrenegados,proscritos,reprimidos,“caluniados”,
atacaravidaemsuaraiz:apráxisdaigrejaéhostilàvida..(Nietzsche5, anatemizadose,quandopossível,extirpadospelatradiçãoplatônico-
vol.VI,pp.82ess)6 cristã.Reapropriação,porém,nãodesua“estupidez”bruta,bárbara
e destrutiva, mas de sua força domada, transfigurada, sublimada,
Àpráxismoraldacastração,Nietzschecontrapõeoutraeconomiados “dourada”:
impulsosedaspaixões.Suasprincipaiscaracterísticasestãoindicadas
notextoqueacabadesercitado.Trata-sedoavessodaproscrição;em Tomaraseuserviçotudooqueéterrível,umaum,amododeten-
vezdela,pode-semanterumaposturafundamentalmenteacolhedora tativa,passoapasso–assimqueratarefadacultura.Masatéqueela
epositiva:atransfiguraçãodaenergiadosimpulsos,suasublimação, seja forte o suficiente para isso, ela tem de combater, moderar, velar,
divinização,embelezamento,espiritualização. emcertascircunstâncias,maldizeredestruir.Portodaparteondeuma
Nessesentido,paraNietzsche, culturacolocaseumal,elaexpressacomissoumarelaçãodetemor:sua
fraquezasedenuncia.Emsi,todoBeméumMaldeoutroratomado
todasaspaixõestêmumaépocaemquesãoapenasnefastas,emque, emserviço...Odomíniosobreaspaixões,nãoseuenfraquecimentoou
comopesodaestupidez,arrastamsuasvítimasparabaixo–eumaépo- extirpação!Quantomaioréaforçadominadoradenossavontade,tanto
caposterior,muitomaistardia,emqueseconsorciamcomoespírito, mais liberdade pode ser dada às paixões. O grande homem é grande
peloespaçodeliberdadedesuaspaixões:maseleésuficientementeforte
5
Nietzsche,F.Fragmentopóstumo.Nr.14[163].Primaverade1888.
6
Nietzsche,F.Crespúsculodosídolos.Amoralcomocontra-natureza1. 7
Ibid.
44 Discurson.362007 Sobresaúdemental:anaturezaproteiformedaspulsões 45
parafazerdessesmonstrosseusanimaisdomésticos...(Nietzsche5,vol. ticadanaturezahumana,talcomoelaseformulaemRousseau,por
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XIII,pp.484ess)8 exemplo.ParaNietzsche,oresgatedanaturezacorrompida,oretor-
noàsaúde,nãosignificaumregressoàbondadeorigináriadacon-
ÉissoqueNietzscheentendecomoeducaçãoErziehungnãocas- diçãohumana–estaé,paraele,apenasumsub-rogadoideológico
tradora,queconduzàsaúdetantodoindivíduoquantodacultura: damoralcristãlaicizada.
umarenaturalização(Vernatürlichung)dohomem–transvaloração
dosvaloresaníveldaeconomiadosimpulsos.Poisocastratismomo- Progressonosentidoemqueeuoentendo.–Tambémeufaloemum
ralnãoéapenasumaeconomiadaindigência,massobretudouma “retornoànatureza”,aindaquenãosejapropriamenteumretornar,mas
aberraçãoantinatural.Àvisadagenealógica,elaserevelacomouma um ascender – um ascender à natureza e à naturalidade elevada, livre,
monstruosainversãoeautocontradição,pelaqualumadeterminada terrívelinclusive,quebrinca,quetemdireitodebrincarcomgrandesta-
forma de vida se volta contra as mais poderosas fontes de energia refas...Paradizê-locomumametáfora:Napoleãofoiumfragmentodesse
vital,levandoaefeitoumaformidávelempresaculturalderebaixa- “retornoànatureza”talcomooentendo(porexemplo,inrebustactise,
mentodevalor,decultivoseletivodohumanoparaopequeno. maisainda,comoosmilitaresosabem,emquestõesestratégicas).–Mas
Nietzsche tem aqui em vista uma contradição monstruosa, que Rousseau, para onde queria ele propriamente retornar? Rousseau, este
culmina,paraele,numadolorosaeinútildissipaçãodeforças;pois, primeirohomemmoderno,idealistaecanailleemumasópessoa;queti-
pormaisqueapedagogiamoralseempenheemaniquilaraspai- nhanecessidadeda“dignidade”moralparasuportarseupróprioaspecto;
xões,seuinexoráveldestinoésucumbiraofracasso,jáquenenhuma doentedeumavaidadedesenfreadaedeumautodesprezodesenfreado.
criaturapodesesubtrairàforçadanatureza.Numaformulaçãoque Tambémesseabortoqueseplantoujuntoaoumbraldaépocamoderna
antecipacomraralucidezasdescobertaspsicanalíticasdeFreud,o queriao“retornoànatureza”–paraonde,perguntamosoutravez,que-
jovemNietzscheobservaquejáaantigasabedoriagregahaviafeito riaretornarRousseau?(Niezsche5,vol.I,p.150)10
aexperiênciadequenãoerapossível–nemsequerdesejável–repri-
mirviolentamenteoarrebatadorimpulsoorgiástico:“umacoerção Essa pergunta dá bem a idéia da envergadura e importância da
direta era impossível; e, se possível, ela era, entretanto, demasiado críticafeitaaRousseau,nessecontexto.Deacordocomaestratégia
perigosa: pois o elemento represado em seu jorro irrompia então polêmica de Nietzsche, não se trata de visar apenas o sujeito em-
poroutroscanaiseinundavatodasasartériasvitais.”(Nietzsche5, píricoJean-JacquesRousseau(comotambémnãoforaocasocom
vol.I,p.567)9 Sócrates,Platão,oucomoapóstoloPaulo),masdealvejarumtipo,
NãoqueNietzschemobilizeoconceitodeuma“harmoniosa”na- umaexpressãoparadigmáticado“cultivadorseletivoparaopeque-
turezahumanaoriginária,puraeboa,aindaintocadaporcostumes no”–NietzschediscerneemRousseauoprincipalartíficedoprojeto
epaixõesviciosas,frutosdegeneradodeumacivilizaçãocorruptae políticodamodernidade.
irracional.Elefoiumincansáveladversáriodaedulcoraçãoromân- Constituiumcasoexemplardeseletividadepespectivísticacomoesse
finodiagnósticopodedeixardeladooquantoopróprioRousseauante-
8
Nietzsche,F.Fragmentopóstumo.Nr.16[6e7].Primavera-Verãode1888.
9
Nietzsche,F.Visãodionisíacadomundo. 10
Nietzsche,F.,Excursõesdeumextemporâneo48,p.150.
46 Discurson.362007 Sobresaúdemental:anaturezaproteiformedaspulsões 47
ciparaacríticanietzscheanadamodernidade,inclusive–emespecial Não“retornoànatureza”:poisaindanãohouvejamaisumahuma-
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supostoquetalconceitosejapermitido,seriaaquelehomemqueexi- ànatureza,pormeiodeumaascensãoànaturalidadedaRenascença,
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bisseomaisfortementeocaráterantagonísticodaexistênciacomosua umaespéciedeauto-superaçãoporpartedaqueleséculo.–Elecarre-
glóriaeúnicajustificação...Aoshomenscomuns,élícitoexibirapenas gavaemsimesmoosmaisfortesinstintosdaqueleséculo:asentimen-
umdiminutocantinhoeumpequenoacenodessecaráternatural:eles talidade,aidolatriadanatureza,o[elemento,OGJ.]anti-histórico,o
perecemdeimediatoquandocrescemapluralidadedoselementosea idealístico,oirrealerevolucionário(esseúltimoéapenasaformado
tensãodosopostos,istoé,apré-condiçãoparaagrandezadohomem. irreal). Ele tomou em seu auxílio a história, a ciência da natureza, a
Queohomemtemdesetornarmelhorepior,estaéminhafórmula antiguidade, igualmente Spinoza, sobretudo a atividade prática; cer-
paraessainevitabilidade.(Nietzsche5,volXII,pp.519-20)12 cou-sedeautênticoshorizontesfechados;elenãoseseparoudavida,
introduziu-senela;nãofoivacilante,etomouaseucargo,sobresi,tan-
Contraaindigência,háaexuberância;contraaamputação,háo toquantopossível.Aquiloqueelequeriaeratotalidade;elecombateua
cuidadoeocultivo;emoutraspalavras:integridadeesaúde,con- separaçãoentrerazão,sensibilidade,sentimento,vontade(pregadapor
tra aniquilação e debilitação. Dadas as coordenadas principais da Kant,comamaisassustadoraescolástica,Kant,oantípodadeGoethe),
genealogianietzscheana,nãopoderestarqualquerdúvida:opreço ele se disciplinou para a integralidade, ele criou-se a si mesmo... Em
dacivilizaçãoéafragmentaçãodoanimalinstintivamentesaudável, meioaumaépocadispostaparaoirreal,Goethefoiumrealistaconvic-
inteiroefeliz.Porém,osfragmentospodemterduplodestino:ouse to:quantoaisso,eledissesimatudooquelheeraaparentado,elenão
dissiparem, figurando, então, carência e perda; ou serem reunidos tevevivênciamaiordoqueaqueleensrealissimumchamadoNapoleão.
ecombinadosnumbeloebemacabadomosaico.Nissosediferen- Goethe concebeu um homem forte, superiormente instruído, desen-
ciamosdoisregimesdosimpulsos,ouasduasdietéticasculturais voltoemtodaacorporeidade,tendo-seasimesmosnasrédeas,aquem
daspaixões. élícitoousargozarainteiraextensãoeriquezadanaturalidade,queé
Percebe-se então que, também em direção a essa saúde e inte- suficientementeforteparaessaliberdade:ohomemdatolerância,não
gridadepsíquica,ocaminhoentrevistoporNietzscheéodaauto- apartirdafraqueza,masdaforça;poiselesabeempregaremseupro-
superação, do elevar-se acima do fragmento, pela via da cultura. veitoaindaaquiloaquesucumbiriaumanaturezamediana;ohomem
ContrapondoRousseau,comoparadigmado(diminuído)homem paraquemnãohámaisnadaproibido,anãoserafraqueza,chame-se
moderno,aGoethe–queentãorefletiriaoidealoposto–,Nietzsche elapecadoouvirtude...Umtalespíritotornadolivresepõedepé,com
mostra como a figura do humano, assumida por Goethe, é plena, umalegreeconfiantefatalismo,emmeioatudo,nacrençadequesóo
ascendente,integradora,tendoconquistadoodomíniodesi,nãopor singularéreprovável,que,notodo,tudoseconciliaeafirma–elenão
meiodacondenaçãomoral,quelevaànecessidadedeextirpaçãoeà nega mais... Mas uma talcrençaéamaiselevadadetodasascrenças
rigidezdomoralista: possíveis:euabatizeicomonomedeDionysos.(Nietzsche5,vol.VI,
pp.151ess.)13
Goethe–nãoumacontecimentoalemão,maseuropeu:umagran-
diosa tentativa de superar o século dezoito por meio de um retorno
12
Nietzsche,F.Fragmentopóstumo.Nr.10[111].Outonode1887. 13
Nietzsche,F.Crepúsculodosidolos.Incursõesdeumextemporâneo49.
50 Discurson.362007 Sobresaúdemental:anaturezaproteiformedaspulsões 51
Aquiaparece,numaluminosidadequasecrua,aquetípicoresul- fortalecemos:aproximamo-nosnovamentedoséculo17.(Nietzsche5,
OsvaldoGiacoiaJúnior
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tadopodeconduziradiferençaentreocultivopelapráxismorale vol.XII,pp.482ess)15
pelo imoralismo das paixões: o artista Goethe aparece como um
exemplo bem sucedido de integridade, força e saúde um ideal de Emseumonumentalbalançosobreosempreendimentosteóricos
redençãonagrandeza.Nele,atolerâncianãoéefeitodapusilanimi- deNietzscheedeFreud,escreveReinhardtGasser:
dadeedaimpotência,elabrotadaforçaedaplenitude:sóoisolado
e singular é condenável – na bela totalidade, tudo se reconcilia e O consórcio entre espontaneidade e faculdades intelectuais alta-
afirma. mentecomplexas,entreatemeridadedodesejoeadelicadaorganiza-
GoetheeRousseau,duasmetáforasparaodestinodaautocriação çãodaspaixões,remetefinalmenteaumaconcepçãomuitojuvenildo
humananahistória:deumlado,orebaixamentodefinitivodoho- Além-do-Homem.Emqueconsistirão,perguntaNietzsche,asprofundas
memaanimalanão,uniformeeanônimo,condenadoaobem-estar transformações,depoisdeque“nenhumDeusvelapornós”,nenhuma
dosmedíocresprazeresiguais,perseguindoumidealmercantilista “leiéticaeterna”seapresentacomogarantiaparaohomem?Significa
de“felicidadedasverdespastagensdorebanho,cheiadesegurança, issoque“somosanimais”?Quenossavidaseesvai?Quesomosirres-
livredoperigo,repletadebem-estaredefelicidadedevidaparatodo ponsáveis?Suaresposta:Osábioeoanimalseaproximarãoeumnovo
mundo;”(Nietzsche5,vol.VI,pp.60ess)14nooutroextremo,ohe- tiposedará.(Gasser3,p.404)
róitrágicoqueécapazdesuportarebendizeramaisextrematensão
doarcodesuaspossibilidadesdeser. Emconclusão,gostariaapenasdesugerirumalinhadequestiona-
Àsombradoniilismoextremo,Nietzschepretendeaindadiscer- mentoquepodenosconduziraimportantesconseqüências:talvez
nir,noocasodoséculoXIX,sinaisdequeoOcidentepodeencetar, pudéssemosconsiderarNietzschecomomaisotimistaqueFreudem
mesmoqueinconscientemente,umcaminhoascendente,nadireção relaçãoàsublimaçãoeaseupapelcompensatórionaeconomiado
inversa daquela traçada pela modernidade cultural. Seu principal desenvolvimentocultural.EnquantoFreudserevelaalgocéticoaesse
indícioparaessacrençaéoimoralismocontemporâneo: respeito–considerandoinevitávelqueodesenvolvimentodacivili-
zaçãoaprofundeefortaleçaosentimentodeculpadahumanidade,
Há indícios de que o europeu do século 19 se envergonha menos apenasdeficitariamentecompensadopelasublimação,Nietzschepa-
deseusinstintos:eledeuumbompassonadireçãodeadmitirsuana- recedivisar,noateísmoeimoralismomodernos,umapossibilidade
turalidade,istoé,suaimoralidade,semamargura:aocontrário,forteo (aindaqueremota)desegundainocência.
suficiente para ainda suportar sozinho essa visão. Em certos ouvidos, É possível que isso tenha sua raiz numa distinta consideração
issosoacomoseacorrupçãotivesseprogredido:eécertoqueohomem genealógica (ou genética) do sentimento de culpa. Se, em ambos
nãoseaproximouda“natureza”,dequefalaRousseau,porém[deuum] os casos, este se origina no sangrento drama criminoso ancestral,
passo à frente na civilização, que este rejeitava horrorizado. Nós nos essatragédiaseconfigurademododiversonoÉdipodeFreudena
crueldadenietzscheanados“fundadoresdoEstado”.Épossívelqueo
14 15
Nietzsche,F.Paraalémdebememal,aforismonr.44. Nietzsche,F.Fragmentospóstumos,fragmentonr.10[53].
52 Discurson.362007
conceitodevontadedepoderpropicieàsublimaçãomaioralcancee
DossiêFilosofiaePsicanálise
fecundidadedoquepodecabernotriânguloedipianodeFreud.Isso,
porém,seriamatériadeumoutrotrabalho.Basta-nosaqui,como
disse,aindicaçãonessesentido.
ReferênciasBibliográficas Cérebro,percepçãoelinguagem:
elementosparaumametapsicologiadarepresentação
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6..______.EcceHomo.Porquesoutãosábio7.Trad.PauloCésardeSouza.São
Paulo:CompanhiadasLetras,1995.
EstetrabalhorecebeuoapoiodoCNPq,sobaformadaBolsade
ProdutividadeemPesquisaconcedidaaoprojeto
Consciênciaerepresentaçãoempsicanálise:alcanceelimites
dareflexãometapsicológica,aoqualseencontrarelacionado
edoqualapresentaumapartedosresultados.
Cérebro,percepçãoelinguagem:elementosparaumametapsicologiada
representaçãoemSobreaconcepçãodasafasias(1891)deFreud
O objetivo deste artigo é mostrar que o ensaio crítico Sobre a concepção das Introdução
afasias,escritoporFreudem1891,éoprimeiropassoparaaformulaçãodeuma
doutrinadarepresentação,cujascaracterísticasiniciaispermanecerãoinaltera- Oensaiofreudianosobreaafasia(Freud8)jáfoiobjetodenume-
dasaolongodetodoodesenvolvimentodaobraecujacompreensãoéindispen- rososestudos1,esuaimportânciahistóricaparaafundaçãodapsica-
sávelparaaelucidaçãodesseamploprojetoteóricodefundamentaçãodeuma nálisetemsidoamplamentereconhecida.Talvezaprincipalevidência
ciêncianaturalistadamente,queFreuddenominoumetapsicologia. dessaimportânciasejaaformulaçãodosconceitosderepresentação
Palavras-chave: psicanálise, Freud, metapsicologia, representação, associacio- depalavra(Wortvorstellung)erepresentaçãodeobjeto(Objektvors-
nismo,atomismopsicológico tellung),distinçãoquefoilargamenteempregadaporFreudemmo-
mentoscruciaisdareflexãometapsicológicaposterior(Freud11,p.
Mind,perceptionandlanguage:elementstoametapsychologyofrepre- 115;Freud12,pp197-200;Freud13,p.227,entreoutros).Oquese
sentationintheConceptionofaphasia pretendenopresentetrabalhoéretomaraformulaçãoinicialdes-
TheaimofthispaperistoshowthatFreud’sConceptionofaphasiaisthefirst
sesconceitos,assimcomooutrasnoçõespropostasporFreud,para
steptowardstheframingofadoctrineofrepresentationwhosemainfeatures
mostrar,emprimeirolugar,dequemodoelespressupõemtodauma
remainunchangedthroughoutthefurtherdevelopmentsofhiswork.Theright
revisãodaconcepçãosobreanaturezadofatopsicológicoedesua
comprehensionofsuchadoctrineisafundamentalrequirementinthestudyof
relaçãocomocérebroeosistemanervoso,implícitanasteoriasloca-
Freud’smetapsychologyconceivedasanaturalisticscienceofthemind.
lizacionistascriticadasporFreudemseuensaio.Emsegundolugar,
Keywords:psychoanalysis,metapsychology,representation,associacionism,
trata-sedemostrarcomoessarevisãoconduzàformulaçãodeuma
psychologicalatomism.
outraconcepçãoderepresentação,presenteemtodasaselaborações
metapsicológicasposteriores.Comisso,pretende-seargumentar,por
umlado,queamonografiasobreasafasiasénãoapenasimportante
paraacompreensãodametapsicologiafreudiana,masconstitui,de
fato,seupassoinauguraledecisivo;poroutrolado,queoconceito
derepresentaçãoécrucialparaoprojetometapsicológicofreudiano
1
Paracitarapenasalguns,mencionemosGreenberg19,Henderson21,Marx28,Miller
29eRizzuto33,34,35.NoBrasil,cabedestacarAraújo2,Birman4,Caropreso6,Gabbi
Jr.16eGarcia-Roza18.
56 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 57
epodeserconsideradoumGrundbegrifftãolegítimodateoriapsica- Críticadalocalizaçãoecríticadarepresentação
RichardTheisenSimanke
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nalíticaquantoaquelesviaderegrareconhecidoscomotais(pulsão,
inconsciente, repressão etc.). Por fim, tentar-se-á mostrar que é o Deixandodeliberadamentedelado,então,aquestãoqueestáem
sentidoespecíficodesseconceitoderepresentaçãoaíformuladoque primeiroplanonesseensaiocríticofreudiano–oproblemaespe-
permiterompercomaidentificaçãoentreopsíquicoeoconsciente cíficodasafasias–,concentremo-nosexclusivamentenoexameda
–rupturanãosócaracterística,mas,nolimite,constitutivadapsi- concepçãoderepresentaçãoaíformuladaquasecomoumproduto
canálise–,assimcomoultrapassaroparalelismopsicofisiológicoe, secundárioou,pelomenos,derivadodessacrítica.Defato,Freud
demodomaisgeral,asconcepçõesdualistassobrearelaçãomen- afirma,naaberturadeseuensaio,que,comoateoriadaslocalizações
te-corpooumente-cérebro.Nenhumadessasposiçõeséclaramente cerebraiséapeçafundamentaldaconcepçãodaafasiapropostapor
assumidaemSobreaconcepçãodasafasiase,emboraoinconsciente Wernicke,queelesepropõearevisar,seutrabalhopodeserconsi-
vátornar-seumapeçacentraldoideáriopsicanalítico,jánosanos deradotambémumexamecríticoabrangentedessateoria(Freud8,
imediatamente posteriores a 1891, a superação do paralelismo as- p.39).Ora,olocalizacionismo,namedidaemquesepodetraçarum
sumidoinicialmentetemumahistóriamaiscomplicada,tendosido denominadorcomumparaasdiversasconcepçõesqueessarubrica
negligenciada por diversos comentadores, apesar das renovadas abriga,nãoéapenasumateoriasobreaestruturaeofuncionamen-
reivindicaçõesmaterialistasdeFreud.Desdeessepontodevista,o to do sistema nervoso enquanto tal: ele é, antes e acima de tudo
conceitoderepresentaçãoesboçadoporFreudnesseescritoinicial talvez,umateoriasobrearelaçãoentreaanatomiaeafisiologiado
podeaparecercomoachaveparaaelucidaçãodemuitosdesenvolvi- sistemanervoso,porumlado,easfunçõespsíquicasqueelesedia
mentosconceituaisdesuametapsicologia,eestes,porsuavez,como ouqueaeleestãodealgumaformavinculadas,poroutro.Issopor-
oresultadodaexploraçãodaspossibilidadesabertasporessaprimei- que,evidentemente,sãojustamenteessasfunçõespsíquicasquese
raformulaçãodeumateoriadarepresentação.Essaexploraçãocer- procuralocalizaremáreasanatomicamentedelimitadasdocérebro,
tamentepermaneceuincompletanotrabalhosobreasafasias,mas edocórtexcerebralemparticular.Há,portanto,inevitavelmente,
começouaefetuar-seemobrasimediatamenteposteriores,comoo umapsicologiaimplícitaouexplícitanasteseslocalizacionistas,isto
Projetodeumapsicologia(Freud9).Mesmoassim,talvezmuitasdas é,umconjuntodehipótesessobreanaturezadaquiloquesepre-
conseqüênciasdessateoriatenhamdeixadodeserincorporadaspor tendelocalizar.Assim,acríticafreudianaaolocalizacionismodeve
Freud,pelomenosdeformaexplícitaeinequívoca,asuasreflexões comportar,tambémumaavaliaçãoeumareformulaçãodapsicolo-
teóricasmaistardias,podendo-sesugerir,assim,queaavaliaçãodo gianelecontida;eumareflexãosobreoconceitoderepresentação
alcanceedaeventualatualidadedastesesmetapsicológicasdevale- queemergedessacríticadeveperguntar-se,emprimeirolugar,que
varemcontaessesaldo. psicologiaéessa,qualosentidodoconceitoderepresentaçãoque
sepodedeladeduziredequemaneiraacríticadasconcepçõeslo-
calizacionistasdalinguagemedeseusdistúrbiospodelevarauma
revisão significativa desse conceito, de modo a dar origem àquele
quesefirmarádaíemdiantenametapsicologiafreudiana.
58 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 59
RichardTheisenSimanke
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geral,seridentificadaaoconjuntodedoutrinaspsicológicascomu- empirismobritânicoedoassociacionismoatéencontrarsuaexpres-
mente designadas como associacionismo. A teoria das localizações sãomaiscabalnapsicologiadeMill,éoatomismopsicológico.Àdou-
cerebraiseadoutrinadaassociaçãodeidéiasforamnãosomenteos trinadequetodoconhecimentoprovémdaexperiência,segue-sea
doisgrandesdebatesdoúltimoterçodoséculo19nessaáreadeco- dissoluçãoprogressivadaconcepçãodamentecomoumcentrode
nhecimento(Forrester7,p.37),comorepresentamosdoisladosda atividadeorganizadoraesintéticadosprocessospsíquicos,doravan-
concepçãoentãodominantesobrearelaçãoentreasfunçõespsíqui- teconsideradoscomoresultantesdarecepçãopassivadeimpressões
caseaneurofisiologiadocérebro,demodoqueastesesprincipais sensoriaisque,assimcomoassensaçõeseidéiasaquedãoorigem,
decadaumadessasdoutrinassãoclaramentereconhecíveisnolado seauto-organizamsegundodiversosprincípiosassociativos.Aidéia
contrário2. Para além da teoria da afasia especificamente proposta de uma mente passiva – tabula rasa onde a experiência escreve o
porWernickeeampliadadepoisporLichtheim,Freudvisa,emsua queseconstituirácomoomental–,namedidaemqueexcluiaexis-
crítica,umateoriabemmaisabrangentesobreanaturezadafunção tênciadeumaforma,estruturaouorganizaçãopréviasàrecepção
nervosaecerebral,edesuarelaçãocomomentalsubentendidanes- dasimpressões,dequalquerordemquelhespossaserimpostapor
sesautores,cujoprincipalcodificadorfoiTheodorMeynert.Werni- umprincípiointerno,anterioreindependentedaexperiência,tende,
ckereconhece,explicitamente,naaberturadeseutrabalhoinaugural porsisó,acolocaraênfasenaspropriedadesdoelementonadeter-
sobreaafasia,queasidéiasalipostasconsistememumaaplicação minaçãodopsíquico:oelemento,comsuascaracterísticaspróprias,
especialdasconcepçõesmaisgeraisdeMeynert(Wernicke40,p.92; pré-existeatodoequalquerprocessocomplexoondepossaviraser
Freud 8, p. 86). Meynert, por sua vez, assimila claramente em sua incluído.Segue-sedaí,maisoumenosnaturalmente,queasproprie-
obraainfluência,entãoamplamentedisseminada,doassociacionis- dadesdessecomplexodependemdaspropriedadespré-existentesno
mo britânico nos meios científicos alemães. Mais especificamente, elemento,enãoocontrário.Arealidadeúltimadomentalconsiste,
como apontaAmacher (1, p. 28), esta reveste-se aí da formulação então, no átomo psicológico da sensação ou da representação ele-
querecebeunopensamentodeJamesMill,emcuja“mecânicamen- mentarquelhecorresponde.Essaconcepçãosemanifestaclaramen-
tal”certosprincípiosfilosóficosepsicológicosdoempirismoadqui- tenametodologiadapesquisaintrospeccionistaquenelaseapóia,na
remsuaformulaçãomaisextrema.Acaracterizaçãoesquemáticada buscaobsessivaeartificialpeloisolamentoexperimentaldasensação
psicologiaassociacionistaesboçadaaseguir,emseuesforçodeacen- simplessupostamenteobjetiva,metodologiaquemaistardefoitão
tuaralgunsdeseustraçosdistintivos,tendeareencontrar,porisso, agudamente criticada pelos teóricos da Gestaltpsychologie (Köhler
aformaespecíficaqueestaassumeemJamesMillou,pelomenos, 26,pp44-61,porexemplo).Geralmenteexpressonafórmula“otodo
podebuscarneleosexemplosmaisilustrativos. nãoémaisdoqueasomadaspartes”,oelementarismopsicológico
doassociacionismoétipicamenteilustradopelosexemplosdeMill,
2
Defato,otrabalhodeHughlingsJackson–principalreferênciafreudiana,emseuensaio, quandoesteafirmaqueaidéiadecasaresultadasomadasidéiasdas
doladodaneurologia–visavaacimadetudodeslindaraconfusãoepistemológicaentre tábuas,pregos,tijolosqueacompõemou,numahipérbolequese
concepçõespsicológicaseneurofisiológicasporelediagnosticadananeurologiadesua tornouclássica,queaidéiadeTudo(Everything)resultadasomadas
época. O ensaio freudiano dá continuidade a esse esforço, mas, num certo sentido, o
ultrapassa,comoseprocurarádemonstraradiante. idéiasdetodasascoisas(Boring5,p.226):aindaquecondensadose
60 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 61
fusionados,oselementossubsistemnointeriordocomplexoeaele duzida por um estímulo externo. O ponto de partida do psíquico
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conferemsuascaracterísticas.OfatodequeFreud,emSobreacon- está,portanto,localizadonomundoexterior,concebidoemtermos
cepçãodasafasias,tenha,nummomentodecisivodaelaboraçãode de processos físicos e materiais. Os estímulos físicos que atingem
seuargumento,recorridoaStuartMill–cujanoçãodeuma“quími- a superfície sensorial do organismo dão origem aí a processos de
camental”colocarestriçõesimportantesaesseelementarismogene- excitaçãoedeconduçãonervosa.Aconduçãocentraldessesproces-
ralizado–podeservirparaindicaroquantooatomismopsicológico sosnervosostemcomodestinoúltimoocórtexcerebral–ocórtex
implícitodateoriadaslocalizaçõescerebraisé,ali,umdeseusalvos. occipitalparaoestímulovisual,porexemplo.Aexcitaçãonervosa
Para um pensador como Freud que, oriundo da neurologia, se conduzidaaocórtexproduzaíasinervaçõesqueconstituemocor-
encaminha para a formulação de uma teoria psicológica, o pro- relatoimediatodoprocessopsicológicoconsciente–apercepção–,
blemadasrelaçõesentreomentaleosprocessosneuraissecoloca aomesmotempoemquecausammodificaçõesmorfológicasmais
imediatamente. Cabe perguntarmo-nos, então, qual a concepção oumenospermanentesnasubstânciacerebral(àsvezes,designadas
dessarelação,implicadapeloelementarismoassociacionistaepela comoengramas),queformarãoabasehipotéticadamemória.Numa
teoriadaslocalizaçõescerebrais,queretomasuasfórmulasnoplano formulaçãoparticularmenteilustrativadessaconcepção,Henschen
neurológico.Oqueseprocuraráargumentarnacontinuidadeéque afirmaqueoestímulodeixasuaimpressãonocórtex“comoaforma
a solução aí implicada é o paralelismo psicofisiológico – que Freud doseloéimpressasobreacera”(apudHead22,p.84)3.
aindaendossaexplicitamenteemseuensaiosobreaafasia–,oqual, Atéesteponto,comosevê,nãoéaindanecessáriolançarmãode
contudo, resulta justamente na identificação entre o psíquico e o nenhumfatorexplicativoquenãosejadenaturezaestritamentema-
consciente,sobrecujarecusaFreuderigiráapsicanálise.Essarecu- terial.AteoriadaprojeçãodeMeynert,umdosprincipaisalvosda
saimplicaria,portanto,noabandonodoparalelismo,oquenãose críticadeFreudemSobreaconcepçãodasafasiaseemrespostaàqual
dáemSobreaconcepçãodasafasias,textoque,nãoobstante,parece suateoriadarepresentaçãocomeçaráatomarforma,mostrabem
conterjáosinstrumentosparaarevisãodessaconcepçãoqueFreud comotodoesseprocesso,quevaidarecepçãoperiféricadoestímulo
empreenderálogoaseguir. àsmodificaçõescorticaisquesãoabasedomentaléatomisticamen-
Esquematicamente, para o empirismo associacionista, todo co- teconcebido:acadapontoestimuladonaperiferiasensorialcorres-
nhecimento – e, mais genericamente, todo ato mental – tem sua ponderiaumprocessocontínuoeindependentedeconduçãocentral
origemnasensaçãoresultantedarecepçãodeumestímulosensorial. e,afinal,umamodificaçãocorticalespecífica,apósaqualapenasos
Quandosetratadepensartambémoprocessoneurofisiológicoque processosassociativosteriaminício4.Teríamos,assim,umprocesso
seinterpõeentreoestímuloexternoeaidéiaourepresentaçãoque inteiramentefísicoaolongodetodasasetapasdeseupercurso,que,
seformanamente,ficaclaraaimplicaçãoqueseestabeleceentreo
atomismopsicológicoeoparalelismo,comoocorre,porexemplo, 3
Estesímile,comosesabe,remontaemúltimainstânciaaAristóteles3(Dememoria,I,
emDavidHartley,consideradoofundadoroficialdoassociacionis- 450a,30).
mo como doutrina unificada e consolidada (Boring 5, pp 195-7). 4
Acomparaçãodocórtexcomaretinadoolho,ondeaimagemseformariapelaestimu-
Como se verifica essa implicação? De modo geral, o fato psicoló- laçãocompostadecélulasisoladas,éfreqüenteemMeynerteilustrabemsuaconcepção,
comoopróprioFreudnãodeixadeapontaremSobreaconcepçãodasafasias(Freud8,
gico fundamental é a percepção consciente de uma sensação pro- p.89).
62 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 63
aofimeaocabo,devedarorigemaumfatopsíquico.Éclaroqueisso todasaspropriedadesfundamentaisdomental,aoqueseacrescenta
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nãopodeocorrersemaintervençãodeumfatornovo,denatureza umalacunaintransponívelentreosdois,cujahipóteseéjustamenteo
totalmentedistintadosprocessosmateriaisatéagoraemquestão.Esse quecaracterizaoparalelismo.Se,comorequeraposiçãoelementaris-
fatoré,justamente,aconsciência,concebidaaomododeumórgãode ta,nãoháalteraçõesqualitativasnapassagemdosimplesaocomple-
percepçãointerna,umolharinteriorcapazdeleredecodificarasmo- xo–ouseja,nãoproduzem-seaíqualidadesnovas,nãoprevistasjá
dificaçõescorticaisqueseoriginamdosprocessosexcitatóriosacima naspropriedadesdoselementos–,cadarepresentação,mesmonasua
descritos,dandoorigemàsrepresentaçõesperceptivase,apartirdos formamínima,deveconteremsitodasaspropriedadesdomental;
traçosqueestesdeixamatrásdesi,àquelasquesetornamconscientes emoutraspalavras,oelementodarepresentaçãodeveserinteiramen-
nosfenômenosderememoração.Aconsciênciaaparece,assim,como teumarepresentação,emtodosossentidosessenciaisdotermo.De
umaprioriabsolutodetodapsicologiaquepartadessasconcepções, umlado,processoshomogeneamentemateriais,mesmonoseuní-
comocondiçãodepossibilidadedaexistênciadopsíquicocomoum velmaiscomplexo;deoutro,processoshomogeneamentepsíquicos,
domíniocorrelato,masnãoderivadodosprocessosneuraisaelesub- mesmonoseunívelmaiselementar:énessesentidoquesepodedi-
jacentes.Oelementarismoimplícitoouexplícitonadefiniçãodesses zerqueoparalelismopsicofisiológicoéateoriasobrearelaçãoentre
processosneuraissetransmite,assim,deumladoaoutrodoparalelo menteecérebroimplicadapeloatomismopsicológico.Docompar-
psicofisiológico:acadamodificaçãoparticulardasubstâncianervosa tilhamentodessasconcepçõesassociacionistaspelolocalizacionismo
correspondeumarepresentaçãoelementar,umátomodepercepção resultaaconclusão,daqualesteúltimonãoparecepoderescapar,de
oudememória.Ora,oquedefineoatomismonãoétantoaidéiade queoselementosdasrepresentaçõesdevemestarcontidos,dealguma
que um fenômeno complexo possa ser decomposto em partes ele- maneiramisteriosa,nasunidadesanatômicasdosistemanervoso,nas
mentaresconstituintes:anoçãodeque“otodonãoémaisdoquea célulasdocórtexcerebralemparticular.
somadaspartes”significa,acimadetudo,quenãoseproduzemaltera- OqueadoutrinadaconcomitânciadeHughlingsJackson–àqual
çõesqualitativas,nemseengendramdiferençasefetivasnapassagemdo FreudadereemSobreaconcepçãodasafasias(Jackson23,p156;ibi-
simplesparaocomplexo,ouvice-versa.Todasaspropriedadesdotodo dem,p.160;Freud8,p.98)–propõeéumaversãodepuradadopa-
devem,emprincípio,encontrar-sejádealgumaformapresentesem ralelismoqueescapeaessasconfusõesconceituaisocasionadaspela
suaspartesconstituintes,eapassagemdosimplesaocomplexosedá absorção acrítica do elementarismo associacionista na psicologia
tãosomenteporumasomadaspartes,porumprocessodejustapo- implícitanateoriadaslocalizaçõescerebrais.Oqueseobtémdessa
siçãomecânicaque,nolimite,excluiqualqueridéiadeorganização confusãoéumaespéciedeversãopulverizadadoqueRylechamou
propriamentedita,ouseja,dosurgimentodeumaformaousistema de“dogmadoFantasmanaMáquina”–expressãoutilizadaparaca-
que se caracterize, frente a seus elementos de composição, por um racterizarecriticarorenitentecartesianismodapsicologia(Ryle36,
conjuntodepropriedadesdistintivas. pp15-6)–,naqualumainfinidadedeelementospsíquicoshabitaria,
Sobessaperspectiva,acadaimpressãoelementardevecorrespon- semquesesaibamuitobemcomo,essaspequenasmáquinasorgâni-
derumarepresentaçãosimples,engendradapelaintervençãosobera- casemqueconsistemascélulasnervosas.Evidencia-secomisso,tam-
naeincondicionadadaconsciência;aumprocessoqueématerialem bém, como o paralelismo se compromete, assumidamente ou não,
todaasuaextensãojustapõe-seoutro,quenascejácontendoemsi comalgumaformadesubstancializaçãodomental,característicadas
64 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 65
soluçõesdualistasparaoproblemamente-cérebrodasquaiselecons- centrais(sensorialemotora),queresultamdalesãodoscentros,ea
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tituiumadasversõespossíveis–talvezmesmoumaversãoextrema, afasiadecondução,queresultadalesãodosfeixesassociativos.Noen-
na medida em que abandona o interacionismo de Descartes, com tanto,pelomenosparaoquenosinteressaaqui,elaéprincipalmente
todososimpassesmetafísicosqueesteacarreta.Nãosetrataaqui,é umadistinçãopsicológica,queseparanitidamenteoselementospsí-
claro,deretomar,maisumavez,acríticadessapsicologia,masape- quicos,quepodemserlocalizadosnoscentros,eaassociaçãoque,a
nasdeexpô-laemseustraçosmaiscaracterísticos,demodoatornar partirdeles,levaàconstituiçãodeprocessosmaiscomplexos.Assim,a
possívelcircunscreverarevisãoqueFreudpropõedessespontosde associaçãosópodeserumfenômenosecundáriocomrelaçãoàconsti-
vistaeacompanharsuasconseqüênciasparaaformulaçãodasteses tuiçãodoselementospsíquicosque,segundoosprincípiosassociacio-
metapsicológicasiniciais. nistasrevisadosacima,dá-sepassivamentepelaviadapercepção,me-
Acríticafreudiana,emSobreaconcepçãodasafasias,endereça-se, dianteaintervençãodaconsciência.Freud,aoexporasconcepçõesde
maisprecisamente,atrêsaspectosdasconcepçõesesboçadasacima: Wernicke,deliberadamenteenfatizacomo,desdeessepontodevista,
1) a idéia de que a representação ou seus elementos podem estar localizarumafunçãopsíquicaimplicaemsuporelementospsíquicos
contidos nas células nervosas; 2) a idéia, derivada da primeira, de contidosouarmazenadosemcélulasnervosas:
queoprocessoneuralculminanumarepresentação;3)aidéiadeque
háumaespéciedeespelhamentoentreonívelneurológicoeonível Sobreomodocomoossonsverbaisestãocontidosnocentro[sen-
psicológico,demodoqueaquiloqueaparececomosimplesnose- sorialdalinguagem],Wernickefaziaumaidéiabemprecisa,queéde
gundocorrespondaaalgoigualmentesimplesnoprimeiro.Exami- importânciacapitalparatodaateoriadaslocalizações.
nemosemquetermosessacríticaseexprime,antesdeprocurarmos Quantoàquestãodeatéquepontosepoderialocalizarasfunções
mostrardequemodoaspeçasdoargumentoconstruídoporFreud psíquicas, ele responde que apenas para as funções mais elementares
nessetextopermitemumaoutraalternativaquenãooparalelismo isto é permitido. Uma percepção visual pode ser remetida, no córtex,
jacksonianoexplicitamenteadotadoporelenaquelemomento. àterminaçãocentraldonervoótico,umapercepçãoauditivaàregião
Arecusadaidéiadequeoselementosdosprocessospsíquicos–no deextensãodonervoacústico.Tudoquevaialémdisso,acombinação
casoemfocoemSobreaconcepçãodasafasias,dosprocessosdalin- dediversasrepresentaçõesemumconceito,eassimpordiante,éuma
guagem–possamestarcontidosnascélulascorticaisé,defato,opasso operaçãodossistemasdeassociação,queconectamdiferentesáreascor-
inicialdaargumentaçãofreudianaepermanececomoeixodomovi- ticaisumascomasoutras,enãopodeportantosermaislocalizadaem
mentodacríticaqueaísedesenvolve.OprimeiroalvodeFreudéa umaáreaúnica.Porém,asexcitaçõessensoriaisquealcançamocórtex
distinçãopropostaporWernicke–enaqualsefundatodaasuateoria deixamneleimpressõesduráveisquesão,segundoWernicke,armazena-
daafasia–entreoscentroscorticaisdalinguagemeosfeixesassocia- dasseparadamenteemcélulasisoladas.(Freud8,p.41)
tivosqueosinterligam.Essadistinçãoéemprimeirolugaranatômica:
oscentrossensorialemotordafalasituam-senasubstânciacinzenta Emdiversaspassagensdotexto,essaconcepçãotornaasermen-
docórtex,eosfeixesassociativoscompõem-sedefibrasdesubstância cionada, não deixando dúvidas de que, aos olhos de Freud, essa é
brancasubcortical.Elaétambémachaveparaadistinçãocrucialde umaimplicaçãoimportantedapsicologiadasteseslocalizacionistas.
Wernicke,noconjuntodaspatologiasdalinguagem,entreasafasias Porexemplo:
66 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 67
SegundoWernicke,nósdevemosnosrepresentarquehááreasde- queoaparelhodelinguagemconsistiaemcentroscorticaisdistintos,em
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mentefalando,a“relaçõesmuitocomplicadas”(Freud8,p.97).Por- deixandodeforaoquesepassadooutroladodoparalelopsicofisio-
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tanto,acríticaaoassociacionismoelementaristaembutidonateoria lógico.Assim,seJackonserveaFreudemseuesforçocrítico,quetem
daslocalizaçõescerebraiseaoerroconceitualporeleimplicadode a neurologia por alvo, ele pouco pode auxiliá-lo na elaboração de
fazerresidirátomospsíquicosemcélulasnervosasconduznaturalmen- suashipótesespsicológicas.Contudo,étambémdeumapsicologia
teaoquestionamentodapremissasegundoaqualaquiloqueésimples queFreudestáembuscaemSobreaconcepçãodasafasias5e,dessa
dopontodevistamentaldevaremeter-seaalgoigualmentesimplesdo perspectiva,asinsuficiênciasdoparalelismocomeçamasefazerno-
pontodevistaneural: tar,emboraFreudosubscrevanessemomento,remetendo-oexplici-
tamenteaJacksonquandoserefereàdoutrinadaconcomitância:
Eles[osautorescriticados]consideravamapenasqueamodificação
da fibra nervosa pela excitação sensorial – que pertence à fisiologia – Acadeiadosprocessosfisiológicosnosistemanervosonãoseen-
provocanacélulanervosacentralumaoutramodificação,quesetorna contra, provavelmente, em uma relação de causalidade para com os
entãoocorrelatofisiológicoda“representação”.Comosobrearepresen- processospsíquicos.Osprocessosfisiológicosnãocessamtãologote-
taçãoelessabemdizermuitomaisdoquesobreasmodificaçõesfisioló- nhamtidoinícioosprocessospsíquicos;aocontrário,acadeiafisioló-
gicas,desconhecidaseaindanãocaracterizadas,servem-sedaexpressão gicaprossegue,sóque,deumcertomomentoemdiante,acadaeloda
elíptica:nacélulanervosaestarialocalizadaumarepresentação.Sóque mesma(ouaalgunselos)passaacorresponderumfenômenopsíquico.
essa substituição leva também a uma confusão entre duas coisas que Opsíquicoé,comisso,umprocessoparaleloaofisiológico(um“depen-
nãoprecisamternenhumasemelhançaumacomaoutra.Empsicolo- dentconcomitant”).(Freud8,p.98)
gia,arepresentaçãosimplesé,paranós,algumacoisadeelementar,que
podemos distinguir nitidamente de suas conexões com outras repre- A“relação de causalidade” que Freud espera suprimir com essa
sentações.Chegamosassimàsuposiçãodequetambémseucorrelato concepçãoéjustamenteaquelereducionismogrosseiroquerequer
fisiológico – a modificação proveniente da excitação da fibra nervosa quesesuponhamoselementospsíquicoscomoalojadosnascélulas
queterminanocentro–éalgosimples,quepodeserlocalizadoemum cerebraise,portanto,osprocessosemqueseincluemcomodetermi-
ponto.Naturalmente,taltransposiçãoétotalmenteinjustificada.(Freud nadosdeantemãopelaestruturaanatômica.Noentanto,asolução
8,p.99) adotadanãodeixamargemparaaformulaçãodenenhumateoria
maissofisticadasobreadeterminaçãodomentalquepossasatisfazer
Jávimosqueessacorrespondênciaelementoaelementodecorre osrígidoscritériosnaturalistasdequeFreudnuncaabriumão.Sabe-
diretamentedeumaconcepçãoparalelistadarelaçãoentreoneu-
rológico e o psíquico, na qual os dois domínios espelham-se mu-
5
tuamente,semque,noentanto,hajaalgumapossibilidadedearti- Essetrabalhojáfoiconsideradomais“psicológico”queoutrosqueosucederam,principal-
menteoProjetodeumapsicologia,querepresentariaumrecuodeFreudaumaperspectiva
culá-los.AsoluçãodeFreud,nessemomento,érecorreràdoutrina neurológica,antesdeencaminhar-sedefinitivamenteparaapsicologia(Monzani30,p.
daconcomitânciadeHughlingsJackson,aqual,noentanto,silencia 138;Garcia-Roza18,p.71).Aleituraaquipropostaparece-nospermitirconsideraroPro-
sobre esse ponto, na medida em que o objetivo de Jackson é, jus- jetocomooprolongamentonaturalenecessáriodoensaiosobreaafasia,vindoaprecisar
mosqueahipótesedeuminconscientepsíquicoativoecausalmente damentaçãovisível,opapeldaconsciência,enosobrigaaabandonar
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eficazéqueveiosupriressanecessidade,tendosidoreiteradamente prematuramenteocampodainvestigaçãopsicológica,sempodertra-
apontadapelopróprioFreudcomoacondiçãosobaqualapsicolo- zer-noscompensaçãoapartirdeoutroscampos.(Freud12,pp126-7,
giapodetornar-seumaciêncianaturalempédeigualdadecomas grifosnossos)
demais(Freud9,pp400-1;Freud14,p.156).Comofoiassinalado
acima,oatomismopsicológicotrazconsigooparalelismoeeste,por Antes disso, em outros contextos, Freud já se pronunciara con-
suavez,conduzàidentidadeentreomentaleoconsciente.Asupe- traaautonomiacausaldopsíquicocomrelaçãoasuabasecorporal
raçãodoatomismopelaadoçãodesseparalelismodepurado,repre- – isso que define o paralelismo –, deixando claro, por outro lado,
sentado pela doutrina da concomitância de Jackson, não permite, queaexistênciadeumamenteinconscienteedeumdeterminismo
portanto,asuperaçãodaquelaidentidade,oqueFreudnãodeixade, psíquiconãoseconstróisobreessetipodesuposição,comosusten-
muitoconsistentemente,reconhecer: tamalguns(Solms38,porexemplo).Assim,emAinterpretaçãodos
sonhos,eleafirma:
Umavezocorridoesseprocesso,eledeixaatrásdesi,nocórtexpor
eleafetado,umamodificação,apossibilidadedarecordação.Édetodo Adesconfiançadopsiquiatrapôsapsique,porassimdizer,sobtu-
duvidosoqueaessamodificaçãocorrespondaigualmentealgodepsí- tela,eexigequenenhumadesuasmoçõesreveleumacapacidadepró-
quico. Nossa consciência não apresenta nada desse tipo que, do lado pria.Masessecomportamentosóatestapoucaconfiançanavalidadeda
psíquico,justificasseonomede“imagemmnêmicalatente”.Contudo, cadeiacausalqueseestendeentreocorporaleomental.Mesmoonde
semprequeomesmoestadodocórtexéoutravezestimulado,produz- a investigação permite reconhecer no psíquico a ocasião primária de
sedenovoopsíquicocomoimagemmnêmica.(Freud8,pp99-100) umfenômeno,umapenetraçãomaiorsaberádescobrir,maisumavez,
acontinuaçãodocaminhoatéafundamentaçãoorgânicadopsíquico.
Dessa maneira, a formulação do conceito freudiano de incons- (Freud10,pp66-7).
ciente–reconhecidamentesuarealizaçãomaioretraçodistintivoda
psicanálisecomoteoriapsicológica–passapelasuperaçãodopara- Assuperaçõesdoparalelismoedaidentidadeentreopsíquico
lelismoeéincompatívelcomele.Essaimplicaçãoentreoparalelis- e a consciência parecem consistir, portanto, em dois aspectos de
moeaidentidadeentrementeeconsciência,queapsicanálisetrata uma mesma operação. Ela, por sua vez, requer a formulação de
dedeixarparatrás,éplenamentereconhecidaporFreudnaqueles umaconcepçãosobreasrelaçõesentreoneurológicoeopsíquico
textoposterioresemqueessarecusaseexplicita–porexemplo,em quesatisfaçaasnovasexigências.Oqueseprocurarámostrar,na
Oinconsciente: continuidade,équeoselementosparaessanovaconcepçãojáestão
presentesnotrabalhosobreaafasia,tendosidoconscientemente
Pode-se responder que a equiparação convencional do psíquico aproveitadosporFreudemtextosposteriores,comdestaqueparao
com o consciente é inteiramente inadequada. Dilacera as continuida- Projeto.Emoutraspalavras,encontram-sejáformuladas,nessetex-
despsíquicas,precipita-nosnasinsolúveisdificuldadesdoparalelismo to,asbasesteóricasparaumaultrapassagemmuitomaiscompleta
psicofísico, está sujeita à recriminação de que superestima, sem fun- daspremissasassociacionistasdoqueaefetivamenterealizadaou
72 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 73
assumida. Tais bases teóricas constituem os fundamentos de uma seoutemsuaeficáciadiminuídapelaocorrênciadeumalesãonum
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novateoriadarepresentaçãoquepodeserconsideradaoembriãoda determinadopontodocórtex,nãoseseguequeesselocalsejaasedee
metapsicologiafreudiana. oresponsávelexclusivopelaexecuçãodessafunção(acapacidadede
falaroudecompreenderalinguagemouvida,porexemplo).Freud
argumenta,porexemplo,queainterrupçãodetodasasviasassocia-
III.Organização,hierarquiaecomplexidade: tivas que conduzem a um determinado centro equivale funcional-
opontodevistafuncional menteaumalesãodestrutivatotaldessecentro,oqueinvalidariaa
principalinferêncianaqualseapóiamaslocalizaçõesdefunção.Por
O ponto central da crítica de Freud ao localizacionismo, assim trásdesseargumento,encontra-se,evidentemente,oprincípiodefen-
comodaalternativaqueelebuscaarticular,consistenaintroduçãode didoporJacksondequeofatonegativodalesãonãopodeexplicaras
umaconcepçãofuncionaldosdistúrbiosdalinguageme,porexten- características positivas dos fenômenos afásicos e neuropatológicos
são,danaturezadosprocessospsicológicosemsuarelaçãoasuabase emgeral;emoutraspalavras,umalesãopodeexplicarqueumsujeito
neural.Essepontodevistafuncional,propostocomoestratégiapara nãofalecorretamente,masnãoexplicaaformaespecíficacomoele
abordareficientementeosproblemasemfoco,estánaorigemdeuma efetivamentefalaapósalesão.
novaconcepçãosobreanaturezadofatomental–edarepresentação, Jacksonpropõeumahierarquiadeníveisdefuncionamentoevo-
emparticular–,queseráaquelacomqueametapsicologiafreudiana lutivamenteconstituídos,naqualaconstituiçãodecadanovonível
passaráaoperar.Elesurgenitidamentecomoumaalternativaparaa resultanainibiçãodosprocessoscaracterísticosdosníveismaispri-
tese,tãoenfaticamenterecusadaporFreudemSobreaconcepçãodas mitivos,comosedánarelaçãoentremovimentovoluntárioeação
afasias,queafirmaalocalizaçãodoselementosdasfunçõespsíquicas reflexaautomáticaouentrealinguagemproposicionalespontâneae
nas células cerebrais. Se, desde o início do texto, Freud revisa cui- asimplesrepetiçãodepalavrasouvidas,porexemplo.Nessaconcep-
dadosamenteasidéiasdeWernickesobrea“localizaçãodasfunções ção,alesãomaterialsórespondediretamentepelosaspectosdeficitá-
psíquicas”(Freud8,p.49),é,nolimite,paraconcluirqueasfunções riosdodistúrbioeapenasindiretamentepelaformapositivacomose
psíquicasemsinãopodemserlocalizadas,pelomenosnãopontu- configuraosintoma.Alesãoprovocaumdistúrbiodinâmico–con-
almente, já que dependem de processos complexos que envolvem cebidoaomododasperturbaçõesepiléticaspelasquaisJacksonco-
diversasregiõesdocórtex,dinamicamenteintegradaspelofluxoda meçousuasinvestigações–querompeaorganizaçãodosníveismais
excitaçãonervosaaolongodasviasqueaíseconstituem.Emprimei- evoluídosdefuncionamento,levandoaumadissoluçãodosproces-
rolugar,Freuddemonstraafaláciadoprincipalargumentolocaliza- sosqueoscaracterizamediminuindooueliminandoainibiçãoque
cionistaparajustificaraatribuiçãodasededeumafunçãopsíquica estes exercem sobre os níveis mais primitivos, conduzindo a uma
a uma área cortical particular. Esse argumento infere a localização retrogressão funcional, caracterizada pelo ressurgimento de modos
a partir da perda de função ocasionada por uma lesão material da jáultrapassadosdeoperaçãodosistemanervoso.Dessasconcepções
substânciacortical,oque,paraFreud,resultadeumaconfusãoentre Freud irá reter não apenas a noção do fenômeno patológico como
assignificaçõespatológicaefisiológicadeumprocesso.Eleprocura retrogressãofuncional,mastambémadeumacaracterização,tanto
demonstrarcomo,dofatodequeumacertafunçãopsíquicaperde- dodistúrbiocomodofenômenonormal,comoprocessosdinâmicos
74 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 75
queenvolvemumacertadistribuiçãoorganizadadaexcitaçãonervo- apenasaestafunçãopsíquicaparticularqueéalinguagem,istoé,àquilo
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7
Oconceitomeynertianodeocupação(Occupation,paraocórtexcomoumtodo,eBeset-
6 zung,paraascélulasindividuais)dasáreascorticaispreviamentesemfunção(as“lacunas
Essaconcepçãofuncionaldosdistúrbiosdalinguageméreafirmadaemnumerosaspas-
funcionais”desuadoutrina)aolongododesenvolvimentoedaaprendizagemexpressa,
sagensdotexto.VerFreud8,pp52,68,69,70,84-5,porexemplo.
nonívelmaiselementar,oimpasseconceitualdolocalizacionismodiscutidoacima:se
76 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 77
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cessosdeconduçãocentraligualmenteindependentes,demodoque
impossibilidadeanatômica:estudoscomoodeHenleteriamrevela-
aquilo que parte da periferia sensorial do organismo e do sistema
doqueonúmerodefibrasqueatingemocórtexémuitomenordo
nervosoprojeta-setalqualnocórtex,preservandoasuaidentidade
queonúmerodasquepartiramdaperiferiasensorial.Esseéopri-
ao longo de todo o percurso. Daí que essa concepção se expresse
meirosentidoqueassumeapropostadesubstituiçãodoconceitode
natesede“umareproduçãopontoporpontodocorponocórtex”
projeçãopeloderepresentação(Repräsentation),claramentetomado
(Freud8,p.89),de“umareproduçãocompletaetopograficamente
deJackson:
semelhantedocorponocórtex”(ibidem,p.90).Jávimosqueama-
nutenção da identidade do elemento ao longo de todo o processo
Apenasnamedula(assimcomonassubstânciascinzentasaelaaná-
deformaçãodecompostoseaausênciadealteraçõesqualitativasna
logas) estão disponíveis as condições para uma projeção sem lacunas
passagemdosimplesparaocomplexoeraumacaracterísticadefi-
daperiferiadocorpo.Acadaunidadedeinervaçãoperiféricapodecor-
nidoradoatomismomanifestodasteoriaslocalizacionistaseasso-
respondernamedulaumfragmentodesubstânciacinzenta–emcasos
ciacionistas.Acríticafreudiananãodeixadeidentificaresseponto
extremos,umúnicoelementocentral.Emconseqüênciadareduçãodas
precisodasconcepçõesdeMeynerteaeleseopor.Apósobservarque
fibras de projeção através da substância cinzenta da medula, um ele-
aprópriaanatomiadosistemanervosoapontaparaumareorgani-
mentodesubstânciacinzentapertencenteaumnívelmaiselevadonão
zação constante dos processos no percurso da periferia ao córtex,
podemaiscorresponderaumaunidadeperiférica,masdevecorrespon-
namedidaemqueasfibrasnervosasinserem-seemsucessivosnú-
deramuitasdessasunidades.Issovaletambémparaocórtexcerebral,e
cleosdesubstânciacinzentaondeestabelecemnovasconexões,ele
éportantorecomendáveldistinguirentreessesdoismodosdereprodu-
comentaque,noentanto,
çãocentraltambémmediantenomesdiferentes.Seareproduçãoname-
dulaespinhalsedenominaumaprojeção,talvezsejaapropriadochamar
ParaMeynert,que,nopercursodasfibras,salientasobretudoofato
areproduçãonocórtexdeumarepresentação(Repräsentation),edizer
dasligaçõescorticais,umafibraoumassadefibrasésempreaindaames-
queaperiferiadocorponãoestácontidanocórtexpontoporponto,mas
ma,mesmoquandoatravessouumnúmerotãograndedesubstâncias
queelaestáaírepresentadademodomenosdetalhado,porfibrasselecio-
cinzentas.Seumododeexpressãoparaistoorevela:“Afibrapassapor
nadas.(Freud8,pp92-3).
umasubstânciacinzenta”.(Freud8,p.94)
Masnãopodeserapenasisso.Oconceitoderepresentação8,em
novasaquisiçõespsíquicasocupamáreascorticaisatéentãoinativas,oselementosdessas
funções devem ocupar as unidades anatômicas que compõem essas áreas. Teríamos, Jackson, designa justamente o modo como os processos nervosos
assim,umaimagemmnêmicaouumarepresentaçãoelementarocupandoumacélula reorganizam-senapassagemdoscentrosmenosevoluídos(emais
cortical.OmodocomoFreudincorporaoconceitodeBesetzungàsuateoriarevelao
esforçoparaultrapassaresseimpasse:apartirdoProjeto,aúnicacoisaque,doponto
8
devistafreudiano,pode,inteligivelmente,ocuparumneurônioéumacertaquantidade NosentidodoqueFreuddesignacomoRepräsentation,enãonodaVorstellung,embora
deexcitaçãonervosa(Q’η),ecomessepontodepartidaénecessárioreconstruirtoda talvez se possa afirmar que a ultrapassagem do paralelismo se dá justamente quando
apsicologia.Oconceito,portanto,adquireaíasignificaçãoeconômica–nosentidodo FreudpassaaconsideraraVorstellungcomoonívelmaiselevadodassucessivas“repre-
“pontodevistaeconômico”dametapsicologiafreudiana–comqueapareceráemtodas sentações”,nosentidojacksoniano,abrindo,comisso,aviaparaatransposiçãodesuas
aselaboraçõesposteriores. concepçõesparaocampopsicológico.
78 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 79
periféricos) para os mais evoluídos (e mais centrais), reorganiza- lecimentodealteraçõesqualitativasnasignificaçãodosprocessos,de-
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çãoaolongodaqualestesrevestem-sedecaracterísticasfuncionais vidasàsmúltiplasconexõesformadasaolongodopercursoaferente:
qualitativamentedistintas.Essasalteraçõesremetemaumganhode
complexidadeedeflexibilidadeobtidoemcadamudançadenível. (...)assubstânciascinzentas,enãomaisosfeixesdefibras,aparecem-
Porisso,Freudnãopodesecontentarcomesseargumentonegativo noscomoasunidadesorgânicasdocórtex.Seseguimosumaviasen-
queexpõeaimpossibilidadeanatômicadatesedeMeynert,maso sorial (centrípeta), até onde ela nos é conhecida, e se lhe reconhece-
complementa com a defesa da alteração da significação funcional moscomocaracterísticaprincipalasmaisfreqüentesinterrupçõesnas
dasfibras,devidaàsalteraçõesimpostasaosprocessosqueelasvei- substâncias cinzentas e novas ramificações no interior destas últimas,
culampelassucessivasarticulaçõeseintegraçõesaquesãosubmeti- devemosentãoaceitaraidéiadequeumafibra,emseucaminhopara
dosemseupercurso.Emprimeirolugar,trata-sedeafastaraidéia, ocórtex,alterousuasignificaçãofuncionalacadavezqueemergiude
quepoderiasersugeridapeloprimeiroargumento,dequearelação umasubstânciacinzenta.(Freud8,pp94-5)
entreocórtexeaperiferiapossaserdaordemdeumasimplificação,
mostrandoquehácondições,mesmodopontodevistaanatômico, Apassagemreproduzidaaseguirexprimeaindamaisclaramentea
paraumganhoemcomplexidadenessesprocessos: relaçãoqueestásendoestabelecidaentreoganhoemcomplexidade
easalteraçõesqualitativassupostas,ouseja,asnovidadesfuncionais
Poroutrolado,noentanto,areduçãodasfibrasdeprojeçãonãoé engendradasnodecorrerdosprocessos:
tãograndequantooquepoderiafazercrerestaúltimaconsideração.Há,
assim,porexemplo,asfibrasdoscordõesposteriores,quecertamente Estaalteraçãonasignificaçãodasfibrasdeveseraindamaiscompli-
nãochegamcomotaisaocórtex,jáqueesterecebeasfibrasdomenisco, cadaparaossistemasdeconduçãodasensibilidadedapeleedosmús-
asquais,apósnumerosasinterrupçõesnosnódulosdocordãoposterior, culos; não temos ainda nenhuma idéia de quais elementos intervêm
nosnóduloscinzentosdobulboraquidianoedotálamo, representam aquiparaformaronovoconteúdodaexcitaçãoretransmitida.(Freud8,
finalmenteoscordõesposterioresnocérebro.Nãosesabeseasfibras p.95,grifosnossos)
domeniscosãoiguaisemnúmeroàsdoscordõesposteriores.(...)Além
disso,océrebrorecebefibrasdocerebelo,nasquaissepoderiaverum Todas essas idéias encontram-se sintetizadas na metáfora com
equivalentedasorigenscerebelaresdamedulaespinhal,eassim,apesar queFreudexpõeoessencialdadiferençaentresuasconcepçõeseas
detudo,permaneceincertoseocórtexnãorecebefinalmentetantasou deMeynert:elecomparaosdadosbrutosdaestimulaçãoperiférica
mesmomaisfibrasvindasdaperiferia,mesmoqueapóstantosdesvios, aoalfabetoeosprocessoscorticaisdosquaisdependemasfunções
doqueoqueérequeridoparaumaprojeçãonamedulaespinhal.(Freud psíquicasaumpoema.Aidéiacentraldesseargumentoéqueospro-
8,pp.93-4) cessosatômicosderecepçãodeestímulosedeprojeçãopontopor
ponto,sópensáveisatéoníveldamedulaespinhal,são,emsi,des-
Estabelecidaapossibilidadeanatômicadesseganhodecomplexi- providosdesignificaçãopsicológica,aqualsóadquiremapósexpe-
dade,trata-seentãodeafirmarsuaconseqüênciafuncional:oestabe- rimentaremtodosostiposdeintegraçãoereordenaçãoqueocorrem
daíatéocórtexe,acimadetudo,noprópriocórtex.Essaconcepção
80 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 81
trazconsigoarupturadasimetriaassumidapelolocalizacionismo nâmicadaatividadecorticalqueFreudpropõecomoalternativaparaa
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entreoprocessopsíquicoesuabaseneurológica–pressuposta,por noçãoestáticadelocalização.Asubstituiçãodestapelanoçãodeproces-
exemplo,naelaboraçãodosdiagramastãodrasticamentecriticados so(Vorgang),igualmenteemprestadaaJackson,resulta,maisoumenos
porHead(22,pp54-66)–,rupturaemqueFreudinsistiráenfati- naturalmente,numarevisãodoqueseentendeporassociação,onde
camentenaelaboraçãodeseuconceitoderepresentação,comove- novamente Freud se afasta do atomismo psicológico. Na concepção
remosabaixo.Valeapenacitarnaíntegraessapassagem,devidoao associacionista esquematizada acima, os elementos da representação
modocomoelaexpõeaimplicaçãorecíprocaqueseestabeleceentre constituem-se passivamente pela impressão cortical de um estímulo,
opontodevistafuncionaladotadoporFreudeaidéiadeumganho transformadaemumfatomentalpelaintervençãodaconsciência.Ape-
de complexidade como condição para o surgimento das diferenças nassecundariamenteoselementospsicológicosseassociamsegundo
funcionaisqualitativasqueafetamprogressivamenteasignificação certasregrasparaformarfenômenosmentaiscomplexos.Aassociação
dos processos de condução central e dos processos corticais a que nãodesempenha,assim,nenhumpapelnagênesedarepresentação:ela
estesdãoorigem: pressupõerepresentaçõesjáconstituídas,pelomenosnasuaformaele-
mentar,quesãoentãopostasemrelaçãopelosprocessosassociativos.
Oquepodemosperceberatéaquiéqueasfibrasquechegamaocór- Aorecusarqueocorrelatoneurológicodarepresentaçãosimplesseja
tex,apósterempassadopelassubstânciascinzentas,conservamaindauma algoigualmentesimples–eafirmar,aocontrário,quesetratadealgo
relaçãocomaperiferiadocorpo,masnãomaispodemdelaforneceruma daordemdeumprocessocorticalcomplexo,englobandoamplasáreas
imagemtopograficamentesemelhante.Elascontêmaperiferiadocorpo corticaise,nolimite,atotalidadedocórtex(Freud8,p.99)–,Freud
comoumpoemacontémoalfabeto(...),emumrearranjoqueserveaou- abrecaminhoparaapagaradistinçãoentreassociaçãoerepresentação
trosobjetivos,numamúltiplaconexãodeelementostópicossingulares, eparaatribuiràprimeiraumpapeldecisivonagênesedasegunda.Essa
naqualumdelespodeestarrepresentadováriasvezes,enquantooutro concepção,contudo,nãochegaaafirmar-seclaramente,devidoàma-
estátotalmenteausente.Sesepudesseseguiremdetalheesserearranjo nutençãodoparalelismoedaconseqüentedistinçãoentreoprocesso
que se efetua da projeção espinal até o córtex cerebral, descobrir-se-ia darepresentaçãoeseucorrelatocortical9,comofoiassinaladoacima.
provavelmentequeoprincípiodomesmoéexclusivamentefuncionale
queosfatorestópicossósãoconservadosnamedidaemqueconvergem Agora,épossíveldistinguir,nocorrelatofisiológicodasensação,a
comasexigênciasdafunção.(...)nóspodemos,assim,presumirquea parteda“sensação”eada“associação”?Claramente,não.“Sensação”e
periferiadocorponãoestádeformaalgumacontidanaspartessuperio- “associação”sãodoisnomescomosquaisrecobrimosaspectosdiferen-
resdocérebro,assimcomonocórtex,demodotópico,masqueelaoestá tesdeummesmoprocesso.Sabemos,contudo,queambossãoabstra-
unicamentedemodofuncional.(Freud8,pp95-6,)
Aidéiadequeoprocessocorticalresultadesucessivasreordenações 9
Apenas no Projeto de uma psicologia Freud identifica esses processos à representação
dainformaçãosensorialperiféricabrutaedetodasasconexõesqueesta inconsciente,quandoentãoessasconcepçõespropostasemSobreaconcepçãodasafasias
estabelecenapassagempelosnúcleosdesubstânciacinzentaemseuca- passamapoderaplicar-se,semmaisrestrições,aoconceitometapsicológicoderepre-
sentação(verFreud9,p.400).
minhoparaocórtexestáintimamenteconectadacomaconcepçãodi-
82 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 83
ídosdeumprocessounitárioeindivisível.Nãopodemosternenhuma soberanosdetodasessasfunçõese,poroutro,implicaoconsiderável
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lando,“apalavraéaunidadedafunçãodalinguagem”(Freud8,p. consistiria,paraFreud,numcomplexoassociativocorticaldinâmico,
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117);emoutraspalavras,apalavraéosimplespsicológicodalingua- cujoselementosnãoseriamelesmesmosdenaturezarepresentacio-
gem.Porém,emvezdecorresponderaumcorrelatoneuraligual- nal,apenasadquirindoessapropriedadeumavezincluídoseorgani-
mentesimples–nolimite,amítica“localização”deumelementode zadospeloreferidoprocesso.Dessaforma,seriapossívelultrapassar
linguagemnumacélulacortical–,essaunidadepsicológicaé“uma oparalelismopsicofisiológico,eopontodevistafuncionaldeFreud
representação complexa, que se revela como composta a partir de se converteria numa hipótese sobre a relação entre o somático e o
elementosacústicos,visuaisecinestésicos”(ibidem,p.117),anatu- psíquico:esteúltimoconsistiria,assim,noconjuntodepropriedades
rezadinâmicaeassociativadessecomplexojátendosidoestabelecida distintivasqueosprocessoscorticaisadquiremquandoorganizados
anteriormente.Assim,apalavrasurge,dopontodevistapsicológico, de uma determinada maneira, no nível mais evoluído e de maior
comoaunidadeelementardalinguagem,mascorresponde,nonível complexidade e flexibilidade, segundo os princípios jacksonianos;
neural,aumprocessocomplexo,cujoselementos,noentanto,não haveria,então,umadiferençafuncionalentreoneurológicoeomen-
sãoemsilingüísticos,masapenasrevestem-sedessacaracterísticaao tal,masnãomaisumadiferençaessencialoudenatureza,abrindo
seremassociadosdeumaalgumaformapelosprocessosexcitatórios caminhoparaaformulaçãodeumapsicologiamaterialista,comoa
corticaisqueocorremnaáreadalinguagem,processosemcujacom- queFreudvaiempreendernoProjetoequenãodeixadeserametae
plexidadeFreudnãodeixadeinsistir: ohorizontedetodaametapsicologia.
Há apenas indícios dessa extensão das concepções sobre a lin-
Apalavraé,assim,umarepresentaçãocomplexa,constituídaapartir guagem ao conjunto do campo da representação em Sobre a con-
dasimagensmencionadasou,ditodeoutraforma,àpalavracorrespon- cepçãodasafasias.Dequalquerforma,aoconsideraromodocomo
de um intrincado processo associativo, no qual os elementos citados, alinguagemadquiresignificação,Freudintroduzsuaconcepçãoda
deorigemvisual,acústicaecinestésica,entramemligaçãounscomos representaçãodeobjetoque,salvoumadiferençacrucial–ocará-
outros.(Freud8,pp121-2)11 terabertodocomplexoassociativodoobjeto,emcontrastecomo
fechamento da representação de palavra12 –, é descrita igualmente
Seforlegítimoestenderessaconcepçãoparaarepresentaçãoem comoumcomplexoassociativoqueenvolveelementossensoriaisos
geral,seriapossívelsustentarqueoconceitoderepresentaçãoque maisvariados:
Freudcomeçaaelaborarnessaspassagensrompedecididamentecom
aquelapremissadoatomismoassociacionistaquesupõeumahomo-
12
geneidadequalitativaentreoelementoeocomplexo:arepresentação Essadiferençasignificaque,umavezformada,arepresentaçãodepalavranãoadmi-
te o acréscimo de novos elementos além dos quatro mencionados – acústico, visual,
11 glossocinestésicoequirocinestésico–,enquantoarepresentaçãodeobjetopermanece
Diversasformulaçõesreiteramessaposição.Porexemplo:“Contudo,essacomposição
indefinidamenteabertaaoacréscimodenovoselementos;porexemplo,cadanovoperfil
aparece mais complicada quando se considera em detalhe os processos associativos
doobjetoassociamaisumelementovisualaocomplexo.Umaconseqüênciadisso,que
prováveisquetêmlugarnocursodecadaumadasoperaçõesdalinguagem”(Freud8,
FreuddesenvolveránoProjeto,équeoreconhecimentodeobjetos–ojuízodeidentida-
p. 117, grifos nossos). Ou ainda (referindo-se aqui especificamente à leitura):“Desta
deentreoobjetorememoradoeopercebido–ésempreumainferênciafeitaapartirde
apresentação da aprendizagem da leitura constata-se que esta consiste num processo
umainspeçãonecessariamenteparcialdeseusatributos,permanecendosemprerestos
muito complicado, ao qual deve corresponder um repetido vai-e-vem na direção das
queescapamaoprocessojudicativo,oqueFreudalidesignarácomo“coisas”(Dinge)
associações”(ibidem,p.119,grifosnossos).
(Freud9,p.429).
86 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 87
Arepresentaçãodepalavraaparececomoumcomplexorepresen- éimpostanossucessivosníveisdeintegraçãocentraldosprocessos
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tacional fechado; a representação de objeto, ao contrário, como um excitatórios,queculminaemsuaorganizaçãocortical.Asproprie-
complexo representacional aberto. (...) A palavra adquire, entretanto, dadesdarepresentação–tantoadepalavraquantoadeobjeto–são
suasignificaçãopelaligaçãocomarepresentaçãodeobjeto,aomenos assim inerentes ao complexo associativo dinâmico em que ambas
senoslimitamosaconsiderarossubstantivos.Aprópriarepresentação consistem, não pertencendo aos elementos aí integrados, quando
deobjetoé,pelocontrário,umcomplexoassociativoderepresentações seosconsideraisoladamente.Adiferençafuncionalqueseinstitui,
asmaisheterogêneas,visuais,acústicas,táteis,cinestésicas,entreoutras. nessenível,entreaspropriedadesdoelementoeaspropriedadesdo
(...)Arepresentaçãodeobjetonãonosaparece,assim,comoumarepre- complexoéabasedadistinçãoentreopsicológicoeoneurológico
sentaçãofechadaesequerpassíveldesê-lo,enquantoarepresentaçãode ou,pelomenos,poderápassarasê-loapartirdomomentoemque
palavranosaparececomoalgofechado,aindaquecapazdeampliação. Freudrenunciaraoparalelismoeàidentificaçãoentreomentaleo
(Freud8,pp121-2) conscienteemqueesteimplica.Oconceitofreudianodeinconscien-
tepsíquicoaparece,nessaperspectiva,comooresultadoou,melhor
Aocontráriodarepresentaçãodepalavra–que,afinal,constituio dizendo,comooinstrumentoparaasuperaçãodeumaconcepção
focodaspreocupaçõespsicológicasdeFreudnesseensaio–,arepre- dualistadasrelaçõesmente-cérebro.
sentaçãodeobjetonãoéalvodeconsideraçõesmaisdetalhadas.Ela
vemaocupar,maisoumenos,olugardo“centrodosconceitos”que
oesquemalocalizacionistadeLichtheimacrescentouaodeWernicke Conclusão
(Freud8,p.44;Laubstein27,pp589-90),ouseja,odeumconjunto
deprocessoscerebraisepsicológicosaosquaisalinguagemserefere Tratamosdeaproximarateoriafreudianadarepresentação,quese
eporcujareferênciaelaadquireseusignificado.Decertamaneira, esboçaemsuamonografiasobreaafasia,dassoluçõesemergentistas
a representação de objeto compartilha com esse conceito localiza- paraoproblemamente-cérebro.Procurou-se,noentanto,deixarque
cionista, que ela substitui, seu caráter difuso e inespecífico: pode- essa orientação se insinuasse a partir do comentário do texto, sem
sedizerqueFreud,pelomenosnessetexto,adefinenegativamente propô-ladeantemãocomoumahipótesedeleitura.Deresto,essain-
–eledesignaoconjuntodocampodarepresentação,comexceção terpretaçãonãoénova,tendosido,porexemplo,dadaporPribrame
do complexo fechado constituído pela representação de palavra. Gill(32,p.14),entreoutros,emboraapenascomrelaçãoaoProjeto.
Contudo,anãoserporaquiloquefazaespecificidadedessasduas Umaprimeiraevidênciaaseufavortalvezpossaserencontradanain-
grandes modalidades da representação com que a metapsicologia fluênciaqueafilosofiadeStuartMillpareceterexercidosobreopen-
freudianaoperarádaíemdiante,ascaracterísticasgeraisatribuídasà samentoinicialdeFreud(GabbiJr.17)enofatodequecertosautores
representaçãodepalavrapodemserestendidasàdeobjeto:trata-se localizam em algumas de suas fórmulas o nascimento da noção de
deumcomplexoassociativo,cujoselementossãoprocessoscorticais emergência(Nagel31,p.341)13.Éclaroqueapenasessaaproximação
dinâmicosqueenvolvemosdadosbrutosdainformaçãosensorial
periférica; esses elementos de natureza neurofisiológica, mas dão 13
Maisprecisamente,nocapítulo6doLivroIIIdoSistemadelógica,“Dacomposiçãodas
ensejo ao surgimento da representação pela organização que lhes causas”,ondeMillconsideraduasmaneirasdaaçãoconjuntadascausasnadeterminação
88 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 89
nãotemnenhumapretensãoderesolverosnumerososimpassesda qualesseemergentismosupostoouincipienteinsinua-secomouma
RichardTheisenSimanke
DossiêFilosofiaePsicanálise
metapsicologia,masapenasapontarainclinação,digamos,filosófi- alternativa–jáestãopresentesnareformulaçãodoconceitodere-
cadeFreudparaoquecontemporaneamentesedesignacomoum presentaçãoqueFreudempreendeemSobreaconcepçãodasafasias
materialismonão-reducionista,sugerirquesuasdificuldadessão,de eque,namedidaemqueseimpõeanecessidadedereconhecerede
modo geral, aquelas inerentes a essa posição (cf. Kim 25) e que é sustentar teoricamente a existência e a eficácia de um inconscien-
nessestermosqueelaspodemsermaisproveitosamentediscutidas. te psíquico, são esses elementos que serão mobilizados, tornando
Desde já, ela parece promissora no sentido de tornar compreensí- compreensívelalongevidadedessateorizaçãoinicialsobrearepre-
velomodocomoFreudconciliaseusmodelosnaturalistascomas sentaçãoaolongodetodoopercursodareflexãometapsicológica
exigênciasepistêmicasprópriasdeumaciênciadamenteenosdis- freudiana,oquejustificaqueseaconsiderecomoomarcoinaugural
pensadetransformá-lonumcartesianotardioedeconsiderarsuas dessareflexão.
reivindicaçõesmaterialistascomomeraexcentricidade.Entretanto,
seráumatarefaparaoutrostrabalhosacompanhar,nodetalhe,essa
idéiaemsuasconseqüênciasparacompreenderosentidodoempre- Referênciasbibliográficas
endimentometapsicológico.Issoporque,comofoiobservado,Freud
permanece, nesse momento, explicitamente comprometido com o 1.AMACHER,Peter.Freud’sneurologicaleducationanditsinfluenceonpsycho-
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expostanocapítulo4doLivroVIdamesmaobra,surge,então,comoumaaplicação
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especialdessaconcepçãoàcausalidadepsicológica.
90 Discurson.362007 Cérebro,percepçãoelinguagem 91
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Umalibradecarne:
aleituralacanianad’Ovisíveleoinvisível
CharlesShepherdson
ProfessordeHumanidadesnaStateUniversity
ofNewYork(Albany)
Tradução:RonaldoManziFilho
Umalibradecarne:aleituralacanianad’Ovisíveleoinvisível
Trata-sedereconstruirolugareosusosqueJacquesLacanfaz,noseuseminário
sobreOsquatroconceitosfundamentaisdapsicanálise,deOvisíveleoinvisível, Estecortedacadeiasignificanteéúnicoparaverificaraestrutura
deMerleau-Ponty.Istoimplica,fundamentalmente,emcompreendercomoLa- dosujeitocomodescontinuidadenoreal.
canprocurarepensaroconceitopsicanalíticodepulsãoapartirdecertasconsi- Lacan,Subversãodosujeitoedialéticadodesejonoinconscientefreudiano
deraçõesdeMerleau-Pontyarespeitodaestruturadoolhar.
Palavras-chave:olhar,pulsão,inconsciente,JacquesLacan,Merleau-Ponty Este momento de corte é dominado pela forma dum retalho sangrento: a
libradecarnequepagaavidaparafazê-laosignificantedossignificantes,
Apoundofflesh–Lacan’sreadingofThevisibleandtheinvisible comotal,impossívelderestituiraocorpoimaginário.
ThispaperdealswithLacan’sreadingofThevisibleandtheinvisibleinhissemi- Lacan,Adireçãodacuraeosprincípiosdeseupoder
nalLesquatresconceptsfundamentauxdelapsychanalyseinordertostudythe
terms in which he reconsiders the psychoanalytical conception of instinct or Umafilosofiadacarneécondiçãosemaquala
driveaccordingtoMerleau-Ponty’sanalysisofthestructureofsight. psicanálisepermaneceantropologia.
Keywords:sight,instinctordrive,unconscious,Lacan,Merleau-Ponty Merleau-Ponty,Ovisíveleoinvisível
Olimitedalinguagem*
QuandoOvisíveleoinvisível(Levisibleetl’invisible)foipublicado
em1964,LacanestavaensinandopelaprimeiraveznaÉcolenorma-
*Estetexto(Apoundofflesh–Lacan’sreadingofThevisibleandtheinvisible)foiprepara-
doporconvitecomoumaconferênciaparaoencontrodoCírculosobreMerleau-Ponty
de1996naUniversityofMemphis.Procurou-seintroduziraperspectivadeLacannuma
comunidadejábemfundadaemMerleau-Ponty;essetextosemdúvidaporisso,levaas
marcasdeumaapresentaçãooralque,paraestaocasiãoemespecial,nãotenteiocultar.
Eugostariadeagradeceraosdiretoresdaconferência,LeonardLawloreTheodoreTo-
advine, por esse convite para discutir a relação entre esses dois pensadores, e por sua
hospitalidade.Gostariatambémdeexpressarminhagratidãopeloapoioeamabilidadede
ElizabethWeedeEllenRooney,doPembrokeCenterforTeachingandResearchonWomen
naBrownUniversity,ondefuicompanheirodeArthureMarthaJoukowskyem1996-7.
96 Discurson.362007 Umalibradecarne 97
lesupérieure.Nooutonode1963,nosemestreanterior,aSociedade velmentemaiordoquejáhaviasidoatéentão,eseusparticipantes
RichardTheisenSimanke
DossiêFilosofiaePsicanálise
doqualHeideggernuncaestálonge4.Ocontextodesuadiscussão troseçõeseaumacurtaconclusão.Aprimeiraseçãoédenominada
RichardTheisenSimanke
DossiêFilosofiaePsicanálise
sobreMerleau-Pontyé,portanto,extremamentecomplexoesobre- “Oinconscienteearepetição”(L’inconscientetlarépétition),eatercei-
determinado,abrindo-seemváriasdireções,masaomesmotempo ra,“Atransferênciaeapulsão”(Letransfertetlapulsion).Essasduas
éextremamentepreciso,poisoobjetivodeLacanemexploraresses seçõespoderiam,entãoservistascomoosquatrotópicosprincipais
materiaisnãoéprimordialmentefilosófico,masdizrespeitoaum que abrangeriam todo o seminário. Restam duas seções.A segunda
desenvolvimentobastanterestritoedeumpontotécniconointerior contémasobservaçõesdeLacansobreMerleau-Ponty(queseesten-
dateoriapsicanalítica,asaber,oproblemadapulsão5. demporquatrocapítulos).OscomentáriossobreMerleau-Pontyaté
Temos assim uma orientação inicial: como objetos da pulsão, a estepontointerrompemoseminário,suspendendo-oemseuâmago,
“voz”eo“olhar”nãosãopropriedadesdosujeito(opoderdefalarou separandooprimeiropar,dos“conceitosfundamentais”,dosegundo.
dever);comoresultadoháumaconsideráveldiferençaentre“oolhar”, AdiscussãodeLacansobreOvisíveleoinvisível,porassimdizer,como
comofuncionaemalgumateoriapelicular,eoolharcomoumobjeto queprovocandoummododejunçãoouumpontodesuspensão,par-
dapulsãoescópica(verSaper25).AdiscussãodeLacannoSeminário ticularmenteentreaconsideraçãodo“inconsciente”eda“pulsão”.
XIarespeitodasconsideraçõesdeSartresobreoolhar(naqualosu- Quantoàquartaseção,nãoireidesenvolveraqui,emboraelater-
jeitovoyerésubitamentesurpreendidopeloolhardooutro)édesen- nhaumaspectocrucialnasuaanálisedeMerleau-Pontyequepossa
volvidaparaesboçarumaclaradistinçãoentreaestruturasartreana, serconsideradaamaisimportantecontribuiçãodeLacannestese-
daqualsedevefazerjustiçaaomodopeculiarcomquearelaçãoentre minário,umpassofundamentalemrelaçãoaosseusprimeirostra-
doissujeitospodevacilarentre“objetivação”e“intersubjetividade”,e balhos7.Digamosapenasisto:elanosapresentacomoconsolidação
aconsideraçãofreudianadapulsãoeseusobjetos.Istosugereque,se dotrabalhodeLacannosdoisoutrêsanosprecedentessobreasua
LacanvaideSartreaMerleau-Ponty,éporqueMerleau-Pontycami- recusadovalordoinconscientecomoumfenômenoexclusivamente
nhou para além da intersubjetividade em direção à constituição de “simbólico”.Éonotórioconceito“simbólico”dosujeitoqueLacan
uma“invisibilidade”nocoraçãodovisível.Porémistoapenasacentua queragoracomplicaroumodificar,acentuandoacategoriadoreal
aquestãodeporqueLacan,porsuavez,discordadeMerleau-Ponty. deummodonãoprecedenteatéentão8.Eéessaênfasenorealque
RecordemosentãoosquatroconceitostratadosporLacannoSe-
minárioXI:oinconsciente,arepetição,atransferênciaeapulsão(ver Asoutrasediçõesfrancesas,nósseguimosasindicadaspelopróprioautornasreferên-
Lacan8,p.16/12)6.Adivisãoeditorialfragmentaoseminárioemqua- ciasbibliograficas.Shepherdsonaindaacrescentaemnotaumaindicaçãoparasebuscar
tantoostítulosoriginaisfrancesesdasobrasdeLacancomoinformaçõesadicionaisde
4
Paraalgumasobservaçõessobreosemináriodaangústia,verWeber,(31,pp.152-67). seubackgroundnotrabalhodeMarini13.N.T.
5 7
ParaumsumáriomaisamplodarelaçãoentreLacaneMerleau-Pontyduranteostrinta Estaquestãopodesercaracterizadaemtermosdadistinçãoentre“alienação”e“sepa-
anosnosquaisumlêecomentaotrabalhodooutro(começandocomsuasparticipações ração” que Lacan apresenta explicitamente como um novo desenvolvimento em seu
nasleiturasdeKojève),verPhillips21. pensamento(verLaurent12).
6 8
AscitaçõesdasobrasdeLacaneMerleau-Pontyforamtraduzidasdaediçãofrancesa.In- Essamudançaparaumanovaconcepçãodo“real”,quelevaLacanaquestionaroslimites
dicamos por isso duas paginações, assim como Shepherdson o fez: primeiro da edição doconceitodosujeito“simbólico”,temsidodatadaemváriosmomentosdeseutrabalho.
francesaeoutra,daamericana.QuantoaLesrelationsavecautruichezl’enfantinParcours Jacques-AlainMillerlocalizaessemomentoentreosSemináriosVIIeVIII,doseminário
(14)eL’Oeiletl’Esprit(15),oautorpreferiuindicarapenaspelapaginaçãoamericana.Se- d’Aéticadapsicanálise(L’éthiquedelapsychanalyse)aod’Atransferência(Letransfert)
guimosaediçãodaCynara/Verdier(1988)edaGallimard(2004)respec)respectivamente. (verMiller20).NestorBraunsteindataistoumpoucoantes,aproximadamente
100 Discurson.362007 Umalibradecarne 101
vaidirigirseuinteressenodesenvolvimentodoobjetpetita,oobjeto puramente“simbólicos”(verShepherdson,VitalSigns).Comovere-
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dapulsão.“Paraavançarestaformulação”,dizLacan, mos,estenovodesenvolvimentotemumadecisivaposturaemsua
discussãosobreMerleau-Pontyenoconceitode“olhar”.
eu me encontro numa posição problemática – o que promoveu meu A mesma dificuldade está presente logo no começo do seminá-
ensinamentosobreoinconsciente?Oinconscienteéasomadosefeitos rio,numcapítulointitulado“Oinconscientefreudianoeonosso”
dapalavrasobreosujeito(...)oinconscienteéestruturadocomouma (L’inconscientfreudienetlenôtre).“Amaiorianestaassembléiatem
linguagem.(...)Eportantoesteensinamentoteve,noqueelevisava,um alguma noção do que adiantei aqui – o inconsciente é estruturado
fimqueeuqualifiqueidetransferencial.(Lacan8,p.137/149) comoumalinguagem”,eleescreveu(Lacan8,p.23/20).
Essadimensãotransferencialintroduzumproblema,porqueLa- Éela[estaestruturaquedáseuestatutoàinconsciência],emtodo
caninsistiu,nesseseminário,numanovadefiniçãodetransferência, caso, que nos assegura que haja sob o termo de inconsciente alguma
a saber:“a transferência é a colocação em ato da realidade do in- coisadequalificável,deacessíveledeobjetivável.Masquandoeuincito
consciente”(Lacan8,p.137/149,emitáliconooriginal).Nóspoderá ospsicanalistasanãoignoraremesteterreno”
pensar na transferência em termos puramente“simbólicos”, como [...]“istosignificaqueeupensomeateraosconceitosintroduzidos
umprocessodafalaquepermiteaoinconscientemostrar-seatravés historicamenteporFreudnestaestruturalingüística?Podemosmanter
dosignificante:naformaclássicadosonho,nolapsoouatofalho,ou queoinconsciente(ou“realidadesexual”)éredutívelaofenômenosim-
emqualquerdessasformaçõesverbaisqueseapresentamno“pen- bólico? Pois bem, não! Eu não penso assim. O inconsciente, conceito
samento inconsciente” do sujeito, revelando em forma simbólica freudiano,éoutracoisa,queeugostariadetentarlhesfazerapreender
o que o ego não gostaria de dizer. Entretanto se a transferência é hoje(Lacan8,p.24/21)
definidacomoumacolocaçãoematodarealidadedoinconsciente,
somosforçadosaconcluirqueoinconscientenãoéreduzívelaum Desta vez, não vamos desenvolver este pensamento de Lacan. É
fenômenopuramente“simbólico”.Istoestádeacordocomasasser- suficiente reconhecer que o “olhar” introduz uma dimensão que
çõesdeFreud,eLacanimediatamenteapontaessefato,acrescentan- está localizada no exato limite da ordem simbólica, no sentido de
do:“Arealidadedoinconscienteé(...)arealidadesexual”(Lacan8, queo“olhar”marcaos“limitesdeformalização”,opontoemquea
p.138/150).Sejaoqueforqueelequeirasignificarpor“realidade estruturasimbólicaéincompleta.Comotal,oolharpertenceàca-
sexual”,epormaiscomplexaquesejaarelaçãoentre“realidade”e tegoriadoreal,quenãoénemsimbóliconemimaginário,masestá,
“real”,estáclaroqueoinconscientenãoémaisentendidoemtermos aocontrário,ligadoaoconceitodefalta,umconceitoquecomeçaa
desempenharumnovoedecisivopapelnopensamentolacanianoe
em1958(verBraunstein,1).PhilippeJuliendatanummomentoposterior:“de1964em quenosmostraumdesenvolvimentoradicalnasuaconcepçãodo
diante,Lacandistanciou-sedoperíododadécadadecinqüenta.Cadavezmaiseleveio
duvidar do poder criativo da fala, declarando finalmente em 1980 que este inexistia” sujeito.Podemosresumiressedesenvolvimentopelaepígrafeesco-
(Julien6,p.63)Enovamente:“TalsedeuquandoLacandavaaulassobreatransferência lhidadeseuensaioSubversãodosujeitoedialéticadodesejonoin-
eotérminodaanálise,em1960-1.Notemosquetudodependedaprecisarelaçãoentrea conscientefreudiano(Subversiondusujetetdialectiquedudésirdans
dimensãosimbólicaeimaginária.Eoreal?Lacanusouotermoaté1953massemainda
terintroduzidoorealtalcomonaquelasaulas.Elefezistoem1964”(ibid.,p.102). l’inconscientfreudien),quefaladeumcertorompimentonocampo
102 Discurson.362007 Umalibradecarne 103
lingüístico,umarupturanacadeiasignificativa:“Estecortedacadeia nossoamigoMauriceMerleau-Ponty(...)”(Lacan8,p.68/71).Não
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significanteéúnicoparaverificaraestruturadosujeitocomodescon- é um simples acaso porque esse texto remete a um problema que
tinuidadenoreal”(E,p.801/229,grifomeu)9. opróprioLacanestavatentandoresolver,mesmoqueosdoispen-
Tendoemmenteaorientaçãobásicadeseutrabalhonesseseminá- sadoresformulassemtalproblemademodosbemdistintos.Lacan
rio,voltemo-nosàdiscussãodasegundasessão,quetratadiretamente dedicouasessãointeiradeseuseminário,eastrêssemanasposte-
deMerleau-Ponty,focalizandoparticularmenteosdoisprimeirosca- riores,aOvisíveleoinvisível,colocandoquestõesque,mesmonão
pítulosdosquatroquetratamd’Ovisíveleoinvisível.Aquestãoque constituindoumaanálisefilosóficarigorosadotrabalhodeMerleau-
iremosproporé:comoaconcepçãodosujeitocomo“descontinui- Ponty,otrazemdevoltaconstantementeaessenotáveltexto.
dadenoreal”éligadaporLacanàquestãodocorpoe,emparticular, Seuscomentáriosnãosãosimplesdeentender.Ovisíveleoin-
aoproblemadapulsão. visíveléumtextoparticularmenteobscuroedifícil,masestenão
é o único problema. As referências de Lacan aos trabalhos filo-
sóficosjamaissãobemdesenvolvidas,esuasconsideraçõessobre
O“olhar”comoobjeto Merleau-Pontynãosãoumaexceção.QuandoelefalasobreHegel
ouAristóteles,ésemprenoesforçodeclarificaralgumdetalheda
Em 19 de fevereiro de 1964, Lacan entrou em seu seminário e teoria freudiana, e não por razões estritamente filosóficas.Além
anunciou:“Nãoéaquiporsimplesacaso(...)quefoinestasemana disso,suasreferênciassãonormalmentecombinadascomalusões
queveioaoalcancedevocês,porsuapublicação,olivropóstumode aváriosoutrostextos,detalmodoquenuncasetemcertezado
quantoelerealmentesabesobreomaterialemquestão,ouquão
precisa sua análise intenta ser. E mesmo quando ele fala sobre
9
Poder-se-ia reconhecer que este desenvolvimento no conceito do sujeito também se detalhesparticulares,comooconceitodeacaso(tuche)emAris-
vinculaaumre-pensamentosubstancialdacategoriadorealcomoJulien(6)eoutros tóteles,oualeimoralnateoriaéticadeKant,nãosesabequala
demonstraram.Senosprimeirostrabalhosépossíveldizerqueorealé“pleno”eque versão do filósofo que ele tem em mente, qual escola de pensa-
“nadaestáfaltandonoreal”,otrabalhoposteriornãoirásustentartalconcepção:ostatus
“traumático”doreal,suaconexãocomo“impossível”ecomoqueestá“faltando”no mento ou estrutura interpretativa ele está pressupondo. Ele não
campo de representação, deve agora ser entendido como um efeito da representação. elabora suficientemente o texto filosófico para nos mostrar exa-
Se os primeiros trabalhos consideravam o real como um domínio “pré-lingüístico” tamenteoqueentendeestardizendooautor,eistodificultavero
daexistênciaquenuncaécapturadoadequadamentepelarepresentaçãoimagináriae
simbólica, um domínio de“imediaticidade” que se perde sempre que é mediado por queLacanestácriticandoquandoobjeta,eoqueaprovaquando
representação,notrabalhoposterior,eleseapresentaanóscomumamudançaabrup- concorda.Deve-se,assim,reconhecerdeinícioquenãopodemos
ta:orealsópodeserentendidonummodo“pós-simbólico”,nãocomoumarealidade encontrar nada como uma descrição propriamente filosófica de
pré-simbólica“plena”quefogedarepresentação,mascomo“falta”queemergecomoo
efeitoexcessivodarepresentação,um“produto”peculiarquenãopodeserentendido Merleau-Pontyouumaexegeseresponsávelnosquatrocapítulos
emtermosdeumaconcepçãopré-simbólicadoreal.Éporissoqueosseustrabalhos quetratamd’Ovisíveleoinvisível.Nemsepodedizerqueelefaz
posterioresdesenvolvemumasériedeelosentreoreal,ajouissanceeoobjetoa–não justiça a essa obra ou que ele nos leva longe em sua intrincada
comoreferênciaaumdomíniopré-linguístico,masprecisamentecomoumesforçopara
agarrarasconseqüênciascorpóreasdainsuficiênciadaleisimbólica.Paramaisobserva- estruturatecida.
ções,verShepherdson,27.
104 Discurson.362007 Umalibradecarne 105
HárazõespelasquaisLacandedicasuaatençãoaOvisíveleoin- “Desde que este estranho sistema de trocas é dado”, Merleau-Ponty
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visível, reconhecendo sua importância, mas demarcando o que ele escreve n’O olho e o espírito,“todos os problemas da pintura estão
tomacomosendoaslimitaçõesdeseutrabalho.Épossível,entãoiso- aí”(Merleau-Ponty15,p.21/164).Enovamente,nocapítulosobreo
laralgumasproposiçõeseapreenderostraçosessenciaisnoencontro quiasma,eleescreve:
deLacancomMerleau-Ponty.Seeleestápreocupado,comosempre,
comateoriafreudianamaisdoquecomatradiçãofilosófica,podeser (...)ela[aidealidade“pura”]funde-sejáàarticulaçãodocorpoestesio-
possívelapreenderoquenapsicanáliseoconduzafazeraespecífica lógico,aoscontornosdascoisassensíveis(...)Écomoseavisibilidade
reivindicaçãoaMerleau-PontyqueencontramosnoSeminárioXI. queanimaomundosensívelemigrasse,nãoparaforadetodocorpo,
PoderíamosesperarqueLacantomasseotrabalhodeMerleau-Pon- masdentrodeumoutrocorpomenospesado,maistransparente,como
tynostermosdacategoriadoimaginárioenoseupapelnaformação seelamudassedecarne,abandonandoaqueladocorpoparaaquelada
docorpo–explorandooconceitodaGestalteaquestãodocampo linguagem(...)(Merleau-Ponty18,p.200/152-3)
visualcomoumaformaçãoimagináriaquevaialémdasteoriasclás-
sicasdapercepção,sensaçãoouexperiênciavisual.Masnãoéissoque A“idealidade”,seria,entãodadanãocomoumsistemalógicoda
interessaLacanem1964.Poderíamosesperardeleumaacentuaçãoda filosofiatradicional,masporaqueleníveldeabstraçãoqueestáagar-
ordemsimbólica,emesmoquecelebrasseaaproximaçãodeMerleau- radaaoolhoeàmãodopintor,esseprocessode“emigração”que
PontyaSaussureouocriticasseporabordaraquestãodalinguagem permiteaomundovisívelhabitarodomíniodalinguagem.Lacan
semdaratençãosuficienteaoinconsciente.Masnãoéissooqueen- seenvolveupormuitosanoscomoproblemadainteraçãoentreo
contramosemsuaanálisedeOvisíveleoinvisível.Poderíamosesperar, imaginárioeosimbólico,etalveznãohajaoutropensadorquetra-
finalmente,queelelevasseemcontaamaisimportanterealizaçãode toudesseproblemacommaiscuidadoesensibilidadequeMerleau-
Merleau-Ponty,queésuamarcanteanálisedarelaçãoentreovisuale Ponty.MasistonãoéaindaoqueinteressaLacanquandoelesevolta
overbal–acomplexainteraçãoentrelinguagemepercepçãoquenós aoúltimotrabalhodeMerleau-Ponty.
encontramosnocapítulosobreoquiasma(lechiasme),noensaioO Emvezdisso,vemosquesuasnotaçõessãointeiramentefocaliza-
olhoeoespírito(L’oeiletl’Esprit),ounoimpressionantetrabalhosobre dasnoconceitofreudianodepulsão;porisso,elesevoltaàsconsi-
apintura,noqualMerleau-Pontymostracomocor,texturaeoarranjo deraçõessobreo“olhar”emMerleau-Pontyparaalegarqueoolhar
materialdapinturajátêmumritmo,umaharmonia,umalinguagem nãoéumaquestãodavisãooudapercepção,nemmesmoumaques-
e um sistema que contêm sua própria lógica, seu próprio modo de tãodohorizonteinvisíveldevisibilidade,masque,antes,eledeveser
idealidade,suaprópriaestruturadememóriaerigorosaabstração10.
10
AlphonsoLingisnoslembraqueointeressedeMerleau-Pontynalinguagemjamaisera “operativa”davida,alinguagemcomoédefatousada(mesmopeloslingüistas);então
realmentelimitadoàperspectivadalingüísticaestrutural,mesmoqueistocomplicasse erasempre,quandochegounoproblemadalinguagem,umaquestãodedescobrimento
seuprimeirotrabalhosobreaGestaltintroduzindoumnívelnovodeestrutura.Assim da“lógica”evidentenalínguaatual,equepoderiaserestabelecidanum“nível”diferente
comonaFenomenologiadapercepção(Phénoménologiedelaperception)Merleau-Ponty do esquema formal que se poderia elaborar na base do comportamento perceptivo-
jáfocalizavanãoalinguagemqueédiscutidapelalingüística–aqueleobjetodaciência motor.Veroprefáciodotradutord’Ovisíveleoinvisível[nocaso,Thevisibleandthe
lingüísticaquepoderevelarumconjuntoderegrasformais–masantesalinguagem invisible],pp.xl-lxi,lii-liii.
106 Discurson.362007 Umalibradecarne 107
entendidocomoumobjetoemaisprecisamentecomoumobjetoda canafasta-sedeMerleau-Ponty.Essestrêsmomentossãoacentuados
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pulsão.Emresumo,o“olhar”éumaversãodo“objetoa”deLacan,e emváriasocasiõesporLacan,emerecemmelhorelaboração.
porissoeledizrespeitoàcategoriadoreal,quenãoénemsimbólica NoSeminárioXI,nocapítulodenominado“Aesquizedoolhoe
nemimaginária.Comoelediznocapítulointitulado“Oqueéum doolhar”(Laschizedel’oeiletduregard),Lacanescreve:“Ovisível
quadro?”(Qu’est-cequ’untableau?):“Oobjetoanocampodovisível eoinvisívelpodenosapontaromomentodechegadadatradição
éoolhar”(Lacan8,p.97/105)O“olhar”é,portantocolocado,por filosófica (...) Nessa obra, ao mesmo tempo terminal e inaugural,
Lacannumasériedeobjetos,cadaqualcorrespondendoaumadi- vocêsdescobrirãoumalembrançaeumpassoàfrente”emrelaçãoà
ferentedimensãocorporal,aumdiferenteaspectodocorpo.Como Fenomenologiadapercepção(Phénoménologiedelaperception)(La-
sabemos,Freuddistinguediferentesformasdepulsão,enósencon- can8,p.68/71).Eleelaboraessalembrançacomosesegue:
tramosemseutrabalhoumasériedeobjetos,o“seio”,as“fezes”,o
“falo” e assim por diante, objetos que correspondem às fases oral, Aliseencontra,comefeito,lembradaafunçãoregulatóriadaforma
anal e fálica; Lacan acrescenta elementos à lista freudiana, dando (...)àqualpreside,nãosomenteoolhodosujeito,mastodasuaatenção,
especialatençãoadoisoutrosobjetos,oolhareavoz–oprimeiro seumovimento,suatomada,suaemoçãomuscularetambémvisceral
sendoobjetodapulsãoescópica,eosegundosendoobjetodoque – logo, sua presença constitutiva, apontada naquilo que se denomina
elechamoudepulsãovocativa.AsconsideraçõesdeMerleau-Ponty suaintencionalidadetotal.(Lacan8,p.68-9/71)
sobreoolharsão,assim,tomadasporLacanemtermosdoobjetoda
pulsãoescópicae,conseqüentemente,emtermosdeummomento Comosempre,essaatençãoàformaeaopoderformativodavida
bem específico na constituição do sujeito. Isto o leva a uma série encarnadaépostaparaevitaraalternativaentreoidealismoeoem-
dequestõesquesãointeiramenteafastadasdoqueMerleau-Ponty pirismo.Começandocomomovimentogradual,quase-dialético11,
questionava em seu trabalho final. Essa diferença de orientação é no qual o mundo toma forma e é compreendido pela experiência
considerávelenãodeveriaseresquecida,poismostra,comoLacan atual,provendoassimosujeitocomohorizontefinito,materialde
veioaencontrarosseusprópriosinteressesjápresentes,demodo suaprópriaexistênciacorporaledeatividadecognitiva,aatençãode
veladoouindireto,emMerleau-Ponty. Merleau-Pontyparaaformatentaevitaradivisãoentresujeitoeob-
jeto,ouseja,aalternativaquenosforçaaescolherentre:1)osujeito
tradicional,constituintecujasrepresentaçõespoderiamservircomo
Alémda“intencionalidade”: aorigemtranscendentaldascoisase2)odomíniodapositividade
Oolhareosupereu empíricaqueprecederiaaconsciênciaeexistiriaindependentemen-
te,esperandocompaciênciaaexploraçãodosujeito.Essaconcepção
Nóspodemosdistinguirtrêsmomentosdistintosnasconsidera- deformatambémpossibilitaumaanálisemaiscuidadosadocorpo.
çõesdeLacanemOvisíveleoinvisível:umaquedesignaocontínuo Ocorponosproporcionaumpontodeacessoàscoisas,maspartici-
caminhodotrabalhodeMerleau-Ponty,outraquedestacaoqueé
novoemseuúltimoescritoe,finalmente,ummomentonoqualLa- 11
SobreaquestãodoalcancepelaqualotrabalhodeMerleau-Pontysejapropriamente
dialéticoemváriosmomentos,verTerminiax(27).
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patambémdascoisasemsimesmas:suacarneéacarnedomundo. consideraçõesdoolharemMerleau-Pontye,maisprecisamente,em
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“Certamente”,Merleau-Pontydiznocapítulosobreoquiasma, termosdadivisãoentreoolhoeoolhar.Comoconceitode“invisível”,
Merleau-Pontychamanossaatençãoparaoquepodemoschamarde
pode-seresponderqueexiste(...)oabismoqueseparaoEm-sidoPara- dependênciadovisívelparacomoolharqueoprecede,umolharque
si.(...)Masaqui,procurandoformarosnossosprimeirosconceitosde abreodomíniodavisibilidade.ComoMerleau-Pontydiz,“Écomose
modoaevitarosimpassesclássicos,nósnãotemosquedarpreferên- anossavisãoseformassenoseucoração[dovisível]”.Eleelabora:
ciaàsdificuldadesqueelespodemoferecer(...)(Merleau-Ponty18,p.
180/136-47). Oqueháentão,nãosãoascoisasidênticasaelasmesmasque,emse-
guida,seofereceriamaovidente[auvoyant],enãoéumvidentevazioantes
Comooconceitodeforma,aquestãodocorpo,continuaapro- detudoque,emseguida,seofereceriaaelas,masalgumacoisadequenão
porcionaraMerleau-Pontyumpontodepartidapropriamentefeno- poderíamosestarmaispertosenãolheapalpandocomoolhar[enlepal-
menológicoquecorrigiriaasdeficiênciasecontradiçõesdatradição pantduregard],porqueoolharmesmoasenvolve,asvestecomsuacarne.
filosófica12. Lacancomeça reconhecendo a continuidade entre esse Deondevemque,fazendoisto,eleasdeixaemseulugar,queavisão[la
novovocabulárioda“carne”eostrabalhosanterioresdeMerleau- vision]quenósastomamosnosparecevirdelas(...)?(Merleau-Ponty18,
Ponty,notandoquearelaçãoentreaquelequeolhaeaquiloqueé p.173/131,grifomeu)
visto,entreaquelequetocaequeétocado,é,emalgunsaspectos,
umareformulaçãodeconsideraçõesanteriores. Nósdevemossublinharestafrasefinal,porqueétalindependência
Emadiçãoaessarecapitulação,contudo,nóstambémencontra- peculiardomundovisívelqueinteressaaLacan–nãoaexistência
mosalgonovo:“Merleau-Pontydáagoraumpassoàfrenteforçando autônomadascoisasempíricas(umtemaclássicodafilosofia),maso
oslimitesdestafenomenologia”(Lacan8,p.69/71-2).ComoLacan modopeculiaratravésdoqualavisãoocorreapenassobasoberania
caracterizaesse“passoàfrente”eoquelhepermiteveristocomo eaexperiênciapenetrantedoolharquevemdascoisasemsimesmas,
marcando os“limites da (...) fenomenologia”? Lacan adverte que umolharqueprolongaasinoatomesmodaexperiênciasensóriade
devemos entender o“passo adiante” de Merleau-Ponty através do alguém.“Qualéestetalismãdacor”,Merleau-Pontyescreve,
conceitodeinvisível,umconceitoqueLacanespecificaemtermosdas
éestavirtudesingulardovisívelquefazcomque,mantidonotérmino
12
doolhar,elesejaentretantobemmaisqueumcorrelativodeminhavisão,
ComoFoucaultdiz:“Umpapeltãocomplexo,tãosobredeterminadoetãonecessário
temsidorealizadonopensamentomodernoporumaanálisedovivido.Ovivido,com sendoelequemeamimeaminhavisãoimpõecomoumaseqüênciadesua
efeito, é ao mesmo tempo o espaço onde todos os conteúdos empíricos são dados à existênciasoberana?(Merleau-Ponty18,p.173/131,grifomeu)
experiência,eétambémaformaorigináriaqueostornaemgeralpossíveisedesigna
seuenraizamentoprimeiro;eleestabelece,naverdade,comunicaçãodoespaçodocorpo
com o tempo da cultura, das determinações da natureza com o peso da história, na Enovamente,numaoutrapassagem,Merleau-Pontyescreve:
condição,entretanto,queocorpo,eatravésdeleanatureza,sejamprimeiramentedados
naexperiênciadeumaespacialidadeirredutível,equeacultura,portadoradahistória,
(...)éprecisoqueaquelequeolhanãosejaelemesmoestrangeiroao
sejaprimeiramenteexperimentadanaimediaticidadedassignificaçõessedimentadas”
(Foucault4,p.321). mundoqueeleolha.(...)Énecessário(...)queavisãosejaduplicadaporuma
110 Discurson.362007 Umalibradecarne 111
visãocomplementarouporumaoutravisão:eumesmovistodefora,tal bramdaúltimasentençadoensaioAsrelaçõescomoutronacriança
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comoumoutromeveria,instaladonomeiodovisível(...)”(Merleau-Ponty (Lesrelationsavecautruichezl’enfant)deMerleau-Ponty:
18,p.177/134)
Pode-se interrogar sobre a relação que se deve estabelecer entre a
Éessaimposição(“queme[amimeaminhavisão]impõe”),essa crisedostrêsanosdaqualdizWalloneafaseedipianadodesenvolvi-
invisibilidadesoberanadoolharqueprecedetodoonossover,que mentoquealgunspsicanalistassituamnomesmomomentocomaqual
permite a Merleau-Ponty reestruturar a totalidade da questão da seesboçaosuperego,averdadeirarelação‘objetal’eaultrapassagemdo
“intencionalidade”edarelaçãosujeito-objeto. narcisismo.(Merleau-Ponty14,p.229;PP,p.155,grifomeu)
OqueLacantomadessaanálise?Eleéclaro:“Oquesetratade
circunscrever, pelas vias do caminho que ele nos indica, é a pree- Poderiaocorrerque,nomomentomesmoqueonarcisismoéapa-
xistênciadoolhar–euvejosomentedeumponto,masemminha rentementesuperado,nomomentomesmoqueoexcessodoegopa-
existênciaeusouvistoportodososlados”(Lacan8,p.69/72).Essa receestardominadoeumarelação“objetal”maduracomomundo
experiênciadeestarsoboolharéoqueconstituio“passoadiante” éestabelecida,paradoxalmente,nosdeparariamostambémcomum
de Merleau-Ponty de acordo com Lacan:“Eu entendo, e Merleau- momentonoqualadimensãomaisnão-naturaldoOutroémanifes-
Pontynosaponta,quenóssomososseresolhadosnoespetáculodo tada?Poderiaocorrerqueasupostatranscendênciadonarcisismose
mundo”(Lacan8,p.71/74-5). vincularia,dealgummodo,àpeculiarproduçãodoolhar,oquesig-
Chegamosassimnosegundoestágiodaleituralacaniana,nopon- nificadizerqueofatomesmodavisão,aexperiênciasensóriamais
toondepodemoscompreenderoqueénovonoúltimotrabalhode “natural”, seria assombrado por uma presença peculiar, invisível e
Merleau-Ponty.Porque,então,Lacanachanecessárioreformularas tirânica,umapresençaquenãopodeservistamasquenosolhaego-
consideraçõesdo“olhar”deMerleau-Ponty?Antesdetomarmosessa vernasecretamenteomovimentodocorpocomsuaprópriamalícia
questão,abramosumparêntese–umavezque,nestesegundoestágio ou intenção estranha, solicitando nosso olhar, direcionando nossa
dosapontamentosdeLacan,épossívellocalizarumacertaconvergên- visãocomoumaextensãodesuaexistênciaimperiosa?Oqueisto
ciaentreasobservaçõesdeMerleau-Pontyeasconsideraçõesdateoria significaparaLacaneparaateoriadosujeito,quandoMerleau-Pon-
freudiana.DiantedaanálisedeMerleau-Pontyeantesdequalquerdi- tyabreestaexperiêncianaqualnóssomos“(...)olhadosnoespetáculo
vergênciacomLacan,podemosnosperguntaroqueopsicanalistairá domundo”(,p.71/74-5)?Éumaquestãodonarcisismooualgoque
fazercomo“olhar”.ComoLacanirádesenvolverapretensãomerleau- emergeprecisamentenoultrapassamentodonarcisismo?
pontyanaeoqueelevêcomoimportanteparanossacompreensãodo Merleau-Pontycertamenteparececonsideraraprimeirapossibi-
sujeito?O“olhar”éumproblemadoimagináriooudosimbólico?Isto lidadequandoescreveestaspalavrasnocapítulosobreoquiasma:
vailevarLacanarefletirsobreonarcisismoouseriaantesumaquestão “Demodoqueovidente,estandopresonoquevê[levoyantétant
dosupereu–umreflexodapuniçãoedapresençaobscuramentema- pris],éaindaelemesmoqueelevê:háumnarcisismofundamental
lévolaqueparecenosobservardecima,invisíveleonipresente,como emtodavisão”.Eapassagemcontinuaassim:
umagentedaleiquesubitamentemostrasuafacesádica?Algunslem-
112 Discurson.362007 Umalibradecarne 113
Pela mesma razão, a visão que ele exerce, ele a sofre também por nemumacaracterísticadaluz,masalgoqueprecedeodomíniodo
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partedascoisas,que,comodizemmuitospintores,eumesintoolha- visíveleserevelaànossavisão.IstoseriaopassodeMerleau-Pon-
do[jemesensregardé]pelascoisas,minhaatividadeéidenticamente typaraalémdafenomenologia,comoLacanoapresenta:oolhar
passividade–éesteosentidosegundoemaisprofundodonarcisismo: não pertence às coisas empíricas, mas designa uma dimensão da
nãoverporfora,comoosoutrosovêem,ocontornodeumcorpoqueé invisibilidade–nãoumaesferatranscendente,masumdomínioda
habitado,massobretudoservistoporele,existirnele,emigrarparaele, experiênciaqueéúnicaaoanimalhumano,eistocapturaacaracte-
serseduzido,captado,alienadopelofantasma,demodoquevidentee rísticapeculiardaencarnaçãohumana,algumacoisaquenãopode
visívelsejamrecíprocosenãosaibamaisquemvêequemévisto[qui seragarradaemtermosde“sujeito”e“objeto”,percepçãosensóriae
voitetquiestvu].(Merleau-Ponty18,p.183/139,grifomeu) positividadeexterna.
N’Oolhoeoespírito,Merleau-Pontynãofalasobreavisibilidade,
Assim,oolharnosentidomerleau-pontyanosópoderiaparecer massobreo“solodomundosensíveledomundocultivado”:“épre-
emergirnomomentoemqueonarcisismoéultrapassado,apenas cisoqueopensamentocientíficoeleescreve,
quandooespelhonãomaismeremeteamimmesmonumaforma
imaginária, apenas quando meu corpo não está mais em sua pos- torneasecolocarnum“há”prévio,napaisagem,sobreosolodomundo
sessão,emsuaunidade,masestáantesnessaaberturaaomundona sensível e do mundo cultivado tal como é em nossa vida, para nosso
qual“videnteevisívelsãorecíprocosenãosabemosmaisquemvêe corpo,nãoocorpopossívelnoqualélícitosustentarqueelesejauma
quemévisto”.Nãolevemosadianteessaquestão.Ésuficientevero máquinadeinformação,masestecorpoatualqueeudigomeu(...)[um
primeiropontodecontatoentreMerleau-PontyeFreud,comoLa- corpoquesópodeserentendidoemsuaconjunçãocom]corposasso-
canparecelhesapresentar.Fechemosesteparênteseecontinuemos ciados(...),os“outros”(...)quemeassediamequeeuassedio(...)como
emnossaexegese. jamaisosanimaisassediamaquelesdesuaespécie(....)(Merleau-Ponty
O conceito do olhar é uma recapitulação, mas é também um 15,pp12-3;16,pp160-1)
“passo adiante” em relação às primeiras análises da forma e da
Gestalt.Eessepassoadiantepoderiamarcarolimitedafenome- Éportantoumaquestãodocorpo,nãocomoumorganismocom
nologia, na medida em que ele abre uma certa invisibilidade no suacapacidadesensório-motora,suasmemóriaseexpectativas,mas
coraçãodovisível,algoquenãopodeservisto,queestáalémda comoumfenômenohumanoexclusivo:nãoumcorpocomo“(...)
“aparência” e do“fenômeno”, mas que olha para mim como eu umpedaçodeespaço,umfeixedefunções,masumentrelaçadode
olhoparaomundo,comumolharquesolicitapreviamenteminha visãoedemovimento”(Merleau-Ponty15,p.16;16,p.162),ocorpo
visão,mesmoantesqueeucomeceaver.Edesdequeistosejauma semoqual“(...)nãohaveriahumanidade”(Merleau-Ponty15,p.20;
questãodeservisto,deser“olhadodetodososlados”,oolharnãoé 16,p.163).
maisumapropriedadedosujeito,umpoderdeveroudeespecular, Emresumo,oolharnãoéumapropriedadedosujeito,mastam-
masalgumacoisaquevemdomundodascoisas.Oolharnãoémais bém não é uma propriedade das coisas, um traço do visível em
umapropriedadedosujeito,masnãoétambémumapropriedade si mesmo. Ele não tem uma imagem especular, mas é antes algo
dosobjetos,umfenômenonatural,umtraçodomundoempírico, invisível,algoquenãopodeservisto,masquenoentantovemdo
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mundodascoisas,algoque,nalinguagemdeLacan,vemdoOutro, Masnãoéentreoinvisíveleovisívelquenóstemosquepassar.
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precedendominhavisãoesolicitando-aaseguir,“queme[amim Aesquizequenosinteressanãoéadistânciaquesemantémentreo
eaminhavisão]impõe”(Merleau-Ponty18,p.173/131),continu- queexistedeformasimpostaspelomundoeaquilocontraoquea
ando a si no ato mesmo da minha visão, reduzindo a mais ativa intencionalidade da experiência fenomenológica nos dirige (...). O
exploraçãosensóriaaumafundamentalpassividade,enaverdade olharsóseapresentaanóssobaforma(...)danossaexperiência,a
ao ponto de podermos falar de aniquilação do sujeito (Lacan 8, saber,afaltaconstitutivadaagoniadacastração.Oolhoeoolhar,tal
pp.78,83/82,88).Oolharéalgoaoqualestouassujeitado.Éisto éparanósaesquizenaqualsemanifestaapulsãononíveldocampo
queLacanisoladoúltimotrabalhodeMerleau-Ponty:“Essever escópico.(Lacan8,pp.69-70/72-3)
aoqualestousubmetidodeummodooriginal–eisaísemdúvida
oquedevenoslevaràambiçãodestaobra(...)”(verLacan8,p. NósdistinguimostrêsmomentosnaanálisedeLacan:primeiro,
69/72,grifomeu)13. umreconhecimentodaqueleselementosn’Ovisíveleoinvisívelque
seaprofundamequedãoseqüênciaàtrajetóriadatotalidadefilosó-
ficadeMerleau-Ponty;segundo,aintroduçãodeumnovocomeço
Negociaçãoplatônica: genuíno,ohorizonteinvisíveldavisibilidade;e,finalmente,umadi-
choraousujeito? vergência,naqualaanálisedeMerleau-Pontyseriadeficiente,istoa
partirdeumpontodevistafreudiano.
Assim,deacordocomLacan,temosn’Ovisíveleoinvisíveluma No próximo capítulo, “A anamorfose” (L’anamorphose), nós
recapitulação dos temas anteriores e também um passo adian- encontramososmesmostrêspassos.Essecapítuloforneceuma
te,queconsistenaelaboraçãodoconceitodoolhar.Finalmente, análisedapulsãoescópicaeLacanretornanovamenteaMerleau-
devemosdestacaropontodoqualLacansedistanciadeMerle- Ponty, confessando que“(...) a função escópica se situa (...) na
au-Ponty,opontodoqualsuaanálisedoolhartomaumadire- obra que acaba de ser publicada de Maurice Merleau-Ponty, O
ção diferente. Porque ele também escreve neste capítulo que“o visível e o invisível” (Lacan 8, p. 75/79). Neste ponto, tendo in-
campoquenosdáMauriceMerleau-Ponty(...)seapresentapor troduzido o nome de Merleau-Ponty, Lacan lembra de algumas
suasincidênciasmaisfactícias,senãoasmaiscaducas”(Lacan8, dasmaioresfigurasdatradiçãofilosóficae,emduaspáginas,ele
p.69/72).Elecontinua: recorre a várias concepções do sujeito: 1)“(...) o caminho irre-
dutíveldobispoBerkeley(...)quechegaareduzirosujeitoque
13
Dadoesse“ser-olhado-por”primárioeradicalqueMerleau-Pontynoslevaaconsiderar,
percebe a meditação cartesiana a um poder de nadificação”; 2)
pode-setambémpensarnoproblemada“síntesepassiva”e“constituiçãopassiva”deque arevoluçãohegelianaque“(...)fazoscilarefetivamenteosujei-
Husserlseocupouemseusúltimostrabalhos(verLandgrebe,TheProblem...,pp.50-65; tocontraaaçãohistóricatransformante(...)”;e,finalmente,3)
TheWorldas...,pp.122-48).Lacantambémcomentaestaaparentepassividade.VerLacan
8,ondeelenotaquea“passividade”aparentedesse“estar-sendo-visto”,sendoumserque
“quantoàmeditaçãosobreoserquechegaaseucumenopensa-
é“olhadonoespetáculodomundo”,édefatoprecisamenteaatividadedapulsão:“mesmo mentodeHeidegger,restituindoaosermesmoopoderdenadi-
nasuapretensafasepassiva,oexercíciodeumapulsão,masoquista,porexemplo,exige ficação(...)”(Lacan8,p.77/81).Istonãonosdizmuitoarespei-
que o masoquista se dê, se ouso me exprimir assim, um trabalho de cão” (Lacan 8, p.
182/200).
todatradiçãofilosófica,masnospermitevercomoLacansitua
116 Discurson.362007 Umalibradecarne 117
o trabalho de Merleau-Ponty: “É bem aí que nos leva também Ébemaíquenosleva(...)Merleau-Ponty.Mas,sevocêssereporta-
RichardTheisenSimanke
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Merleau-Ponty”(Lacan8,p.77/81).Aqui,novamente,deacordo remaotexto,vocêsverãoqueénestepontoqueeleescolherecuarpara
comLacan,nóstemosumacontinuaçãodatradiçãofilosóficaem nos propor retornar ao caminho da intuição concernente ao visível e
suareflexãoarespeitodosujeito,assimcomoarespeitodecerta aoinvisível,devoltaraoqueestáantesdetodareflexão,téticaounão-
“negatividade”nosujeito,algoquenovamenteéformuladodeum tética,afimdemarcarosurgimentodavisãomesma.Trata-separaele
modoanoslevardiretoaolimitedessatradição,àmaisprofunda derestaurar(...)aviapelaqual,nãodocorpo,masdealgumacoisaque
investigaçãoontológicadeHeidegger14.Nósestamosagoracoma denominadecarnedomundo,pôdesurgiropontooriginaldavisão.
concepçãode“carne”apresentadacomooelementonoqualmeu (Lacan8,p.77/81-2)
corpoédadoassimcomoascoisasemsimesmas.Comoopróprio
Merleau-Pontydiz: PorqueLacanvêameditaçãomerleau-pontyanacomoalgoquede
algummodoestáemfaltaeseafastadiantedesuasconseqüênciasmais
Équeaespessuradacarneentreovidenteeacoisaéconstitutiva radicais?SeriaporqueasconsideraçõesdoolharemMerleau-Pontyde
desuavisibilidadeaelacomodesuacorporeidadeaele;istonãoéum algummodoficamnoslimitesdatradiçãodametafísicaousãomarca-
obstáculoentreeles,éseumododecomunicação.(...)Éaestetítulo,e dasporumcerto“platonismo”?Algunsescritores(particularmenteos
não como portador de um sujeito que conhece, que nosso corpo co- analistas lacanianos) reivindicaram precisamente isto, argumentando
mandaparanósovisível,maselenãooexplica,nãooesclarece,elenão que,paraMerleau-Ponty,háumapresençaonividente,algocomoum
fazsenãoconcentraromistériodesuavisibilidadeesparsa;trata-secom serdivinoplatônicoquepermaneceinobservável,invisível,masqueolha
razãodeumparadoxodoSer,enãoumparadoxodohomem.(18,pp. paranósequedirecionanossavisãoparaoesplendordomundofeno-
178-80/135-6) menal(verQuinet22;23).Estaéumaconsideraçãoredutivaeerrônea
sobreaobradeMerleau-PontyeopróprioLacannãoparececoncordar
SeguindoMerleau-Pontyevendoseutrabalhocomoumcaminho comisto.Semdúvida,éumacompreensãopossível,ummodopossível
quenoslevadiretoaolimitedatradição,aopontoemqueaquestão deseposicionar,outalvezdecometerumenganoarespeitodessaestra-
do sujeito não pode mais ser colocada em termos antropológicos, nhaexperiênciadoolhar.ComoLacandiz:“Oespetáculodomundo,
Lacaninsiste,entretanto,queMerleau-Pontynãonoslevasuficien- nestesentido,nosaparececomoonividente.Estáaíofantasmaquenós
temente longe, ao menos não tão longe para alcançar o que está encontramosnaperspectivaplatônica,deumserabsoluto(...)”(Lacan
emquestãonasconsideraçõespsicanalíticasdafunçãoescópica,do 8,p.71/75).Masnósnãotemosquecolocaressafantasiadeumserab-
olharcomoumobjetodapulsão.Seguindoseusumáriodatradição solutonolugardo“fenômeno”(sesepodeaindautilizarestetermo)que
esuareferênciaaHeidegger,Lacanescreve: Merleau-Pontydescobriuparanós,mesmoqueofenômenodoolhar
tambémpossaexplicarafantasiaqueeletornapossível.Lacanescreve:
14
EmsuasNotasdetrabalho(Notesdetravail),Merleau-Pontydestacaquedevemos“fazernão “Nãoprecisamos,demodoalgum,nosreportaraqualquerquesejaa
umapsicanáliseexistencial,masumapsicanáliseontológica”(18,p.323/270)eacrescenta suposiçãodaexistênciadeumvidenteuniversal”(ibidem,p.71/74).
que“afilosofiadeFreudnãoéumafilosofiadocorpomasdacarne”.Eainda:“Umafiloso-
fiadacarneécondiçãosemaqualapsicanálisepermaneceantropologia”(18,p.321/267). Sejamosmaisprecisosnesteponto:Lacanpareceseentreterporum
momentocompossibilidadedeMerleau-Pontyrealmentetornar-seví-
118 Discurson.362007 Umalibradecarne 119
timadaidéiadeumvidenteuniversal“platônico”,umaespéciede“subs- Sobreosacrifício:
RichardTheisenSimanke
DossiêFilosofiaePsicanálise
tância”ou“elemento”primordialquepoderiaprecederosujeitoeservir ooutroeoobjeto
comoolugardeseunascimento,suaorigem,choraeassimpordiante.
Referindo-seao“olhar”quevemdomundoequesolicitanossavisão EntãoporqueeleinsistequeapsicanálisedeveseafastardeMer-
anterior,assimcomoaoconceitode“carne”,Lacanescreve: leau-Pontyouquenósencontraremosnapsicanáliseumadiscussão
mais precisa do olhar do que esta que encontramos em Merleau-
Parece assim que, nessa obra inacabada, se esboça alguma coisa Ponty? A resposta a tal questão é óbvia: enquanto Merleau-Ponty
comoapesquisadeumasubstânciainominadadeondeeumesmo,o apresenta o olhar como alguma coisa que vem do mundo – não
vidente,meextraio.Daarmadilha[rets],oudoraio[rais]sevocêspre- dos objetos no mundo, mas do mundo como um todo, o mundo
ferirem,deumbrilhodoqualantesdetudosouumaparte,eusurjo numsentidofenomenológicoetalvezatémesmodaexperiênciada
comoolho(...)(Lacan8,p.77/82) mundanidadedomundo,estehorizonteinvisívelnoqualascoisas
visíveisencontramseulugar–emoutraspalavras,enquantoMerle-
Dessepontodevista,oolharseriaalgoque,naarenadavisão,funcio- au-Pontyapresentaoolharcomoalgoque,nalinguagemlacaniana,
nacomoachora,asubstânciaprimordialoulugarqueprecederiaosu- vemdoOutro,Lacanvê,aocontrário,oolharcomoumobjeto,não
jeitoedoqualosujeitoemergiria.MasistonãoéoqueLacanpensaque comoumacoisaempírica,mascomoumaformaespecíficadoobjet
Merleau-Pontyestejafazendo15.Eleimediatamenteacrescenta:“Masera petitae,maisprecisamente,comooobjetodapulsãoescópica.O
essemesmoocaminho,portanto,queelegostariadetomar?Ostraços queissosignificaequalésuaimportânciaparanossacompreensão
quenosrestamdaparteporvirdesuasmeditações[i.e.as“notasde dosujeito?
trabalho”]nospermiteduvidardisto”(Lacan8,p.77/82).Oqueentão Afimdeclarificarestepontofinal,retornemosàquestãodapassi-
Merleau-Pontyestáfazendo,seelenãoestáseengajandonograndeem- vidade,retornemosaopontonoqualLacanfalasobreaexperiência
preendimentoespeculativodatradiçãometafísica,“apesquisadeuma doolharcomoalgumacoisa“àqualeuestouassujeitado”,paraen-
substânciainominada”?DopontodevistadeLacan,ele“estariatalvez tãofalarmosdo“aniquilamentodosujeito”.Naexperiênciadoolhar,
sedirigindoaumapesquisaoriginalemrelaçãoàtradiçãofilosófica,a “(...) nós somos os seres olhados no espetáculo do mundo” (Lacan
estanovadimensãodameditaçãosobreosujeitoqueaanálisepermite, 8,p.71/74-5).Nossoolharésolicitadoanteriormenteporumolhar
anós,traçar”(Lacan8,pp.77-78/82,grifomeu).É,portanto,umanova quecontinuaasinopróprioatodaminhapercepção.Assim,naex-
meditaçãosobreosujeito,enãoumaespeculaçãometafísicadeuma periência do olhar, minha percepção é revelada em sua passividade
substânciaprimordial,queLacanencontranoconceitodoolhar. fundamental–nãoumapassividadeentendidacomoofamiliaropos-
to de“atividade”, mantendo um dualismo simétrico e binário, mas
16
Comoébemconhecido,Merleau-Pontydizqueoconceitode“carne”queeleintroduz
n’Ovisíveleoinvisívelrequerumretornoaoantigoelementoprimordialdomundo.“A
15 carnenãoématéria,nãoéespírito,nãoésubstância.Precisar-se-ia,paradesigná-la,do
Pode-secompararaquialeituralacanianad’OvisíveleoinvisívelcomadeLuceIrigary
velhotermo‘elemento’,nosentidoqueseempregavaparafalardeágua,ar,terraefogo(...).
(5pp.143-71,pp.151-84).
Acarneé,nestesentido,um‘elemento’doSer”(MerleauPonty18,p.184/139).
120 Discurson.362007 Umalibradecarne 121
RichardTheisenSimanke
DossiêFilosofiaePsicanálise
dasquaisambassãopossíveis:passividadeeatividade.Éumaquestão issoqueLacandeclaraqueaexperiênciadoolharserelacionacoma
daexperiênciaelementarqueprecedeadivisãoentresujeitoeobjetoe faltaqueconstituia“angústiadecastração”:“Oolhoeoolhar,talé
quetornaambaspossíveis:minharecepçãopassivadodadosensorial paranósaesquizenaqualsemanifestaapulsãononíveldapulsão
eminhaatividadeintencionalmentedirecionadaparaaexploraçãodo escópica”(ibidem,p.70/72-3).“Nestenível,nósnãosomosforçados
mundo16.A carne nos abre para uma fundamental passividade na aentraremnenhumaconsideraçãodasubjetivaçãodosujeito.Osu-
qualatividadeepassividade,sujeitoeobjeto,nãomaismantêmseu jeitoéumaparelho.Esseaparelhoéalgumacoisadelacunar,eéna
sentidotradicional.Acentuandoestepontoedestacandoariqueza lacunaqueosujeitoinstauraafunçãodeumcertoobjeto,enquanto
notáveldaprosadeMerleau-Pontyesuaatmosferadesensualidade objetoperdido”(ibidem,p.168/185).Emresumo,naexperiênciado
luxuosa, Lacan formula a seguinte questão:“Não há satisfação de olharéosujeitoqueseidentificacomoobjetoquefariaoOutro
estar sob este olhar (...)?” (Lacan 8, p. 71/75). Por que Lacan foca completo,desvanecendooudesaparecendonummovimentosacri-
a questão da “satisfação” precisamente nesse momento, precisa- ficialdeidentificação.
mente nesse nível da estrutura do sujeito? Nós fomos levados por Em1963,duranteaúnicasessãodoseminárioquefoicancelada,
Merleau-Pontyaveromodonotávelcomoqualnossoolharjáestá Osnomesdopai,Lacanforneceumaconsideraçãonotáveldosacrifí-
dominado,jácompelidoaemigrarparaalémdesi,aserseduzido ciodeIsaacearelaçãosimbólicaquepermiteaocarneirosersubsti-
ecativadoanteriormentepeloolhardomundo,umolharquecon- tuídopelacriança,assimtambémdefinindoumanovarelaçãoentre
tinuaasiemminhaexperiênciadavisão,comoseminhavisãofosse opovojudeueoOutro,alémdessa“libradecarne”,alémdolabor
oimplementoeomeiodeumolharquevemdoOutro.“Oqueisto sacrificialqueprocurasatisfazerajouissancedivina[ogozodivino].
querdizer”,Lacanpergunta,senãoque“algumaformadeelisãodo EmfacedoenigmaapresentadopeloinescrutávelOutro,ovazioque
sujeito se mostra”? (ibidem, p. 72/75). Cem páginas depois, Lacan éabertoporesta“questãodeser”(“OqueoOutroquerdemim?”),
retomaestepontoalegandoqueéprecisamentenoembatecomsua osujeitosópodeserimpulsionadoaumaangústiaprofundaenão-
falta,comsuaradicaldivisão,ecomoumaúnicatentativaderodear natural–umaangústiaquetrazconsigoumapeculiartentação:nas
estadivisão,que“(...)osujeitosefazoobjetodeumaoutravontade palavrasdeLacan,“(...)oferecer-seaosobscurosdeusesumobjeto
(...)”(ibidem,p.168/185,grifomeu).“Éosujeitoquedeterminaasi de sacrifício, eis algo a que poucos sujeitos podem não sucumbir,
mesmocomoobjetoemseuencontrocomadivisãodasubjetivida- numamonstruosacaptura”(ibidem,p.246/275)Opactosimbólico
de”(ibidem,p.168/185).Nósvemosassim,maisclaramente,afun- desubstituiçãorepresentadopelamãodoanjo,umamãoqueestá
çãodoobjetpetitaemLacan,comoumparadoxo“objetodefalta”, aoalcancedetocaramãodeAbraão,parando-anoinstantemesmo
umalocalizaçãodefalta,uma“particularização”quepermitequea docortesacrificial,noexatolimitedaLei,éportantoumnovomodo
faltanoOutrosejaveladanomomentomesmodesuamanifestação detocar,umnovomododenegociaradivisão,nocampodoOutro,
–eveladadeummodointeiramentepreciso,asaber,numapecu- entredesejoejouissance.
liarinstânciadesubstituição(metáfora),queLacanconsideracomo ÉaquiqueencontramosamaisclaradivisãoentreLacaneMer-
sacrificial,desdequeosujeitoseofereceasicomooobjetoquese leau-Ponty: para Lacan, a análise de Merleau-Ponty nos mostra
mostrafaltandonoOutro,seidentificandocoma“Coisa”perdida –talvezsemintentarfazeristo–oqueFreudquisdizerquandofalou
122 Discurson.362007 Umalibradecarne 123
dasatisfaçãodapulsão,quenumafraseLacanlembraperguntando: 8.–––––.Thefourfundamentalconceptsofpsychoanalysis.NovaYork:Norton,
RichardTheisenSimanke
DossiêFilosofiaePsicanálise
“Nãohásatisfaçãodeestarsobesteolhar(...)?”(ibidem,p.71/75). 1978.(TraduzidodeLeSeminaireXI:lesquatreconceptsfondamentauxdela
ParaLacan,trata-sedeumaquestãorelativaaoprazerpeculiarcom psychanalyse.Ed.Jacques-AlainMiller.Paris:Seuil,1973.)
oqualvemossimultaneamenteaaniquilaçãodosujeito,odesvane- 9.–––––.“IntroductiontotheNames-of-the-FatherSeminar”InTelevision:a
challenge to the psychoanalytic establishment.. Ed. Joan Copjec. Nova York:
cimentoouodesaparecimentodosujeito,essamarcafundamental
Norton,1990.
damortenaqualFreudinsistiuquandoescreveuquetodasaspul-
10.LANDGREGE,Ludwig.“Theproblemofpassiveconstitution”inThePhe-
sõessãopulsõesdemorte.ParaLacan,éumaquestãodedistinção
nomenologyofEdmundHusserl:SixEssaysbyLudwigLandgrebe.Ithaca:Cor-
entreoprazerdapulsão,aqueleprazernoqualosujeitodesaparece
nellUniversityPress,1981.
(queLacanchamadejouissance)e,porcontraste,aordemdodesejo 11.–––––.“Theworldasaphenomenologicalproblem”InThePhenomenology
noqualosujeitoencontrasuavida.DeacordocomLacan,estaéa ofEdmundHusserl:SixEssaysbyLudwigLandgrebe.Ithaca:CornellUniver-
antítesequeMerleau-Pontydescobre,semperseguiristonadireção sityPress,1981.
queFreudnosexigetomar:aexperiênciadeestarsoboolhare,mais 12.LAURENT,Eric.“Alienationandseparation”InFELDSTEINetal3.
precisamente,asatisfaçãoqueacompanhaisto,essaéprecisamente 13.MARINI,Marcelle.JacquesLacan:theFrenchcontext.NewBrunswick:Rut-
aexperiênciadapulsãoescópica,estaexperiênciaprimordialqueé gersUniversityPress,1992.
sempreumapossibilidadedosujeito,masnaqualodesejoéperdido 14.MERLEAU-PONTY,Maurice.“Thechild’srelationswithothers”InPrimacy
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“Whoisthere?”Metafísicaedesconstruçãodointérpretesegundoa
situaçãopsicanalítica
Partindodapremissaadequeolugardoanalistaoexpõeaumaestruturade sesouvenirparl’oubli,ledehorsànouveau
desconhecimentoconstitutivadesuaescuta,problematizamosaescolhademo- Blanchot1
delos hermenêuticos essencialmente incompatíveis com essa escuta.A partir
da crítica heideggeriana à metafísica como recusa em pensar o próprio fun-
damento,procuramosdemonstrarcomoessarecusasetraduzemmodelosdo Hamlet?
intérpreteenquantoumarecusadapassividade,eliminandoaprioriapossibili-
dadedeumahermenêuticapensadacomorecepçãodosentido.Segundonossa “Whoisthere?”:Quemestáaí?Queprecisamentetalquestãorea-
hipótese,contudo,aenergéticafreudianapoderepresentarumaalternativanão lizeaaberturadeHamletpodeparecernãomaisqueumacaso:esta
metafísicaàsuateoriadosentido,poisdáorigemaumaconcepçãodeherme- seria uma declaração fortuita, de pouca significação ou densidade
nêuticaonde,paradoxalmente,éaimpossibilidadedainterpretação,olimitedo literária,frenteàdorcrescentequesedesdobraránapeça.Contudo,
sentido,quegarantiráointérpretecomoaquelequepodeteracessoaosentido. essainterrogaçãoaparentementebanalantecipacomprecisãotoda
Palavras-chave: metafísica, desconstrução, intérprete, hermenêutica, situação ageometriatrágicadopríncipedashesitações.Nãoporacaso,essa
analítica,recepçãodosentido perguntaélançadaporBernardoàsombradeumespectro,aonega-
tivodeumfantasma,oqueconstituiumdestinatárioessencialmente
“Whoisthere?”Metaphysicsanddesconstructionoftheinterpretation
problemático.Comefeito,consideradaapartirdaambigüidadede
Thispapersupposesthattheanalystisnotconcernedinhisownpracticewith
taldestinatário,aquestão“Quemestáaí?”sedesdobraemduasin-
theveryelementthatmakesitpossible–l’écute,orthelisteninginthehearing.
terrogaçõesdesiguais:porumlado,oquestionamentodaidentidade
Heideggerfindsasimilarrefusalinmetaphysics,asciencethatdoesnotposeto
dealguém;poroutro,oquestionamentodesuaexistência.Trata-se
itselfthequestionofitsownpossibility.Inpsychoanalyticalterms,thissortof
deumaintimaçãofeitaaalguémcapazderesponderporsioude
refusal amounts to the impossibility of thinking psychoanalysis as an herme-
neuticsofthereceptionofsense.Ontheotherhand,Freud’sownconsiderations
umapelosemdestinatário,dirigidoaninguém?Ainquietantene-
concerningtheeconomyofthepsychicapparatusseemstoofferanon-meta- cessidadecomqueHamletserátragadoaolabirintodesualoucura
physicalalternative,anhermeneuticsoftheimpossibilityofinterpretationand demostraqueapenasaimpossibilidadedeumarespostarespondea
oftheboundariesofsensethatgivestheanalystprivilegedaccesstosomeother essaquestãodeabertura,quecolocaapeçaemseumovimentomais
kindofsense. próprio.
Keywords:metaphysics,deconstruction,interpretation,hermeneutics,sense
1
Blanchot,M.L’écrituredudésastre,Paris:Gallimard,1980,p.10.
128 Discurson.362007 “Whoisthere?” 129
Sabe-sequeoteatroelizabethanoinvariavelmentecomeçavacom
NelsondaSilvaJunior
DossiêFilosofiaePsicanálise
umacenamarcanteebrusca:trompetesdeumafesta,umabrigade Arecepçãodosentidoempsicanálise
casal ou um duelo, qualquer coisa enfim que fosse capaz de rom- esuacondiçãonegativa
percomopalavróriodistraídodopúblicoedespertá-loparaare-
alidadecênica.Trata-sedeumrecursoprosaicamentenecessário,se Aimpossibilidadederesponderàquestãodaprópriaidentidade
lembrarmosqueosteatrosdaépocanãopossuíampalco,equeos será, portanto, a condição negativa tanto da abertura da tragédia
atorescompartilhavamomesmoníveldosoloqueosespectadores. particular de Hamlet quanto daquela do espaço cênico como tal.
A questão “Quem está aí?” vale, assim, em princípio, meramente Pode-sedizerqueoespaçocênicoeaimpossibilidadedosabersobre
comorecursodeaberturacênica.Noentanto,eprecisamentenesse sisedescortinamnecessariamentejuntos.Comefeito,nãoésenão
sentido,estaéumaquestãodirigidaacadaumdaplatéia.Eventual- sobacondiçãodessaimpossibilidadequecadaumpoderáseencar-
mente,então,talvezenquantoapeloàsombradoespectro,aquestão naremHamletouemqualqueroutropersonagem.Nãoserá,assim,
poderá evocar a imensa escuridão em cada espectador. Aparente- meroacasoseessadifícilgeografiadaaberturacênicainteressarà
mentelançadoàsombradeumfantasma,ochamado“Quemestá psicanálise em uma de suas questões mais críticas enquanto uma
aí?”evocadefatoainquietantefamiliaridadedoespectadorcomo teoriadaescuta,asaber,aquelaquedizrespeitoàssuascondiçõesde
próprio espectro. Espectador e espectro! Como pudemos até aqui possibilidadederecepçãodosentido.Eacriticidadedetodaequal-
sistematicamentenãoverumaorigemcomumdeambasaspalavras? querteoriadarecepçãodosentidooriundadapsicanálisetalvezseja
Se“Quemestáaí?”sãoasprimeiraspalavraspronunciadasnapeça, homolólogaàcomplexaaberturadeHamlet.Defato,seascortinas
entãooespectadoraindanãoseesqueceudequemé,podendoser dopalcoseabremsomenteapartirdaimpossibilidadedaquestão
questionadodiretamentesobreessesaber.Temainda,emprimeiro, lançada por Bernardo, se as janelas ao outro se abrem apenas sob
planoofatodesaber-semédico,artesão,mercadorounobre,mas a condição da i-responsabilidade mais radical quanto à própria
nãopoderáresponderàquelaquestãocomtaisregistrosdeidentida- identidade,estamesmaeimpossívelquestãonãoseriaigualmentea
de.Naverdade,seaperguntaoatingir,oespectadorsabejáquenão condiçãodaaberturadaescutaanalíticaenquantotal?Ditodeoutro
temrespostaaoferecer,eque,nessesentido,seencontradiantede modo,emsuadependênciadaimpossibilidadederespostasobreapró-
umadívidaimpagável.Pode-sedizerque,apenasnessemomento,as priaidentidade,aescutaanalíticapossuiriaumaestruturahomóloga
cortinasdoespetáculoseabremdeveras.E,seotrágicodestinode nãoapenasàaberturadestatragédia,mastambémhomólogaàaber-
Hamletseabreapartirdaimpossibilidadedeumsabersobresi,essa turadosespaçoscênicoseficcionaiscomoumtodo(SilvaJunior15).
mesmaimpossibilidadeabreoespaçocênicoenquantotal.Masjá Seaquelequeescutadevenecessariamenteseralguémvulnerávela
serádifícillocalizaroespaçodetaiscortinas:estariamnopalco,se transformaçõesimprevisíveis,acondiçãomesmadetodaequalquer
abrindoparaumespaçoficcional,ouestariamnaalma,seabrindo escutapsicanalíticaseriaaincapacidadederespondersobresi;sua
paraespaçosatéentãoinvisíveis? incerteza de si, ou seja, para a psicanálise, um intérprete é aquele
cujofundamentoésuaexposiçãoradicalaopathos.
Note-se assim que, na experiência analítica, não somente o pa-
ciente deve ser pensado necessariamente como um outro para si,
130 Discurson.362007 “Whoisthere?” 131
NelsondaSilvaJunior
DossiêFilosofiaePsicanálise
analistaestariaexpostoaumaestruturadedesconhecimentocons- pretativa,enquantoumahermenêuticaperspectivistadodiscursodo
titutivadesuaescuta,estruturaqueéhomólogaàqueladespertada pacienteé,porassimdizer,umavocaçãoconstantedaescuta.
pelochamadodeaberturaemHamlet.Emquemedidaessedesco- Masoutrastradiçõeshermenêuticasresultamemcompreensões
nhecimentoépensadoteoricamentecomocondiçãodosentido,e, dacompreensãoigualmenteincompatíveiscomaexperiênciaana-
portanto, da linguagem, em psicanálise? Longe de ser pensado, tal lítica. No período bíblico, por exemplo – Orígenes, São Tomás de
desconhecimento é, ao contrário, sistematicamente silenciado por Aquino–,ahermenêuticasignificasobretudo,masnãoapenas,um
construçõesdaescutaanalíticacomoativamenteinterpretativa.Em conjuntoderegraspráticasdeinterpretaçãodepassagensobscuras
talconstruçãodointérprete,apsicanáliserecuperamodelosperspec- dostextossagrados.Talvocaçãohermenêuticatornaaescutaanalí-
tivistasdahermenêutica.Pois,aexemplodaperspectivanapintura, ticaevidentementeimpossível.APatrísticasupõeumarededesaber
ao considerar a metapsicologia como uma hermenêutica pensada pré-estabelecido que se constitui como fonte segura do sentido, o
como ponto de vista sobre o discurso, o analista necessariamente quenaturalmenteobliteraaestruturaabertadodiscursonaexpe-
se toma como idêntico a si mesmo, isto é, como a única fonte do riência analítica. Retornemos, contudo, à obliteração específica da
próprio olhar. A teorização psicanalítica pode, então tomar como hermenêuticaperspectivista.
certasascondiçõesdepossibilidadedessaescuta,posiçãodecerteza Olugardoanalistaoexpõeaumaestruturadedesconhecimen-
quesupõeuma“soberaniaquaseabsolutadointérprete”(Birman2, toconstitutivadesuaescuta(SilvaJunior16),dondeainquietante
p.232)emseugestointerpretativo.Nessesentido,aodescreveropro- familiaridadedasituaçãoanalíticacomochamadodeaberturaem
cessoanalíticoexclusivamentecomoumprocessodedeciframento, Hamlet:“Who’s there?”. É nesse sentido que, à medida que conce-
é possivel construir uma teoria do intérprete sobre a base de teo- beseusujeitodainterpretaçãocomoidentificadoaopontodevista
riasdaintepretação,istoé,sobrehermenêuticasfundamentalmente perspectivista,apsicanáliseretomaumatradiçãodelinguagemque
incompatíveiscomessaexperiência.Comefeito,istooidentificaa reforça a centralidade do sujeito da consciência. A compreensão
Édipo,quevenceomistériodaEsfingetransformando-oemenigma metafísica da linguagem presente em tal concepção hermenêutica
resolúvelpelaatividadedarazãoquenãoduvidadeseuspróprios oblitera,dessemodo,aaberturadointérpreteemseuprópriofun-
fundamentos(Loparic9),ondeacertezadaexistênciadointérprete damento,istoé,suaincertezadesi.
vale como condição de possibilidade da interpretação. Trata-se de EmSeretempo,Heideggerinterpretaainvestigaçãometafísicasobre
ummovimentodeauto-afirmaçãodointérpreteaindapresenteem osentidodoSerenquantoumquestionamentoquepensaoSerapartir
Lacan, que concebe a situação analítica segundo uma anamorfose dosentes.AopensaroSercomoente,contudo,ametafísicanecessaria-
(SilvaJunior14),ouseja,segundoomodelodeumaperspectivaen- mentepensaatemporalidadedoSerenquantotemporalidadelineare
criptada,eque,portanto,reforçaaconcepçãoativistadointérprete virtualmenteinfinita,feitadeumasucessãoinfinitademomentospre-
comoaquelequeédesafiadoadesvendarumsegredoparapoderver sentes.Istoseriaresultante,emúltimainstância,daestruturaexistencial
averdade. doDasein,que,acossadoporsuaangústiadiantedopoder-não-mais-
Namedidaemquepropõemodeloseestruturassobrepatologias, estar-aí,sistematicamentefogedesuapossibilidadeúltimaeobliteraa
enamedidaemqueapsicanálisepensataismodelosnoâmbitoda própriafinitudesemcessar,inclusivenocampodopensamentosobre
132 Discurson.362007 “Whoisthere?” 133
oSer.Apósa“virada”dosanos1930(dieKehre),acríticaheideggeriana Oconceitodepontodevistaresulta,assim,daexigênciadanecessi-
NelsondaSilvaJunior
DossiêFilosofiaePsicanálise
àmetafísicasedeslocadasubjetividadeepassaaconsideraraprópria dadenosresultadosdainterpretação.Será,comefeito,anecessidadede
históriadoSercomoaorigemdovelamentoaoprópriofundamento representaralgumacoisadeummodoenãodeoutroqueexigirá,retroati-
infundado. Com efeito, um voluntarismo essencialmente metafísico vamente,umaestabilidadenascondiçõesdeinterpretação.Adificulda-
aindavigoranaterminologiaheideggerianadeSeretempo,porexem- deestánofatodequetaiscondiçõesdizemrespeitoa“circunstânciasda
plo,napossibilidadedeumestar-aídecidido(Entscheidung)diantedo alma,donossocorpoedetodanossapessoa”.Poderíamosnospergun-
ser-para-a-morte(Sein-zum-Tode).Édessemodoqueasubjetividade tar:comopodeoautorpretenderconquistarestabilidadeemterritórios
autônomaaindavigentenoDaseinseráconsideradaposteriormente tãomovediços?Ora,omodelodoespectadorconstruídonaexperiên-
porHeideggercomoumvestígiometafísicoemSeretempo(6). ciavisualdaperspectivaartificial,técnicapictóricadesenvolvidapelos
Seránessesentidoqueoperspectivismopresentenaconstrução pintores fiorentinos sob a inspiração de um métodor (Silva Junior,
dointérpretecompartilharádovelamentometafísicoaoseupróprio 14),forneceaquiumaformadefixaçãodoqueparecia,atéentão,
fundamento,inviabilizandodeantemãoaexperiênciapropriamente essencialmentemóvelecambiante.Comauxíliodeprocedimentos
psicanalítica.Poistalsilenciamentoessencialmentemetafísicoobli- geométricos, os quais conferem simultaneamente universalidade e
teraqualquerpossibilidadedeumareceptividadeaosentido.Reto- anonimatoaolugardoespectadordaperspectiva,qualquerumpo-
memos,pois,aqui,osantecedenteshistóricosdahermenêuticapers- deriaverumapaisagemapartirdeumlugarfixo,fosseeleacessível
pectivistaempsicanálise,cujateoriametafísicadalinguagempode ounãoaosrecursosmecânicosdaépoca.Assim,aconcepçãoracio-
serconsideradaincompatívelcomsuaprópriaexperiência. nalistadahermenêuticaprocurasefortaleceraotomaraperspectiva
enquantoparadigma:namedidaemqueomodelodaperspectiva
passaadefiniroatodeinterpretação,olugardointérpretepodeser
Aperspectivanahermenêutica pensadocomoresultantedeumaconstruçãogeométrica.Umaco-
racionalistadeChladenius dificaçãogeométricadolugardointérpretepermitiriaumresultado
semprerepetívelemsuainterpretação.Detalmodoseriapossívela
Apesardoperspectivismotersidoummodelodosujeitodoconheci- umahermenêuticaatingirocaráterdeprevisibilidade,encontradona
mentoemLeibnizeKant,foiJohanMartinChladenius(1710-59)quem, ciência,edenecessidade,nalógica.
inspirado por uma vocação racionalista, explicitamente introduziu a
noçãodeperspectivanointeriordareflexãohermenêutica.Essanoção
épensadaporChladeniusenquantopontodevista:“Aquelascircunstân- Dosolipsismokantiano
ciasdaalma,donossocorpoedetodanossapessoa,quefazemcomque, aopsicanalítico
ousãocausaparaquenósrepresentemosparanósalgumacoisadeste
modo,enãodeoutro,queremoschamardepontodevista”2. Pensadacomoumateoriaracionalsobreosentido,istoé,como
uma hermenêutica de pressupostos estáveis e resultados necessá-
2 rios,caberiaconsiderarametapsicologiacomoumaconstruçãoem
Chladenius,Introduçãoparaacorretainterpretaçãodediscursoseescritosracionais,1742,
Apud,Grondin(3p.106) perspectiva sobre discurso. Porém, na medida em que o correlato
134 Discurson.362007 “Whoisthere?” 135
dessaconstruçãogeométricadointérpreteéumsolipsismoradical, comumaescutapsicanalítica.Nafilosofianietzcheana,anoçãofunda-
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DossiêFilosofiaePsicanálise
acompreensãodasituaçãoanalíticaapartirdaperspectivaartificial mentalmenteperspectivistadeinterpretaçãoassumeumamagnitude
éumsuicídioteórico.Comefeito,segundoomodelodehermenêu- ontológica(Grondin4),naqualficaráparticularmenteclaraarecusa
ticavigentenoperíodoracionalista,noqualseinsereChladenius,a detodaequalquerpassividadecomocondiçãodeexistênciadointér-
escuta analítica necessariamente compartilha a obliteração ao ou- prete:“Casoqueiramosabandonaromundodasperspectivas,seremos
trosolidáriadeumsujeitodoconhecimentokantiano(DeMauro destruídos”3.SegundoNietzsche,“operspectivismoéaquiloporcuja
10,p.87).Ditodeoutraforma,umavezqueoatodeconhecimento causacadacentrodeforça–enãoapenasohomem–constróitodo
foi,apartirdeKant,essencialmentepensadocomoatribuiçãoati- omundorestanteapartirdesi,istoé,omedecomsuaforça,oprova,
va de sentido por um sujeito ao seu objeto, esse ato exclui toda e oforma...”4.
qualquerpossibilidadederecepçãodosentido.Assim,umaescutaem Arecusadapassividadedointérpretefoilocalizadacomprecisão
perspectivaimplicaaadoçãodeummodelodesujeitonointeriorda nacríticaheideggerianaaoperspectivismodeNietzsche.Heidegger
experiênciapsicanalíticaduplamenteincompatívelcomessaexperi- comenta a passagem acima de modo a recuperar sua articulação
ência:porumlado,suprimedointérpretesuaincertezaexistencial; comavontadedepoder:
poroutro,retiradooutrooprivilégiodeserumafontedesentido.
Dessemodo,aestruturadeconhecimentopensadacomodisposição Nietzschefaladeperspectiva.Apenas,a“perspectiva”nãoéjamais
frenteafrenteentreumsujeitoeseuobjeto(Gegenstand)semostra asimpleslinhadavisão,naqualalgoécontemplado,masoolharpara
tributáriadeduasincompatibilidadesaprioricomaescutaanalítica. foraquevisaeinspeccionaascondiçõesdemanutenção-crescimento.
Porumlado,essadisposiçãodependedaeestárelacionadacoma (Heidegger7,p.269)
formametafísicadeinterpretaçãodoser,comsuarecusadepensar
osercomofundamentodeseupróprioatointerpretativo.Poroutro Diferentementedosolipsismodoolharkantiano,esteolharque
lado,talrecusametafísicasetraduzenquantoumarecusadetoda inspecionaebuscagarantirasprópriascondiçõesdemanutenção-
passividade, e, portanto, da possibilidade mesma de uma relação crescimentocompreendeseus“outros”comofontesdeinterpretação
comosentidopensadaenquantorecepção. análogasasipróprio.Nessesentido,eleultrapassaaimpermeabili-
dadekantianaaosentidoprovenientedeumoutro.Entretanto,sua
“visada”,istoé,suacompreensão,longedeseconstituirporesseou-
AperspectivaemNietzscheenquanto troolhar,sevêporeleconstantementeameaçada.Trata-se,portanto,
atividadeontológica decompreenderesseoutroolharnamedidaexatadesuperá-lo.Fica
evidente,porconseguinte,aimpossibilidadedeaceitarumarecepti-
Ora,aperspectivacontinuaaoferecer-secomoummodelofortena vidadedosentidoemtalcontextoteórico.Ora,contrariamenteaesta
históriadahermenêutica,aindaqueestatenharompidocomacentrali-
dadedarazãonacompreensãodosujeito.Elaofaz,contudo,semabrir
mãodaobliteraçãopropriamentemetafísicaemrelaçãoaospróprios 3
ApudHeidegger7,p.271.
fundamentose,portanto,mantendointactassuasincompatibilidades 4
Nietzsche,F.DerWillezurMacht,n.636.ApudHeidegger7,p.271.
136 Discurson.362007 “Whoisthere?” 137
hermenêuticadavontadedepotênciadointérprete,naescutaanalí- EmSantoAgostinho,otemoraDeuséapresentadocomocondi-
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tica,arelaçãocomalinguagemexigeavulnerabilidadedointérprete çãodepossibilidadedacompreensãodassagradasescrituras.Separa
diantedoimprevisível,exigeaincertezaenquantofundamentome- Agostinhoaalmaéfeita(facticiaestanima),fabricadaartificialmen-
todológico. teporDeusdomesmomodoqueosídolossãofeitospelospagãos
Todavia,sepoderiadizercomrazãoqueashermenêuticaskantia- (Agamben1,p.18),entãoelanãoésoberanasobresiprópria.Dessa
naenietzscheananãoinspiraramobrasimportantesnaabordagem maneira,SantoAgostinhoatribuiàsdisposiçõesafetivasincontro-
dapsicanálise.Ora,apesardenãoteremagidodemododireto,isso láveis no intérprete um estatuto de condição de possibilidade da
nãosignificaquearecusametafísicaemacolheraincertezadoin- interpretação.Comefeito,nemotemornemafépodemsercriadas
térpretetenhadeixadodemarcarprofundamenteasrelaçõesentre pordecisão.
hermenêuticaepsicanálise.Haveriaoutrastradiçõeshermenêuticas, Aféeraumagraçadivinaquepodiaserrecebida,acolhida.Nesse
tradiçõesessencialmenteabertasàincertezaidentitáriadointérprete sentido, um intérprete era entendido como alguém sem completo
capazes de inspirar a psicanálise? Com efeito, uma retomada his- domíniosobresuascondiçõesinterpretativas,emcujacompreensão
tóricamaiscuidadosapermitelocalizarmomentosdetematização areceptividadecontavatantoquantoaatividade.Note-sequeessa
dointérpretenosquaissuaessencialincertezadesinãoestávelada, faltadecontrolenãoerapensadaenquanto“ruído”dainterpretação,
pelocontrário,elaéapresentadacomocondiçãodaverdadedain- mascomoumadesuascondições.Istosignificaqueainterpretação
terpretação.Assim,noseiodoperíodoteológicodahermenêutica,a aindadependia,emSantoAgostinho,deelementosforadocampo
passividadedointérpreteseapresentavacomoumadascondições davontadedointérprete,ouseja,deelementosquesupunhamnesse
últimasdetodainterpetaçãodostextossagrados. intérprete uma relação de diferença consigo.Vejamos, agora, uma
segundatradiçãohermenêutica,tambémdeixadaensouffrancepela
teorizaçãopsicanalíticaarespeitodesuasprópriaseparadoxaiscon-
ApassividadenahermenêuticadeSantoAgostinho diçõesderecepçãodosentido:Schleiermacher.
Com que disposição deve a pessoa aproximar-se da interpretação de
passagens não transparentes da Sagrada Escritura: no temor de Deus, no Oincompreensívelcomoorigem
únicocuidadodeprocurarnasEscriturasavontadedeDeus;impregnadode dosentidoemSchleiermacher
piedade,paraquenãotenhaprazeremcontendasdepalavras;revestidode
conhecimentodalinguagem,paraquenãofiquepresoempalavrasemanei- Se,emAgostinho,aincertezadointérpretesefundanoestatutode
rasdefalardesconhecidas...(SantoAgostinho,DeDoctrinaChristiana ) 5
criaturadohomem,Schleiermacher,aolevaroracionalismoaoseu
limiteextremo,abre,porumaviainversa,umespaçometodológico
inéditoaodesconhecimentonatarefadainterpretação.
Suanovaconcepçãodehermenêuticaapenaspodeserealizar,se-
gundoJeanGrondin,atravésdeumainversãocompletanahierar-
5
ApudGrondin3,p.72. quiadocompreensíveledoincompreensível:
138 Discurson.362007 “Whoisthere?” 139
Acompreensibilidadeeraantigamenteoprimárioouinato,anão- dificado, kantiano, ao seu aspecto criativo, determinado pelo uso
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jo exigiria, por assim dizer, uma hibridicidade correspondente na tica,ondeopressupostodeumaidentidadedefundoentreointér-
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própriaciênciasobreelefundada.Cabenotar,contudo,queparao preteeseuoutrovalecomogarantiadeumacompreensãodotodo.
autorasemânticadodesejoseriamaisfortedoquesuaenergética Aaproximaçãoentreapsicanáliseeahermenêuticasefariaaqui
pulsional, o que nos permite questionar: que teoria da linguagem segundoumacompreensãoessencialmentemetafísicadalinguagem,
fundamentatalsemântica?Ecomotalteoriaconcebeasrelaçõesdis- ambas partilhando uma cegueira ativa quanto à precariedade dos
cursivasentreumsujeitoeseuinterlocutor? própriosfundamentos.Aadoçãodeumamodalidadeapenasrelativa
RicoeurseinspiranomodelodatraduçãopropostoporDilthey: dealteridadeexigequeointérpretedodiscursodooutromantenha
trata-sedeumtrabalhodetransposiçãodeumalínguaaoutra,de sua própria posição no discurso como um elemento sobre o qual
transformaçãodoincompreensívelemcompreensível.Essemodelo não se pode falar; a certeza sobre a própria identidade é algo que
concebeatraduçãocomoumtrabalhoquebuscatranformaroes- deveficarforadadiscussão.Jáaadoçãodeumamodalidaderadical
trangeiroemfamiliar,supondo,noentanto,desdesempre,algode dealteridadeexige,porsuavez,quesecoloqueincessantementeem
familiarnesteestrangeiro,istocomoumacondiçãodepossibilidade questãoaprópriacompreensãodooutro.
daprópriaidéiadetradução.Assim,talconcepçãodehermenêutica Assim, a hipótese de Paul Ricoeur, segundo a qual a psicanálise
concebeumamodalidadeapenasrelativadealteridade,ondeaes- teria uma constituição teórica mista, entre uma energética e uma
trangeiridadedooutro,porprincípio,jamaispoderáserabsoluta,já hermenêutica,nãochegaareconhecer,emsuaabordagembipartite,
queelasóseapresentaenquantoumaanalogiadoprópriosujeito.O umavocaçãopropriamentehermenêuticadaenergéticafreudiana.
problemacomessaconcepçãodehermenêuticaéquetalmodalida- ContrariamenteàconcepçãodeRicoeur,podemosconceberaener-
derelativadealteridadeserásempreconstitutivamentefechadaao gética pulsional igualmente como uma hermenêutica, e conceber
radicalmente outro, essencialmente impermeável, portanto, à sur- os limites ao campo do sentido impostos ela energética pulsional
presaeàprópriaincerteza. enquantoumelementoindissociáveldaprópriaexperiênciadosen-
Conformevimos,nasituaçãoanalíticaaincertezadeumintérpre- tido.Issosignificariaadotarumaconcepçãodehermenêuticacom-
teemrelaçãoàprópriaidentidadeadquireumsentidoparaalémde patívelcomainconsistênciaeaincertezadointérprete,istoé,uma
umacontingênciafatual:essaincertezanãoéumempecilhoàboa hermenêuticaabertaaonão-sentidocomocondiçãodosentido.Se-
interpretação;pelocontrário,elaseconstituicomoumacondiçãode gundonossahipótese,portanto,aenergéticafreudianaé,nãoentão,
possibilidadedaprópriainterpretaçãoepodeserconsiderada,por- apenasumahermenêuticaprivadadapsicanálise,mastambémum
tanto,comoumaincertezametodológica.Talincertezametodológica, limiteàumaconcepçãodehermenêuticacomo“ciênciadosentido”
assimcomoadúvidaarespeitodosfundamentosdaprópriateoria, emsentidoestrito.
nãoseconfundecomaincertezasobreestaouaquelahipóteseinter-
pretativa.Aincertezametodológicadizrespeitoàpróprianatureza
dodiscursohermenêuticoemseupoderinterpretativo.
Umahermenêuticaderivadadapsicanálisepensadanostermosde
PaulRicoeurdesembocarianofechamentodiltheyanodahermenêu-
142 Discurson.362007 “Whoisthere?” 143
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DossiêFilosofiaePsicanálise
darecepçãodosentido tido,assimcomodoconjuntodepossibilidadesquevenhaagerar
a seu próprio respeito.Assim, diferentemente da incerteza quanto
Aquelequerecebeosentidonãoorecebesenãosobacondiçãode aosentidodeumfragmentodelinguagem,aincertezadesiexpõe
uma dupla exposição. Primeiramente, uma exposição à incerteza do ointérpreteàprópriavulnerabilidadeexistencial,poisoqueseabre
sentido,que,comosesabe,éacondiçãomesmadequalquerprojeto como questão é sua existência. Sob tal condição, receber um sen-
hermenêutico.Comefeito,sejacomoartedivinatória,sejacomociência tidoqualquer,ousarescutar,significaseexporaumrisco,umris-
dedecifração,ahermenêuticapressupõesempreaincertezaemes- coexistencial,istoé,umriscodealteração,eportanto,daperdade
moodesconhecimentodosentidodeumfragmentodalinguagem, si.(Hamacher5).
oqualseráobjetodeumatentativadedeciframento. Setalriscodeperdadesiéumacondiçãodaescutaanalítica,isto
Conformevimos,aexplicitaçãodetaldesconhecimentoenquan- exigequeserepensealinguagemcomoinstrumentodecomunicação
topremissaéaprincipalconquistadahermenêuticaemseuperíodo eateoriacomointrumentodoolhar.Defato,conformedemonstrou
racionalista, na qual ela assume para si a vocação de um método. HeideggeremSeretempo,naidéiadeinstrumentoà-mãoresidem
Contudo,háumainsuficiênciafundamentalnessatradiçãoherme- herançasmetafísicas,oqueatornainviávelcomomodelodeuma
nêuticaracionalistaemrelaçãocomonão-sentido,poissuaincer- linguagemcapazderecepçãodosentido.Anaturezacríticadaex-
tezaserestringeàspossibilidadesdesentidodofragmentoescolhi- periênciaanalíticasedesdobraesetraduzpelaquestãodesaberse
do,dentreasquaiscaberáumaescolhadointérprete.Ointérprete, setratadeumateoriasobreodiscursodooutro,oudeumateoria
em tal tradição, não somente escolhe uma ou outra possibilidade abertaaoutrodiscurso.Pois,oriscodaalteraçãodependedoconví-
desentido,maséigualmenteresponsávelporgeraroconjuntode viocomonão-familiar,oinfamiliar.FreudabordaotemadaUnhei-
todasassuaspossibilidades,demodoquetodaalteridadesóépen- mlichkeitsemabordarexplicitamentesuafacetaconstitutivadetoda
sadaapartirdoprópriosujeito,semqueeleprópriosealtereemseu equalquerexperiêncialingüística.Contudo,conformedemonstrei
gestointerpretativo.Emtaiscondições,estáexcluídaahipótesede anteriormente(SilvaJunior15),asombradaduplaexposiçãosubjaz
umarecepçãodosentido:aexposiçãogeradapelameraincertezado seutextocomoumespectrosilenciosoefiel.
sentidodosfragmentosdelinguagemnãosomentenuncagarantea Aexposiçãoexistencialenquantoumacondiçãodepossibilida-
possibilidadedesuarecepção,comotambémasuprimenecessaria- dedainterpretaçãoseráagrandeconquistadoperíodohistórico-
mente. ontológico da hermenêutica, em que a tal exposição máxima do
Paraquesegarantatalpossibilidadederecepçãodesentido,deve- intérprete garante a possibilidade da reinterpretação da história
serecorreraumaoutraexposição,umaexposiçãoanterior,aexposi- dametafísica,sejaenquantoahistóriadeumavontadedepoder
çãodointérpreteàprópriaincerteza,àincertezadesipróprio.Essa (Nietzsche), seja enquanto aquela de uma fuga compulsiva do
segunda modalidade de exposição já não pode ser concebida nos pensamentodiantedaprópriavulnerabilidade(Heidegger,emSer
mesmos moldes da primeira, pois o intérprete deve aqui se haver etempo).Emoutraspalavras,será,paradoxalmente,aimpossibi-
lidade da interpretação, o limite do sentido, aquilo que garantirá,
doravante,ointérpretecomoaquelequepodeteracessoaosentido.
144 Discurson.362007 “Whoisthere?” 145
Conformevimos,nainterpretaçãoheideggeriana,ametafísicase Ora,apré-existênciadalinguagemaosujeitoéumdoselemen-
NelsondaSilvaJunior
DossiêFilosofiaePsicanálise
defineporinterpretaçõesdoserapartirdosentescomopresençae tosquefazempartedacomplexaviradadosanos1930,períodoque
extensãoinfinitas,oquesignificaexcluirsistematicamenteafinitude representou, para Heidegger, a superação da linguagem metafísica
dainterpretaçãodoser.Comefeito,osentidocríticodeSeretem- dasubjetividadepresenteemSeretempo.Seaanterioridadedalin-
po,emseuprojetodereinterpretaçãodahistóriadasinterpretações guageméoquecaracterizaanaturezadointérpreteemAgostinho,e,
sobreoser,temsuaarquiteturasustentadaetambémlimitadapela emúltimainstância,seucaráterdecriatura–aalmahumananãoéa
questão:queméesteentequecompreendeoser?Trata-sedeuma origemdesiprópria–seráprecisamenteessecaráterdenão-sobera-
pergunta fundamentalmente dirigida a si próprio.“Who is there?” niasobresi,deonovoelemento,emHeidegger,desuacompreensão
apenasdesdobraseusentidoapartirdaimpossibilidadedesuares- dalinguagem.
posta,comoumaespéciededívidaimpagável.Dívida,enãodúvida Para o segundo Heidegger, a linguagem precede o ser humano.
apenas,poisadúvidapedeumasoluçãoteórica,emprincípiosolu- Essereposicionamentoretira,nocampodahermenêutica,acerteza
cionávelpeloexercíciológicooupelodesenvolvimentocientífico,ao e segurança do intérprete. Partindo do questionamento heidegge-
passoqueadívidaésempreumaquestãomoral.Sobreesseaspecto riano, tratar-se-ia, então, de saber de que modo a estruturação da
invariavelmentemoraldadívida,cabenotarque,nalínguaalemã,a relaçãodeconhecimentopensadanadisposiçãofrenteafrenteentre
mesmaexpressãosignifica,segundoocontexto,estaremdívidaouser umsujeitoeseuobjeto(Gegenstand)dependedeeestárelaciona-
culpado:schuldigsein.AperguntadeaberturadeHamletfazduvidar dacomaformametafísicadeinterpretaçãodoser,comarecusade
doquenãopodeserobjetodedúvida,gerandoculpa:semepergunto pensar o ser como fundamento de seu próprio ato interpretativo.
quemsou,possonãosaber,portanto,sesou.Assim,precisamentea Arecusametafísicaempensaroprópriofundamentosetraduzem
questão“Who’sthere?”poderáreceberumlugardedestaqueemSer umarecusadapassividade,eliminandoaprioriapossibilidadeuma
etempo(Heidegger8,§56a§58)naestruturadoapelo.Trata-se,de hermenêuticapensadacomorecepçãodosentido.
fato,daúnicaquestãocapazdesustentarumestatutoontológico,da Pensarapassividadenaincertezacomocondiçãodaescutaconvi-
únicalocuçãocapazdecompartilharafinitude,assimcomoosilên- daoanalistaaumaaberturaparaainexistência,paraanegaçãodesi,
cioangustiado,semvelá-lasobummantodeesquecimento,como umapreservaçãodaiminênciadaprópriaanulaçãosemaqualnada
todasasoutraslocuções.Aquelequechamasedistanciadetodoreco- podeserrecebido.Nessemesmosentido,apassividadenãopodeser
nhecimento(“DerRuferdesRufes(...)hältjedesBekkantwerdenvon nomeada,oquenãosignificaqueelaestejaexcluídadalinguagem.
sichfern”,ibidem,p.274).Aquestão“quemestáaí?”gozaportantode Simplesmentedeixariadeser,casoadmitisseobedeceràsinjunções
umestatutoexcepcionalnesselivro,quecondenacomofalsastodas eordensdeumsujeitosoberanosobreseudizer.Umanalistadeve
asfalaspossíveiseaceitaoficialmenteapenasosilenciarcomomodo escutarnapassividadedesuaincerteza.Falarempassividadenain-
dafalaquenãoseescondedaprópriamorte:“Aconsciênciamoral certezaserve,assim,antesdemaisnada,parapensarmosumacon-
falaapenaseconstantementenomododocalar-se.”(“DasGewissen diçãodalinguagem,e,aindamaisprecisamente,umacondiçãoda
redeteinzigundständigimModusdesSchweigens”,ibidem,p.273). recepçãodosentido.Issosupõeumapré-existênciadooutronoma-
Precisamente ao não fugir da falta de sentido que lhe concerne, a terialdapalavraanalítica,existênciaanterior,portanto,àalteridade
angústiadoDaseinéquedarásentidoàperguntaqueadespertou. explicitamentenomeadaouinvocadanodiscursoconsciente.
146 Discurson.362007 “Whoisthere?” 147
ComentandoumtemacaroaPaulCelan,aquestãodamatériado 15.–––––.“AficcionalidadedaPsicanálise.HipóteseapartirdoInquietanteem
NelsondaSilvaJunior
DossiêFilosofiaePsicanálise
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DossiêFilosofiaePsicanálise Discurson.362007
Ateoriadaspulsõescomo
ontologianegativa
VladimirSafatle
ProfessordoDepartamentodeFilosofia
daUniversidadedeSãoPaulo(USP)
Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa
Trata-se aqui de defender a tese a respeito do caráter ontológico da teoria
psicanalíticadaspulsões.Oreconhecimentodetalcaráterontológicoseráuma IchbindesGeist,
dascontribuiçõesmaioresdepsicanalistascomoJacquesLacan,enãoestáem derstetsverneint.
contradiçãocomcertosmodosdeencaminhamentodoproblemadoestatuto Goethe
daspulsõesemFreud.Noentanto,ateoriadaspulsões,aomenosemsuaversão
lacaniana, exige algo como uma ontologia negativa, ou seja, uma ontologia
fundadanoreconhecimentodairredutibilidadeontológicadanegação. “Eutenhoumaontologia–porquenão?–comotodomundotem
Palavras-chave:pulsão,angústia,morte,negação,ontologia uma,ingênuaouelaborada”(Lacan26,p.69).Estafrasenãopoderia
passar despercebida, ainda mais sendo proferida por um psicana-
Thetheoryofdriveorinstinctasanegativeontology lista.QueJacquesLacanadmitaterumaontologia,comoaparente-
ThispaperisadefenceofLacan’sontologicalinterpretationofFreud’stheory menteseriaocasodetodomundo;queeleadmitaissoemumtom
ofdriveorinstinctasbeingcompatiblewithcertainaspectsinthewaywhich absolutamentenatural(porquenãotê-la?),eisalgoquenãodeixade
Freuddealswiththeproblemofdriveorinstinctinhisowntheory.Accord- noscolocarquestões.Poisqualpoderiaser,afinal,afunçãodeconsi-
ingtoLacan,anegativeontologyisthenecessarycomplimenttoFreud’sown deraçõesdenaturezaontológicaparaumapraxisaparentementetão
considerations.
vinculadaàparticularidadedocasoclínico,comoapsicanálise?Por
Keywords:driveorinstinct,distress,death,negation,ontology
quedeveríamosprocuraralgumaespéciederelaçãoentreadireção
do tratamento que orienta a clínica analítica e uma ontologia? E,
principalmente,quetipodeontologiaseriacapazdefornecer,àpsi-
canálise,ossubsídiosimplicadosnadireçãodotratamento?
Taisquestõestêmporfinalidadeexporasconseqüênciasdeumahi-
pótesemaiorarespeitodaexperiênciaintelectuallacaniana.Trata-sede
afirmarqueumadascontribuiçõesmaisimportantesdeLacanconsiste
nadefesadequeapsicanáliseésolidáriadeumaarticulaçãocomplexa,
porémdecisiva,entreclínicaeontologia.Trata-sedeumamaneiraum
poucomaisarriscadadedizerqueaorientaçãodaclínicaanalíticaéde-
pendentedeumnúcleoinvariáveldeconceitosquecompõeocampo
doqueseconvencionouchamarde“metapsicologia”.
152 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 153
Éverdadequetalafirmaçãopodenãoparecerevidente,aindamais Nessesentido,esteartigofazpartedeummovimentomaisamplo
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emumaépocacomoanossa,naqualnosacostumamosaaceitarsem de pesquisa que consiste em avaliar algumas características maio-
reservas o discurso da“soberania da clínica”, soberania legitimada resquenortearamareconstruçãolacanianadametapsicologia.Tais
pelarealidadeurgentedosofrimentoquelevaosujeitoàanálise.É características só ficarão evidentes se abandonarmos a expectativa
comoseaeficáciaterapêuticaemrelaçãoaumacategoriafenomê- tradicionaldeencontrar,nonúcleodoprojetolacaniano,encontrar
nicaextremamentenormativacomoo“sofrimento”fossecondição umsimplesmovimentodeleituraestruturalistadoinconscienteeda
suficienteparaasseguraravalidadededispositivosclínicos.Nesswe dinâmicadesuasformações.Talvez,oprojetolacanianoconsista,na
sentido,láondeumapráticamedesuavalidadeapartirdaeficáciaem verdade,emdotarametapsicologiadeumestatutoontológicoque
realizardisposiçõesnormativasvariáveisdeacordocomcontextos sesitueparaalémdetodoequalquerestruturalismo.Esseestatuto
sócio-históricos,nãohálugarparainsistirnaarticulaçãoentreclí- ontológicoseinsinuatodasasvezesqueLacantomaapalavrapara
nicaeontologia.Lá,ondeumaclínicasemedeinteiramenteatravés falardo“serdosujeito”(eporqueumpsicanalistadeveriafalardo
desuacapacidade“curarosofrimento”,nãohá,defato,espaçopara ser?)ouparafalarsobrea“essênciadoobjeto”dodesejo,istosem
alémdaimplementaçãodisciplinardedispositivosnormativos1. deixardecompletar:“Vocêperceberamqueeufaleideessência,tal
No entanto, esta não era exatamente a perspectiva que animou como Aristóteles. E depois? Isto quer dizer que estas palavras são
JacquesLacan.Podemosdizerquesuapeculiaridadefoiinsistirna totalmenteutilizáveis”.(Lacan27,p.55)
relaçãoentredireçãodotratamentoereconhecimentodadignidade Contudo,paraencaminhardemaneiraadequadaestareflexãoso-
ontológica de certos conceitos metapsicológicos, especialmente o breateorialacanianadapulsão,faz-senecessárioretornaraFreuda
conceitodepulsão(Trieb).Daíafirmaçõessegundoasquaisapulsão fimdeidentificaraquiloque,nointeriordalongaelaboraçãofreu-
seria“umanoçãoontológicaabsolutamentecentralquerespondea dianaarespeitodoestatutodaspulsões,serádecisivoparaaexperi-
umacrisedaconsciênciaquenãosomosforçadosaapreenderple- ênciaintelectuallacaniana.
namente,jáquenósavivemos”(Lacan23,p.152).Ateoriadapulsão
seriaassimoqueorienta,demaneirainvariável,talcomooquese
assentasobreumaontologia,aclínicaemsuasaspiraçõesdevalida- Daenergéticaàmetafísicadamorte
de.Istoapontodeamodificaçãoouabandonodeateoriadapulsão
implicarnecessariamente,paraLacan,naperdadaessencialidadeda Sabemos como, para Freud, o recurso a uma teoria das pulsões
práticaanalítica. enquantoGrundbegriffmarcavaocoraçãodareflexãopsicanalítica
1
comumadimensãoespeculativaindelével.Mesmoque,emalguns
AafirmaçãocanônicadeMichelFoucaultarespeitodasilusõesda“soberaniadaclínica”
valeparaestecontextodediscussões:“DesdeoséculoXVIII,amedicinatemtendênciaa
momentos, Freud aparentemente defenda um certo reducionismo
narrarsuaprópriahistóriacomoseoleitodosdoentestivessesidosempreumlugarde materialistaaoesperarodiaemque“todasnossasconcepçõespro-
experiênciasconstanteeestável,emoposiçãoàsteoriasesistemasqueteriamestadoem visórias(Vorläufigkeiten),empsicologia,poderãoseformarapartir
permanentemudançaemascarado,sobsuaespeculação,apurezadaevidênciaclínica”.
Naverdade,tudosepassacomose“NaauroradaHumanidade,antesdetodacrençavã,
desuportes(Trägen)orgânicos”(Freud13,pp.143-4),nãodevemos
antesdetodosistema,amedicina[residisse]emumarelaçãoimediatadosofrimento esquecerquãoespeculativaeraafísico-químicaenergéticaqueservia
comaquiloquealivia”(Foulcault,12,pp.59-60). debaseparaaformaçãodohorizontecientíficopresentenostextos
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Lacanaafirmar,semmuitasmediações,que“aenergéticaétambém Taldualismoserásuspensoapartirdaconstituiçãodacategoriade
umametafísica” (Lacan21,p.80).Sevoltarmososolhosaotrajeto “narcisismo”,jáqueonarcisismopermitiráaFreudreconhecerque
daformaçãodoconceitodepulsãonostextosfreudianos,veremosa “aspulsõesdeautoconservaçãotambémeramdenaturezalibidinal,
naturezadessadimensãoespeculativadateoriadaspulsões. erampulsõessexuaisquehaviamtomadoporobjeto,aoinvésdos
Quandoaparecepelaprimeiravezdemaneiraexplícita,nosTrês objetosexteriores,opróprioeu”2.Dissosesegueaafirmaçãodeque
ensaiossobreateoriadasexualidade,otermopulsãobuscadarconta
dasfontesinternasdeexcitaçãoàsquaisoorganismonãopodeesca- Bastasimplesmenteadmitirqueaspulsõessãoparecidasqualitati-
par.Dentretaisfontesdeexcitaçõesinternas,asexualidadejáapare- vamenteequedevemseusefeitosunicamenteàsgrandezasdeexcitação
cecomoelementomaiordaspreocupaçõesfreudianas,emboranão (Erregungsgrössen)quecadapulsãoveiculaou,talvez,acertasfunções
sejaafonteexclusiva.Jánonão-publicadoProjetoparaumapsicolo- destaquantidade”3.
giacientífica,Freudlembrava,aofalarda“urgênciadavida”(Notdes
Lebens)enquantoexcitaçãointernacontráriaaoprincípiodeinércia Comoveremos,trata-sedeumareduçãoextremamentesintomáti-
doaparelhopsíquico,queafomeearespiraçãotambémeramfontes cadadiferençaqualitativaàsgrandezasquantitativas.Porfim,odua-
de tal excitação. Nessa primeira abordagem sobre a pulsão, Freud lismopulsionalvoltará,demaneiratotalmentereconfigurada,apenas
aindainsistiráqueumadesuascaracterísticascentraiséadeseruma apartirdotextoParaalémdoprincípiodoprazer.Énessemomentode
forçaconstante,enãoapenasforçadeumimpactomomentâneode reconfiguraçãoprofundatambémdanoçãodelibidoqueFreudfará
faltasentidapeloorganismo.Deondesesegueadefiniçãocanônica maisapeloareflexõessobreoconceitodeTriebdesenvolvidasapar-
da pulsão como“representação psíquica (Psychische Repräsentanz) tirdatradiçãoidealistaalemã,emespecialnaobradeSchopenhauer
deumafonteendossomáticadeexcitação”. (lembremoscomo,antesdeSchopenhauer,oconceitodeTriebdesem-
Atéaqui,nadaindicaanecessidadedetransformaroconceitode penhaumpapelimportante,entreoutros,emFichteeHegel).
pulsãoemfundamentodepreocupaçõesespeculativas.Àprimeira Dessaforma,anoção-chaveparaacompreensãodanaturezada
vista,Freudpareceestarmuitomaispertodeumaexplicaçãomate- energiapulsionalélibido.Freudadefinenormalmentecomoforça
rialistadosprocessoscausaisdoaparelhopsíquicoou,ainda,deuma quantitativamentevariávelquepermiteacomparaçãodeprocessos
perspectiva,classicamenteimplantadanamedicinadesdeaomenos etransposiçõesnodomíniodaexcitaçãosexual.Aotentarcompre-
Broussais,quecompreendeaexcitaçãocomoofatovitalprimordial. enderoimpulsodeterminanteparaainteligibilidadedacondutaa
Noentanto,osproblemasvinculadosàdefiniçãodoestatutodaspul- partirdaposiçãodeumaenergiaendossomáticaplásticaquantitati-
sõesficamvisíveisapartirdomomentoemqueFreudprocuradefinira vamentecaracterizada,Freudatualiza,àsuamaneira,umalongatra-
naturezadaenergiaresponsávelporessaexcitaçãointernaconstante. diçãoracionalistaqueprocuravadefinirapsicologiacomo“físicado
SabemoscomoFreudparteinicialmentedeumadistinçãoentre sentidoexterno”,ouseja,comooquepermite“determinarascons-
aenergialibidinalprópriaàsexualidadee“outrasformasdeener-
giapsíquica”,comoaquelasemjogonasnecessidadesfisiológicasde 2
Freud,GXIII,p.231
autoconservação;distinçãoestafundadoradeumprimeirodualis- 3
Freud,GX,p.216(tradbras,p.149)
156 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 157
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Canguilhem7,p.370).Devemoslernestaperspectivasuadependên- obterumaestimativa(Schätzung),aomenos,relativadestas”6.Mas
ciaepistêmicadapsicofísicadeFechner,paraquem“osprincípios aafirmaçãodizoqueelaquerdizer.Seoproblemadaestimativa
gerais da psicofísica envolvem apenas a manipulação de relações éafetadoporumacláusuladerelativização,éparalembrarqueo
quantitativas”4,assimcomodeHelmholtzeDuBois-Reymond,para ponto realmente importante diz respeito à apreensão do trajeto,
quemsóhá,noorganismo,forçasfísico-químicasematuação5. do“destino”dosquantadeenergialibidinal7.Naverdade,istode-
Poroutrolado,essevocabuláriodaenergiaedaforça,longede monstracomoopontodevistaeconômicopermiteaFreudpen-
serumamerametáforacientíficaqueimpediriaodesvelamentodo saressaplasticidadeprópriaaumaenergiapsíquicacaracterizada,
verdadeirocaráterdapsicanáliseenquantopráticaassentadanouso principalmente, pela sua capacidade de ser transposta, invertida
clínicodeprocessosdeauto-reflexão(motivodeumalongatradição (Freudusa,nestescasos,otermoVerkehrung),desviada,recalcada,
decríticaàmetapsicologiaqueenglobanomestãodísparesentresi em suma, deslocada de maneira aparentemente inesgotável. Esse
quantopodemserPolitzer,HabermaseRicoeur),é,naverdade,ama- princípiodedeslocamentoconstantelevaFreudacaracterizarini-
neiraqueFreudencontraparaindicarovínculodapulsãoàdimen- cialmente a libido como energia que circula livremente,“energia
sãodeumsoloirreflexivo(eaindanãoestruturado)paraaconduta livre”emrelaçãoàquiloquepoderiabarrartalmovimento,ouseja,
eopensar. emrelaçãoasualigação(Bändigung)atravésdasubsunçãoarepre-
Lembremos,aesterespeito,queacaracterizaçãodalibidocomo sentações(Vorstellung).
quantum de energia não é feita tendo em vista alguma forma de QueFreudtenharefletidosobretalplasticidade,demaneirapri-
“mensuração”deprocessospsíquicosentresi.ÉverdadequeFreud vilegiada,apartirdefenômenosligadosàsexualidade,eisumpon-
defineopontodevistaeconômico(que,juntamentecomotópicoe to absolutamente central. De fato, ele quer mostrar como há, no
odinâmico,compõeaperspectivadeapreensãodefatosmetapsi- sujeito, o que não se deixa determinar de maneira reflexiva como
cológicos)comosendoaqueleque“seesforçaemseguirosdestinos representaçãodaconsciência,háoquesósemanifestademaneira
polimórfica, fragmentada, e que encontra seu campo privilegiado,
necessariamente,emumasexualidadenãomaissubmetidaàlógica
4 da reprodução, encontra seu campo em um impulso corporal que
Fechner,11,p.9.Lembremosaindacomoanoçãodeenergiacinética(LebendigeKraft)
deFechnerfoiimportanteparaaconstituiçãodoconceitofreudianodepulsãoemsua desconhecetelosfinalistas,comoéocasodareprodução.Daíporque
tentativadesuspenderodualismoentresomáticoepsíquico.Tendoemvistatalsus-
pensão,queFechnerafirma:“Energiacinéticaempregadaparacortarmadeiraeenergia
cinéticausadanopensamentonãosãoapenasquantitativamentecomparáveis,mascada
umapodesertransformadanaoutrae,conseqüentemente,ambosostiposdetrabalho
sãomensuráveis,emseuaspectofísico,porumareferênciacomum”(idem,p.36) 6
Freud,GX,p.280
5
Nesse sentido, lembremos do que diz Canguilhem:“Se acrecentarmos que Descartes, 7
Sobreousodotermo“destino”nestecontexto,lembremosque:“Eleindicaqueoque
mesmonãosendoexatamenteoinventordotermoedoconceitodereflexo,aomenos está em jogo em um ser humano no que diz respeito a suas pulsões é propriamente
afirmou a constância da ligação entre excitação e reação, vemos que uma psicologia humanoeprodutodeseressingulares,istoaomesmotempoqueumapulsão,devido
entendida como física matemática do sentido externo começa com ele para chegar a aofatodeseuscomponentesescaparemaosujeitoqueédelaoteatro,aparececomo
Fechner,graçasaosocorrodefisiologistascomoHermannHelmholtz”(idem,p.370). anônima,despersonalizada,a-subjetiva”(David-Ménard8,p.207)
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alibidoéinicialmentecaracterizadacomoauto-erótica8,inconsisten- diversodasensibilidadeemrepresentaçõessintéticas,entãodiremos
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teporestarsubmetidaaosprocessosprimáriose,porfim,perversa queapulsãosósemanifestaàconsciênciaatravésdasualigaçãoem
(nosentidodeterseusalvosconstantementeinvertidos,desviadose representaçõesdeobjeto.É,noentanto,umaligaçãofrágil,marcada
fragmentados). pelavariabilidadeestruturaldoquenãosedeixaobjetivardemanei-
Comoveremosadiante,essalibidoé,naverdade,solidáriadeum raessencial;talligaçãoéoperadaporumarepresentaçãoincapazde
conceitodenaturezapensadocomocampodoqueganhainteligi- apresentaroquenãosedeixarunificar,ouainda,oquenãosedeixa
bilidade a partir da redução de seus fenômenos ao conceito geral pensarnointeriorderelaçõesestruturadas.
de“energia”. No entanto, ao privilegiar o campo da sexualidade e Éapartirdesseproblemaarmadoquedevemosabordarasques-
ao determinar sua essencialidade a partir da noção de“energia li- tõeslegadaspelaconstruçãofreudianaulteriordoconceitode“pul-
vre”,Freudimpedequeanaturezaapareçacomoplanopositivode sãodemorte”,conceitocentralparaametapsicologialacaniana,já
doaçãodesentido.ApartirdeParaalémdoprincípiodoprazer,tal que,segundoopsicanalistaparisiense,“todapulsãoévirtualmente
impossibilidadepermitirá,demaneiraexplícita,aarticulaçãofun- pulsãodemorte”(Lacan20,p.848). Comoveremosaseguir,estaé
damentalentreteoriadaspulsõesaumareflexãosobreanatureza aafirmaçãocentralparaacompreensãodafiguralacanianadapul-
comoespaçodemanifestaçãodeumacerta“negatividade”. são,pornoslembrarqueLacantendeaoperarnaclínicacomuma
No entanto, devemos inicialmente tirar algumas conseqüências modalidademuitoparticulardemonismopulsional,nãosendopor
dessa articulação complexa entre representação e libido pensada acasoque,emsuasmãos,apulsãoaparecesemprenosingular.
comoenergialivre.Umadelasficarávisívelseaproximarmosduas SeguindoumaviaabertaporLacan,JeanLaplanchelembraque
afirmaçõescanônicasarespeitodapulsão.Aprimeiravemdotex- umametamorfoseprofundaocorrequandoFreudvincula,posterior-
toOinconsciente:“umapulsãonãopodetransformar-seemobjeto mente,anoçãodelibidoàpotênciaunificadoradeEros(talcomo
(Objekt)daconsciência,apenasarepresentaçãoquearepresenta(die eleaencontranomitodeAristófanes,emObanquete,dePlatão),
Vorstellungdieihnrepräsentiert)”9.Asegunda,escritanamesmaépo- isto ao passar ao dualismo pulsional Eros/Tanatos.A definição da
ca,lembraqueoobjetodapulsão“éoquehádemaisvariável(va- libidocomoErosunificador,potênciaquevisaria“formar,apartir
riabelste)napulsão,elenãoestáoriginalmentevinculado(verknüpft) da substância viva, unidades (Einheiten) cada vez maiores e assim
aela(...)Elepodesesubstituídoàvontadeaolongodosdestinosque conservaravidanasuapermanência,levando-aadesenvolvimentos
apulsãoconhece”10.Sedefinirmos“objeto”comosendooqueresulta maiscomplexos”11,pareceimplicaremabandonodanoçãodelibi-
deprocedimentosdecategorizaçãodeumaconsciênciaqueunificao dopensadaapartirdeumaenergialivreprópriaaessasexualidade
fragmentada e polimórfica tematizada anteriormente por Freud.
Talabandonoseriaimpulsionadopelasconsideraçõesfreudianasa
8
Lembremos como o auto-erotismo indica uma posição anterior ao narcisismo. Neste respeito da centralidade do narcisismo, com seus mecanismos de
sentido,elaserveparaindicarapolimorfiadeumalibidoquesedirecionaaoprazerde
órgãosqueaindanãosesubmetemaumprincípiogeraldeunificaçãofornecidopeloEu projeçãoeintrojeçãoqueunificamosdestinosdapulsãoàrepeti-
enquantounidadesintética.
9
Freud,GX,p.275-276
10 11
Freud,GX,p.215(trad.Bras.p.149) Freud,GXIII,p.233
160 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 161
ção da imagem do Eu12.É como se o narcisismo fosse a revelação seuplano.Estacompulsãoaretornaraalgoquefoiexcluídodosujei-
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dopathosdeumEupensadocomounidadesintéticaqueforneceo to[própriaàpulsãodemorte],ouquenuncafoiporeleabsorvida,o
princípiodeligação(Verbindung)dodiversodaexperiênciasensí- Verdrängt,orecalcado,nósnãopodemosfazê-loentrarnoprincípiodo
velemrepresentaçõesdeobjetos.Boapartedointeressedefilósofos prazer[queagoraseconfundecomEros](...)Faz-senecessáriosupor
comoTheodorAdornopelapsicanáliseencontraaísuaraiz,ouseja, umoutroprincípio.PorqueFreudochamouinstintodemorte?(Lacan
emumaespéciedereflexãosobreas“patologiasdoesquematismo 21,p.163).
transcendental”.
Nessecontexto,areconstruçãododualismopulsionalatravésdo A questão se justifica pelo fato de que esta guinada parece, a
parErosepulsãodemorteseriaoresultadodanecessidadeencontrar princípio, desproporcional em relação à dimensão do problema
umnovodestinoparaapotênciadedes-ligamentoprópriaàenergia (conservar a potência disruptiva da sexualidade para além da for-
livrequehaviainicialmentedefinidoalibido.Ouseja,apolaridade çaunificadoradoEu,forçacujaextensãoteriasidorevelada,prin-
vida/mortenateoriapulsionalfreudianarecobre,naverdade,adis- cipalmente, pelo narcisismo). A não ser que, de fato, o problema
tinçãoentreenergialigadaemrepresentaçõesatravésdacapacidade pressentidoporFreudfossemaiordoquepoderiaparecer.Sóassim
sintéticadoEu/energialivreinauguradoradadinâmicapsíquica13. poderíamospressuporalgumaespéciedeunidadeentrefenômenos
Aprincípio,nãoéevidentearazãoquelevaFreudautilizaroter- aparentementetãodistintosquantoestesqueFreudprocurapensar
mo“morte”parafalardetalpotênciadedes-ligamento.Trata-sede apartirdanoçãodepulsãodemorte,ouseja,acompulsãoderepetir
umaquestãoclaramentepostaporLacan: acontecimentostraumáticos,ofenômenoderesistênciaàcuraede
vínculoàdoençaqueapsicanálisechamade“reaçãoterapêuticane-
ExisteumadimensãoparaalémdahomeostasedoEu(moi),uma gativa”,aorganizaçãodeumdestinoàlibidoenquantoenergialivre
outra corrente, uma outra necessidade que deve ser distinguida em e,porfim,oproblemaeconômicodosfantasmasmasoquistasque
aparentementedesvinculamdesejoecálculodoprazer.
12
Responder à questão do real problema que a derradeira teoria
ComodiráLaplanche:“Eroséoqueprocuramanter,preservaremesmoaumentara
coesãoeatendênciasintéticatantodoservivoquantodavidapsíquica.Enquantoque,
freudianadas pulsõestentava resolverexige, inicialmente, lembrar
desdeasorigensdapsicanálise,asexualidadeera,poressência,hostilàligação,princí- queareconstruçãodateoriapulsionalatravésdadicotomiapulsão
piode‘des-ligamento’oudedesencadeamento(Entbildung)quesóseligavaatravésda devida/pulsãodemortefoisolidáriadeumaaparenteredefinição
intervençãodoEu,oqueaparececomEroséaformaligadaeligadoradasexualidade,
colocadaemevidênciapeladescobertadonarcisismo”(Laplanche28,p.187).Istonos dopróprioconceitodepulsão.Elaseráagorauma“pressão(Drang)
explicaporque,emFreud,“oEuaparececomoumaestruturainibidoraedefensivaque inerente ao organismo vivo em direção ao restabelecimento de um
funciona[...]paraestabelecerumaeconomiarestritadeimpulsosedesuasdescargas” estado anterior [inorgânico] abandonado devido a influências per-
(Boothby5,p.285)
13
turbadorasdeforçasexteriores”(Freud13,XIII,p.38),enãoapenas
IssonoslevaaconcordarcomaidéiadeBoothby,paraquem“aidéiamaiscrucialde
Freud,raramentepostademaneiraexplícitaexatamenteporsertãofundamentalpara a representação psíquica de uma fonte endossomática de excitação
todaaconcepçãofreudiana,éaassunçãodadisjunçãoinevitáveleirremediávelentreo constante. Da primeira à segunda definição, acrescenta-se um certo
níveldasexcitaçõessomáticasedesuasrepresentaçõespsíquicas.Sempreháumresto, caráterteleológicoqueorientaadireçãodapressãopulsionalparaas
algoqueéirremediavelmentedeixado,umaporçãodeenergiacorporalquenãorecebe
registroadequadonabateriadosTriebrepräsentanzen”(Boothby,idem,pp.286-7) viasdeumaoperaçãoderetorno.Apulsãoaparece,assim,comoex-
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pressãodainérciadavidaorgânica,comoexigênciadetrabalhoem Assim,jáconsideradacomoforçanatural,aforçavitalpermanece
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direçãoaorestabelecimentodeumestadodesupressãodetensão.Essa porinteiraimuneàmudançadeformaseestadosqueasériedecausas
tendência,noentanto,semanifestaprincipalmenteatravésdafigura eefeitosproduz,esomenteàqualestãosubmetidosonascereoperecer
dacompulsãoderepetição,compreendidacomomovimentoderetor- comosemostranaexperiência.(ibidem,p.74)
noemdireçãoàaniquilaçãodeumindivíduodeterminado,comoo
queorientasuacondutaapartirdaconservaçãodesigraçasaocálculo Podemosmesmodizerque,nessecontexto,amorteaparececomo
doprazer,àsimbolizaçãodeexperiênciastraumáticasquebloqueiam potênciadesuspensãodaligaçãodasforçasemrepresentaçõesca-
disposiçõessintéticasdaconsciênciaeàefetivaçãodeumprincípiode pazes de produzir individualizações. Daí porque Schopenhauer
individuação. operacomumadicotomiaentreaimortalidadedaespécieenquanto
É nesse contexto que a especulação freudiana flerta mais clara- “Idéia”eadestrutibilidadedosindivíduosqueaparecerá,deforma
mentecomumacertametafísicadamorte,todaelafundada,porsua reconfigurada, no próprio cerne da teoria pulsional freudiana isto
vez,emumaverdadeirafilosofiadanatureza.Praticamenteausente atravésdasdistinçõesentresomaeplasmavindasdeWeismann.
naprimeirateoriadaspulsões,essainflexãoemdireçãoàmetafísica, No entanto, há algumas diferenças fundamentais aqui. Schope-
emespecialatravésdeSchopenhauer(alémdePlatão,paraailustra- nhauerinsistenamortecomodestruiçãodoindivíduoapenaspara
çãodopoderunificadordeEros,eEmpédocles),nãodeveservista lembrarque
simplesmentecomoumaespéciededesvioderota.Defato,vários
princípiosdapsicofísicadeFechnerqueaparecerãoposteriormente Pediraimortalidadedaindividualidadesignificapropriamenteque-
emHelmholtz,Macheoutros,baseteóricaimportanteparaafor- rerperpetuarumerroaoinfinito.Pois,nofundo,cadaindividualidade
maçãodateoriafreudianadaspulsões,nãosãoestranhosàfilosofia éapenasumerroespecial,umpassoemfalso,algoqueseriamelhornão
deSchopenhauereàsuareflexãosobreadinâmicadasforças.Da ser,sim,algodoqualnostrazerdevoltaédefatoametadetodavida.
mesmaforma,taisprincípiosnãosãoimunesapressuposiçõesme- (ibidem,p.110)
tafísicas,oqueficabastanteclaroespecialmenteemFechner.Tudo
sepassa,então,comoseSchopenhauerfornecesse,paraFreud,uma Issonãopoderiaserdiferente,jáqueamorteépensada,aomesmo
espécie de inteligibilidade alargada do que, posteriormente, conti- tempo,comooqueestáinseridonotelosdociclovitaldarenovação
nuouseinsinuandonointeriordaenergética. danaturezaecomomododeacessoàinteligibilidade(acessoàinte-
Nesse sentido, vale a pena lembrar como as explicações gerais de ligibilidadequenãoéexatamenteconhecimentoreflexivo)deuma
comportamentohumanoenaturalapartirdadinâmicadeforças,pen- dinâmicadeforçasnãoligadaequepassalivrementedeumaforma
sadaenquantofiguradeumametafísicadaVontadecomoserem-si,é aoutrasemperpetuarnenhumadelas.Amorteéonomedoproces-
oquelevaSchopenhaueraver,namorte,umprotocolode“retorno soquerevelaanaturezaenquantocicloincessantedeindividuaçãoe
aoventredanatureza”(Schopenhauer30,p.71).Poisamortedoin- anulaçãodaindividuaçãodeconfiguraçõesdeforças,comoseesti-
divíduoapenasdemonstrariaaperenidadedasforçasedamatériaem véssemosdiantedeumciclodepulsaçãoentreenergialivreeenergia
contraposiçãoàtransitoriedadedosestadoseformas: ligada.Assim,longedeserfenômenodesprovidodesentido,negação
desprovidadeconceito,amorte,paraSchopenhauer,éoque,emúl-
164 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 165
timainstância,garanteanaturezacomo pólopositivodedoaçãode conceito não-tematizado de natureza. Trata-se de algo como uma
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sentidopordesvelarosmecanismosdeorientaçãodaforçavital. naturezaquenãosedeixapensarapartirdefigurasdociclovitalou
Defato,estenãoéocasoemFreud.TalcomoemSchopenhauer,a dealgumaformadefuncionalismoordenador,masquesemanifes-
morteemFreudnãoéapenasdestruiçãodaintegridadedoorganismo tanecessariamentecomoresistênciaàintegraçãoatodoequalquer
biológico,masétambémoquesuspendeoprincípiodeindividua- princípiodedeterminaçãopositiva15.Fundarumaclínica,comseus
çãoedeunidadesintéticaemoperaçãonoEu.Daíporqueelapode protocolosdecura,apartirdetalpressuposiçãoarespeitodanoção
aparecer,nocasodeFreud,comofontedadinâmicapulsionalrespon- denatureza,nãoéalgodesprovidodedificuldades.
sávelporprocessoscomoarepetiçãodeacontecimentostraumáticos Isso talvez nos explique, entre outras coisas, a posição sintomá-
não-simbolizados e essa reação terapêutica negativa compreendida ticadapulsãodemortenointeriordaclínicafreudiana.Defato,o
enquanto resistência aos processos de subjetivação em operação na lugardapulsãodemortenaclínicafreudianaécomplexoedifícilde
clínicaanalítica.Noentanto,nãohánadaemFreudsemelhanteàafir- serequacionado.Lembremosapenasque,emumtextodafasefinal
maçãoteleológicadavidacomocicloincessantededestruiçãoerecon- comoAnálisefinitaeanáliseinfinita,Freudseperguntasehálimites
figuraçãoresultantedealgumaformadeprincípiogeraldeconservação paraaligação(Bändigung)daspulsõesemrepresentações–oque
deenergia.Anoçãodepulsãodemorte,aocontrário,estámaispróxima podemosentendercomoumaquestãoreferenteàpossibilidadede
daabsorçãodeumconceitoenergéticocomoaentropiaenquantoprin- dominar,principalmente,acompulsãoderepetiçãoprópriaàpul-
cípiodoqueapareceapenascomoperda,princípiodoquenãosedeixa são de morte.A resposta é programática: é a correção a posteriori
configuraremumestadosubmetidoaumprotocolodeordenação14.A do processo de recalcamento originário que pode colocar um fim
morteé,assim,paraFreud,presençadoquenãosedeixaabsorverno à força efetiva do fator quantitativo da pulsão. No entanto, Freud
interiordeumanoçãodenaturezacomopólopositivodedoação éoprimeiroareconhecerainfinitudedaforçapulsionalaosubli-
desentido,presençadoquenãosedeixacontarnointeriordeuma nharocaráterinesgotáveldeseudomínio:“Pode-seduvidarqueos
economiavitalista.
No entanto, Freud acaba por operar, no interior de sua teoria
das pulsões, com um conceito muito peculiar de natureza. Pois a 15
Quem compreendeu claramente essa defnição eminentemente negativa de natureza
tendência em utilizar a teoria das pulsões para explicar princípios presentenaselaboraçõesfreudianasfoiTheodorAdorno.Lembremosaqui,apenaspara
de conduta de organismos em geral (o que não deixa de ser uma ficar em um exemplo, desta definição adorniana de mimetismo (operador central de
reconciliaçãoentresujeitoenatureza).Eleseriauma“tendênciaaperder-senomeio
certa“atualização” de princípios explicativos holísticos próprios à
ambiente(Unwelt)aoinvésdedesempenharaíumpapelativo,dapropensãoasedeixar
psicofísicadoséculoXIX)deveservistacomopressuposiçãodeum levar,aregredirànatureza.Freuddenominou-apulsãodemorte(Todestrieb),Caillois
lemimetisme”(AdornoeHorkheimer,1985,p.212).Seapulsãodemorteindica,para
Adorno,ascoordenadasdareconciliaçãocomanatureza,entãodevemosadmitirvárias
14 conseqüências.Poisapulsãodemortefreudianaexpõeaeconomialibidinalquelevao
Nessesentido,valeaafirmaçãodeAssoun,paraquemoconceitofreudianodeenergia
“marcauma‘passagem’entredoisestadosquetraduzumadespesamecânica,elamesma sujeitoavincular-seaumanaturezacompreendidacomoespaçodoinorgânico,figura
expressãoparticular(moção)doaumentogeraldedesordemformuladopelosegundo maiordaopacidadematerialaosprocessosdereflexão.Esta“tendênciaaperder-seno
princípio da termodinâmica (Carnot-Clausius). O que, desde este momento, poderia meio ambiente” da qual falaAdorno pensando na pulsão de morte é o resultado do
serexpressodizendoque‘todapulsão,enquantopulsão,épulsãodemorte’”(Assoun reconhecimentodesinoqueédesprovidodeinscriçãosimbólica(verSafatle,Espelhos
2,pp.182-3). semimagens:mimesisereconhecimentoemLacaneAdorno,Trans/form/ação).
166 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 167
dragõesdotempooriginárioestejamverdadeiramentemortosatéo algumadequeaclínicaapelasseaforçasabstrataspostuladasnaan-
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conceito norteador da inteligibilidade da conduta de todo e qual- narcísicasdoeu.Lacanchegaafalardocaráteregomórficodosobje-
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quervivente. tosdomundoempírico,deondesesegueumnarcisismofundamen-
Antesdeavançarmosnesseponto,lembremoscomo,defato,oen- talguiandotodasasrelaçõesdeobjeto,assimcomoanecessidadede
caminhamentolacanianoarespeitodateoriapsicanalíticadaspul- atravessaresseregimenarcísicoderelaçãoatravésdeumacríticaao
sõessóéinteligívelcomodesdobramentodesuasreflexõesiniciaisa primadodoobjetonadeterminaçãododesejo.
respeitodoestatutododesejonaclínicaanalítica.Podemosmesmo AcríticaaoprimadodoobjetoapareceráemLacanprincipalmen-
dizerqueoproblemadoestatutodapulsãoganhacentralidadena teatravésdacríticaàsrelaçõesreduzidasàdimensãodoImaginário,
experiência intelectual lacaniana a partir do momento em que ele jáqueoImagináriolacanianodesigna,nasuamaiorparte,aesfera
sevêobrigadoarevercertasquestõesdeixadasemabertosporsua dasrelaçõesquecompõemalógicadonarcisismocomsuasproje-
teoriadodesejo. çõeseintrojeções18.Grossomodo,podemosdizerque,paraLacan,o
A este respeito, sempre vale a pena lembrar que a característica Imaginárioéumgênerodeesquemadecategorizaçãoespaço-tempo-
principal do desejo, em Lacan, é ser desprovido de todo procedi- ralquefuncionariaatravésdasubsunçãododiversodaintuiçãosen-
mentonaturaldeobjetificação.Eleéfundamentalmentesemobjeto, sívelàimagem(nestesentido,Lacanestámuitopróximodateoria
desejo de“nada de nomeável”(Lacan 21, p. 261).Aqui, escutamos da imagem e do esquematismo presente em Kant e o problema da
o leitor atento de Kojève, o mesmo Kojève que tentava costurar o metafísica,deHeidegger).Essaimagem,noentanto,unificaodiver-
ser-para-a-morteheideggerianoàBegierdehegelianaafimdeafir- soapartirdeumprincípiodeligaçãoedeidentidadederivadodo
marqueaverdadedodesejoeraser“revelaçãodeumvazio”(Kojéve próprio Eu como unidade sintética e auto-idêntica. Ela é, por sua
19,p.12),ouseja,puranegatividadequetranscendiatodaaderência vez,overdadeironomedoqueestáemjogonarepresentação,istoao
naturaleimaginária.Trata-sedeumestranhodesejoincapazdese menossegundoLacan,deondesesegueestaarticulaçãolacaniana
satisfazercomobjetosempíricosearrancadodetodapossibilidade cerradaentreImaginário,narcisismoerepresentação19.
imediataderealizaçãofenomenal. Aqui, faz-se necessário salientar um ponto importante: é dessa
Essapuratranscendêncianegativa,vinculadaàfunçãointencional formaqueoobjetoempíricoaparecenecessariamentecomoobjeto
deumdesejoqueinsisteparaalémdetodarelaçãodeobjeto,colo- submetido à engenharia do Imaginário. A possibilidade de fixação
ca-secomoalgoabsolutamenteincontornávelparaLacanemseus libidinal a um objeto empírico não-narcísico ainda não é posta.
primeirosescritoseseminários.ArazãovemdofatodeLacanter Assim,afimdelivrarosujeitodafascinaçãoporobjetosquesão,
desenvolvidoumateoriadaconstituiçãodosobjetosapoiadasobre- no fundo, produções narcísicas, restava à psicanálise “purificar o
tudoemconsideraçõessobreacentralidadedonarcisismo.Trata-se desejo”detodoequalquerconteúdoempírico;subjetivarodesejo
doresultadodoreconhecimentosimultâneodedoisfatores:ocará- noseupontobrutaldeesvaziamento.Afinal,aligaçãododesejoem
terconstitutivodoEunaligaçãododiversodaintuiçãosensívelem
representaçõesdeobjeto;eagêneseempíricadafunçãodoEuapartir
18
“Nósconsideramosonarcisismocomoarelaçãoimagináriacentralparaarelaçãoin-
deumalógicadeidentificaçõesnarcísicas.
terhumana”(Lacan22,p.107).
Dessaforma,nessemomentodopensamentolacaniano,tantoos 19
ParaumadescriçãomaisdetalhadadestafunçãodoImaginário,tomoaliberdadede
objetosquantoosoutrosindivíduosempíricossãosempreprojeções remeteraSafatle29)
170 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 171
representaçõesdeobjetoimplicaalienaçãodeumserpensadocomo Batailletambémcoloca,comoimperativo,umprogramaemlarga
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própriaacertosneuróticos,ouatentativadedominarprocessosde mais.Aprimeiracoisaqueimplicaméquearelaçãodosignoàcoisa
perdaapartirdeumarepetiçãosimbolizadora(comoéocasodo sejaapagada”(Lacan25,sessãode06/12/1961).
famosoexemplodofort-da). Destaforma,Lacanpodedizer“nósencontramosaíoesquemado
OqueLacanquer,aoaproximarcadeiasignificanteeautomatis- símbolocomomortedacoisa”20.Écomoseoimpulsodenegação
moderepetição,é,porumlado,lembrarqueaenergialivreprópria próprioàpulsãodemorteestivesseemoperação,ou,sesatisfizesse
à força de des-ligamento da pulsão de morte produz os processos semprequeosignificantesemostrassecomoanulaçãodacoisaen-
primáriosdecondensação,deslocamentoefiguraçãoquefornecem quantoobjetoreificadoconstituídopelalógicadoImaginário.Afinal,
abasedadinâmicadossignificantes.Daíapossibilidadedaaproxi- emsuaessência,osignificantenãoseriaumdispositivodedenota-
mação.ÉassimqueelecompreendeoqueFreudchamadecaráter ção, mas apenas um dispositivo que marca a inadequação radical
derede(Netz)efluxo(Flüssigkeit)dapulsão,proposiçãoqueétão entreaspalavraseascoisas,inadequaçãoentreumacadeiasignifi-
ousadaquantofrágil,jáqueaarticulaçãodacadeiasignificantedes- cantequesearticulatalqualfluxodeenergialivreecoisaspensadas
conheceadisseminaçãoprópriadoquesecaracterizacomoenergia comooquesesubmeteàunidadesimaginárias.Lacanprocura,pois,
livre.Aocontrário,acadeiasignificantetemumpoderordenadore encaixar sua compreensão da centralidade da pulsão de morte no
articuladorpróprioatodaconstruçãosimbólica.Ouseja,seutraba- interiordeumalógicadainadequaçãocomosaldodosprocessosde
lhoéumtrabalhodeligaçãoestranhoaoqueédaordemdapulsão socialização através de uma linguagem constituída por significan-
demorte. tes.Poroutrolado,elevinculaosignificantenãoaumproblemade
Porém, há ainda um outro aspecto da aproximação.Ao articular denotaçãodeobjetos,masdesatisfaçãodapulsão,comoseosusos
pulsãodemorteesignificante,Lacanpareceindicarquenãoháalgo dalinguagemestivessemtodossubordinadosainteressespráticosde
como a particularidade da pulsão e do impulso que se contraporia satisfação.
ao universo sócio-linguístico partilhado intersubjetivamente. Ao Como vemos, essa estratégia lacaniana era ambivalente e difícil
contrário,apulsãojáestá,deumacertaforma,vinculadademaneira de ser sustentada da forma como foi inicialmente construída. De
constitutiva àquilo que permite aos sujeitos se socializar através do umlado,acadeiasignificanteésolidáriaaumtrabalhodeligação
acesso à linguagem (há um paralelo instrutivo, neste ponto, com o edeordenaçãodomundodosobjetosestranhoaoqueédaordem
conceitohegelianodeTrieb).Emúltimainstância,elanãoéreprimida dapulsãodemorte.Éamaneiralacanianadeinsistirqueapulsãode
devidoaosprocessosdesocializaçãodesujeitos.Elaéamolamesma mortenãoépuroimpulsodedestruiçãotransgressoraemdireçãoà
doquelevaossujeitosausaralinguagemeàcondição,éclaro,dedar informidadeouaumgozomortífero,maséoqueprocuradarcontada
realidadeaumregimebastantepeculiardelinguagem.Essalingua- inteligibidadedeprocessosdesocialização,aomenossepensarmosna-
gemqueLacantememmenteéabsolutamenteanti-realistapornão quiloqueosprocessosdesocializaçãoemoperaçãoemnossassociedades
sercompostasporsignos,masapenasporpurossignificantes,ouseja, teriamdenãorepressivo.Deoutro,acadeiasignificantedescreveexa-
portermosquenãotêmforçadenotativaalguma,quenãodenotam
objeto algum. Trata-se de uma anulação da faticidade da referência
que é descrita por Lacan nos seguintes termos:“Os significantes só 20
Lacan,SIV,p.377.
174 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 175
tamenteofluxolivredeenergiaquenegaoquesedeixaligarsoba Otermo“ontologia”podecausarestranhezanessecontexto.No
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formadeobjeto,sobaformaderepresentação. entanto,antesdelegitimartalestranhamento,valeapenapergun-
Noentanto,podemosdizerqueessacontradiçãoécriativa.Éclaro tarsepoderíamospensaraontologianãomaiscomooregimede
queLacanprocuraumregimedeformalizaçãocapazdedarconta discursividadepositivadoserenquantoser,regimeque,aoserposto,
deumarelaçãodosujeitocomumapulsãoquenãosedeixapensar tendeanormatizaroscamposdapráxisaodeterminaraprioriacon-
atravésdeumalinguagemdarepresentação,linguagemque,nointe- figuraçãodesuaspossibilidades.Ora,aoproblematizarmosarelação
riordacartografialacaniana,estásubmetidaàlógicadoImaginário. entrepositividadeeontologia,talvezseabraapossibilidadedepen-
Masparaqueelepossatematizardeformaadequadaoquenãose sá-la,aocontrário,comooregimequesuportaarealidadedaquilo
deixaformalizarapartirdarepresentação,Lacandeveexplicarcomo quebloqueiaoesgotamentodoseremumadeterminaçãopositiva.
osujeitopodeestruturarrelaçõescomaquiloquenãosearticulaa Nessesentido,umaontologianegativa,ouseja,umregimedepensar
partirdeprincípiosdeligaçãoderivadosdoEucomounidadesin- assentadosobrearealidadeontológicadasexperiênciasdenegação,
tética.Oacento,aqui,vaiparaoimperativode“estruturarrelações” poderiaseroqueestariaorientandoasdecisõesclínicaslacanianas,
quenãosejamtributáriasdeumretornoaalgumaformadeintuição assimcomoadireçãoqueeleprocuraimporaotratamento21.
imediata. Talvezadificuldadeemaceitartaiscolocaçõesvenhadofatode
queoencaminhamentolacanianoarespeitodocaráterontológico
decertosconceitosmetapsicológicosnãotenhasidoexatamentetra-
Umanegaçãoontológicaparaaclínica çadoemumalinhareta.Lembremos,porexemplo,doqueelehavia
afirmado no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da
Antesdeavançarmos,valeapenainsistirqueesseproblemapre- psicanálise,diasantesdeaceitarquetinhaumaontologia:
senteemLacan,problemaquepodemosdizerserherançadeum
certoencaminhamentofreudiano,jánosforneceumaexplicação é exatamente de uma função ontológica que se trata nesta abertura
provisóriaparaanoçãodequeapulsãoéumconceitoontológi- (béance), através da qual acreditei dever introduzir a função do in-
co. Isso porque, ao vincular a pulsão de morte ao que se satisfaz consciente. A abertura do inconsciente, nós poderíamos chamá-la de
atravésdapotêncianegadoradalinguagem,quandoestaselibera pré-ontológica.Insistinestacaracterística,muitoesquecida,daprimeira
de suas ilusões realistas, Lacan reordena completamente a noção emergênciadoinconsciente,queédenãoseprestaràontologia[jáque
tradicionaldesimbolizaçãocomosubmissãoàpotênciaorganiza-
doradarepresentação;istoafimdeencontrarumamaneiramais
adequadaparatematizarosmodosderelaçãocomoqueaparece,a
21
AlainBadiounosmostraumaviafrutíferaparapensarmosumanegaçãoontológicaem
umsujeito,comoirredutibilidadedanegatividadeprópriaàpulsão Lacanquandoafirmaquehá,napsicanáliselacaniana,umacessoàontologia,jáque“o
demorte.Essairredutibilidadetemumpesoontológico,poisestá inconscienteéesseserquesubverteaoposiçãometafísicadoseredonão-ser”(Badiou,
assentadaemumanoçãodenegação,nemsempretematizadade Théoriedusujet,Paris:Seuil,1982.p.152).Oinconscientedapulsão,oisso,éesteserque
sóépensávelemumaontologiafundadanonegativo,eéistoqueLacantememmente
maneira explícita por Lacan, como modo ontológico de acesso à aodizerqueoinconsciente“trazaoserumenteapenasdoseunão-advento”(Lacan,S
essência. XIp.117)
176 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 177
oqueédaordemdoinconsciente:“nãoénemoser,nemonão-ser,mas nãooperamaisatravésdaposiçãodanoçãodesubstânciaeidenti-
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onão-realizado].(Lacan26,pp.31-2) dade,masexatamenteatravésdarecusadarealidadeessencialdetais
conceitos.Defato,haveriamuitoaindaaserdiscutidoaesserespei-
Defato,essaidéiadequeoqueédaordemdoinconscienteépré- to. Tais indicações servem, no entanto, para mostrar que o debate
ontológiconoslevadiretamenteaMerleau-Pontycomsuaontologia nãoéfacilmenteesgotável.
dacarne.Contudovaleapenareconstruirocontextodetalafirma- Dequalquerforma,istonãoafastaumoutroproblema:podería-
çãoafimdecompreenderoqueestáaíemjogo. mospensarestardiantedeumaespécieperigosadeteologianegativa
Naseçãoanteriordesseseminário,Lacanhaviadiscutidoanoção disfarçada em considerações clínicas, ainda mais com os motivos
de“causalidade inconsciente” com a ajuda das últimas páginas do lacanianosinsistentementerepetidosapropósitodoobjetoperdido,
Ensaioparaintroduziremfilosofiaoconceitodegrandezanegativa,de daassunçãoincontornáveldafalta,dogozoimpossível,dolugarva-
Kant.Lacantinhaemmente,sobretudo,adistinçãokantianaentre ziodosujeitoquenuncasecorporificatotalmente;essesmotivosnos
fundamento lógico e fundamento real. A respeito do fundamento levariam,nomáximo,aumaéticada“resignaçãoinfinita”,comogos-
lógico,Kant,em1763,dirá:dadoumfundamento,podemosderivar tavadefalarDeleuzearespeitodoslacanianos(Deleuze&Parnet9,p.
umaconseqüêncialógicaapartirdaobediênciadaregradeidenti- 96),ouaindaauma“idealizaçãoreligiosadaimpossibilidade”Butler
dade.Assim, 6,p.72),comofalaJudithButlerarespeitodarelaçãolacanianaentre
gozoeLei.
ohomeméfalível,eofundamentodessafalibilidaderesidenafinitude É claro que poderíamos pensar tudo isso mas estaríamos equi-
desuanatureza,poisquandodecomponhooconceitodeumespírito vocados,pornãocompreendermosoqueLacanprocuraaotrans-
finitovejoqueafalibilidaderesidenele,istoé,coincidecomoqueestá formaraconfrontaçãocomapulsãodemorteemeixocentraldo
contidonoconceitodeumespírito.(Kant18,p.97) progressoanalítico.
Essaestratégiadareconfiguraçãodapulsãodemortenaclínicasó
Mas,nofundamentoreal,algoseguedeoutroalgosemobedecer ficarámaisclaraselevarmosemconsideraçãooproblemadoestatu-
à regra de identidade, como, quando digo que as fases da lua são todasnegaçõesnapráxislacaniana.Lembremos,porexemplo,que
ascausasdasmarés.Kantdiráque,paradarcontadofundamento osmodosderelaçãodosujeitocomapulsão,propostosporLacan,
real,háapenas“conceitossimpleseindecomponíveisdefundamen- nãopassamporaquiloqueFreuddefiniacomoligaçãodapulsãoem
tosreais,cujarelaçãocomaconseqüêncianãopodeabsolutamente representaçõesdeobjeto,mesmoqueLacaninsistananecessidade
fazer-sedistinta”(ibidem,p.62).Lacaninsistequeestanoçãodeum depensarmosoquepodesero“objeto”dapulsão(emboraaprópria
conceitoindecomponívelquevisaformalizararelaçãocausalentre noçãodeobjeto,nestecontexto,percaseucaráterdoqueseconstitui
umfundamentorealesuaconseqüênciaéadequadaparadetermi- apartirdeprincípiosdeligaçãofornecidospeloEucomounidade
naraespecificidadedacausalidadequeoperanoinconsciente,uma sintética).
causalidadequeestabeleceriarelaçõesdenecessidadeentretermos Essaquestãonoslevaaumaoutra,vinculadadiretamenteàdireção
descontínuos.ÉaessadescontinuidadequeLacanchamabéance.No do tratamento. Lacan insiste a todo momento que as subjetivações
entanto, tal béance em nada invalida uma noção de ontologia que naclínicanãopodemorganizar-seapartirdaperspectivadealarga-
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mentodohorizontereflexivodecompreensãodaconsciênciaoude lacaniano,essepontotalvezfiquemaisclarosemostrarmosquehá
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reconstituição das capacidades sintéticas do eu. Ou seja, as subjeti- umanegaçãoquepoderevelaraestruturadosobjetoscapazesdesa-
vaçõesnaclínicanãopodempassarpelosimperativosdeligaçãoem tisfazerapulsão,enãoapenasaparecercomomododedestruição
representações que suportam a tríade rememoração – verbalização deobjetos.
– simbolização que guiam a clínica freudiana. No entanto, a limi-
tação dos processos reflexivos não pode significar impossibilidade
completadeautoposiçãodosujeitooumesmobloqueioinsuperável Angústiacomomododemanifestaçãodoobjeto
dascapacidadessubjetivasdesíntesedaexperiência;istopormais
quelacanianosinsistamnofinaldaanálisecomoadventodairrefle- Háváriasformasdeabordaroproblemadareflexãolacanianaso-
xividadedeumgozomudo,monológico,ouaindacomoadventode breanegatividadeconstitutivadoobjetodapulsão.Trata-sedenoção
umadestituiçãosubjetivaqueresultarianoabandonodetodaforma aparentementeparadoxal,jáque,àprimeiravista,nãoéevidenteque
deaspiraçãosintéticadopensamento. hámodosdenegaçãoquerevelamaestruturadeobjetosdesatisfa-
UmaviapossívelparaacompreensãodoqueLacantememmente ção.Porém,podemosabordartalquestãoatravésdamaneiralaca-
passapelateorialacanianadasnegações.Elesabequeaespecificida- nianadeconfigurarosentidodeumfenômeno,centralparaaclínica
dedeseusmodosdesubjetivaçãosefundanoreconhecimentodo analítica,comoaangústia.Essamaneiraé,emlargamedida,distinta
carátereminentementenegativodos“objetos”aosquaisapulsãose daquelaqueencontramosemFreud.
vinculaenosquaisosujeitodevesereconhecer.Issodemonstracomo Defato,Freudapresentaumaarticulaçãoimportanteentreangús-
aclínicalacanianademandaummododenegaçãoquenãoésim- tiaevidapulsional,jáqueaangústianeuróticaaparececlaramente
plesindicaçãodeumnão-ser,deumaprivação(nihilprivativum), vinculadaàemergênciadereivindicaçõespulsionais.Talarticulação
dovaziocomoopuroausentededeterminações,deumadenegação serápreservadaporLacan.
oumododeexpulsãoparaforadesidoquevaicontraoprincípio Jáem1895,aocriaranosografiade“neurosedeangústia”,Freud
doprazer.Elaprecisa,emvezdisso,deummododenegaçãoqueé identifica sua causa no impedimento em elaborar psiquicamente
mododepresençadoquerestaforadasimbolizaçãoreflexivacom (ouseja,emligar)aacumulaçãodeexcitaçãoendógenadeordem
seusprotocolosdeidentificação,semqueistoimpliquenecessaria- sexual22. Mais tarde, algo dessa perspectiva continuará através da
menteemalgumaformaderetornoaoinefável.Comoveremos,é afirmação de que, na angústia neurótica, tem-se medo da própria
bempossívelqueestatenhasidoaverdadeiracontribuiçãodasim- libido, já que a reivindicação pulsional é vivenciada como perigo
portaçõeslacanianasmaciçasemrelaçãoàfilosofiahegeliana.Afinal, interno.Esseesquemaservirádebaseparaadefiniçãodaangústia
paraLacan,quesemprevinculouacuraanalíticaàspossibilidades comoafetovinculadoàposiçãodeumquantumdeenergialibidinal
de auto-objetivação do sujeito para além de sua objetificação no inutilizável,ouseja,nãoligadoemrepresentaçõesdeobjetos.Istoé
Imaginário,sóhácuraláondeosujeitosereconheceemumanegação oquepermiteFreudvincularaangústiaaoperigoderivadodaperda
pensadacomomododepresençadoqueseoferececomodeterminação
essencialdeobjetosnãomaisconstituídoscomoimagensnarcísicasdo 22
Cf.Freud,Sobreajustificativadesepararumcertocomplexosintomáticosobonomede
Eu.Háalgodeprofundamentehegelianonessaestratégia.Nocaso “neurosedeangústia”
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de vínculo entre a pulsão e tudo aquilo que aparece como objeto confrontaçãodosujeitocomaquiloquenãosearticulaapartirde
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determinado,umarelaçãodesustentaçãodapulsãoláondeoobjeto princípiosdeligaçãoderivadosdoEucomounidadesintética.Nesse
falta e que faz o sujeito confrontar-se com o que Freud chama de sentido,elaépeçacentralparaoprogressoanalíticoporlivrarosu-
“desamparo”. jeitodasilusõesnarcísicasdoEu,damesmaformacomoécentral,
Tal manifestação de uma energia libidinal livre é o que está no naperspectivalacaniana,aexperiênciadapulsãodemorte.
cernedadefiniçãocanônicaquevinculaaangústiaaumfatortrau- NocasodeLacan,taldimensãoformadoradaangústia(quenão
máticoquenãopodeserliquidadosegundoasnormasdoprincípio exclui,éclaro,umadimensãobloqueadoradaangústia)étematizada
doprazer.Atéporque quandoopsicanalistainsiste,contrariamentetantoasuaspróprias
elaborações anteriores quanto a Freud, que a“angústia não é sem
éapenasagrandezadasomadeexcitação(GrössederErregungssumme) objeto”.Naverdade,aangústiaserámododemanifestaçãodeobje-
quefaz,deumaimpressão,umfatortraumáticoqueparalisaaaçãodo tosnãomaissubmetidosàsestruturasdecategorizaçãoespaço-tem-
princípio de prazer e que dá à situação de perigo seu sentido.(Freud poralprópriasaoImaginário.Daíporqueeleinsistirá,durantetodo
13,XV,p.100) seusemináriodedicadoàangústia,nanecessidadedereconstituira
estéticatranscendentalqueconvémàexperiênciaanalítica,jáque
Lacancomeçaseguindoessaviafreudianaquevinculaaangústiaa
situaçõesdeperdadoobjetoedeaumentodeumaenergialibidinal hámomentosdeapariçãodoobjetoquenosjogamemumaoutradi-
nãoligada.Assim,eleafirmará: mensãodaquelaquenosédadanaexperiência.Trata-sedadimensãodo
estranho.Taldimensãonãopoderia,deformaalguma,serapreendida
Quando,porrazõesderesistência,dedefesaedeoutrosmecanismos comodeixandodiantedelaosujeitotransparenteaseupróprioconhe-
deanulaçãodoobjeto,oobjetodesaparece,continuaaquiloquepode cimento.Diantedestenovo,osujeitoliteralmentevacila,etudooque
restar,ouseja,aErwartung,adireçãoaoseulugar,lugarnoqualeleestá dizrespeitoàrelaçãoprimordialdosujeitoaosefeitosdeconhecimento
ausente,noqualelenãopodesermaisdoqueumumbestimmteObjekt, épostoemquestão.(Lacan25,pp.73-4)
ouainda,segundoFreud,doqueumobjetocomoqualsustentamos
umarelaçãodeLöslichkeit.Quandonosencontramosnesteponto,aan- Essadimensãodoestranho,arespeitodaqualfalaLacan,éaquilo
gústiaéoúltimomodo,modoradicalatravésdoqualosujeitocontinua queFreudtematizouatravésdanoçãodeUnheimlichkeit23.Defato,
sustentandosuarelaçãocomodesejo.(Lacan24,p.429) Freudtinhaemmentefenômenosangustiantesnosquaissituações
eobjetosfamiliaresapareciam,demaneirainesperada,foradeseus
Contudo,omomentorealmenteoriginaldaelaboraçãolacaniana protocolosnaturaisdeidentidadeeidentificação.Porexemplo,sea
sobre a angústia ocorrerá mais à frente. Ele está ligado à procura imagemdesinoespelhoaparece,derepente,nãomaiscomoima-
lacaniana em vincular-se a uma longa tradição filosófica que en- gemdesi,mascomoimagemdealgoquepareceterumacertaau-
contramosclaramente,porexemplo,emHegel,equedeterminaas
experiênciasdeangústiacomodispositivofundamentaldeprocessos
deformaçãosubjetiva.Issoporqueaangústiaindicaomomentode 23
Cf.Freud,DasUnheimliche,GXII
182 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 183
tonomiaemrelaçãoaosimesmo,comosefosseaimagemdeum ditório.Sendoassim,aelaboraçãolacanianaarespeitodacentrali-
VladimirSafatle
DossiêFilosofiaePsicanálise
duplo,entãoestaríamosdiantedeumfenômenodeUnheimlichkeit. dadedapulsãodemortecomodispositivodedireçãodotratamento
Normalmente,situaçõesnasquaisadistinçãoentresujeitoeobjeto dependedeumanoçãodeobjetoquenãoreduzaafiguradaauto-
épostaemquestão,comosehouvessealgodaordemdeumsujeito negação da identidade ao estatuto de um objeto vazio desprovido
agenteláondeesperávamosencontrarapenasumobjetoinerte(ou deconceito.Talnoçãodeterminaaessencialidadedoobjetocomoo
vice-versa),tambémproduzirãoUnheimlichkeit. queémarcadoporumanegatividadecujaapariçãoésemprefonte
Lacantendeatransformartaisfenômenosemchaveparaadeter- deangústiaporimplicarnafragilizaçãodasimagensordenadasdo
minaçãodopapelformadordaangústia.Eleoscompreendecomo mundoedesi.Questãoprofundamentehegeliana,nosparece.
modosdeapariçãodeobjetosquenãosesubmetemmaisaprotoco-
losnaturalizadosdeidentidade,diferençaeoposição,eque,porisso,
embaralhamasdistinçõessegurasentresujeitoeobjeto,simesmoe Agramáticahegelianadanegaçãolacaniana:
outro,identidadeediferença.Assim,aoafirmarquetaisapariçõesfa- dametafísicadamorteàfenomenologiadamorte?
zemvacilararelaçãodosujeitocomasestruturasdoconhecimento,
Lacanprocuramostrarcomoaapariçãodeobjetosquecolocamem Vimoscomoaclínicalacaniana,aoprivilegiaroconceitodepulsão
questãoprincípiosgeraisdoentendimento,taiscomoosprincípios demorte,exigiaumateoriaespecíficadasnegações.Vemosagoraque
deidentidadeedediferenciação,levamosujeitoaumafragilização talteoriapedeumafiguradanegaçãocapazdedeterminarobjetos
dasimagensordenadasdomundoedesimesmo.Poroutrolado, quenãoseadequamàpositividadedaimagemoudaformalizaçãoa
taisobjetospodemcolocaremquestãoprincípiosgeraisdoenten- partirderepresentações.Talnegaçãotem,aqui,umvalorontológico
dimentoporquesetratamdeobjetosquetrazememsimesmosa porsermododemanifestaçãodoquesedeterminacomoessência.
negaçãodesuasubmissãoàidentidade. Defato,anoçãodeumanegaçãocomomodoontológicodepre-
Esteéumpontocentral.QuandoLacandeterminaquetaisobjetos sençadoquehádeessencialemobjetosdaexperiênciapodeseren-
sãoaquiloquesatisfazapulsão(demorte),satisfaçãoestranhamente contrada na tradição dialética, em especial na Doutrina da essência
marcadapelaangústia,éporqueanegatividadedapulsãodemorte hegeliana.Bastalembrarmosque,paraHegel,onegativonãoéfalta
podesesatisfazercomogozodeumobjetoquetrazemsimesmosua de determinação ou um positivo em si que aparece como negativo
próprianegação,queéadestruiçãodesi,torçãodeseusprotocolos apenasnointeriordeumarelaçãoopositiva.Aocontrário,oesforço
deidentidade(protocolosque,paraLacan,sãofundamentalmente maiordeHegelconsistiuempensarumnegativoemsi,paraalémde
vinculadosàordemdoImaginário). suaoposiçãoaopositivo.Trata-sederestituirdadimensãoontológica
Noentanto,éfatoquefalardeumobjetoquetrazemsisuapró- aonegativo,atravésdanegatividadedeumaessênciaquedevetomara
prianegaçãoparecesimplesmenteumamaneiramaisnebulosade formadoobjetoe,aindaassim,conservarseucaráternegativo,quetal-
dizerqueestamosdiantedeum“objetovaziodesprovidodeconcei- veznosindiqueaverdadeiraesferadainfluênciadeHegelemLacan.
to”(nihilnegativum)24,ouseja,nadamaisdoqueumobjetocontra- ConhecemosalgunscapítulosdarelaçãoconflituosaentreLacane
Hegel,relaçãofeitadedesencontroseincompreensões,comosópo-
24
Cf.Kant17,A292/B348. deriaserprenhededesencontroseincompreensõesumarelaçãocom
184 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 185
um“Hegelerrado,masvivo”,parausarumafórmulafelizdePaulo valeàmorte–umamortequenãoédestruiçãosimplesdaconsciência,
VladimirSafatle
DossiêFilosofiaePsicanálise
Arantes.Noentanto,paraalémdela,devemosestaratentoàgramática nãoéumsimplesdespedaçar-se(zugrundegehen),masémododeirao
hegelianadanegaçãolacaniana,oquenãoimplicanecessariamente fundamento(zuGrundgehen).Essemovimentodeiraofundamento
emalinhamentoincondicionalàsconseqüênciasdosistemahegelia- desprovidodeconteúdo,talcomonapulsãodemortelacaniana,impul-
no.Nessesentido,poderíamosdizerquealgunsdospontoscentrais sionaadeterminaçãodeobjetosnosquaisaconsciênciareconheceasua
doprojetodeLacanconsistiriamem:a)transformarateoriadaspul- próprianegatividade.DaíporqueHegeldirá,naCiênciadalógica:
sõesemteoriadapulsão;b)transformaranegaçãoprópriaàpulsãode
morteemnegaçãoontológica,negaçãocomomododemanifestação A essência, enquanto se determina como fundamento, determi-
daessência;ec)mostrarcomoestanegaçãopodedeterminarobjetos na-se como o não-determinado (Nichtbestimmte) e é apenas a supe-
cujamanifestaçãosedásoboafetodaangústia.Essesobjetosdetermi- ração (Aufheben) de seu ser determinado (Bestimmtseins) que é seu
nadospornegaçõescolocam-secomoobjetosdescentradosportraze- determinar.(Hegel16,p.81)
rememsimesmosanegaçãodesuasubmissãoàidentidade.
Defato,haveriaváriasformasdeabordarumapossívelpartilhaentre Arespeitodessaarticulaçãoentrenegatividadedamorteeexpe-
LacaneHegelnoquedizrespeitoaumconceitodenegaçãopróximo riênciadofundamento,lembremo-nosdeummomentocentralda
àquelepresentenapulsãodemortelacaniana.Umadiscussãodetalhada Fenomenologia do espírito e a respeito do qual Lacan era extrema-
danoçãohegelianade“negaçãoemsi”edesuafunçãocomopeçadepo- mentesensível,momentoemque,nointeriordadialéticadoSenhor
lêmicacontraoconceitokantianodeoposiçãoreal,conceitoquenosleva edoEscravo,aconsciênciatemaexperiênciadaangústia:
avercomoobjetovaziosemconceitoalgoquesejanegativoemsi,seria
talvezomelhorcaminhoparadarmoscontadaaproximaçãodasteorias Essaconsciênciasentiuaangústia,nãoporistoouaquilo,nãopor
danegaçãoemLacaneHegel.Noentanto,essadiscussãonoslevariaa esteouaqueleinstante,esimatravésdesuaessênciatoda,poissentiu
umoutrolargodesenvolvimentoquenãocabenoslimitesdesteartigo25. omedodamorte,dosenhorabsoluto.Aísedissolveuinteriormente,
Maspoderíamoslembraraquiestafigurafenomenológicacentral emsimesmatremeuemsuatotalidadeetudooquehaviadefixonela
danegaçãoemHegel:amorte.Primeiro,quandoHegelfalaemmorte, vacilou. Entretanto, esse movimento universal puro, o fluidificar-se
elepensanamanifestaçãofenomenológicaprópriaàindeterminação absolutodetodosubsistir,éaessênciasimplesdaconsciência-de-si,a
fenomenaldoquenuncaéapenasumsimplesente.Ouseja,amorte negatividadeabsoluta,opuroser-para-siqueassiménessaconsciên-
indicaumaexperiênciadoquenãosesubmeteaoscontornosauto- cia.(Hegel14,par.112)
idênticosdopensarrepresentativo,amortecomoaquiloquenãose
submeteàdeterminaçãodoEu.ParaHegel,háumaexperiênciade Estetrechotalvezdesveleseurealfocoselembrarmosque,paraHegel,
confrontaçãocomoindeterminado,comumpontonoqualopen- aessêncianãoéumasubstânciaauto-idênticaquedeterminaaspossibi-
sardopuroEunãoconsegueprojetarsuaprópriaimagem,queequi- lidadesdosmodosdeser.Aessênciaéarealizaçãodeummovimentode
reflexão.Nessesentido,contrariamenteaoserqueprocuravasuafunda-
25
mentaçãoemdeterminaçõesfixas,aessênciasepõecomodeterminação
Nesteponto,tomoaliberdadederemeteraSAFATLE,LinguagemenegaçãoemHegel
inDoisPontos reflexivaerelacional.Emoutraspalavras,aessênciaéaunificaçãodesse
186 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 187
movimentoreflexivodepôrseuseremumoutro,cindir-seeretornar Amorte–seassimquisermoschamarestainefetividade–éacoisa
VladimirSafatle
DossiêFilosofiaePsicanálise
asidestaposição.DaíporqueHegelpodeafirmarque,quandooser maisterrível;esusteroqueestámortorequeraforçamáxima.Abele-
encontra-sedeterminadocomoessência,eleaparececomoumserque zasem-forçadetestaoentendimentoporquelhecobraoquenãotem
emsiestánegado,tododeterminadoetodofinito,ou,ainda,como condiçõesdecumprir.Porém,avidadoespíritonãoéaqueseatemo-
“serquepelanegatividadedesimesmosemediatizaconsigo”(Hegel rizaanteamorteeseconservaintactadadevastação,maséavidaque
14,p.112).Nessesentido,Hegelinsistequeainternalizaçãodanega- suportaamorteenelaseconserva.Oespíritosóalcançasuaverdadeà
çãodesipróprioàconfiguraçãodaessênciadevesemanifestarini- medidaqueseencontraasimesmonodilaceramentoabsoluto.Elenão
cialmentecomonegatividadeabsolutadiantedapermanênciadetoda éessapotênciacomoopositivoqueseafastadonegativo–comoaodi-
determinidade. zerdealgumacoisaqueénulaoufalsa,liquidamoscomelaepassamos
Énestesentidoqueaangústiadevesercompreendidacomoama- a outro assunto.Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto
nifestação fenomenológica inicial dessa essência, que só pode se pôr encaradiretamenteonegativoesedemorajuntodele.Eledemorar-seé
atravésdo“fluidificarabsolutodetodosubsistir”,ouseja,donegaraes- opodermágicoqueconverteonegativoemser.(Hegel15,p.38)
sencialidadedetodadeterminidadeaferradaemidentidadesopositivas.
Manifestaçãoinicial,daíporqueHegelfalade“essênciasimples”,mas Aofalarqueavidadoespíritoéaquelavidaquesuportaamorte
manifestaçãoabsolutamentenecessária.Aangústiapodeaquiteressa e nela se conserva, Hegel quer dizer que o espírito é capaz de in-
funçãoporquenãosetratadeumtremorporistoouaquilo,poreste ternalizareconservaranegaçãodoquenãosesubmeteaomundo
ouaqueleinstante,masdeumafragilizaçãocompletadeseusvínculos organizado pela representação e fundamentado pela forma auto-
aomundoeàimagemdesimesmo.Éessafragilizaçãoquetraduzde idêntica do Eu. Internalizar, aqui, não é outra coisa sendo reme-
maneiramaisperfeitaoqueestáemjogonesse“medodiantedamorte, morar.Oqueoespíritoprocurasempreesquecernãoéapenasseu
dosenhorabsoluto”.Otermo“angústia”temaquiumusofeliz,porque processohistóricodeformação,masaquiloqueomove,ouseja,a
indicaexatamenteessaposiçãoexistencialnaqualosujeitopareceper- negação como força de fragilização das imagens de mundo e dos
dertodovínculododesejoemrelaçãoaumobjeto,comoseestivésse- sistemassubstancialmenteenraizadosdepráticassociaisdeaçãoe
mosdiantedeumdesejonãomaisdesprovidodeforma.Noentanto,se justificação.Rememoraré,pois,nãoapenasinternalizaronegativo,
aconsciênciaforcapazdecompreenderaangústiaqueelasentiuaover mas transformá-lo em ser, dotá-lo de determinação objetiva. Mas
afragilizaçãodeseumundoedesualinguagemcomoprimeiramani- rememoraressanegaçãoqueapareceaquicomomortesóépossível
festaçãodoespírito,desseespíritoquesósemanifestadestruindotoda seopensarabandonaroprimadodarepresentaçãocomseusproto-
determinidadefixa,entãoaconsciênciapoderácompreenderqueesse colosfixosdeidentidadeediferençaecomsuarecusadarealidade
“caminhododesespero”é,nofundo,internalizaçãodonegativocomo ontológicadanegação.
determinaçãoessencialdaessência.Daíporque“otemordosenhoréo Assim, se a morte nunca aparece na Fenomenologia do espírito
início[masapenasoinício]dasabedoria”(Hegel15,p.132),umasabe- comonegaçãoabstratadaconsciência–se,aocontrário,elaésem-
doriadescritaporHegelnosseguintestermos: preessepontodedespossessãofundamentalparaqueosujeitotenha
aexperiênciadeumaalteridadeinternaaosimesmo,éporquehá
umníveldanegaçãoqueésempremododepôranão-identidade
188 Discurson.362007 Ateoriadaspulsõescomoontologianegativa 189
e reconfigurar o campo de determinações objetivas. Lembremos, 8. DAVID-MÉNARD, Monique. “Les pulsions caractérisés par leurs destins:
VladimirSafatle
DossiêFilosofiaePsicanálise
por exemplo, como Dubarle notou claramente que o termo que Freud s’éloigne-t-il du concept philosophique de Trieb?” In Bienenstock
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o ser está desaparecendo (ou em fading, se quiséssemos falar com 16.–––––.WissenschaftderLogikII,Frankfurt:Suhrkamp,1986.
Lacan)eondeonadaestámanifestando-seemumadeterminidade. 17.KANT,Emanuel.Críticadarazãopura.Lisboa:FundaçãoCalousteGulben-
Trata-sedemovimentocujaexposiçãoexigeumaoutracompreen- kian,1989.
sãodoqueéumobjeto,paraalémdaidéiadoobjetocomopólofixo 18.–––––.“Ensaioparaintroduziremfilosofiaoconceitodegrandezanega-
de identidade. E é para esse ponto que Lacan, com suas reflexões tiva”.InEnsaiospré-críticos.SãoPaulo:Unesp,2005.
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190
DossiêFilosofiaePsicanálise Discurson.362007
SubjetividadeeculturaemFreud:
ressonânciasno‘mal-estar’contemporâneo
VincenzodiMatteo
ProfessordeFilosofiadaUniversidadeFederaldePernambuco(UFPE)
Subjetividade e cultura em Freud: ressonâncias no‘mal-estar’ contem-
porâneo
Este artigo discute, pensar o “sujeito” no discurso cultural de Freud como
Aproblemática
gradedeleituraparaanáliseecompreensãodos“destinos”dasubjetividadena
contemporaneidade. Parto da convicção de que os escritos freudianos sobre OmitodeÉdipoedaesfingepodeserinterpretado,plasticamente,
a cultura ainda são úteis para pensarmos os problemas das subjetividades comooencontrodramáticodohomemconsigomesmo.O“mons-
singulares,dasinstituiçõessociaisepolíticas,dasnovasformasdesofrimento tro”queointerpelaéooutrodesimesmorefletidonoespelhode
presentesnaatualidade.Todavia,éinegávelquenossasociedadepós-industrial umserdefeiçõeshíbridas–humanaseanimais–,portadordelin-
e globalizada não é a mesma de Freud. É legítimo, portanto, se colocar a guagem e que pergunta pelo enigma de um ser que remete clara-
seguintequestão:oqueaprendemoscomFreudsobreculturae“mal-estar”–e mente a sua constituição fundamental de historicidade e finitude.
devemos, portanto, incorporar ao nosso patrimônio cultural – e o que merece Decifrar-se,interpretar-seéoúnicocaminhoqueselheabrepara
ser problematizado. Para ensaiar algumas respostas, certamente provisórias, nãoserdevoradopeloabsurdo.
procedo,inicialmente,aumaexplicitaçãodaproblemáticaenvolvida.Emseguida, Omito,narcisicamente,glorificaÉdipoemataaesfinge,masela,
reconstruogeneticamenteopensamentofreudianosobreoconflitosubjetividade- narealidade,nãomorre.Podemosconsiderartodoodesdobramen-
cultura,confrontando-ocomnossarealidadeatual. todafilosofiagrega,aténossosdias,comoumatentativasempreina-
Palavras-chave:subjetividade,cultura,mal-estar cabadaderesponderintelectualeexistencialmenteaessa“pergunta
quenãoquercalar”:quemouoqueéohomem?Daíacadeiade
SubjectivityandcultureinFreud
discursossobreohumano,articulando-seemtornodeumacons-
ThispaperdiscussesFreud’snotionofsubjectishiswritingsconcerningculture
telação semântica que foi se enriquecendo na história milenar da
(mainlyCivilisationanditsdiscontents)asameansofunderstandingcontem-
filosofia:psique,daimon,logos,nous,pneuma,anima,pessoa,cons-
poraryproblemsconcerningsubjectivity.Butgiventhatourownsocietydiffers
ciência,mente,razão,pensamento,espírito,eu,cogitoetc.
widelyfromFreud’sinmanyrelevantrespects,therearisesthequestionofwhich
A partir da modernidade, os discursos se estruturaram em tor-
elementsofhistheoryretaintheirpertinenceandwhichshouldbeadaptedor
rejected.Theanswertothisquestionliesinacarefulgeneticreconstructionof
nodosignificante“sujeito”,queganhouumasobredeterminaçãode
Freud’sconceptionoftheconflictbetweensubjectivityandculturesoastobe significados, beirando a equivocidade. Não é por acaso que Freud
contrastedwithourownpresentsituation. nãoseutilizadessetermonosseusescritos.Nãoéapenaspornão
Keywords:subjectivity,culture,discontentment,civilisation,Freud serfilósofo,masprecisamentepordiscordardeumsignificadoque
tinhasetornadocomumnanossaculturaapartirdecertacompre-
ensão filosófica: sujeito como sinônimo de consciência, indivíduo
autocentrado e livre, uma substância permanente, fiadora de um
núcleoidentitárioresistenteaofluirdotempo.
194 Discurson.362007 SubjetividadeeculturaemFreud 195
VincenzodiMatteo
DossiêFilosofiaePsicanálise
Ateoriafreudianadacultura anecessidadedetaisreformas,considerandoquea“moralsexualci-
VincenzodiMatteo
DossiêFilosofiaePsicanálise
vilizada”éresponsávelpeloaumentoda“doençanervosamoderna”.
Opiqueniquepsicanalítico Mas, afinal, o que há de tão escandaloso nessa análise e nessa
proposta?Porqueapsicanálisefoiacusadadeseruma“inimigada
Oprimeirotexto,de1908,seabreefechadeumamaneirasignifi- cultura”?
cativaoucasualcomascitaçõesdasidéiasdeumprofessordefiloso-
fia,ChristianVonEhrenfels.Preferimosdestacarofatoaoignorá-lo Aproblemáticadasexualidadenacultura
pela simples razão da conhecida aversão habitual do fundador da
psicanáliseparacomafilosofiaeosfilósofos.Esperoqueessaines- Aparentemente,nadahádeexcepcionalparalegitimarumaresis-
perada“afinidade eletiva” entre psicanálise e filosofia anime nossa tênciadaculturaàpsicanálise.Freudfalaem“reformas”naseqüência
reflexãosobrealgunspontosdeinteressecomum. doprofessordefilosofiaVonEhrenfels,aquemtinhaanteriormente
caracterizadocomoalguémanimado“poramoràverdadeezelore-
Modernidade,filosofiaepsicanálise formador”.Noentanto,éexatamenteesse“amoràverdade”queleva
Freudaproporindiretamenteumanovaéticasexual,aparentemente
Moralsexual“civilizada”edoençanervosamodernadeveserlido menos elevada, mas certamente mais honesta, na medida em que
naseqüênciadoprojetoiluminista.Trata-sedeumtextoaomesmo sugerequeosindivíduosseriammaissaudáveisselhesfossepossível
tempofilhoeconsciênciacríticadamodernidade. seremmenosbons(Freud9,p.197).
Eleéfrutodamodernidadepelodiscursoconstrutivo-reformador Aoquestionarumainstituiçãocomoomatrimôniomonogâmico,
queoperpassa.Arazão,aciêncialiberta.Onovosaberproduzido tãocaraàreligiãoeàsociedadeburguesa,Freudretiraasexualidade
pelapsicanálisesobreasexualidadehumana,apartirdoestudodas doregistromoraldaobediênciaaosusosecostumesdeumadeter-
neuroses,podelibertarosneuróticosdeseusofrimentoeacultura minadacomunidadeeainscrevenocampodaéticaedeumadupla
desuairracionalidade. história:adasvicissitudesdaspulsõessexuaisnapequenahistóriade
Éconsciênciacríticaportratar-sedeumaanálise-denúncia,umdis- cadaindivíduoeadasinterdiçõesnagrandehistóriadacultura.Isso
cursocrítico-desconstrutivodarepressãoexcessivaexercidapelacultura podedaraimpressãodequenoconflitoentrenormaedesejo,obe-
sobreasexualidade,aomesmotempoemquerevelaoduplodescen- diência e transgressão, proveito cultural e satisfação sexual, Freud
tramentoeassujeitamentodecadaserhumanoao“outro” do mun- advogue em defesa do homem sofredor contra a“óbvia injustiça”
dopulsionalporumasexualidadepolimorfaqueodominaedo daculturaque“exigedetodosumaidênticacondutasexual”.Não
mundoculturalcomsuasexigências,ideaiseinterdições. estamoscondenadosaescolherapenasentredesejoinsatisfeito,infi-
Após ter criticado o excessivo moralismo que normatiza a po- delidade,neurose,perversãoehipocrisia.Oamoràverdadeeozelo
limorfia da sexualidade humana, era de se esperar que Freud, em reformadornospodemlibertar.
nomedaciênciapsicanalítica,apontassealgumasalternativas.Otex-
to,porém,seencerraumpoucoabruptamente,nãoreconhecendo
aomédicoaatribuiçãodeproporreformas,masapenasdedefender
198 Discurson.362007 SubjetividadeeculturaemFreud 199
Alémdahipocrisiaeintolerância Noentanto,alémdapropostaéticaacimaexplicitada,háumaatua-
VincenzodiMatteo
DossiêFilosofiaePsicanálise
lidadeinegável.A“revoluçãosexual”talveznãotenhasidonemtão
Ametáforaquepodecaracterizaressaprimeirateoriafreudiana profunda,nemtãoampla,nemtãodouradoraseconsiderarmosas
daculturaéadopiqueniquenocampode“senhorasecavalheiros críticasdirigidasaFreudporterabandonadoindevidamenteatese
debomconvíviosocial”dequenosfalaemAsperspectivasfuturas daseduçãoreal,orecrudescimentonocenárioculturalnorte-ame-
daterapêuticapsicanalítica(Freud10,p.134),umtextonascidoda ricano,especialmenteapartirdasúltimasdécadas,deumneomora-
euforiadaexpansãodomovimentopsicanalítico. lismotantodedireitadecunhoreligiosoquantodeesquerdarelacio-
Assenhorastinhamcombinadoentresiqueasenhaparairsatis- nadocomomovimentofeminista1,atransferênciadaproblemática
fazersuasnecessidadesfisiológicasseriaaexpressão“ircolherflores”. sexual de um sistema normativo para o de mercado (Rouanet 19,
Noentanto,umsujeitomaliciosodescobriuosegredo,mandouim- pp.135-64).
primirefezcircularnogrupooseguinteaviso:pede-seàssenhoras Dequalquermaneira,sehá,defato,certavisão“otimista”,nãovai
quedesejamiràtoaletequeanunciemquevãocolherflores.Oque demoraremsealterarquandoFreudsedefrontar,emTotemetabu,
vaiocorrerdiantedessarevelação?Assenhorasadmitirãocomnatu- comoassassinadodoPaidahordaprimitiva.
ralidadesuasnecessidadesfisiológicasenenhumhomemestranhará.
Moraldaestória:opiqueniquerepresentaacultura;asenha,ahipo-
crisianeurótica;apessoamaliciosaopsicanalistaqueadesmascara. “NoprincípioeraoAto”
Comocrescimentodaautoridadesocialdapsicanálise(aumentoda
transferência positiva), não era um sonho utópico acreditar que a ÉcomessafrasedeGöethequeFreudencerrasuaousadaincursão
neurosepudessesererradicadadaculturaeasexualidadeserviven- nas origens da cultura, em Totem e tabu (Freud 11). O ato, nesse
ciadadeumamaneiramenos“civilizada”emais“natural”. caso,éocrimedeparricídioefetivamentepraticadopelosfilhosque
integravamahordaprimitiva,trágicoatofundadordasociedade,da
Tesesultrapassadas? moral,dareligião,daarte,equedeixoumarcasindeléveisnahistória
humana.
Diantedarevoluçãosexualqueseoperounoséc.XXcomainven-
çãodapílula,oavançodofeminismo,asmudançasculturaispro- Sujeitoecultura:umaconfrontação
porcionadaspelaprópriapsicanálisenaáreadasexualidadeetendo
presentesosdesdobramentosposterioresdateoriapsicanalíticada Nessetextode1913,ateoriafreudianadaculturaparecetornar-se
cultura,poderiaparecerlegítimoabandonaressetextoaumamera maissombria;todavia,háumaspectoquenãopodesermenospreza-
curiosidadehistórica.Asresistênciasàpsicanálise,hoje,nãosedão doquandoaconfrontamoscomostextosanterioressobreoassunto.
porelaseruma“jovemciência”,masporterenvelhecido,namedida
emquepensouoindivíduoeseumal-estarnumasociedademono-
gâmica e de capitalismo industrial, diferente da nossa, com novas
formasdelaçossociaismuitomaisdiversificadaseflexíveis. 1
Cf.Rouanet20
200 Discurson.362007 SubjetividadeeculturaemFreud 201
Se,defato,emMoralsexual“civilizada”edoençanervosamoderna semrestriçõesseusimpulsossexuaiseagressivos?Antes,portanto,
VincenzodiMatteo
DossiêFilosofiaePsicanálise
Freudsituavaaorigemdomal-estarforadosindivíduos,nacultura docrime,daviolênciacontraopai,háumaeróticafilial,juntocom
comsuasexigênciasexcessivasderenúnciadaspulsõesdeseusmem- umaeróticafraternaldenaturezahomossexual–dizFreud–euma
bros,agora,apenasquatroanosdepois,arenúnciaeo“mal-estar”se eróticaincestuosaqueosincitanaconquistadesuasprópriasmães
inscrevemnaprópriaestruturadosujeitocomoefeitodeculpabili- eirmãs.
zaçãopelosdesejosincestuososeparricidas.Naprimeirateoriada Na realidade, para Freud, esse erotismo talvez não seja o único
cultura,osujeitoquesofre,oneurótico,épercebidocomovítimade elemento que anima essa revolta, ao postular também a invenção
umaculturamá,excessivamenteexigente.Torna-senecessáriauma deumanovaarma.Todavia,épossíveldiscordardeleeafirmar:no
reeducaçãoeumareformadaculturaàluzdasdescobertasdapsi- princípionãoeraoAto,masoEros(Dadoun6,p.410-20).Nãoha-
canálisearespeitodoinconscienteedasexualidade.Jánasegunda, veria,portanto,um“crimehorrendo”naorigemdesseacontecimen-
éosujeitocomsuaspulsõeseróticaseagressivasoperigonúmero topré-histórico,míticooufantasiado,masumprocessodeerotiza-
um,eaculturaévistapositivamente.Graçaaosseusmecanismos çãocriadorcapazdefazerhistória,deencontraroutrassaídasque
derecalqueesublimação,aalturapoderáneutralizarecanalizartais vãoalémdameracompulsãoàrepetiçãodeumacondiçãohumana
pulsõesparaobemdosujeitoedaprópriacomunidade. vividasobosignodatirania,dacastraçãodespótica,daexclusãodo
Entretanto,éprecisoreconhecerque,porcertosaspectos,Totem grupo.Éessafunçãofraternaqueéprecisotambémterpresentepara
etabuprojetasobretodaahistóriadaculturaasombrasinistrada pensarmosnossahistóriaecultura(Kehl17).
experiênciadeummal-estar,deumnegativodedifíciltransposição: EmTotemetabu,essafunçãofraternaécelebradanobanqueteto-
crime(parricídio),castigo(culpa)erenúnciacultural,pelorecalque, têmicoqueconsolidaacomunhãodosirmãospelavitóriasobreopai
àspulsõeseróticaseagressivas. assassinado, figura temida, mas também intensamente desejada e in-
EssaleituradeTotemetabuépossívelelegítima,masseriaten- corporada.Asociedadedeirmãos,portanto,seequilibraesustentana
denciosaseignorássemosoladoluminosoqueencerra,apontode igualdadefundamental,namedidaemqueatodoséinterditadoocupar
– parafraseando Agostinho – podermos dizer do crime praticado olugardopaiassassinadoparanãoreeditarodespotismodasorigens.
pelos irmãos: Oh, felix culpa! Esse aspecto não está evidenciado e Aomesmotempo,trata-sedeumaigualdadenadiferença,namedida
tematizadoemTotemetabu,masnacorrespondênciacomEinstein, emqueafiguradopaimorto,representantedosvalores,ideais,leisin-
Porqueaguerra?(Freud14). dispensáveisàcivilização,possibilitaquecadaumpossaconstruirum
destinopróprionoslimitesdocamposimbólicodelimitadosporele.
Funçãopaternaefunçãofraterna Trata-se,porém,deumpactocivilizatóriofrágil.Háumresíduo,
umnúcleoduroderesistênciasànovasociedadeeàculturanas-
Ao retomar essa “estória”, Freud nos diz que, nessa horda pri- cente.Persisteodesejodeocuparolugarinterditadodopaiassas-
mitiva, a força bruta do pai foi esmagada pela união dos filhos. E sinado, desejo que se torna mais perigoso para a cultura quando
comoseriapossívelessauniãosemEros?Comodivinizaropaise, coincidecomademandadeproteçãodosoutros.Freudvairetomar
aninhadonoódio,nãoseescondesseumsentimentodeamor,nem essetemaalgunsanosmaistarde,emPsicologiadegrupoeanálisedo
que seja na forma de identificação com aquele que podia realizar ego(Freud12,pp.89-90).
202 Discurson.362007 SubjetividadeeculturaemFreud 203
Aparáboladosporcos-espinhos dadimensãosocialdohomem,demodoqueosváriosagrupamen-
VincenzodiMatteo
DossiêFilosofiaePsicanálise
tos sociais são uma regressão à estrutura da horda, uma reedição
EspremidoentreTotemetabu[1913]eOegoeoid[1923],o“pe- daquelaexperiência.
quenolivro”de1921,Psicologiadasmassaseanálisedoego,nãoteve Assimcomoháumacontinuidadefundamentalentreamentedo
amesmaressonância.Noentanto,possuipeculiarimportância,não homemprimitivo,doneurótico,dacriançae,dealgumamaneira,do
apenaspelosaspectospolíticosdotexto.Aoexplicarapsicologiadas homemditonormal,tambémépossívelreconhecernavidagrupal
massasapartirdapsicologiadamenteindividual,olivroseconstitui (micro, macro, espontânea e institucional) do homem contempo-
umpontodeconvergênciadessasteoriasedeantecipaçãodeuma râneoa“persistência”dahordaoriginária.Há,sim,umaestrutura
novatópicaquecomeçaasedelinearparaexplicaraestruturaeo comumqueperpassaessasformaçõessociais,porque–conformea
funcionamentodoaparelhopsíquico(id,ego,superego). formulaçãolapidardeFreud–“ohomeméumanimaldehorda”.
AtesedeFreudéqueamassaseorganizaeseestruturaapartir
deumduploprocesso:instalaçãodeummesmoobjetoexterno–o Teoriareacionáriaoucrítica?
líderdogrupo–nolugardeseu“idealdoeu”eidentificaçãorecípro-
ca.Nessesentido,atransformaçãopsíquicadoindivíduonamassa OquemaisserecriminaemFreudéainsistênciaemprivilegiaro
é produto de uma redução do narcisismo de cada um dos mem- eixoverticalparacompreenderosocialeopolítico,desconsiderando
brosemfunçãodainstalaçãodomesmolídercomo“idealdoeu”e outrosmodelos.Nãoseriapossívelumateoriadopoderdogrupo
dovínculoamorosoqueseestabeleceentreospares,funcionando semchefe?Aoafirmaraprimaziadolaçoafetivocomolídersobre
comocompensaçãopelarenúncianarcísica. aquelemantidoentresosmembrosdamultidão,parecequeFreud
E,finalmente,acrescentandooqueFreudvaidesenvolverapartir simpatizacomateoriadopoderdochefesobreogrupo.
docapítuloIX:oindivíduonamultidãoregride,dealgumamaneira, Talvezesseparadigmanãodêcontadasvariadasenovasformas
a um modelo infantil e arcaico de funcionamento, na medida em deliderançaseexpressõesdemocráticassurgidasnacontemporanei-
queohomemé“umanimaldehorda,umacriaturaindividualnuma dade,atécomoformadecontestaçãodessetipodeautoridade,mas
hordaconduzidaporumchefe”(Freud12,p.147). valeparaentendermosasrazõesdecertanostalgiaoufortedesejo
porumlídersalvador,messiânico,quenosprotejadetodasasdife-
Ohomem:animalgregáriooudehorda? rençasedetodososdiferentesquejáforamchamadosdebárbaros,
selvagens,negros,judeus,comunistas,imperialistasequehojeaten-
Se perguntarmos pela continuidade ou descontinuidade desse dempelonomedeterroristas.
texto com os anteriores sobre a cultura, a resposta freudiana seria Nãopodemosreduzirahermenêuticadeumtextoàsintenções
certamentepelacontinuidade.Asociedadehumana–e,dentrode- doautor,mastrata-sedeumelementodoqualnãopodemospres-
las,osinúmerosgruposoumultidõesquevenhamaseconstituirde cindir, especialmente nos escritos de Freud, um pesquisador que
umaformaespontâneaouinstitucional–éumdesdobramentono testousobresipróprio(auto-análise)ashipótesesexplicativasda
tempodaquelaprimeiraexperiênciaorigináriadescritaemToteme psicanáliseetentoupautar-seporelasnasuaconduta.Nessesen-
tabu.Trata-sedeuma“herançafilogenética”,umtraçoconstitutivo tido,podesermeracoincidência–masquenãodeixadesersigni-
204 Discurson.362007 SubjetividadeeculturaemFreud 205
ficativa–ofatodequenacartinhaaRomainRolland,em4.3.1923,que Ooutro(alteridade)eoeu(singularidade)
VincenzodiMatteo
DossiêFilosofiaePsicanálise
acompanhaaremessadolivroPsicologiadasmassaseanálisedoego,ele
tenhaescrito: Àmassaouaoindivíduoenredadonoseudesejoilusório,Freud
contrapõeumasingularidadeanimadaporuminconformismoque
Grandepartedotrabalhodaminhavida[...]foipassada[naten- podechegaràrevoltaparaatingirsualiberdade.Apassividade,are-
tativade]destruirasminhasilusõeseasdahumanidade.Masseessa signação,oconformismo,aobediêncianãosãoumdestinoaoqual
esperançanãopuderpelomenosemparteserrealizada[...]queespécie estamos condenados na nossa vida em grupo, a despeito de nossa
defuturonosaguarda?Certamenteébemdifícilmanteracontinuação “identidade”seconstituirdoprecipitadodeinúmerasidentificações.
danossaespécienoconflitoentreanossanaturezainstintivaeasexi- ParanãocorreroriscodefazerdizeraFreudoqueémaisnosso
gênciasdacivilização.(Freud13,pp.398-9). desejodoquefidelidadeaotexto,registramos,antesdetudo,ase-
guinteafirmaçãoinequívoca:
Élegítimo,portanto,suporquetambémnesselivroFreudsetenha
proposto a missão iluminista de libertar os indivíduos e a huma- Cada indivíduo, portanto, partilha de numerosas mentes grupais
nidade da ilusão para devolver-lhes a difícil tarefa de assumir sua – as de sua raça, classe, credo, nacionalidade etc. – podendo também
singularidadesemperder-senaalienaçãodamassa. elevar-sesobreelas,namedidaemquepossuiumfragmentodeindepen-
Afinal,afirmacomtodasasletrasqueéumailusão–algodaordem dênciaeoriginalidade.(Freud12,p.163,grifomeu).
dodesejo–oquelevaosmembrosdeumgrupo,multidãoouinsti-
tuiçãoaacreditarquesãoamadosdemodoigualejustopelolíderPai. Alémdeafirmaçõesisoladasecasospessoais,Freudnosoferece
Osersocialdohomemévividonamassacomoumsonhoacordado. tambémumapsicologiaindividual,presentemaisno“Pós-escri-
Háumavidalibidinalqueregrideàsexperiênciasarcaicasdoindiví- to”doquenosonzecapítulosprecedentes.
duo(infância)edaespécie(filogênese).Paidahordaoriginária,Paida Osujeitosingular,queFreudopõeàmultidãodeveserprocura-
infânciaeLíderacabamsesobrepondo,seconfundindoenosinfan- dodoladodarevoltadosirmãos,ondeseencontraapossibilidade
tilizando.Háumdesejoqueperpassaosgruposequeéumdesejode daemergênciadesingularidadeslivres.Esseprocessodeindividu-
autoridade.Amultidão,diráFreud,éávida,temsededeautoridadee, alização,desingularização,passa,naanálisedeFreud,pelomito,
conseqüentemente,desubmissão. pelapoesia,pelafiguradoherói.Oindivíduoqueprimeiroemer-
Diantedopodersedutor,quasehipnótico,dolíderedasmassas, gedapsicologiadogrupoéopoeta-heróique,pormeiodesua
“depósitoherdadodafilogênesedalibidohumana”,parecequenão imaginação, conta suas façanhas do assassinato do Pai como se
hácomopensaraliberdadeeasingularidade.Noentanto,adescri- tivessesidoumaempresasolitária.
çãofreudianadaestruturadessamassa-sociedade,fundadaeman- Talvez,comoseqüeladesseprimeiropoeta-herói,capazdever-
tida na ilusão, permite criticar justamente os valores que ela mais balizaredarsentidoàação,seabraparaosmembrosdequalquer
preza (o chefe e a autoridade) evidenciando os aspectos críticos e grupo,associação,multidãoouinstituiçãooespaçodecertasoli-
propositivospresentesnaanálisefreudianadofatosocial. dãoheróicaquelhepermitaseraomesmotemposimesmoecom
osoutros,naturalmentemaiscomoumatarefainfindáveldoque
206 Discurson.362007 SubjetividadeeculturaemFreud 207
umaconquistapermanente.Afinal,ailusãoquealimentaosgru- articulaemtornodabuscadascausasquedeterminamnossodes-
VincenzodiMatteo
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pos,porserfilhadodesejo,partilhadaindestrutibilidadedopai contentamentoeinfelicidadenacivilização.
que a gerou. Nesse sentido, esse modelo aristocrático de sujeito Arespostaéformuladaatravésdeumduplodiscurso,quesear-
não resiste ao desafio real da comunidade humana, simbolizada ticulainicialmentecomafiguramíticadeErose,depois,comade
nafamosaalegoriadosporcos-espinhos. Thánatos. O primeiro gira em torno de uma erótica. O mal-estar
decorreriadasproibiçõesdaculturaaoincestoeàsexualidadepo-
Osimpasses limorfaeperversa,bemcomodasrestriçõesàprópriasexualidade
genital, de fato mais tolerada do que permitida. As tensões entre
Freudsimpatizacomoapólogoschopenhaueriano(Freud12,p. indivíduoseculturasãoreais,masnãoparecemtotalmenteintrans-
128enota1).Certamentesimpatizamenoscomacompaixãopara poníveis.ApartirdocapítuloV,comaintrodução,apartirdocap.
comooutrodequefalao“solitáriodeFrankfurt”,seconsiderarmos V,domandamentoabsurdodeamaropróximo,queirrompeoirra-
as duras críticas dirigidas ao mandamento do amor ao próximo. cionaldaagressividadeedadestrutividade.Apulsãodemorte,uma
Essaparábolailustraodrama–paranãofalaratragédia–queperpassa “pulsão original e auto-subsistente”, ameaça irremediavelmente a
o laço social entre os homens. Esse drama é necessário, porque o possibilidadedefelicidadedentrodacultura.Omal-estaréopreço
desamparoindividualegrupalfrenteàinsensibilidadedomundoo quesedevepagarparaqueacivilizaçãosetornepossívelesedesen-
exige;édolorido,porquenadagarantequeogrupohumanoconsiga volva;decorredeumsentimentodeculpainconsciente,filhodeuma
encontrarumequilíbrioentreasexigênciasdefelicidadeindividual agressividadequeacultura,pelosuperegocultural,conseguecolocar
easexigênciascomunitárias,talcomofiguradoemOmal-estarna aserviçodeEros,devolvendo-acontraopróprioindivíduo.
civilização,nabonitaimagemdoplanetaquerodaemtornodeum Emsuma,Freudmostra-nosqueafelicidadenãoestáinscritanos
corpocentral,aomesmotempoemquegiraemtornodeseupró- planosdacriaçãoequeodestinodohomemestámaispróximoda
prioeixo(Freud13,pp.165-6).Nessesentido,talvezsejaatépossível infelicidade, cujas causas devem ser procuradas num mundo sem
sonhar com uma convivência menos trágica dos porcos-espinhos Providência,numaculturasemtolerânciaenanaturezadaspróprias
semprecisarrenunciaraseusespinhosnemutilizá-losparasees- pulsõessemsatisfaçãoplenapossível.
petarunsaosoutrosdeumamaneirasádico-masoquista.Trata-se, Omundodesencantado,porém,nãoéapenasummundovazio
naturalmente,deumsonhoentendidomaiscomohorizontedoque de Deus e da consolação que o acompanha. É também o mundo
como meta histórica, porque, afinal, há uma luta de gigantes em habitadoporummalradicalevidenciadopelapulsãodemorte.Daí
curso,comdesfechoimprevisível. resulta o caráter dramático da existência humana. A luta para se
manternaexistênciaenacoexistêncianãoéapenascontraumare-
alidadecegachamadaDestino,mastambémcontraumarealidade
Alutadegigantes queatendepelonomedeAgressividade,Destrutividade,Crueldade,
Ruindade.
Nofamosotextode1929-30–Omal-estarnacultura–Freudre- Semdeuses,abandonadosaodesamparofundamentalquecarac-
tomaumasériedetemasculturaisjáanteriormenteabordadoseos terizaaexistênciahumana,énocampodaéticaquesetravaabatalha
208 Discurson.362007 SubjetividadeeculturaemFreud 209
decisivadacivilização.Aéticaéatentativaterapêuticadelidarcom pulsõesagressivas)eincesto(recalquedaspulsõessexuais)–com-
VincenzodiMatteo
DossiêFilosofiaePsicanálise
o ponto mais doloroso dessa existência, o das relações entre seres põem,enfim,onascimentodasociedadecomsuasinstituiçõesbá-
humanos. No entanto, Freud se recusa a apontar saídas ou levan- sicas–areligião,amoral,osistemadetrocasdasmulheres,aarte
tar-secomoumprofetadiantedeseussemelhantes.Cadaumterá (narrações,figurações,representaçõesdasagadahorda).
queencontrarsuaprópriasalvaçãoparaenfrentaradurezadavidae Dessa maneira, o complexo de Édipo parece se constituir como
ninguémpodegarantirqueErosleveamelhorsobreThánatos. aconstruçãoteóricaqueresolveriatodososproblemasdaexistên-
EssavisãonãoconduzFreudaumarevoltametafísicaouauma ciahumana.Trata-sedeconstruçãoteóricasemdúvidafascinantee
cansadaresignação,masaumverdadeiroengajamentoético.Algu- sedutora.Noentanto,omodelodorecalqueeoparadigmaedipia-
maspistaspodemserinferidasdotextodeOmal-estar.Freudnão no–naopiniãodealgunspsicanalistas–chegaramacertoimpasse
éumasceta,nemummoralista,nemumanárquico.Entrealeieo parapoderexplicarasnossasformasdesofrimentoedesubjetiva-
desejo,coloca-seemdefesadodesejo,masnãocontraalei.Sugere, ção(Costa5,pp.7-30)ou,naspalavrasdeJoelBirman,apsicanálise
porém, que se diminua rigidez do superego cultural e, conseqüen- sofre de“certa insuficiência de instrumentos interpretativos” para
temente,dasexigênciaséticas,paraquesetornemmaiscompatíveis darcontadasnovasmodalidadesdeinscriçãodassubjetividadesno
comarealidadedopsiquismohumano.Parodiandoumacélebrefra- mundoatual(Birman4,pp.15-6).
sedele–“ondehaviaiddeveadvirEgo”(Freud14,p.102)–poderí- OquemudoudotempodeFreudparaonossoparasepoderco-
amosresumirapropostafreudianaemondehaviasuperegocultural locaremquestãooqueeleconsideravaumadas“pedrasfundamen-
deveadviroego. tais”dapsicanálise?
Essaleitura“afirmativa”quefizemostantodeOmal-estarnacultura SeaceitarmosadivisãopropostapelohistoriadorEricHobsbawm
quantodostextoscorrelacionadosélegítimaporqueavirtualidadedos (16)paraonosso“breveséculoXX”,ostextosdeFreudsobreacul-
textosapossibilita.Mesmoassim,surgenaturalmenteapergunta turaforamescritosnumperíodoqueeledenominade“Eradaca-
sobreavalidadedasanálisesedosprognósticospsicanalíticosfreu- tástrofe”(1914-45),àqualsucedeua“Eradeouro”,unsvintecinco
dianosparaanossa“modernidadelíquida”(Bauman2). ou trinta anos de extraordinário crescimento econômico e trans-
formaçãosocial.Aosanosdourados,sobreveioa“Eradacriseeda
incerteza”(1970-91).
Consideraçõesfinais: Nasúltimasdécadas,defato,omundoconheceumacromudanças
Omal-estarnaatualidade político-econômico-culturais que desaguaram no fenômeno com-
plexo e ambivalente da globalização. Junto com a produção e cir-
Emtodososescritosanalisados,háumfiovermelhoqueosper- culação de bens materiais e simbólicos sem precedentes, gerou-se
passaeosiluminaou,sepreferirmosoutrametáfora,umleitmotiv uma sociedade de excluídos, com suas manifestações depressivas
queserepetequalbolerodeRavel:ahordaprimitiva,atiraniado e/ouagressivasconformeosentimentodeimpotênciaouderevolta
Paidahorda,arevoltadosirmãos,oassassinatodopai,ocomplexo vivenciadosporcadaum.
deculpa,orecalquedocrime,adivinizaçãodoPai,oestabeleci- Fala-sedeumaculturanarcísica(Lasch18)edoespetáculo(De-
mentodosdoisprincipaistabusmorais–parricídio(recalquedas bord7),deuma“subjetividade rasa”, de uma sociedade depressiva
210 Discurson.362007 SubjetividadeeculturaemFreud 211
que prefere curar as doenças do espírito por uma terapia medica- mundialserealizounoBrasilemoutubrode2003.2Muitosdesafios
VincenzodiMatteo
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mentosa,deummal-estarnapós-modernidade(Bauman1),deum teórico-clínicosforamevidenciados.
mal-estarnaatualidade(Birman4). Pensaroracismo,adiscriminação,osmassacrescontraasminorias
Aoladododiscursomédico-científicodasneurociências,aso- étnicas,lingüísticasereligiosas,asguerrasimperialistas,oterrorismo
ciedade de massa e de consumo veicula seu próprio discurso re- inclusivedeestado,atortura,apenademorteeaviolênciaemgeral,
dutor da subjetividade à exterioridade corporal; também se fala ondeapulsãoagressivaindividualseconfrontacomasestruturasde
da intensidade e transitoriedade das sensações e relações afetivas poder,elastambémportadorasdeumaviolênciainstitucionalizada.
(Bauman & Medeiros 3).A paranóia terrorista e os interesses de Pensar a sexualidade na era da pílula, do amor livre, da porno-
governosegrandescorporaçõesparecemreduzircadavezmaiso grafia na internet, de novas formas de amar, do movimento gay e
espaçodeprivacidade,tornandoossujeitoscadavezmaisvigiados lésbico,denovasformasdeprocriar(bebêdeprovetaeclonagem);
enormatizados.Nossasdemocraciasliberaisedemercado,enfim, afamíliaeasnovasformasdelaçossociais;osproblemasdasafir-
proclamam a autonomia econômica, jurídica, política e simbóli- maçõesradicaisdasidentidadesoudasdiferenças,nacontramãodo
cadosujeito,mascomaperdadereferênciaseesgotamentodos pensamentouniversalistadeFreud,maispreocupadoemderrubar
discursoslegitimadores(religioso,político,ideológico),somosin- barreirasdoqueemlevantarmurosentreoshomens.
timadosanosinventar,criarerecriar,sersipróprioselivresden- Pensaromal-estar,ador,osofrimento,atragédianumasociedade
trodeumaculturaqueparecenãomaisoferecergrandesmodelos interligada por uma rede de comunicação que transforma em es-
identificatóriosconsensuais. petáculoparaosprivilegiadosa“dordosoutros”,causando,muitas
Talvezsejaporcausadissotudoqueaperguntapelohumanose vezes,apenasumaindignaçãoemocional,semmostrarcomoaquele
recolocacomtodasuadramaticidade.Ospsicanalistasseinterro- mundodesumanopodeestarperversamenteconectadocomobem-
gamebuscamasalternativasteórico-clínicasquedêemcontadas estaregozodoprópriotelespectador(Sontag21).
novasdemandas.Apsicanálise,naviradadoséculoedomilênio, Pensaroressurgimentodefundamentalismosdetodososmatizes,
foicomoqueobrigadaadeitar-senodivã,queelaprópriainventou, nãoapenasislâmico,mastambémojudaicoeocristão(bastapensar
parafalardesimesmaedesuasinquietações,especialmenterela- emcertascorrentesdoprotestantismonorte-americanoesuascru-
tivasaumaprovávelresistência–agora–dapsicanáliseàcultura zadascontraocomunismo,feminismo,homossexualismoetc),jun-
(Derrida8). tocomaproliferaçãosurpreendentedeseitasapósaproclamação
A“psicanálise aplicada” de que falava Freud cedeu lugar à psi- da“morte de Deus”, desmentindo o modesto otimismo freudiano
canáliseclínica.Rouanetseperguntaseapsicanáliseaplicadanão quantoao“futurodeumailusão”.
seriaagoraaquesepraticanosconsultórios,enquantoaprimária Responderaessasquestões,porém,étambémodesafiodesociólo-
eessencialdeveriaseraqueanalisaaspatologiascoletivasque,em gos,cientistaspolíticos,economistas,médicose,principalmente,dos
grandeparte,determinamasneurosesindividuaistratadasnoscon- profissionaisdafilosofia.Éprovávelquenenhumdiscurso,tomado
sultório. isoladamente, consiga dar conta da complexidade dos fenômenos
Essa inquietação entre os psicanalistas deu origem, nos últimos
anos, aos Estados Gerais de Psicanálise, cujo segundo encontro 2
Cf.ostextosdoeventonositewww.estadosgerais.org/mundial_rj
212 Discurson.362007 SubjetividadeeculturaemFreud 213
envolvidos,mastodoselespodemlançaralgumaluzparacompre- 9.FREUD,S(1908).Moralsexual“civilizada”edoençanervosamoderna.Vol.
VincenzodiMatteo
DossiêFilosofiaePsicanálise
endermelhornossomal-estarcontemporâneo.Énessesentidoque, IXdaESB.
aoencerrarsuafalanoIIEncontroMundialdePsicanálise,Rouanet 10.–––––.(1910)Asperspectivasfuturasdaterapêuticapsicanalítica.Vol.XIda
propunhaum“retornoaFreud”numsentidodiferentedolacania- ESB-EdiçãoStandardBrasileiradasObrasCompletasdeSigmundFreud.Rio
deJaneiro:Imago,1986.
no:umretornoaoFreudquesepreocupavatambémcomofuturo
11.–––––.(1913)TotemeTabueoutrostrabalhos.V.XIIIdaESB.
da civilização, que apostava no iluminismo (mesmo que a aposta
12.–––––.(1921)Psicologiadasmassaseanálisedoego.V.olXVIIIdaESB.
nãoestivessegarantidadeantemão),masquejamaisverianaaliança
13.–––––.(1930)Omal-estarnaCivilização.Vol.XXIdaESB.
comapulsãodemorteumaestratégialegítimaparasolucionaros
14.–––––.(1933)Porqueaguerra?Vol.XXIIdaESB.
conflitosentreoshomens. 15.–––––.Adissecaçãodapersonalidadepsíquica.InVol.XXIIdaESB.
Pensoquevoltaraosmitostrágicos,antigosounovos,dequenos 16.HOBSBAWM,Eric.Aeradosextremos:obreveséculoXX:1914-1991.São
fala Freud (Édipo, Narciso, o Pai assassinado, Eros, Ananke, Thá- Paulo:CompanhiadasLetras,1995.
natos) é um exercício salutar para nossa atividade filosófica. Esses 17.KEHL,MariaRita(org.).Funçãofraterna.RiodeJaneiro:RelumeDumará,
mitos podem e devem ser“desconstruídos”, mas continuam a nos 2000.
relembraradifícileinalienáveltarefaéticadeconstruir–intelectual 18.LASCH,Christopher.Aculturadonarcisismo.RiodeJaneiro:Imago,1984.
eexistencialmente–umavida“boa”,comosoutros,comtodosos 19. ROUANET, Sérgio Paulo.“O impacto da psicanálise na cultura e da cul-
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Ontologianegativaempsicanálise:
entreéticaeepistemologia
ChristianIngoLenzDunker
ProfessordoInstitutodePsicologia
daUniversidadedeSãoPaulo(USP)
edoMestradoemPsicologiadaUnimarco
Ontologianegativaempsicanálise:entreéticaeepistemologia
Oobjetivodesteartigoéexploraralgumasrelaçõesteóricaseclínicasdecorrentes
das concepções de real e realidade na obra de Lacan. O argumento central é Porquesepararorealdarealidade?
dequeadisparidadeentreestasduasnoçõessedesdobraemumaimportante
tensão,asermantida,entreéticaeepistemologia,noquadrodaapreensãofilosófica Na obra de Freud é possível separar, com razoável precisão, os
do tratamento psicanalítico. Salienta-se como a perspectiva assumida pelo momentosdeteorizaçãometapsicológicadosmomentosdeteoriza-
programa de uma ontologia negativa permite traçar uma linha de diálogo çãoclínica.OmesmonãosedáemLacan.Suasconsideraçõessobre
entre diversos projetos clínico teóricos da psicanálise contemporânea, bem o método de tratamento e suas ilustrações clínicas combinam-se
comosituaralgunsmarcossignificativosnarelaçãoentrepsicanáliseefilosofia. ao longo da obra com uma seqüência de debates e incorporações
Oartigolevantaaindaduasquestõesquesurgemcomosignificativasparaos cruzadasdametapsicologiacomaciência,afilosofiaeaarte.Efeito
desdobramentosdeumaontologiadonegativoempsicanálise:(1)asuarelação dessecruzamentoéoquepoderíamoschamardemigraçãoclínica
com o paradigma da subjetividade melancólica, que caracteriza o surgimento de conceitos. Ou seja, noções tradicionalmente ligadas à teoria do
histórico da psicanálise na modernidade; e (2) a sua relação com os traços
conhecimentosãogradualmentetrazidasparaapráticaclínica,as-
distintivosquemarcamopensamentosobreorealnasfilosofiasdoséculoXX.
sumindo,finalmente,umdeterminadovalorético,apartirdoqual
Palavras-chave:psicanálise,filosofia,ontologia,clínica
sedesdobramemprocedimentosclínicos.Porexemplo,emalguns
momentosdesuaobraLacanpretendeapresentardeformasintética
Negativeontologyinpsychoanalysis:betweenethicsandepistemology
otrajetodacuraanalítica.ÉocasodeAlémdoprincípioderealidade
Thispaperdealswiththerelationshipsbetweentheoreticalandclinicinstances
(1936),ondeencontramosaseguintepassagem:
derivingfromLacan’sconceptionoftherealandofreality.It’smainargument
isthatthedisparitybetweenthelatternotionsisthespringoftheinsurmount-
abletensionsbetweenethicsandepistemology,onethataphilosophicalregard Suaaçãoterapêutica[dopsicanalista],aocontrário,deveseressen-
showstobeconstitutiveofthepsychoanalyticalpractice.Lacan’sprogramofa cialmente definida como um duplo movimento pelo qual a imagem,
negativeontologyallowsustoestablishconnectionsbetweendifferenttrends aprincípiodifusaefragmentada,éregressivamenteassimiladaaoreal,
inpsychoanalyticalthoughtandpracticeaswellasingeneralbetweenpsychoa- para ser progressivamente desassimilada do real(interpretação?), isto é
nalysisandphilosophy. restauradaemsuarealidadeprópria.Açãoquetestemunhaaeficiência
Keywords:psychoanalysis,philosophy,ontology,clinic dessarealidade.(Lacan19,p.89)
Otrajetodeassimilaçãoregressivaaorealpodesercompreendido
comointrínsecoaomovimentodatransferência.Reforçaessaidéiaa
proximidadeestabelecidaporFreudentreatransferênciaeanoção
218 Discurson.362007 Ontologianegativaempsicanálise 219
deatualização,comoumdossucedâneosdarepetição(Freud13). Entre os comentadores de Lacan, essa solução redundou na tese
ChristianIngoLenzDunker
DossiêFilosofiaePsicanálise
Estanãopareceserumateseconcernenteaosprimeirosmomentos dequeháumaoposiçãosimpleseirreversívelentrerealidadeereal.
doensinodeLacan,poiselareapareceem1964,nocontextodeum Contudo,poucosatentaramparaanaturezanãosimétricadessaopo-
esforço definicional em torno da transferência, que é concebida sição:
entãocomo“aatualizaçãodarealidadeinconsciente”(Lacan,1964,
p.139). Éassimquenóspodemosconhecerosfenômenos,masoserper-
Nosegundomomento,encontramosotrabalhodedesassimilação maneceincognoscível.AtesedeLacanéoutracoisa.CertamenteLacan
progressiva do real. Aqui parece tratar-se do esforço empreendido opõearealidadeaoreal.[...]orealéestranhoàquestãodoconhecimen-
pelainterpretaçãoqueseapóianadesassimilaçãoounaseparação to,tantonegativamente(nãoseoconhece),quantopositivamente(ele
pelaqualseextraiumsabersobreoequívocodatransferência. nãoétambémincognoscível).(Badiou1,p.67)
Oterceiromomentodotratamentopsicanalíticoérepresentado,
nacitaçãoacima,porumarestauraçãodarealidadeprópriadaima- Arealidadeseriaumconceitofraco,deextraçãoepistemológica,
gem,ouseja,omomentoemqueessarealidadeéreconhecidacomo signo do intuitivo e do diverso sensível. Toda a sua complexidade
simbólica,dotadaentãodeumacertaeficiência.Salientemosquetal e importância presente no texto de Freud (Freud 14) seria, assim,
desdobramentodanoçãoderealidadeencontra-sejáemFreud,tan- transferidaparaoconceitodereal.Esseesvaziamentodanoçãode
tocomoumoperadormetapsicológico,quepermitedistinguirentre realidade, sua dissociação em relação à noção de real, trai, como
arealidadepsíquicaearealidadehistórica(Freud15),quantocomo pretendemosmostrar,onúcleomaisoriginaldareflexãolacaniana
operadorclínico: sobreaquestão.Aoidentificararealidadecomouniversodosfenô-
menos(aencarnaçãodaestrutura)eorealcomaprópriaestrutura,
Osneuróticossecaracterizam,portanto,porcolocararealidadepsíqui- acaba-seportransformaropensamentodeLacanemumaespécie
ca(psychicheRealität)acimadarealidadefactual(faktisheRealität),reagin- de kantismo sem liberdade, ou por hipertrofiá-lo em um estrutu-
doapensamentosdamesmaformacomopessoasnormaisregemapenasa ralismoontológico;comoafirmouDeleuze,“umrealsematual,um
realidades(NormalennuraufWirklichkeiten).(Freud13,p.89) idealsemabstrato”,puroreservatóriocapazdeengendrarpelojogo
de suas posições e lugares a diferenciação, a seriação e a causação
Salientemos,napassagem,ousodiferencialdetrêsacepçõesdere- (Deleuze7,p.269).Nessaleitura,arealidadepsíquicasingularéape-
alidade:arealidadepsíquica,aquelaquesemostraematonatrans- nasumaatualizaçãodorealdaestrutura.
ferência, a realidade factual, determinada por consenso ou verifica- Ocorrequearealidadepsíquica,seaapreendemosnoquadrodas
çãoempírica,earealidadecomoefetividade(Wirklichkeit).Entreo transformaçõespropostasporLacan,examinadasanteriormente,in-
segundoeoterceirotipoháumadiferençaimportante:elesparecem cluiessetraçoderealidadeefetiva,ouseja,deatualidade.Atualidade,
oporumarealidadepensadaapartirdeseusmodosderepresentaçãoà existência,ouaindaatividade,sãoformasdeconcepçãodorealque
realidadepensadaapartirdeseusmodosdeprodução.Asoluçãomais primampelaasserçãodesuapositividade.Contrastamcomformas
trivialconsisteemabsorverarealidadepsíquicadoprimeirocaso,con- deapreensãodorealpelanegatividade,oquesecostumaassociarà
firmando,assim,umcertoidealismonaapreensãodoinconsciente.
220 Discurson.362007 Ontologianegativaempsicanálise 221
tradiçãorepresentacionalistadeabordagemdoproblemae,coexten- Note-se,nessapassagem,comoasreferênciasaorealeàrealidade
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sivamente,acategoriascomopossibilidade,potênciaeaparência. pareceminvertidas.Orealésinônimodeumatotalidadeorganizada
Vê-se,pelaasserçãodeLacan,queháumaespéciedecruzamento e definível ao qual o sujeito não deve ser colocado em relação de
entreasduassériesemsuadefiniçãodereal.Éumargumentocentral adaptação.Arealidadeapareceligadaaocampodoreconhecimento
desteartigoqueorealemLacanéabordadointensionalmentepelas eaodesejo.Maisdoqueatensãoentreideologiaecrítica,devemos
viasdanegatividadee,noentanto,aproxima-seextensionalmenteda atentar para a distinção entre uma atividade (a simbolização) e o
realidadecomoproduçãodeefetividade.Nossointuitoseráodemos- camposobreoqualrecaiouqueseproduznessaatividade(oreal).
trarcomoesseproblemaé,simultaneamente,umaquestãodeinteresse Háaquiumprotocolodesubjetivação,aludidopelaexpressãoreco-
filosóficoederelevânciaclínica.Nossoargumentocomeçapelaidéia nhecersuaprópriarealidade.Ouseja,nãoéorealcomoexpressão
dequeanoçãoderealidadeestevenocentrodascogitaçõesclínicasde daidentidade(idem),mascomoexpressãodapropriedade(proper),
Lacandoinícioaofimdeseuensino;eleterminapordizerdequea queestáemquestão.Nessamedida,nãohaverialugarparaoUm,no
noçãoderealidadeproduzumaespéciedeencruzilhadaentreéticae sentidodatotalidadedoSer,masapenasparaoum,comooperati-
epistemologia,cujasoluçãoserámimetizadapelacategoriadereal. vidade ordenadora no contexto da estrutura subjetiva. A unidade
ontológicaopõe-seassimàefetividadelógicadaoperaçãodecon-
tagem.
Daetificaçãodecategoriasepistemológicas Nesseponto,adoxalacanianaacabouporreuniràleituraidealista
danoçãoderealidadepsíquicaumacréscimorelativista.Desconsi-
NaconferênciaSimbólico,imaginárioereal(Lacan21)encontramos derando,naobradeLacan,arecorrênciadotemadouniversalem
novamente a noção de realidade como ponto de orientação terminal sua tensão com o exame da gramática das formas de negação, há
paraotratamento.AquiLacandiscriminaonzemomentosdotratamen- umainterpretaçãocorrentedequeorealqueinteressaàpsicanálise
topsicanalítico,pelacombinatóriaentreascategoriasdereal,simbólico nãodependenemexigequalquerreferênciaquenãoaverificadano
eimaginário,tomadasduasaduas,edivididasentreações(simbolizar, contextodatransferência.
imaginarizarerealizar)eordens(osimbólico,oimaginárioeoreal).O Afinal,qualaserventiadanoçãoderealidadeparaaclínicapsica-
projetogenéricopareceseroderefazeraFenomenologiadoespírito(He- nalítica,umavezquesemprequesetratadefinaldetratamentovem
gel17)nachavedaexperiênciapsicanalítica.Omomentoconclusivodo àtonaanoçãoderealidadeoudereal?Issonosremeteaumavirtual
tratamento,queretomaaestruturadeseumomentoinaugural,éassim teoriadarealidadeempsicanálise,seucaráterontológicoouôntico,
apresentadocomoequivalentedarealizaçãodosimbólico: eaoproblemadanaturezadascausasquedefinemtalrealidade.An-
tesqueumenfrentamentodiretodesseproblema,oqueseobserva
sR [realização do simbólico]: que é, em suma, a finalidade de nateorizaçãoclínicadeLacanéqueopardetermosreal-realidade
toda e qualquer saúde, que não é (como se crê) adaptar-se a um apareceassociadoaumaseqüênciadenoçõescongêneresdenatureza
real mais ou menos bem definido, ou bem organizado, mas fazer epistemológica:saber,verdade,conhecimento,desconhecimento.
reconhecersuaprópriarealidade;emoutraspalavras,seuprópriodesejo. Porém,taisnoções,umaveztrazidasparaaclínica,rapidamente
(Lacan21p.104) perdemsuadimensãoligadaaoconhecimentoeassumemumadi-
222 Discurson.362007 Ontologianegativaempsicanálise 223
mensãoética.Osaber,porexemplo,nãoestáaserviçodoconhe- temológica(sujeitosupostosaber)eaprópriarealidadequeesta
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cimento,apreensãoourepresentaçãodarealidade,masdarelação trazconsigo,maselanãoéemsimesmacognoscívelnemincog-
intersubjetiva.Porexemplo,oconceitode“sujeitosupostosaber”, noscível.Dissoresultaadificuldadedesuaintegraçãoteórica.
quedefineaconcepçãolacanianadetransferência,éutilizadopor
Lacan em aberta referência à sua extração metafísica aristotélica
(Lacan24).Otermosujeito(hypokeimenon)aludealternativamen- Ummapadapsicanálise
teaosubstrato(suposto),aquiloquepermanecenatransformação,
eaotermológicosobreoqualsepodeatribuirpredicados(saber) Aafinidadeentreotemadarealidadeeoprojetoclínicoenvolvido
mas nunca tomado como um predicado (sujeito). Ou seja, a ex- notratamentopsicanalíticoreapareceránaobradeLacannoartigo
pressãosujeitosupostosaber,virtualmente,éumatraduçãoquepõe “Dapsicanáliseesuasrelaçõescomarealidade”(24).PorqueLacan
em seqüência os sentidos do termo hypokeimenon. Como assina- teriaempregadoapalavrarealidadenessemomentodesuaobra,em
louPorchatPereira(30,p.285)taltermopossuiusoambíguoem queanoçãoderealaparecetãobemdelineadae,supostamente,em
Aristóteles,poisdesignatantoseremsentidoabsolutoquantoser oposiçãosimplesediretacomanoçãodereal?Atesedoartigoéde
algo.OcorrequeemAristótelesessanoçãopossuiaimportantefun- queotratamentoenvolveumaexperiênciaquesedesdobraemuma
çãodeconectarumateoriasobreasubstânciaaumadeterminada tripladivisãosubjetiva:saber,verdadeegozo.Essadivisão,umavez
concepçãodeconhecimento.Osujeitosupostosaberlacaniano,ao realizada,marcariaofinaldotratamento.
contrário,éumanoçãototalmenteinútildopontodevistaepiste-
mológico.Eledefineummododerelaçãoético,umacertaexperi- Quanto à realidade do sujeito, sua imagem de alienação, pressenti-
ênciaamorosa,dedesconhecimentooualienação,mastambémum dapelacríticasocial,serevelaenfimpordesenrolar-seentreosujeitodo
mododeproduçãodarealidade,queultrapassainclusiveasformas conhecimento,ofalsosujeitodo“eupenso”,eesteresíduocorporalem
ou objetos nos quais tal realidade pode ser reconhecida, simboli- quepensohaverencarnadosuficientementeoDaseinparachamá-lopelo
zada ou elaborada pelo sujeito. Ou seja, mantém-se a questão do nomequeeledeveamim:ouseja,oobjetoa.(Lacan25,p.357)
substrato,elimina-sesuafunçãoepistemológicaeseasubstituipor
umaatividadeética.Énessesentidoqueatransferênciaéafirmada Estamos em um momento no qual Lacan está delineando mais
comoconceitopragmático:“Essepragmatismoéjustificado.Éque claramente sua estratégia com relação ao tema da realidade. Há,
essemanejodatransferênciaéidênticoànoçãodela,epormenos porumlado,ofalsosujeito,osujeitodoconhecimento;deoutro,a
elaboradaquesejaestanaprática,elasópodeseincluirnasparcia- questãodoobjetoedoser.Sobreesseparaplica-seumagramática
lidadesdateoria”(Lacan22,p.609) particulardanegatividade,umanegaçãodauniversalidadequenão
Emoutraspalavras,atransferênciafazequivalerseuconceitoà é proporcional à negação existencial: não sou onde penso, penso
própriaaçãoqueaconstituicomotal.Ou,ainda,aconcepçãoque ondenãosou.Contudo,háumaleiturasimplesmentedualistadesse
setenhadatransferência,pormaisfalsaouequivocadaqueseja, resultado, uma leitura pela qual se afirmará simplesmente a inco-
fazpartedoprópriofenômenodatransferência,chamemo-lapor mensurabilidadeentreduas“não-substâncias”.Desejoegozo,sujeito
estenomeounão.Assim,elaincluiumaespéciedeilusãoepis- elinguagem,sabereverdadesãofigurasquepodemserabsorvidas
224 Discurson.362007 Ontologianegativaempsicanálise 225
nesse dualismo. Ocorre que é precisamente nesse ponto que Lacan edocaráterconstrutivistadesuaprática.FreireCosta(10;11),por
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DossiêFilosofiaePsicanálise
reafirmaráseumonismomaterialistacomoconceitodereal.Oreal exemplo,temseapoiadonaconcepçãopragmáticadeWittgensteine
não é a contradição ou mistura dessas duas não-substâncias, mas a Davidsonparasugerirumprojetoclínicoqueabandoneostraçoses-
negatividadequesededuzlogicamentedaapreensãodarealidade.O sencialistasrepresentacionaisefundacionistasdaclínicapsicanalítica,
realnãoseopõenemaosensívelnemaointeligível,masospresume. buscando,emseulugar,umentendimentodaclínicacomoatividade
EssaéadireçãosugeridapelotrabalhodeMénard(29),quesi- deredescriçãoereformulaçãodecrençasedesejos.Emumadireção
tuaanegatividadecomocaminhoparaasaídadaontologia.Épela homóloga,masdeoutranatureza,ostrabalhosdeGabbiJr.(1994,
análisedasestratégiasdenegaçãodarealidade,peladistinçãoentre 1999)têmmostradoapossibilidadedecompreenderaobradeFreud,
formasboaseruinsdenegação,peloexamedosmodosprópriose mormenteemseusmomentosseminais,comodesnecessariamente
impróprios de exclusão, que o problema da ontologia poderia ser ligadaàprocuradeumareferência;tambémpôeemevidênciaoca-
contornadoempsicanálise. ráterprescindíveldoreferencialismofaceasuasubstituiçãoporuma
teoriadosentidooudaracionalidadelingüística,pragmáticaounão.
A negação não tem relação com o não-ser, ela tem relação com a Estamosaquinoplanodaanáliselógico-lingüística(nãoestrutural)
diferençaentreserexcluídoeexistir.Perguntar-se-áseaindaexisteum doproblemadaexistência.Observe-seque,paraosnarrativistas,o
denominadorcomumentreaabordagemfilosóficadaquestãodoser,a problema da realidade em psicanálise é substituído, inteiramente,
abordagemlógicadaquestãodaexistênciaeaabordagempsicanalítica pelo problema da lógica ou racionalidade interna à produção de
doreal.(Menard29,p.194) sentido.
(b) Refundacionismo: aqui se argumenta que é possível extrair
Havendo ou não solidez ou consenso sobre um denominador da psicanálise uma verdadeira lógica da descoberta. A realidade à
comum,fatoéquesepoderiatraçarummapadapsicanálisecon- qual esta se endereça pode ser sustentada positivamente, quer na
temporânea tendo em vista a partilha em torno do problema da contraprovaneurológica,queremalgumaestratégiatranscendental
realidade e os critérios sugeridos acima. De forma muito breve, e de construção de objetos.Argumenta-se aqui que uma boa teoria
apenasparacriarumcenáriocircunstancial,distingoalgumasposi- damente,sejaeladeextraçãolingüística,socialoubiológica,seria
çõesrelevantes: suficienteparadarcontanãosódalegitimidadeepistemológicada
(a)Narrativismo:estalinhadereflexãocolocaqueaquestãoda psicanálise,masdesuatarefaclínica.Muitomaisinteressantedoque
realidadeestáesgotadaparaapsicanáliseequepodemosprescindir essaestratégia,quenaverdaderepresentaumaespéciederefunda-
dequalquerreferencialismo.Comumaboaconcepçãopragmática cionalismoepistemológico,éatentativadealgunsautoresdepensar
delinguagemépossíveldarcabodatarefaclínica.Umantecendente a psicanálise como a refundação, ou a instalação mesma, de uma
importanteaquiéacríticadeSpence(33)aopredomíniodanarra- experiência.Poderíamosfalar,entãoemumaespéciederefundacio-
tiva investigativa em psicanálise e sua metáfora dominante baseada nalismoético.LuísClaudioFigueiredo(8;9)eNelsonCoelhoJr.(6)
nalógicadadescoberta,emdetrimentodalógicadainvenção.Nota- têmsedirigidoparaessaperspectiva,assumindoafenomenologia
seumasubstituiçãodaconfiançaepistêmicaedorealismoingênuo deHusserlaMerleau-Pontycomoreferência.Aquioproblemada
pelo reconhecimento do caráter metafórico da teoria psicanalítica realidadeévertidonoconceitodeexperiênciaeabordadopelasvias
226 Discurson.362007 Ontologianegativaempsicanálise 227
deumaespéciedeontologiaregional,nãoapenasnosentidodoseu canegativaeforadalógicadeidentidadeedasubstancialização.A
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DossiêFilosofiaePsicanálise
fundamentoperceptivo,mnêmicoouhistorial,mastambémtendo referênciafundamentalaquiéHegel,mastambémAdornoepensa-
emvistaaregionalidadeprópriadecertasconstituiçõessubjetivas, dorespós-lacanianoscontemporâneos,comoZizekeBadiou.
tendo em vista principalmente seu nível pré-reflexivo.Winiccott e Onarrativismonostrazumaimportantereflexãosobreaimpor-
emgeralosautoresdapsicanálisequeorientam-separaainvestiga- tância do caráter pragmático da linguagem e sobre a historicização
çãodasexperiênciasprimitivasdaconstituiçãodasubjetividadeeda dosmodosdesubjetivaçãoempreendidospelapsicanálise.Suacrítica
objetividadetornam-seaquireferênciassignificativas. aoontologismobaseia-se,contudo,emumaoposiçãoaoontologismo
(c)Criticismo:paraestaposição,otemadarealidadedeveserabor- positivo,reificadoreessencialista.Ocriticismo,porsuavez,considera
dado pelas vias da negatividade. Isso implica uma certa separação taloposiçãodesnecessária,sobretudoporqueenfatizaosmodosnega-
metodológicaentreasconsideraçõesontológicaseoplanodeapre- tivosdetratamentodoreal,constituindo-seoreal,todavia,emuma
ensãometodológicodarealidadeaserconsideradaempsicanálise. espéciedeidéiareguladoraoudeconjecturanecessária.Emcontra-
Sãoautoresquesededicamarevercriticamenteproblemascomoo partida,orefundacionalismo,principalmenteemsuaversãomaisela-
da temporalidade e da ficcionalização, conjugando, principalmen- borada,procuraumasoluçãointegradorapelaviadeumaacepçãode
te, a experiência clínica (notadamente as noções de construção e realquepossaserdeduzidadosfracassosdosmodosderepresentação
sublimação)comaliteraturaecomocampogenéricodaestética. esubjetivação.Há,portanto,umadivisãoentreaquelesqueaceitama
NelsondaSilvaJr.(31)temtrabalhadonessadireção,baseando-se necessidadeéticadeumateoriapsicanalíticadoreal(refundacionalis-
nahermenêuticacrítica.JoelBirman(3;4)parecerepresentaroutra moecriticismo)eaquelesqueaconsideraminútileperigosa(narra-
facetadessaposição,nestecasocomapoiodosestudosdeFoucault. tivismo).Poroutrolado,háumadivisãoentreaquelesqueaceitama
Nofundo,ocriticismocorrespondeaumaespéciededeslocamento primaziadanegatividadeemtermosepistemológicos(narrativismoe
estratégicodoproblemadarealidadeparaoproblemadascondições criticismo)eaquelesquearefutam(refundacionalismo).
depossibilidadeacercadesuarepresentação,oquetradicionalmente Aontologianegativapoderiasituar-se,assim,comoumaespéciede
redunda em uma epistemologização da realidade. Mas se poderia síntesedisjuntiva(parausaraexpressãosugeridaporMénard)entre
pensar,comopareceproporessaposição,queaexperiênciaestética orealismoéticoeaepistemologiadanegatividade.Síntesedisjuntiva
nosforneceriaumaespéciedemodeloalternativo–ummodelocrí- designaaquinãoareuniãodessatensãonumaintegraçãoresolutiva,
ticoecombasenasformasdenegatividade,enãodepositividade, masumaconcepçãobaseadanocaráterirredutívelenecessáriodessa
naapreensãodoreal. tensão.Daísuasduasnoções-chavesorealeoato.Trata-se,emoutras
(d)Ontologianegativa:nestecasooproblemadarealidadeempsi- palavras,deumateoriasobreaimpossibilidadedeepistemologização
canáliseémantidoemtensionamentocomanoçãodereal.Trata-se daéticaeumateoriasobreaimpossibilidadedeetificaçãodaepiste-
demostrarcomoosmodosdesubjetivaçãonaclínicalacanianasão mologia.Talvezaontologianegativanãosejaumaposiçãoindepen-
fundamentalmenteestruturasdereconhecimentodeumanegação dentedasdemais,masapenasumatentativadeelaborarsuasdiferen-
ontológicaquesemanifestademaneiraprivilegiadanaconfrontação ças,tendoassimumpapeldecisivoparamanteropotencialcríticoe
entresujeitoeobjeto,comopostulaSafatle(32).Paraestaposição, renovadorqueseesperadapartilhasobreanoçãoderealidade.
seriaprecisorecuperaranoçãodepulsãonoquadrodeumadialéti-
228 Discurson.362007 Ontologianegativaempsicanálise 229
Voltemosaonossoproblema:comoumaontologiabaseadaexclu- (9)eBirman(4).Nessamedida,onarrativismoeocriticismoestão
ChristianIngoLenzDunker
DossiêFilosofiaePsicanálise
sivamentenanegatividadepodeserviraospropósitosdeumaorien- preocupadosemvalorizar,napsicanálise,alógicadainvenção,en-
taçãoclínicadosujeitoquenãosediluanoreconhecimentodeuma quantorefundacionalismoeaontologianegativapreocupam-seem
heteronomiaradical,cujopotencialideológiconãosepodedeixarde manter,dentrodecertoslimites,alógicadadescoberta.
pôremquestão.Emoutraspalavras,seconsideramosopercursode Veja-sequeoqueestáemquestãonovamenteéocaráteradap-
umtratamentoanalíticocomoumprogressodedesencantamento tacionistadapsicanálise,nãomaiscomonosapontavaacríticade
de ideais, de elaboração do luto fundamental e de reconhecimen- Lacanàpsicanálisedadécadade1950,baseadanaadaptaçãodoeuà
todafaltaconstitutiva–emtodasasfigurasqueacastraçãopode realidade,masumaadaptação“negativa”,baseadana“aceitação”da
assumir–,comodistinguiresseprocessodameraabsorçãodeuma comensurabilidadedaverdadedafaltacomanegatividadedoreal.
teologianegativa,oudeumaéticadaresignaçãoinfinita,comosu-
geriuDeleuze?
Aquestãopodeserenunciadaemumformatocriticista,paralem- Impassesdanegatividade:
brarotrabalhodeSilvaJúnior(31):alibertaçãodesieaabertura asubjetividademelancólica
paraumpassadoimprevisívelsãosuficientesparanoslivrardeum
niilismo depressivo? Seriam o apelo à sublimação e à construção, Habermas(16)temchamadonossaatençãoparaHegelcomoum
comoestratégiasparaaficcionalizaçãodesi,suficentesparanosdis- autor-chavenoprocessodedestranscendentalizaçãodosujeitomo-
tanciardaéticadarenúncia? derno.Oprincipalargumentoparaessainterpretaçãoresidenain-
Ouainda,nachavedapesquisadeSafatle(32):seráqueadestitui- troduçãodalinguagem,dotrabalhoedasrelaçõesdereconhecimento
çãosubjetivaeatravessiadofantasma,critérioslacanianosdofinaldo como categorias críticas ao mentalismo kantiano e também como
tratamento,pensadasnoquadrodeumaontologianegativa,nãonos meiospelosquaisosujeitofixasuarelaçãocomomundoecomos
levariam a um saldo cínico irremediável, uma espécie de perversão outros.Apartirdeentão,aproblemáticadaintersubjetividadenão
adaptada,cujoprincipaltraçoseriaaapatia? poderámaisserseparadadesuaduplareferência:a)asubversãodo
Nestasversõesdoproblema,háumaespéciedepressentimentode objetodoconhecimentocomocategoriaepistemológica;b)asub-
queumaadesãoextensivaaorealcomopuranegatividadenãopre- versãodoOutrocomoalteridadeéticaemediadoruniversal.
cisa,necessariamente,nosconduziraumaeticidadebaseadaapenas A descoberta da noção de mediação, como estrutura anterior e
em critérios negativos na relação do sujeito com a verdade, como determinantedasrelaçõesentresujeitoeobjeto,comoarticulador
queronarrativismo. entremeiosefins,ouaindacomojunturaentreoparticulareuni-
Orealismoepistemológiconãocomportaamesmaespessurateórica versal,permiteaHegeldesidentificarosujeitocognoscentedoEu.O
eclínicadorealismoético.Reenunciemosnossaquestão:apsicanálise preçodessadesidentificaçãoéumarelativadispersãodasformasde
seriadefatoumaatividadeorientadaapenaspelaviadelevare,cujo entendimentodareflexividadenoníveldosujeito.Trabalho,lingua-
horizonteéareconciliaçãoentreosereodeverser,ouseráqueela gemereconhecimentopodemserlidos,naesferadaconstituiçãodo
nosprometealgotambémnaviadepore,cujohorizonteéacriação sujeito,tantoemumachavepositiva–oquenosremeterávirtual-
dealgoentreosereopoderser,comoparecemsugerirFigueiredo menteaumaantropologia–quantoemchavenegativa–oquenos
230 Discurson.362007 Ontologianegativaempsicanálise 231
remeteráaumaontologia.Observe-sequeasabsorçõesteóricasque Hegeléoprimeiroacorrelacionarostrêsaspectosdalógicatradi-
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DossiêFilosofiaePsicanálise
marcam o percurso de Lacan têm sempre a marca deste segundo cionalcomostrêsaspectosnosquaisosindivíduossocializadossereco-
aspecto:adialéticacomênfasenegativa,deKojéve;alinguagemcon- nhecemreciprocamente:asaber,comopessoasemgeral,queseigualam
sideradacomosistemadeelementossempositividadeprópria,em àsoutraspessoasemaspectosessenciais;comomembrosparticularesde
SaussureeLévy-Strauss;afunçãoaxiomáticadozeroedoconjunto umacomunidade,quecompartilhampeculiaridadesdesuacomunida-
vazionalógicadeFrege;aescritadonão-todoextraídadamatemá- dedeorigem;ecomoindivíduos,quesedistinguemdetodososdemais
ticadeCantoreGödel.Contudo,éprecisosalientarqueesseesforço indivíduos.(Habermas16,p.196)
dedestranscendentalizaçãodosujeito(pelaviadonegativo)éacom-
panhadodareflexãoontológicaemtornodoobjeto(teoriadogozo Estáaquiatraduçãointersubjetivaeéticadasnoçõesaristotélicas
edasexualidade,concepçãodoobjetoaetc). degenus,specieseenssingularis.Estáaquitambémoprojetoquemar-
Trabalho,linguagemereconhecimento:grossomodo,sãotambém cará a contradição entre universalismo simbólico e particularismo
estasastarefasquesepoderiaesperardeumtratamentopsicanalíti- imaginário.Édaíqueseprecipitará,tambémhistoricamente,aidéia
co:rememoração(nomeaçãopelalinguagem),elaboração(Durchar- dequeaúnicaformadeapreensãointersubjetivadorealresidena
beiten,trabalhocomoobjeto),subjetivação(progressãonadialética singularidade–singularidadequeserealizariaparadoxalmentecoma
do reconhecimento). Tal experiência (Ehrfahrung) se orienta para negativizaçãodoprópriosujeitonaformadoespíritoabsoluto.
duasrealizaçõessubjetivas: EsseprogramaéherdadoporLacanetrazidoparaapsicanálise.
(1) a constatação de uma certa negatividade, inconsistência ou JáemDapsicoseparanóicaesuasrelaçõescomapersonalidade(18),
impossibilidadenoníveldoOutro. Lacancontesta,naconcepçãofreudianadenarcisismo,justamente
(2)areduçãodopotencialdealienaçãocontidoemumobjetoque suaindistinçãoentreumaacepçãoepistemológicaeumaacepçãopsi-
suportaafantasiadosujeito. cológicadesujeito.Lembremosqueaintroduçãodanoçãodeperso-
ObjetoeOutro–sãoosdoiscritérios-limitedaanálise,critérios nalidadeteriaporfinalidaderestituiraosujeitosuaincidênciaética,
queprocedemdecamposoriginariamentedistintos:areflexãosobre indexadaematributoscomoresponsabilidadeerealizaçãosocialde
oobjetonascenaepistemologiamoderna;anoçãodeOutro,porsua ideais.Portanto,antesmesmodesuafreqüênciaaossemináriosde
vez,procededareflexãoético-políticadoOcidente. Kojéve, Lacan parece enredado pelas relações problemáticas entre
Note-secomo,aodescobriropapelepistemológicodotrabalho, éticaeepistemologia.Issoseexplicitaemumaprimeiraconcepção
da linguagem e do reconhecimento, o autor da Fenomenologia do éticadedesejoquegiraemtornodecategoriasepistemológicas,tais
espírito está, simultaneamente, acumulando funções distintas para como conhecimento, desconhecimento e reconhecimento. O que
anoçãonascentedeOutro.Ouseja,aoleremchaveintersubjetivaa essacuriosacombinaçãotemporefeitoéumaarticulaçãopossível
noçãoaristotélicadeparticular,Hegelsobrepõeéticaeepistemolo- entredesejoesujeitoquepossadotarambosdeumcertograude
gianomesmomovimentoemqueestipulaolugaremqueverdadee realidade e, ao mesmo tempo, marcar suas vias de relação com o
realdevemsereconciliar: signodanegatividade(aaçãonegadoradodesejo,apalavracomo
mortedacoisaetc).
232 Discurson.362007 Ontologianegativaempsicanálise 233
Noartigosobreoestádiodoespelho(Lacan20),vemosessapre- TodosessestraçoscombinamcomoqueCalligaris(2004)chamou
ChristianIngoLenzDunker
DossiêFilosofiaePsicanálise
sença singular, negativa e real do sujeito ser indicada da seguinte desubjetividademelancólica,subjetividadecujareconstruçãohistó-
maneira: rica na modernidade nos tem feito reencontrar sempre no núcleo
dosujeitoessaexperiênciadeperdaeseulutoincurável.Seriaeste
(...)amatrizsimbólicaemqueoJeseprecipitanumaformaprimordial, oúnicorealaoqualosujeitoconsideradopelapsicanálisedeveria
antesdeseobjetivarnadialéticadaidentificaçãocomoooutroeantes admitireseconformar?Éestaaverdadefinaldodesejoaoquala
quealinguagemlherestituanouniversal,suafunçãodesujeito.(Lacan éticatrágicadapsicanáliseviriaarecompor,unindooqueéaoque
19p.97) deveser?Seráprecisodemonstrarqueaontologianegativa,queaqui
apresentamos,podedarcontadessaobjeção.
Entreoparticulardeumaformaprimordial,dada,digamos,por
suacomunidadedeorigem–porfigurasprestativas,segundoFreud
(12)–,eouniversalabstratodalinguagem,nestaposiçãointervalar, Apaixãopelorealeseusdesatinos
masúnicarealmenteconcebível,aliestáosujeito.Emoutraspala-
vras,osujeitoéessanegatividadeontológica,essabeànce;osujeito Oparadigmadasubjetividademelancólicanãoestápresenteape-
emseuretornocontínuoasieemseparaçãoconstantedesi.Mas, nasnapsicanálise,muitomenosnapsicanálisedeextraçãolacania-
afinal, quando real e racional se reconciliam na experiência psica- na.Váriasdasafinidadesentrepsicanáliseemarxismo–quenunca
nalítica? Quando o sujeito será restituído no universal? Ou, ainda, se sabe bem como combinar – e também das homologias entre a
quandoosujeitosuperaráadialéticadaidentificaçãocomooutro? psicanáliseeaontologiaheideggeriana,ouaindadascongruências
Aperguntasófazsentidoseidentificamos,poranalogia,ofimda entrepsicanáliseeteoriacrítica,podemseratribuídasaessapartilha
históriacomofinaldaanálise.ParaaquelesquepensamqueHegelé entreoreal,anegatividadeeosujeito.ComoafirmouOlgáriaMatos
umepisódiodejuventudeemLacan,bastaverificarcomooSeminá- ,aolembrarasorigenspascalianasdarazãocrítica,
rioXVI(Lacan,1967)chamado,justamente,deumOutroaooutro,
mantém,noessencial,amesmaproblemáticarelaçãoentreoobjeto (...)oespantometafísicodohomemfrenteaoespetáculodeummun-
e o Outro.Agora, em vez de desconhecimento e reconhecimento, a do aberto e sem limite no tempo e no espaço, e, sobretudo, de um
questãosecolocaentresabereverdade,ouainda,comoqueropropor, mundoprivadodecentroedesentido,noqualodestinoétãosomen-
entreepistemologiaeética. teerrânciaeohomem,alguémqueperdeuseulugar,seular.Nãohá
FatoéquesereconhecemosemHegeladescobertadaintersub- maisnestemundopontofixo,masapenaspontosdevista.(Matos28,
jetividadeeselocalizamosemFreudacondiçãodeexperiênciain- p.324)
tersubjetivadoinconsciente(negatividadequeéreal)eaexperiência
“interobjetiva”daspulsões(realqueénegatividade),podemosassi- Seodestinoésomenteerrânciaesenãohámaislugarparaosu-
nalarumasériedetraçosdessaexperiência:suaseparação,perdaou jeitoemsuaprópriamorada(ounamoradadoOutro),aúnicafor-
descentramentodesi,seuexílio,suaindeterminação,suaformasem mapossívelderealestarámarcadapelanegatividade,pelarenúncia,
qualidades,seuefeitosemcausa,sualiberdadesemautonomia. pelo assujeitamento. Mas essa subjetividade, na qual a sombra do
234 Discurson.362007 Ontologianegativaempsicanálise 235
objetocaiusobreosujeito,deveantessercaracterizadacomouma reconhecerem”(realidadepsíquica)quantonosentidode“negara”
ChristianIngoLenzDunker
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Nesteponto,háumretornodeslocadoda“integração”hegeliana. De fato, tendo em vista tal problema, pudemos reler diferentes
ChristianIngoLenzDunker
DossiêFilosofiaePsicanálise
5.CALLIGARIS,Contardo.ComunicaçãooralnoCentrodeEstudosPsicanalíti- 23.LACAN,Jacques.OSeminário,livroVI:AÉticadaPsicanálise,RiodeJaneiro:
ChristianIngoLenzDunker
DossiêFilosofiaePsicanálise
cos.SãoPaulo,2004. JorgeZahar,1987.
6.COELHOJR.Nelson;Figueiredo,LuísClaudio–Éticaetécnicaempsicanálise, 24.–––––“Dapsicanáliseemsuasrelaçõescomarealidade(1967)”.InOutros
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7. DELEUZE, Gilles.“Como reconhecer o estruturalismo”. In Chatelet, F. (org) 25.–––––“Proposiçãode9deoutubrode1967sobreopsicanalistadeescola
HistóriadaFilosofiaVol.IV:oséculoXX..Lisboa:DomQuixote,1995. (1967)”.InOutrosescritos,RiodeJaneiro:JorgeZahar,2003.
8.FIGUEIREDO,LuísCláudio.Escutar,recordar,dizer–encontrosheideggeria- 26.–––––OSeminário,livroXVI:deumOutroaooutro(inédito).
noscomaclínicapsicanalítica.SãoPaulo:Escuta/Educ,1994. 27. ––––– O Seminário, livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psi-
9.–––––Elementosparaaclínicacontemporânea,SãoPaulo:Escuta,2003. canálise.RiodeJaneiro:JorgeZahar,1988.
10.FREIRECOSTA,Jurandir.“Pragmáticaeprocessoanalítico:Freud,Wittgen- 28.MATOS,OlgáriaC.F.–Osarcanosdointeiramenteoutro–aescoladeFrank-
stein,Davidson,Rorty”.InRedescriçõesdapsicanálise.RiodeJaneiro:Relume- furt,amelancoliaearevolução.SãoPaulo:Brasiliense,1989.
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12.FREUD,Sigmund.“Projetodepsicologiacientíficaparaneurólogos(1895)”. 30.PORCHATPEREIRA,Oswaldo.CiênciaedialéticaemAristóteles.SãoPaulo:
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pletasV.XII.BuenosAires:Amorrortu,1988. arseàaberturadeumpassadoimprevisível.Campinas:MercadodasLetras,
14.–––––“Aperdadarealidadenaneuroseenapsicose(1924 a)”.InSigmund
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FreudObrasCompletasV.XIX.BuenosAires:Amorrortu,1988. 32.SAFATLE,Vladimir.Apaixãodonegativo–modosdesubjetivaçãoedialética
15.–––––“Moisésylareligiónmonoteísta(1939a)”.InSigmundFreudObras napsicanáliselacaniana(noprelo).
CompletasV.XXIII.BuenosAires:Amorrortu,1988. 33. SPENCE, Donald P. A metáfora freudiana – para uma mudança paradig-
16.HABERMAS,Jürgen.Verdadeejustificação.SãoPaulo:Loyola,2004. máticadapsicanálise.RiodeJaneiro:Imago,1992.
17.HEGEL,Georg.W.F.Fenomenologiadoespírito.Petrópolis:Vozes,1992.
18. LACAN, Jacques. Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade
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19.–––––“Alémdoprincípioderealidade(1936)”.InEscritos.RiodeJaneiro:
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20.–––––“Oestádiodoespelhocomoformadordafunçãodoeutalcomonosé
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21.–––––“S.I.R”(1953).InCadernosLacan–Parte1.PortoAlegre:Associação
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22.–––––“Direçãodotratamentoeosprincípiosdeseupoder(1958)”.InEscri-
tos.RiodeJaneiro:JorgeZahar,1998.
Sobreoprazerexcedente:
deMarcuseaAristóteles
EdgardoGutiérrez
DocenteeinvestigadordascátedrasdeEstéticaeFilosofiacontemporâneana
FacultaddeFilosofíayLetrasdelaUniversidaddeBuenosAires;
professoradjuntodacátedradeEstruturasnarrativasaudiovisuais
naFacultaddeArquitectura,DiseñoyUrbanismo
delaUniversidaddeBuenosAires;
professortitulardascátedrasdeFundamentosteóricosdaproducãoartísticae
FilosofiaeestéticanoInstitutoUniversitarioNacionaldeArtes
Sobreoprazerexcedente:deMarcuseaAristóteles
Avidapsíquicanointeriordacivilizaçãoestá,comoFreudmostroudemaneira
convincente,marcadapelafaltadegratificação.Odesejoimpulsionaosujeitoa
umacompletudesempreinsatisfeita;eoprazeréapenasumestadopassageiro
entredoismomentosdedesprazer.Mas,comoobservouMarcuse,nacivilização,
Comosesabe,Freudestabeleceuumadistinçãoentreoprincípio
deprazereoprincípioderealidade.Oprimeirocorrespondeaum
temos o prazer excessivo como complemento compensatório em relação ao
funcionamento primário do aparelho anímico, que está submeti-
desprazer.Arepressãodosimpulsossexuaisparciaiseosuperdesenvolvimento
dopermanentementeaumprocessodeaumentoediminuiçãode
dagenitalidadepermitemoprazerintensificado.
excitações. O prazer aumenta, afirma Freud, quanto mais os mo-
EmFreud,oprazerépensadocomopreenchimentodeumafaltaprévia.Eleé
vimentos psicofísicos se aproximam da estabilidade completa. O
prazeremmovimento,resultadodeumprocessodegeração.Contudo,háuma
alternativaaessanoçãodeprazer.Segundotalteoriaalternativa,teríamosuma
aparelhoanímicorespondeaumafortetendênciaquelevaacon-
possibilidadedepensaroprazerpuro,despojadodetodoelementometafísico. servar a quantidade de excitação no nível mais baixa, possível, ou
Assimcompletar-se-iaoprojeto,iniciadoporMarcuse,deumacríticamaterialista mesmoemumnívelconstante.Oprincípiodeprazerestáfundado
dapsicanálise.Talteoriapoderiaredefiniroprazerliberando-odoconceitode naconstância.Conformetalprincípio,tudooquetendeaelevara
excedente.NaÉticaaNicômaco,Aristótelesforneceoselementosquepermitiram excitaçãoésentidopelopsiquismo,etambémpeloorganismo,como
pensaroprazeremtermospós-freudianos. disfuncional,comodesprazeroso(Freud3).Mas,comotalprincípio
Palavras-chave:prazer,excesso,repressão,Marcuse,Aristóteles éaltamenteperigosoparaaauto-afirmaçãodoorganismofrenteàs
dificuldadesdomundoexterior,eledevesersubstituído,soboin-
Onexcessivepleasure:fromMarcusetoAristotle fluxodoinstintodeconservaçãodoeu,peloprincípioderealidade,
AsFreudconvincinglyshows,civilisedpoliticallifeisasourceofconstantun- que,semabandonarumaconsecuçãofinaldoprazer,exigeelogra
easiness.Desirepropelsthesubjecttowardsanendthatremainsunfulfilledand o adiamento da satisfação e a renúncia de algumas possibilidades
pleasureisreducedtoatransitionfromonemomentofdispleasuretoanother. dealcançá-la.Issoforçaosujeitoaaceitarpacientementeodesprazer
Freudconceivespleasureassuppressionofanabsence,astheresultofaprocess. duranteolongodesvionecessárioparachegaraoprazer.Oindivíduo
Marcuseinhisturnshowedthatexcessivepleasureworksasacounterbalance chega à traumática compreensão de que é impossível a gratificação
for displeasure, the repression of sexual impulse and the hypertrophy of the
totaleindolordesuasnecessidades.Essafrustraçãoéparalelaàcons-
genitaliaproducingintensepleasure.Apost-Freudiantheoryofpleasurewould
tituiçãodonovoprincípiodofuncionamentomental.Oprincípiode
complement Marcuse’s materialist critique of psychoanalysis by learning to
realidadeinvalidaoprincípiodeprazer,namedidaemqueohomem
conceivepurepleasure(withAristotle’sNichomacheanEthics)inanon-meta-
éobrigadoaaprenderquedevesubstituiroprazermomentâneo,que
physicalway,segregatedfromthenotionofsuperfluity.
podeconduzi-loàautodestruição,porumprazerdiferidoerestrito,
Keywords:pleasure,superfluity,repression,Marcuse,Aristotle
muito embora“seguro”, uma vez que se trata de um prazer aceito
socialmente.Oajustedoprazeraoprincípioderealidadeimplicana
244 Discurson.362007 Sobreoprazerexcedente 245
subjugaçãoenodesviodasforçasdegratificaçãoinstintiva,incom- escapa da maga Circe e de Calipso, não consente ficar prisioneiro
EdgardoGutiérrez
DossiêFilosofiaePsicanálise
patíveiscomasnormaseasrelaçõessociaisestabelecidas. delas,apesardosprazeresdosolhosedetodasasbelezassensíveis
Nocursodesuareflexão,Freudindicaporaltoque“osdetalhes queencontravaali”.(4)
doprocessopeloqualarepressãotransformaumapossibilidadede Marcuse, em Eros e civilização, a partir da interpretação crítica
prazeremfontededesprazeraindanãoforambemcompreendidos da metapsicologia de Freud, segue a mesma direção de Adorno e
ou não se pode descrevê-los claramente”(Freud 3, p. 2509). Esses Horkheimer.Noprimeiromomento,admite,juntoaFreud,queo
“detalhes” são o centro de interesse da análise dos pensadores de princípioderealidadesustentaoorganismonomundoexterior.Po-
Frankfurt,quesepropuseramainvestigaragênesesócio-histórica rém,nocasodoorganismohumano,omundoexterioréummundo
dacivilizaçãocientífico-técnica. histórico. O mundo exterior enfrentado pelo ego em desenvolvi-
NaDialéticadoesclarecimento,AdornoeHorkheimer(1)desen- mento é uma organização sócio-histórica específica da realidade,
volveramumaexposiçãodasorigensdarepressãodoprazeremcor- que afeta a estrutura mental por meio de agentes sociais específi-
respondênciacomasorigensdarazãoinstrumental,dacivilização cos.Oconceitofreudianodeprincípioderealidadeomiteessefato,
baseadanatécnicaedarelaçãoentredomínioetrabalho,apartirda convertendoascontingênciashistóricasemnecessidadesbiológicas,
expressãopoéticadaquelasorigensqueremontamàGréciaAntiga. demodoquegeneralizasuaanálisedatransformaçãorepressivados
OcantoXIIdaOdisséiaé,segundoessesfilósofos,olugarapropria- instintossoboimpactodoprincípioderealidade,convertendouma
do para pensar tal gêneses. Homero narra ali a astúcia de Ulisses formahistóricaespecíficadarealidadenarealidadepuraesimples.
diantedassereias.Ocantodassereiaséumapromessadeprazerir- Certamenteaorganizaçãorepressivadosinstintos,afirmaMarcuse,
resistívelqueseanunciaeéescutada.Deacordocomainterpretação permanecesobtodasasformashistóricasdoprincípioderealida-
proposta,opensamentodeUlissesconhecesomenteduaspossibili- denacivilização;noentanto,aorganizaçãorepressivadosinstintos
dadesdesaída:aqueprescreveaseuscompanheiros,tapando-lhes (comsuaimpossibilidadedereconciliaçãoentreoprincípiodepra-
osouvidoscomceraparaimpedi-losdeescutarocantoeobrigá-los zeroriginaleoprincípioderealidade)expressa,aomesmotempo,o
aremarcomtodasassuasenergias;eaqueescolheparasimesmo: fatohistóricodequeacivilizaçãotemprogredidocomodominação
amarrar-seaomastroparaouvirimpotenteasuaveeatrativamú- organizada.Justamenteporisso,odesenvolvimentohistóricoassu-
sica. Assim, as sereias mantém-se distantes da práxis e a tentação me a dignidade e a necessidade de um desenvolvimento biológico
queocantoexerceéneutralizadaaoconvertê-loempuroobjetode universal.Assim,segundoMarcuse,ocaráterhistóricodosconceitos
contemplaçãoestética.Comoosfuturosouvintesmodernos,Ulisses freudianoscontémoselementosdeseuopostoeexigeumadupli-
acorrentado assiste a um concerto. Desse modo, a arte, a saída da caçãodosconceitos.OstermosintroduzidosporMarcusesãoosde
pré-história,separa-sedotrabalhoesóétolerada,assimcomoéto- mais-repressão,istoé,asrestriçõesprovocadaspeladominaçãoso-
leradooprazer,namedidaemquesemantenhaexcluídadapráxise cial,diferenciadadarepressãobásica(“modificações”dosinstintos
renuncieavalercomoconhecimento.AduvidosavirtudedeUlisses necessáriasparaaperpetuaçãodaespéciehumananacivilização);e
é, pois, aquela que resiste ao prazer, aquela que renuncia. Dito de oprincípiodedesempenho,queéaformahistóricaprevalecentedo
passagem,jánostemposdosgregos,emumtrechodasEnéadas(I, princípioderealidade.
6 ,8) Plotino tomava Ulisses por exemplo do asceta:“Ulisses, que
246 Discurson.362007 Sobreoprazerexcedente 247
Adominaçãoagregamais-repressãoàorganizaçãodosinstintos antropológica que toma a parte (a civilização européia) pelo todo
EdgardoGutiérrez
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tooaparelhopsíquico,orientando-oparaapercepçãodoagradável Deacordocomateseplatônica,oprazer,porsuapróprianature-
EdgardoGutiérrez
DossiêFilosofiaePsicanálise
oudodesagradável.SegundoLacan,odesejoéconseqüênciadafalta za,seriaexcessivoe,ademais,mal.Frenteaessatese,pelocontrário,
essencialexperimentadapelacriançaseparadadesuamãe. temos a argumentação de Aristóteles. O excesso não é, para eles,
Desdeentão,osujeitodapsicanálisesedefinirápelafalta.Ahipó- devidoànaturezadoprazer.Aristótelesentendequeoexcessosóé
tesedafaltaéoaxiomadadoutrina.Osujeitoéumsujeitodesejantee possívelemumaclassedeprazer:oqueprecededeumador.Eeste
estámarcadoporumacarênciaconstitutiva.Aindaquesediferencie nãoéprazernosentidoprópriodapalavra.AfirmaAristóteles:
expressamentedanecessidade,quetenhatraçosmeramentebioló-
gicos,odesejoadotou,comoemPlatão,aformadacarência.Avida Os prazeres sem dor não têm excesso, e estes são produzidos por
psíquica está assinalada pela incompletude, e o prazer não é mais coisasagradáveispornaturezaenãoporacidente.Denominoagradável
doqueumestadopassageiroentredoismomentosdedesprazer.O poracidenteoquecura:poisofatodesercuradoporcertaaçãodaparte
desejoéimpulsionadoporumaincompletudesempreinsatisfeita. quepermanecesãéarazãopelaqualesseprocessopareceagradável;e
Como veremos em seguida, existe, sem dúvida, uma alternativa denominoagradávelpornaturezaoqueproduzumaaçãoprópriadetal
para pensar o prazer como preenchimento de uma falta anterior. natureza.(Aristóteles2,1154b)
Seguindoessateoriaalternativaatésuasúltimasconseqüências,en-
contraríamos,segundonossahipótese,umapossibilidadedepensar Adistinçãoentrecoisasacidentalmenteprazerosasenaturalmen-
oprazerpuro,apartirdeumaperspectivaempírica,despojadade teprazerosas(agradáveis)épostaaserviçodaexplicaçãodoprazer
todoelementometafísico.Comisso,secompletariaoprojeto,inicia- excessivo.Esteépossívelsomentenaquelascoisasquesãoprazerosas
doporMarcuse,deumacríticamaterialistadapsicanálise. peraccidens:oprazernarestauraçãodeumestadonatural.Praze-
Umateoriadoprazeralternativaàquederivadapsicanálisesuporia rosasnaturalmentesãoascoisasqueestimulamaatividadedeuma
redefiniroprazerdemodoquefiqueliberadodoconceitodeexceden- naturezadada.Assim,seoprazerosoacidentalmenteproduzsóuma
te.ParaissoretornaremosàteoriaformuladaporAristótelesnaÉticaa formaderivadadoprazer,poderiaseconcluirqueoexcessonãoper-
Nicômaco(2).Otextodoestagiritafornece,anossojuízo,oselementos tencepropriamenteànaturezadoprazer.
quepermitiriampensaroprazeremtermospós-freudianos. NoLivroX,AristótelesdiscuteoargumentodePlatãosegundoo
Com efeito, a vida psíquica no marco da civilização está, como qualoprazeréilimitadoporadmitiromaiseomenos.Aristóteles
Freudexplicouconvincentemente,marcadapelafaltadegratificação. podeconcordar,masnãosemmodificaressencialmenteateoria:o
Comodissemosanteriomente,odesejoimpulsionaosujeitoauma prazer admite o mais e o menos caso se considere o ato de gozar.
completudesempreinsatisfeita,eoprazerétãosomenteumestado Porém,istopoderiavalertantoparaogostoquantoparaavirtude:
passageiroentredoismomentosdedesprazer.Noentanto,confor- namedidaemqueumindivíduoestámaispredispostoqueoutro,a
meaobservaçãodeMarcuse,nacivilizaçãotemosprazerexcessivo práticadajustiçaeavirtudeemgeraladmitemomaiseomenos,
como complemento compensatório ao desprazer. A repressão dos nãomenosqueoprazer.Emoutraspalavras:umapessoa,porna-
impulsossexuaisparciaiseosuperdesenvolvimentodagenitalidade tureza,gozarámaiseantecipadamenteemrelaçãoaoutra,masisso
tornampossíveloprazerintensificado. nãosignificaqueanaturezadoprazerpropriamentesejailimitada.
Émaisdoqueisso:umacondiçãotalcomoasaúdetambémadmi-
250 Discurson.362007 Sobreoprazerexcedente 251
teomaiseomenosnessesentido–nemtodosestãosaudáveisda les2,1175b36-1176a3).Anormaparaestadistinçãoparecesero
EdgardoGutiérrez
DossiêFilosofiaePsicanálise
mesmamaneira.Quandoadoecemosnãoperdemosnossasaúde,em grauemqueumaatividadeécapazdecaptaraformaesepará-lada
suatotalidade,deuma,sóvez.Pode-sedizerqueoprazeradmiteo matéria;assimoprazerpuropareceseraquelequeestáseparadode
maisouomenoscasoseconsidereofatortempo:emummomento coisasmateriais.Estealcançasuamaiselevadarealizaçãonoprazer
sentimosmaisprazerqueemoutro.(Aristóteles2,1173aa15-8) deDeus,completamentelivredamatéria1.Omesmovaleparaoser
Aristóteles modifica a análise de Platão do mais e o menos do humano, enquanto possui um elemento divino, que é o intelecto.
prazerintroduzindoumpontodevistanão-individualediacrônico: Issoporqueumavidadeacordocomointelectoéarealizaçãodaati-
umapessoagozamais,outramenos,eemummomentooprazeré vidadehumanamaiselevada,queautomaticamenteproduzoprazer
maiorqueemoutro.Oestagiritanãoaceitaqueexistaummaiseum puro e mais estável. Isto implicaria que, embora em um contexto
menosnointeriordopróprioprazer.Assim,paraAristótelesopra- diferente,emAristótelesoscritériosdepurezaeverdadeiroprazer
zernãoéemsimesmoexcessivo.Oexcessosóépossívelnoprazer convergem,comoocorriaemPlatão.Dessemodo,seencontrariam
emmovimento.Contudo,prazernãoéummovimento. algunspontosfracosnateoriadeAristóteles,segundoindicaacerta-
damenteGerdVanRiel(5),pontosligadosàestreitarelaçãoestabele-
Poisarapidezealentidãoparecemserprópriasdetodomovimento cidacomoFilebodePlatão.
[…]masestasqualidadesnãopertencemaoprazer[…]épossívelen- Não obstante, acreditamos, pode-se constatar também que se
traremumestadodeprazerrápidaoulentamente,masnãoépossível encontramoselementosdesuasuperação.Comefeito,vejamosa
estarematividadeemrelaçãoaoprazerdemaneirarápidaoulenta,ou posturadeAristótelescaraaoprazeremmovimento.Emprincípio,
seja,gozar.(Aristóteles2,1173aa32-1173b5) a interpretação de Aristóteles, do termo“processo” ou“geração”
parece ser bastante estreita, caso se veja como“movimento para
Portanto,oexcessonãoéinerenteànaturezadoprazerpropria- umfimexterno”,comoumaclassedeatividadequenãoéumfim
mente. emsimesmo,masqueapenasserveparaalcançaralgomais(como
Platãoconsideravaoprazerpuroquandoeratotalmentelivrede nocasodaconstruçãodeumacasa).Nãohádúvidas,queháativi-
suacontrapartida.Então,essacondiçãosópoderiasercumpridano dadesque,emborasejamessencialmenteumprocesso,sejamexe-
casodoverdadeiroprazer,porqueaíafaltaanteriorfoisuficiente- cutadasporsuaprópriacausa.Oprazerconsideradonessaclasse
mentepequenaparacausardor.Portanto,emPlatão,oscritériosda deatividadesnãopodeserlocalizadonoresultadofinal,eninguém
purezaedoprazerverdadeirocoincidem.Aristóteles,pelocontrário, podedizerqueconsistanasatisfaçãodeumafalta.Aristótelesfor-
assumeimplicitamenteumargumentohedonista:casohajaprazer neceumexemploilustrativo:oprazerdeescutarmúsica.Estenão
presente,serásemprepuro.Aindaqueacompanhedor,apurezado éoafetoqueacabaquandooprocessochegaaofim,muitomenos
prazernãoéabolida.Nocontextoaristotélico,todoprazerépuro. é a satisfação de uma falta. Pelo contrário: escutar música é um
É certo que, conforme Aristóteles, exista uma diferença na pu- processoexecutadoporcausaprópriaenoqualaprópriaativida-
rezaentrediferentesatividadese,porconseqüência,tambémentre
osprazeresqueacompanhemtaisatividades.Afirmaqueverémais
1
puroquetocar,eouvirecheirarmaispurosquedegustar(Aristóte- Aristóteles2,1154b26-8;Metafísica,XII,1072b24-5.
252 Discurson.362007 Sobreoprazerexcedente 253
deéessencialmente(nãoacidentalmente)prazerosa.Alémdisso,o deAristótelesnãosejamaisdoquealegitimaçãofilosóficadaclasse
EdgardoGutiérrez
DossiêFilosofiaePsicanálise
prazerintelectual,consideradoporAristótelescomoomaiselevado, dominantedaGréciaClássica.SeretornarmosàpassagemdaDia-
pertenceaessaclasseemalgunscasos:porexemplo,nãotemosprazer léticadoesclarecimentocitadaanteriormente,poderemosconvergir
noestadoalcançadoporler,masnoprocesso,napróprioleitura. comAdornoeHorkheimer.Defato,assimcomoUlisses,quegoza
Dessemodo,emboraAristótelesadmitaapossibilidadedoprazer docantodassereiassemtrabalharenquantoosmarinheirosremam
entendidocomosatisfaçãodanecessidade,talcomoseapresentano comosouvidostampados,Aristótelessesatisfazcomassensações
casodosprazeresdanutrição,essaespéciedeprazernãoéprópriaao nãoprecedidaspelador,enquantoseusescravostrabalhamsemgo-
prazerpropriamentedito.Comefeito,pode-secompreenderaexis- zar.Liberadososremadoresdotrabalhoalienado,mediantetalvez
tênciadedorquandohouverprivaçãodoqueéconformeanatureza, ummotimabordo,liberadoosenhordesuacondiçãodeopressor,
eprazerquandohouversatisfaçãodoqueéconformeanatureza. poderiamtodosgozardamúsica,agorasemperigodemorte,poiso
Quando se necessita de alimento, produz-se dor; se essa necessi- prazer,nessecaso,seriaoprazerqueseexperimentanosomemsi
dadeésatisfeita,produz-seprazer.Nessecaso,existeumimpulso mesmo,produzidopelocanto,prazerdespojadodabuscadequal-
natural do organismo para o prazer. A afecção é ostensivamente queroutracoisaalémdasatisfaçãodeumafalta,prazerdesinteressa-
corporal, e o prazer é prazer buscado. Seria o caso dos prazeres do,prazerpuro,semexcesso.
sobreaquiloqueéagradável,deacordocomaclassificaçãoesta-
belecida por Kant. Háinteresse,manifestamente,naexistênciado Referênciasbibliográficas
objeto.Enoprazerdanutrição,certamente,comoobservaKant,a
fomeéamelhorcozinheira. 1. ADORNO, Theodor; Horkheimer, Max. Dialéctica del iluminismo. Buenos
TodaviavoltemosaFreud.Odesejo,enquantomarcadopelafalta, Aires:Sudamericana,1987.
épensadoemtermosdepulsão,impulso,movimentoparaumesta- 2.ARISTÓTELES.EticaaNicómaco.Madrid:PlanetaDeAgostini,1997.
3.Freud,Sigmund.Másalládelprincipiodelplacer.BuenosAires:Hyspamérica,
dohipotéticoneutroregidopeloprincípiodeprazer.Oprazerseria
1988.
oresultadodasatisfaçãodessemovimento,supressãodoprocessode
4.MARCUSE,Herbert.Erosycivilización.Madrid:Sarpe,1983.
aumentoediminuiçãodasexcitaçõespsíquicas,estadodenirvana,
5.VANRIEL,Gerd.“Aristotle’sDefinitionofPleasure:aRefutationofthePla-
anulaçãodadorquedominaaexistência.Oprazerésatisfaçãode
tonicAccount”.InAncientPhilosophy,vol.XX,n.1,Spring2000.
umprocessodegeração.Porém,comovimosaoseguirAristóteles,
issonãoéoqueocorreemtodososprazeres.Oprazerdeaprender,
porexemplo,nãoéprecedidopelador.Eomesmosepodedizera
respeitodassensações,“asdoolfatoemuitossonsevisões,etambém
recordaçõeseesperanças,nãosãoprecedidospelador”.Nessespra-
zeresnãohágeração,porque“nãohouvenecessidadedenenhuma
coisadaqualpossamserasatisfação”(Aristóteles2,1173b).
Talvez se objete, mediante o uso da dialética materialista, que
esse prazer seja dado somente ao senhor ocioso, e que o discurso
254
DossiêFilosofiaePsicanálise Discurson.362007
Oestatutodoinconscienteéético
BrunodeAlmeidaGuimarães
ProfessordaFaculdadedeFilosofiadoInstitutoSantoInácio
(CentrodeEstudosSuperioresdaCompanhiadeJesus)
Oestatutodoinconscienteéético
OobjetivodestetrabalhoédiscutirestaafirmaçãodeLacanparamostrarnãosó
quea“realidade”doinconscienteéproblemáticae,portanto,deveserabordada I
apartirdeumestatutoético,masqueaprópriapráticapsicanalíticatambém
podeserpensadaapartirdesseestatuto.Ouseja,quepodemospensarapsica- Em seu seminário de 1959-60, dedicado à ética da psicanálise,
nálisecomoumaéticadoreal,umaéticadoencontrotraumático,doencontro Lacansepropõeaextrair“asconseqüênciaséticasgeraisquearela-
comoimpasse,oudoencontrocomoinassimilável. çãocomoinconsciente,talcomofoiabertoporFreud,comporta”
Palavras-chave:psicanálise,ética,real,paradoxosdogozo,impasses,“saberfazer (Lacan,12,p.350).Osparâmetrosparaprogredirnessedomíniose
com” articulariam,segundoLacan,“pormeiodeumaorientaçãodorefe-
renciamentodohomememrelaçãoaoreal”.Paraconceberisso,seria
Theethicalstatusoftheunconscious preciso“ver o que ocorreu no intervalo entreAristóteles e Freud”
TheaimofthepaperistodiscussLacan’sphraseinthetitlesoastoshownot (Lacan,12,p.21).
onlythattherealityoftheunconsciousisproblematicandrequiresanethical
Antes,porém,talvezfosseoportunoextrairdessesdoispontosextre-
approachbutalsothatsuchanapproachisrecommendedtopsychoanalytical
mosumacomparação.Aodefiniroprincípioderealidadefreudiano
practiceingeneral.Psychoanalysiswouldthenbeconceivedasanethicsofthe
comoaparelhoderetificaçãoresponsávelporumaatividadederetor-
real–oftheencounterwiththetraumatic,thecriticalortheunassimilable.
noeretenção,Lacanseperguntaseaapostanumprincípioretificador
Keywords:psychoanalysis,ethics,real,rejoice,crisis
nãoseriapróximodaquiloqueselênaÉticaaNicômaco(Lacan,12,p.
41).Afinal,demodosemelhanteaoqueFreudarticulasobreoprin-
cípioderealidade,nãoédifícilreconhecer,emAristóteles,asugestão
dequeumprazerpostergado,quecausaumadormomentânea,pode
permitiroacessoaumbemmaioremaisduradouro.ParaAristóteles,
aquestãoseria,propriamente,saberreconheceroverdadeirobeme
orientar-seemdireçãoaele.Oproblemaéjustamenteque,emFreud,
esseprincípioretificador,oprincípioderealidade,falhadiantedealgo
quenãoéacessívelaosprocessosdopensamento.
Contudo,voltandoaoqueteriaocorridonointervaloentreAris-
tóteleseFreud,Lacandestacaodeclínioda“funçãodomestre”e
a conversão, ou reversão utilitarista, no início do século XIX. Ela
pressupõe não só o corte da revolução científica, com sua recusa
258 Discurson.362007 Oestatutodoinconscienteéético 259
BrunodeAlmeidaGuimarães
DossiêFilosofiaePsicanálise
princípio,dafiguradoantigosábiosupostamentecapazdeconhecer jurídica”,quetêmumestatutoontológicoproblemático,sãoficções
obem–ou,aomenos,darejeiçãodoconhecimentodeumbemque pressupostassemasquaisoDireitonãofunciona.Disso,concluiria
nãosejaprosaicoereferidoaumcálculoestritamenteinstrumental. que,apesardeseremcriadasenomeadaspeloespíritohumano,as
Overdadeirodesafioseriaseguir,comFreud,todaumaexplora- entidadesficcionaissãocapazesdeproduzirumasériedeefeitosna
çãodaética,incidindonãosobreodomíniodoideal,mas,aocon- realidade.
trário,sobreumaprofundamentodanoçãodereal(Lacan,12,p.21). Assim, Bentham nos ajuda a perceber que a realidade é simbo-
Nesse ponto, segundo Lacan, encontraríamos um traço bastante licamente constituída. Sem o discurso ela perde consistência1. Tal
distintivodoprojetodeFreudtambémemrelaçãoaosidealistasda conclusãolevariaLacanasituartodaaexperiênciafreudiananum
tradiçãofilosófica,pois,seosidealistasnãocontestamexatamente movimentodebásculaentreficçãoereal.
a chamada realidade, acabam por domá-la, já que encontram em Oreal,nessecontexto,seriaaquiloqueéimpossíveldesimboli-
nósmesmosumamedidaparaela.AposiçãodeFreud,poroutro zar,ouoquenãosesubmeteà“virtualização”.Elecoincidiriacomo
lado,nãoseriatãoreconfortante,pois,aopercebercomoéprecário pontoirredutívelàtraduçãocompletadoinconscienteparatorná-lo
oacessoà“realidade”,compreendeuporqueseusmandamentossão conscientedequefalavaFreudem1920,aointroduziroconceitode
tãotirânicos(Lacan,12,p.43). pulsãodemortecomoalgo“alémdoprincípiodoprazer”2.Poroutro
SeráquepodemossuporqueLacanpretendeextrairdissoacon- lado,“emFreud,acaracterísticadoprazer,comodimensãodoqueen-
clusãodequeaéticadapsicanálisedeveriasefundarnumatirania cadeiaohomem,encontra-setotalmentenoladodofictício.Ofictício
da“realidade”?Afinal,Lacanestariaconvencidodequeessatirania efetivamente não é, por essência, o que é enganador, mas, propria-
erasuficienteparajustificarumataqueàéticadoidealismoalemão, mentefalando,oquechamamosdesimbólico”(Lacan,12,p.22).
desprezando as considerações conseqüentes sobre a fragilidade de Freudteriaapresentadoanoçãodepulsãodemorteparacarac-
umaéticafundadanumfatoempíricoexistente? terizaraaçãonoaparelhopsíquicodeummecanismoquefunciona
Penso não ser esse o caso. Ao contrário, além de encontrarmos paraalémdoprincípiodoprazer,masLacanlembraquealeimoral
no seminário da ética a sugestão de que é exatamente a ausência seafirmaigualmentecontraoprazer.Issonoslevaàtesefundamen-
deontologianaobradeFreudqueexigeaconstruçãodeumaética taldosemináriodaética,queédemonstrar“quealeimoral,oman-
freudiana,Lacanafirmaria,noseuSeminárioXI,que“oestatutodo
inconscienteéético,enãoôntico”(Lacan,13,p.37).
1
MasdequerealestariaLacanfalando,então? Lacanlembraque,emBentham,ofictitiousestálongedeseroilusórioouenganador.O
termonãopoderiaserpropriamentetraduzidoporfictício,amenosqueentendêssemos
Énesseponto,enãonadefesadobemempíricocapazdeservirao
que“todaverdadetemumaestruturadeficção”(Lacan12,p.22).
maiornúmerodepessoas,queareferênciaaoutilitarismofazsenti- 2
Freud relata como, após vinte e cinco anos de prática, ele haveria de se deparar com
doparaapsicanálise.ComJeremyBentham,aprenderíamosasituar esselimitequenãopodeserreintegradoaocampodosentido.Segundoele,“oobjetivo
oreal,poroposiçãoaofictitious,nocentrodadiscussãoética. que[antes]foraestabelecido–odequeoinconscientedevetornar-seconsciente–não
eracompletamenteatingível”,pois“opacientenãopoderecordaratotalidadedoque
Benthamteriachegadoànoçãodeficçãoanalisandoumasériede neleseachareprimido,eoquenãolheépossívelrecordarpodeserexatamenteaparte
entidadesnecessáriasaodiscursojurídicoquenãopossuíamnenhu- essencial”(Freud4,p.31).
260 Discurson.362007 Oestatutodoinconscienteéético 261
damentomoral,oumesmoapresençadainstânciamoral,éaquilo LacanesclarecenaÉticaqueFreudescreveOmal-estarnacivili-
BrunodeAlmeidaGuimarães
DossiêFilosofiaePsicanálise
pormeiodoqualorealseapresentanapráticaanalíticaestruturada zaçãoparanosdizerquetudooquepassadogozoàinterdiçãovai
pelosimbólico”(Lacan,12,p.31). nosentidodeumreforçosemprecrescentedamesma.“Todoaquele
queseaplicaemsubmeter-seàleimoralsemprevêreforçarem-seas
exigências, sempre mais minuciosas e mais cruéis de seu supereu”
II (Lacan,12,p.216).Contudo,parainsinuartambémqueainterdição
alimentaoprópriogozo,Lacanseperguntasenãopoderíamosdizer
Ademonstraçãodessatesesupõequeasituemosnocontextodos queocorreomesmonosentidocontrário:
paradoxos do gozo sacrificial da consciência moral que aparecem
nareformulaçãoteóricadeFreudposterioraoAlémdoprincípiodo Nãoéabsolutamenteocasoqueaquelequeavançanaviadogozo
prazer. sem freios, em nome de qualquer forma que seja de rejeição moral,
Em“mal-estardacivilização”,Freudseperguntadequemodoa encontraobstáculoscujavivacidadesobinúmerasformasnossaexpe-
civilização consegue barrar a pulsão desagregadora e agressiva. A riência nos mostra todos os dias, e que, talvez, não deixam de supor
respostapoderiaestarnainstalaçãodosentimentodeculpa.Aci- algoúniconaraiz?Énessepontoquechegamosàfórmuladequeuma
vilizaçãoexigerenúncias,fazendocomqueaagressividadesejare- transgressãoénecessáriaparaacederaessegozo,eque–parareencon-
calcada.Sendoassim,apulsãoagressivaseriainternalizadae“volta trarmosSãoPaulo3–émuitoprecisamenteparaissoqueserveaLei.A
paraolugardeondeveio”(Freud,5,p.146).Umapartedoegoseen- transgressãonosentidodogozosóseefetivaapoiando-senoprincípio
carregariadessaagressividade.Daíaorigemdosuperego,que,desse contrário,sobasformasdaLei.(Lacan,12,pp.216-217)
momentoemdiante,irádirigirtodaaagressividaderecalcadacontra
opróprioegonaformadesentimentodeculpaounecessidadede Aquiencontramos,emLacan,umainversãodialéticadignadeHegel,
punição. poisatémesmoarevoltaeatransgressãodeixamdeserpensadascomo
Partindodopressupostodequenãohá,paranossoaparelhopsí- exterioresàordemparasemostraremdiretamentesolicitadasporela
quico,umadistinçãoentresatisfazerumdesejoproibidoedesejar, comooOutronecessárioasuaprópriasustentação.Ainversãolacaniana
Freudpropõeque,aomenorsinaldedesejo,oprocessorepressivo apareceaíparamostrarque,sedesdeFreudosuperegoéumimperativo
éacionado.Umcírculoviciosofazcomqueastentaçõessejamau- queexigeumsacrifíciosempremaior,seeleéumimperativoqueexige
mentadaspelasfrustraçõesconstantes.Quantomaisfrustradassão ogozodador,aLeinãobarraogozo,elaoproduz.Daíofamosojogo
nossastentativasderealizardesejos,maistentadosficamosemais homofônicoem“subversãodosujeito”:“viesseaLeiaordenar‘Goza’
puniçãovamossofrerporpartedosuperego.Portanto,“quantomais (jouis) o sujeito só poderia responder a isso com um‘Ouço’ (j’ouïs),
virtuosoumhomemé,maisseveroedesconfiadoéoseucomporta- ondeogozonãoseriamaisdoquesubentendido”(Lacan,7,p.836).
mento,demaneiraque,emúltimaanálise,sãoprecisamenteaspes-
soasquelevammaislongeasantidadeasquesecensuramdapior 3
AreferênciaaSãoPauloéesclarecidanumafraselogoabaixo,emqueLacancomple-
pecaminosidade”(Freud,5,p.149). menta:“FoiprecisoqueopecadotivessetidoaLeiparaqueele,dizSãoPaulo,setivesse
tornado–nadadizqueeleconsegue,maspôdeentrevertornar-se–desmesuradamente
pecador”(Lacan.12,p.217).
262 Discurson.362007 Oestatutodoinconscienteéético 263
Assim,percebemosqueaexigênciadodevopodeextrairsuaenergia
BrunodeAlmeidaGuimarães
DossiêFilosofiaePsicanálise
daprópriaexigênciadapulsãoagressiva,revelandoumdeveranterior III
àordemdosuperego.Omasoquismomoraldeixadeserincompreen-
sívelparasetornarapenasamanifestaçãodeumapulsãoqueencontra No“CompteRendu”escritoaofinaldeSemináriodaética,Lacan
satisfaçãoatravésdosintoma.Ogozoaqueserenunciasóservepara dizque:
alimentaraindamaisosuperego;arenúnciaaogozonutreogozoda
renúnciadosuperego.Eisoparadoxo:oimperativodegozarsemostra [Freud]partiu,outornouapartir,doantigopassodafilosofia:ou
absolutista.Comosuperegogoza-sedeumjeitooudeoutro.Senão seja,queaéticanãopodederivardaobrigaçãopura.Ohomemtende,
hárenúncia,osujeitogoza;sehá,osujeitogozaderenunciar. emseusatos,paraumbem.Aanálisevoltaaprivilegiarodesejocomo
Portanto,atesedeLacansegundoaqualaleimoral,ouapresença princípiodaética.Atéacensura,aprincípio,aúnicaafiguraraícomo
dainstânciamoral,éaquilopormeiodoqualorealseapresentana moral,extraideletodasuaenergia.Nãoexisteoutraraizdaética.(La-
práticaanalíticasignificaqueumdosdestinosdorealdaexigência can,8,p.8).
imperiosadenossaspulsõesseexpressaatravésdaatuaçãodosupe-
rego.Restasabersehaveriamoutrosdestinospossíveis,ouseja,se ValeaquiasugestãodeRajchman,emEroseverdade,deque,na
existiriamoutrasformasdegozocapazesdenosapresentaroreal. terceirarevoluçãoéticaoperadaporFreud,diferentementedoque
Pensoseressaaquestão-chaveparaseentenderacontinuidadedas foisubmeterodeveràfinalidadedavirtude(Aristóteles),oufazer
futuraselaboraçõesteóricasdeLacancomoSeminárioVII. girarobememtornodoprincípiosupremodaobrigação(Kant),
SabemosqueLacanprocuracaminhosalternativosnopróprioSe- teríamos a tarefa de descobrir qual é a melhor maneira de levar a
minárioVII,masnãoacreditamosqueeletenhaencontradosoluções vida(daíaidéiaprosaicadetenderaobem),unindoaquestãoética
efetivasnaquelemomento.Voltaremosaisso,maisadiante,paramos- do“quefazer?”aopathos,sem,contudo,retornaraumsupostoco-
trar que a solução trágica apresentada ali pode ser entendida como nhecimentodoBemaristotélico.(Rajchman,17,p.41).
umimpassenasuateorização.Dequalquermodo,oqueesseimpasse Há um dever que nasce da exigência de responder ao encontro
daformulaçãotrágicapareceterensinadoaopróprioLacanéqueo traumáticocomnossaspulsões.ÉinteressanteobservarqueLacan
grandedesafioéticodapsicanáliseésaberseogozomasoquistado faladoencontrotraumático,noSeminárioXI,comoarepetiçãode
imperativomoralpodesersubstituídoporalgumoutrogozo,semque umencontrocomoqueédaordemdoacaso(tiquê(Lacan,13,p.56-
issoimpliquenumareviravoltaparaooutroextremodaperversão4. 7).Achoqueissoestáemsintoniacomafala(deontem)deMonique
David-Ménard sobre a“repetição inventiva” como uma repetição
4
EcuriosoobservarqueLacanjáhaviaassinaladoalgunsproblemasnopróprioSeminário semumeventoprimeiro,eécuriosoqueestejatambémemsintonia
daéticaquemaistardeolevariamàretificaçãodesuaposição.Aprincípio,eleobserva
nãoterconseguido,apóstodoseuprogressoteórico,levarapsicanáliseaalgumnovo
tipodeperversão.(Cf.Lacan,12,p.25).Maisadiante,sugereumaproximidadeentrea
formulaçãoéticadeKanteadeSade,aoconstatarqueénapurezadamoralkantiana, tornaanalista,éno“desejopuro”queLacanreconheceaexemplaridadedapersonagem
istoé,naeliminaçãodetodoaspectopatológicoesentimentalqueomundosadistaé Antígona.(Cf.Lacan,12,p.342).Finalmente,noSeminárioXI,Lacanretificasuaposi-
concebível.(Cf.Lacan,12,p.101).Contudo,aocomentar“dimensãotrágicadaexpe- çãoaoafirmarque“aLeimoral,examinadadeperto,nãoéoutracoisasenãoodesejoem
riênciapsicanalítica”eodesejoaserencontradonotérminodaanálise,quepreparaa estadopuro”eque“odesejodoanalistanãoéumdesejopuro”(Cf.Lacan,13,p.260).
264 Discurson.362007 Oestatutodoinconscienteéético 265
comoÉticadeBadiou,principalmentequandoestabelecealgumas éumsaberquesóseliberaapartirdo“engano”.Temosaíalgoquesó
BrunodeAlmeidaGuimarães
DossiêFilosofiaePsicanálise
aproximações de sua teorização com a ética do desejo de Lacan, sedáaconhecerdeviés,quesóserevelaefetivamentenomomento
esclarecendo que,“ao falar de desejo, Lacan fala aí do não-sabido emquedeixamosdeterapretensãodedominá-lo.
subjetivo”(Badiou,2,p.67).Onão“cederdeseudesejo”poderiaser JánoSeminárioXXIV,Lacanobservaque,apesardeentenderque
entendidocomoaéticadeum“nãocedernaquiloquenãosesabede apsicanálisereveleumtipodesaber,estenãoseconfundiriacoma
si”(ibidem,2,p.59). apreensãoconceitualdoinconsciente,comoafilosofiafariacomseus
No que diz respeito à passagem doSeminário XI em que Lacan objetos.Osaberalcançávelnumapsicanáliseseriaapenasosavoiry
afirmaque“oestatutodoinconscienteéético”,aquestãopodeser faire,o“saberfazercom”,queédiferentedesaberoquefazer.Isso
referidaaowoEswar,sollIchwerdeneànecessidadedeum“saber significasaber“sevirar”(sedébrouiller),masesse“fazercom”indica
fazercom”osintoma,paraqueFreudpudessedarumarespostaao quenãoseapreenderealmenteacoisa,emsuma,emconceito”5.
encontroinesperadoquetevecomahisteria.Lacanafirmaque OtítulodesseseminárioL’insuquesaitdel’une-bévues’aileàmourre,
quenosapresentaumatraduçãoindecidívelaosituaroinconsciente
oestatutodoinconsciente,queeulhesindicotãofrágilnoplanoôntico, (l’Unbewusstsein,emalemão)nesse“umengano”–l’une-bévue–que
éético.Freud,emsuasededeverdade,diz–Oquequerqueseja,épreciso levantavôoousesustentadeumjogodeazar,masqueecoatambém
chegarlá–porque,emalgumaparte,esseinconscientesemostra.Eisto aproximidadehomofônicadosustentar-sedoamorouatémesmo
ele diz dentro de sua experiência daquilo que era para o médico, até damorte,jánosdáumapistadequaléonovoparadigmalacaniano
então,arealidademaisrecusada,maiscoberta,maiscontida,maisrejei- daéticado“savoiryfaire”edaéticadobem-dizer.Joyceéoexemplo
tada,adahisteria,noqueelaé–dealgummodo,deorigem–marcada deum“desabonaroinconsciente”,deumsaberfazercomadimen-
pelosignodoengano.(Lacan,13,p.37) sãoimpositivadaordemsimbólicaquecoincidiriacomessesaber
fazerdosinthome.
Assim,responderaesseencontroinesperadorepresentouumsa- Joyce“saityfaire–C’estlesinthome”(Lacan,15,16/03/1976),diz
berfazercomissoqueeratãoproblemático,comarealidademais Lacan no Seminário XXIII, ou seja, ele sabia fazer com isso. Joyce
recusadaatéentãopeloscontemporâneosdeFreud. éosint-homemquesabiafazercairseu“mandaquinismo”(Lacan,
Em“Oengano(Lameprise)dosujeitosupostosaber”,Lacanrea- 15, 18/11/1975), seu são-thomas-d’aquinismo6 e, portanto, é um
firmaessecaráterfrágilaoobservarqueaquestãodoinconsciente herói-ético,herético(heréthiquecomh),umpobreheréthiqueque
éamaismalapreendidaatéhoje.Eleobservaquesupornoincons- sabiaqueaúnicaarmacontraosintomaéoequívoco(Lacan,15,
ciente uma mensagem cifrada é diferente de crer na possibilidade
dereduziroescritoenigmáticoaumúnicosentido.Mascomoter
acessoaosaberinconsciente,então?ArespostadeLacan,nessecaso, 5
“Savoiryfaire,c’estautrechosequedesavoirfaire.Çaveutdiresedébrouiller.Maiscet
seria:“éportratar-sedeumlugarquediferedetodaapreensão[pri- ‘yfaire’indiquequ’onneprendpasvraimentlachose,ensomme,enconcept.”Paraas
citaçõesdossemináriosinéditosdeLacan,comonestecaso,passaremosaindicaradata
se]dosujeitoqueumsaberéliberado,jáqueelesóseentregapor daliçãoemquefoifeitaaafirmação,daseguintemaneira:Lacan,16,11/01/1977.
meiodoque,paraosujeito,émalapreendido[méprise]”(Lacan,9, 6
Cf.aindaaseguintepassagemdeJoyce,osinthomemI:“Sóhásantoaserenunciarà
p.337).Issoéfundamental,poisLacandescobrequeoinconsciente santidade”(Lacan,11,p.563).
266 Discurson.362007 Oestatutodoinconscienteéético 267
18/11/1975).Lemosaindaqueele“soubeusarseusinthomematé Partiu-sedeumaconstatação:orealnoséinacessível,háumgozoaí,
BrunodeAlmeidaGuimarães
DossiêFilosofiaePsicanálise
atingir seu real” (Lacan, 15, 18/11/1975), o mesmo real que La- masnãoépossívelapropriar-sedelecomosentido.Diantedisso,La-
can,emTelevisão,anunciasero“quepermitedesatarefetivamente canseperguntaseexistemoutrasviasdeacessoaoreal.Inicialmente,
aquiloemqueconsisteosintoma,ouseja,umnódesignificantes” pensouquetalvezumforçamento,umabelezatransgressoracomoa
(Lacan,10,p.515). deAntígonapudesse,nolimite,apontarparaele.Então,Lacandes-
Adescobertadequeoinconscientetalveznãosepresteàinterpre- cobrequeogozonãoprecisaseprestarnecessariamenteaosentido:
taçãoécontemporâneadadescobertadequeosintoma,apesarde elepoderiafuncionartambémcomoumaespéciederesistência.Ali
produzirumgozoquenãotrazbenefíciosaosujeito,tambémnão o sujeito encontraria satisfação sem estar inteiramente assujeitado
podeserinteiramentedesfeito.NoSeminárioXX,Lacandemonstra aoOutro.Toca-seorealindiretamente.Nonovoparadigmaliterário
queogozoquenosacometedeumjeitooudeoutro–“essegozo já não temos a beleza trágica deAntígona, mas o savoir y faire de
própriodosintoma.Gozoopaco,porexcluirosentido”(Lacan,11, Joycecomalíngua.Seugozo,apesardenãoproduzirtransgressões
p.566)–tornainteligívelosintomacomoaexpressãodeumquerer éigualmenteimpermeávelaosentido,jáqueooperarcomaordem
diferentedocálculoutilitário.Osintomaproduzumgozoque“não simbólicacontinuaaseraviadeacessoaumasatisfaçãopulsional.
serveparanada”,dizLacan(Lacan,14,p.11). Lacandescobreserpossívelfazeralgumusodadimensãoimpositiva
deordemsimbólicasobrenósparaextrairmosumasatisfaçãosema
Vocêsvêemarelaçãodetudoistocomautilidade.Éutilitário.Isso finalidadedeproduzirsentido.
tornavocêscapazesdeservirparaalgumacoisa,eistoporfaltadesaber Nãoestariaaíarespostaparaaéticalacaniana?SeLacansequeixano
gozardeoutromodoquenãoodesergozado,oujogado,[homofonia SeminárioVIIdenãoterconseguido,apóstodoseuprogressoteórico,
doêtrejouis/êtrejouet]poiséjustamenteogozoquenãodeveria,que levarapsicanáliseaalgumnovotipodeperversão(Lacan,12,p.25),a
nãoseriapreciso(Lacan,14,p.84). novaperspectivaqueseabreaofinaldeseuensinoolevariaaabando-
nardefinitivamenteasoluçãotransgressiva.Paraentenderessaéticanão
Nessaformulação,osintomaapresentaalgodeparadoxal.Jánãoé transgressivabastaaproximar,talcomoopróprioLacanmuitasvezeso
apenasum“estofo”,ouum“nódesignificantes”,capazdeproporcio- fez,adimensãoimpositivadapalavraàaçãodaleisobrenós.Averda-
narasatisfaçãosecundáriadeumaidentificaçãonarcísicaaoatribuir deirasoluçãoestarianãonomecanismoperversodadesconsideraçãoda
aosujeitoumasignificaçãodentrodesuaestruturasócio-simbólica, lei,mas,antes,nacapacidadedereconhecê-laemseuaspectoessenciale
comoeranoLacanatéofinaldosanos1950.Nomomentoemquese fazerumoutrousodela.Istoé,utilizá-laparaproduzirarranjosquenão
opõemaoútilejánãoservemparanada,ossignificantesquerepre- visemaproduçãodosentido.Oúnicoproblemadesetomaressaelabo-
sentamosujeitodeixamdeseprestaraosentido.Osujeitomostra-se raçãofinalcomoumaéticaéqueesse“savoiryfaire”nãoéumsabero
não inteiramente assujeitado ao Outro e à significação, embora seu quefazer,nosentidodeumsaberconceitualcapazdeorientarocaminho
gozocontinueasesustentardeumdeterminadousodalinguagem. emdireçãoaobemenemum“conhecimento”dasregrasdodever.
Portanto,aoseguirmosaelaboraçãolacanianaposterioraoSemi-
náriodaética,constatamosqueopróprioLacanreproduz,emrelação
asuateorização,aviradanecessáriaaosaberfazercomoimpasse.
268 Discurson.362007 Oestatutodoinconscienteéético 269
IV 7.LACAN,Jacques.“Subversãodosujeitoedialéticadodesejonoinconsciente
BrunodeAlmeidaGuimarães
DossiêFilosofiaePsicanálise
freudiano[1960]”.InEscritos.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd.,1998.
Afinal,seapsicanálisepodeserentendidacomoumaética,seráque 8.–––––.“CompterenduavecinterpolationsduSéminairedel’Ethique”.[1960
[1968]InOrnicar?–RevueduChampfreudien.vol.28,Janvier1984.
somos capazes de adquirir um logos sobre nossas vidas? Se pensar-
9.–––––.“Oenganodosujeitosupostosaber[1967]”.InOutrosEscritos.Riode
mosnoqueocorreucomoprópriodesenvolvimentodateorização
Janeiro:JorgeZahar,2003.
psicanalítica no confronto com seus impasses, talvez seja possível
10.–––––.“Televisão[1974]”.InOutrosescritos.RiodeJaneiro:JorgeZahar,2003.
reconheceraíumalógicaminimalistadotipo“umsaberfazercom
11.–––––.“Joyce,osinthomemI[1975]”.InOutrosescritos.RiodeJaneiro:Jorge
oimpasse”.Pensamos,porexemplo,numtipode“lógica”dequeo Zahar,2003.
“erroéasoluçãoinvertida”,queestáportrásdaatitudeemFreud 12.–––––.Oseminário,livroVII.Aéticadapsicanálise[1959-60].RiodeJaneiro:
de substituir a teoria da sedução pela teoria da fantasia; a mesma JorgeZahar,1991.
coisaseriaverdadeapropósitodadescobertadeLacandequeum 13.–––––.Oseminário,livroXI.Osquatroconceitosfundamentaisdapsicanálise
pequenodeslocamentodeperspectivaésuficienteparareconhecer [1964].RiodeJaneiro:JorgeZahar,1988.
que“o obstáculo já é a solução”, a propósito do real do gozo. De 14.–––––.Oseminário,livroXX.Mais,ainda[1972-73].RiodeJaneiro:Jorge
qualquermodo,essalógicasópoderiaserreconhecidaaposteriori Zahar,1985.
(aprés coup), pois,a priori, não saberíamoscomo exercê-la, jáque 15.–––––. Le séminaire, livre XXIII. Le sinthome [1975-76]. Paris: Éd. Hors
nadapodemosadiantarantesdoconfrontocomoimpasse,istoé,do Commercedel’AssociationFreudienneInternationale,2001.
encontrocomoreal. 16.–––––.Leséminaire,livreXXIV.L’insuquesaitdel’une-bévues’aileàmourre
[1976-77].Paris:Éd.HorsCommercedel’AssociationFreudienneInterna-
tionale,1998.
17.RAJCHMAN,John.Eroseverdade:Lacan,Foucaulteaquestãodaética.Rio
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Relume-Dumará,1995.
3.BENTHAM, Jeremy. Théorie des Fictions. Paris: Éditions de l’Association
FreudienneInternationale,1996.
4.FREUD,Sigmund.“Alémdoprincípiodoprazer”.InEdiçãoStandardBrasilei-
radasObrasPsicológicasCompletasdeSigmundFreud,vol.XVIII,RiodeJa-
neiro:ImagoEditora,1987.
5.–––––.“Omal-estarnacivilização”.InEdiçãoStandardBrasileiradasObras
PsicológicasCompletasdeSigmundFreud,vol.XXI,RiodeJaneiro:ImagoEdi-
tora,1987.
6.KANT,Immanuel.Críticadarazãoprática.SãoPaulo:MartinsFontes,2002.
Daenunciaçãodaverdade
aoenunciadodogozo:omito
CláudioOliveira
ProfessordeFilosofiadaUniversidadeFederalFluminense(UFF)
Daenunciaçãodaverdadeaoenunciadodogozo:omito
EmseuSeminárioXVII,Oavessodapsicanálise,háduasafirmaçõesdeLacan
sobreomito.Aprimeiraéadequeomitoéumsabercomoverdade;segunda:o Sabemoscomqueprecisãoconviriaacompanharessatemáticadaverdade
mitoéumenunciadodoimpossível.Nãomepareceimediatamenteevidentecomo edeseuviésnosaber–emboraprincípio,aoquenosparece,
estasduasafirmaçõespodemserarticuladas.Tentarei,assim,chegaràsegunda dafilosofiacomotal.
afirmaçãopartindodaprimeira,masfareitambémoesforçodemostrarcomoa JacquesLacan,Dosujeitoenfimemquestão
passagemdeumaàoutraénecessária,ecomoelasedáaolongodopercursode
Lacan.NessepercursoserãoimportantespequenaspassagensporHegel,Platão
eHeidegger.Opercursoqueserealizaentreasduasdimensõesdomitoéum Ocomeçoéummito.Enocomeçosempreháummito.Apsicaná-
percursoquevaidaenunciaçãodaverdadeaoenunciadodogozo.Paraqueesse lisenãopôdeevitá-lo,nãomaisqueafilosofia.Eemseuensino,em
percursopudesseserfeito,Lacantevequeacrescentaraoparhegeliano,saber algunsmomentos,Lacantevedetratardomito.Destacoumdesses
everdade,umterceiroelemento,ogozo–umelementoausentenosprimeiros momentos.EmseuSeminárioXVII,Oavessodapsicanálise,háduas
anosdeseuensino. afirmaçõesdeLacansobreomito.Aprimeiraéadequeomitoéum
Palavras-chave:saber,verdade,gozo,Lacan,Hegel,Heidegger sabercomoverdade.Asegundaéadequeomitoéumenunciadodo
impossível.Nãomepareceimediatamenteevidentecomoessasduas
Fromtheenunciationofthetruthtotheexpressionofrejoice:themyth
afirmaçõespodemserarticuladas.Tentarei,assim,chegaràsegun-
The aim of the paper is to discuss the compatibility of Lacan’s propositions
daafirmaçãopartindodaprimeira,masfareitambémoesforçode
concerningmythposedinSéminaireXVII,as“knowledgeofthetruth”andas
mostrarcomoapassagemdeumaàoutraénecessária,ecomoelase
“enunciationoftheimpossible”,soastoshowthattheyareconnectedinthe
dáaolongodopercursodeLacan.Nessepercursoserãoimportantes
sensethatmythistheexpositionofaprocessthatlinksenunciationofthetruth
pequenaspassagensporHegel,PlatãoeHeidegger.
withastateofrejoice.ElementsofHegelphilosophyplayanimportantrolein
Aprimeiraafirmaçãolacanianadevesurpreender.Umsabercomo
thisintricatearrangement.
Keywords:knowledge,truth,rejoice,Lacan,Hegel,Heidegger
verdadeéoque,apriori,deveriaestarforadoensinodeLacan,na
medida em que a verdade, nesse ensino, é o que está excluído do
campo do saber ou, mais precisamente, internamente excluído: o
queescapaaosabersóaparece,nocampodosaber,comofalhado
saber.Daíque,paraentenderaimportânciadaafirmaçãodequeo
mitoéumsabercomoverdade,umsaberquetemfunçãodeverdade,
precisamoslevaremcontaque,paraLacan,verdadeesaberemgeral
seopõem.Essaoposição,LacanaextraidaFenomenologiadoespírito
274 Discurson.362007 Daenunciaçãodaverdadeaoenunciadodogozo 275
deHegel,domodocomoHegeldá,nessaobra,asdeterminaçõesdo Lacan,poroutrolado,aofalardosabercomoverdade,odistingue
CláudioOliveira
DossiêFilosofiaePsicanálise
saberedaverdade,taiscomoelasocorremnaconsciência. radicalmentedosaberdaverdadeoudaverdadedosaberqueHegel
Aconsciência,nosdizHegel,distinguealgodesi,oobjeto,mas chamadeSebstbewusstsein,aconsciênciadesi.Aoperguntar“oqueé
aomesmotemposerelacionacomisso.Issoquerdizerqueoquea averdadecomosaber?”,Lacanacrescenta:“Comosabersemsaber?”
consciênciadistinguedesi,aomesmotempo,éparaaconsciência. (Lacan2,p.39).Osabercomoverdade,paraLacan,nãopodemos
Esseestarrelacionadocomaconsciência,esseserparaaconsci- esquecê-lo,éumsaberquenãosesabe.Porisso,nãosetrata,para
ência,Hegelochamadesaber.Sóque,desseserparaaconsciência, Lacan, de um Sebstbewusstsein, mas de um Unbewusstsein. Não se
desseserparaumoutro,deve-sedistinguiroseremsimesmo.Isso trata,paraLacan,deConsciênciadesi,masdeInconsciente;emoutras
queserelacionacomosaberdevesedistinguirdeleesepôrcomo palavras,Lacannãoéhegeliano,masfreudiano.
algoqueé,mesmoforadessarelação.ÉesseladodoemsiqueHegel Issonãooimpede,éverdade,deseapropriardadialéticahege-
chamadeverdade,talcomoaconsciênciaaentende. lianaentresabereverdadeparadaraelaumaoutraresoluçãoque
MasHegelnãopáraporaí,namedidaemque,emsuahistória,em não aquela da consciência de si. Mais precisamente, Lacan não dá
suafenomenologia,aprópriaconsciêncianãopáraporaí.Poissea àdialéticadosaberedaverdadenenhumasolução,masamantém
verdadeescapaaosaber,há,noentanto–eaconsciênciatemdere- insolúvel.Oqueelequerdelaépropriamenteaoposição,queelain-
conhecê-lo–umaverdadedosaber.IssoqueHegelchamadeverdade troduz,entresabereverdade.Omito,nessesentido,enquantosaber
dosaberpoderiaparecerqueéomesmoqueLacanchamadesaber comoverdade,tambémnãoresolveessaoposição,antesaencarna.
comoverdade,masnãoé.Osabercomoverdadenãoéaverdadedo Éoque,paraLacan,distingueodiscursomíticododiscursocien-
saber.Averdadedosaber,comoHegelaentende,éoqueosaberéem tífico,namedidaemqueodiscursocientíficoresolveadialéticaentre
si,namedidaemqueaverdade,talcomoaentendeaconsciência,é sabereverdadesimplesmenteabolindoaúltima.Seomitoéumsaber
esseemsiqueseopõeaosaber.Seháumemsidosaber,seháoqueo comoverdade,aciênciaéumsabersemverdade,umsaberquejánão
saberéemsi,háumaverdadedosaber.Aoinvestigaroqueosaberé tem nenhuma relação com a verdade e, por isso mesmo, um saber
emsi,osabersetornaobjetodesimesmo,eleéparasimesmo.Oque inteiramenteautônomodosabermítico.Aafirmaçãodequeaciência
resultadaíéque,noquedizrespeitoàverdadedosaber,oseremsieo éumsabersemverdade,umsaberquenãotemnenhumarelaçãocom
serparaumoutro(nocaso,paraaconsciência)sãoomesmo,name- averdade,podesurpreender,oumesmochocar.Heideggertambém
didaemquetaldistinçãoocorrenointeriordaprópriaconsciência:a produziu um escândalo semelhante ao afirmar que“a ciência não
essênciadosaber,enquantosuaverdade,éoprópriosaber,enãoum pensa” (Heidegger 6, p. 115). No entanto, à medida que entende-
objetoqueelenãoseja.Aqui,averdadeestánoprópriosaberenão mosoqueLacanentendeporverdade,essasurpresaeesseescândalo
foradele.Nessecaso,ultrapassa-seaseparaçãoentresabereverdade. diminuem.Aciêncianãotemnenhumarelaçãocomaverdade,na
ÉistooqueHegelchama“consciênciadesi”,Selbstbewusstsein.Dizele: medidaemqueodiscursodaciência,paraLacan,sósesustentapor
“aconsciência,porumlado,éconsciênciadoobjeto;poroutrolado, umalógicaquefazdaverdadeumjogodevalores,excluindoradical-
consciênciadeseusimesmo(seinerselbst):éconsciênciadissoque, menteaquiloqueelechamadesuapotênciadinâmica:
paraela,éoverdadeiroeconsciênciadeseusaberdisso”(Hegel1,p.
77[2002,p.79]).
276 Discurson.362007 Daenunciaçãodaverdadeaoenunciadodogozo 277
Comefeito,odiscursodalógicaproposicionalé,comosesublinhou, enquanto modelos de homens virtuosos, agem em função não de
CláudioOliveira
DossiêFilosofiaePsicanálise
fundamentalmentetautológico.Consisteemordenarproposiçõescom- umaepistéme,mas,comodizSócrates,deumaortodoxa,oqueLacan
postasdemaneiratalqueelassejamsempreverdadeiras,sejaqualfor, entendedoseguintemodo:“existeaíumverdadeiroquenãoéapre-
verdadeirooufalso,ovalordasproposiçõeselementares.Nãoseráisso ensívelnumsaberligado”(ibidem).Seaconstituiçãodeumaepisté-
selivrardoquechamava,hápouco,dedinamismodotrabalhodaver- meéentendida,emgeral,comoafunçãodeSócrates,Lacanentende
dade?(Lacan2,p.103) oMénoncomoolugaremquePlatãodeixaclaroque“Sócratesnão
crêqueistosejatudo”(ibidem).
Essedinamismodotrabalhodaverdade,Lacanotratou,noinício O Ménon nos dá mostra, segundo Lacan, de que“há em todo
deseuensino,como“afunçãodaverdadeemseuestadonascente” saber, uma vez constituído, uma dimensão de erro, que consiste
(Lacan3,p.13[1985,p.11]).JáemseuSeminárioII,elesevêàsvol- emesquecerafunçãocriadoradaverdadeemsuaformanascen-
tascomessa“singularambigüidadeentresabereverdade”(ibidem), te” (Lacan 3, p. 29 [1985, p. 30]). O trabalho nessa dimensão da
que,segundoele,sevêdesdeaorigem,namedidaemquetomemos, verdadeéoque,noSeminárioXVII,Lacanchamadedinâmicada
por exemplo, Platão como origem. É no Ménon de Platão que ele verdade.Odiscursoanalíticonãosónãopodeesquecertaldimen-
vai,deinício,tentarmostraressainérciaprópriaaosaber,queofaz são,mastambémsedistingueporformularaperguntadeparaque
perderalgodavirtudeapartirdaqualelesurgee,umavezsurgido, serveessaformadesaber,aciência,querejeitaeexcluiadinâmica
começar a se depositar,“numa evidente propensão a desconhecer daverdade.ArespostadeLacané:“servepararecalcaraquiloque
seuprópriosentido”(ibidem).OqueLacanmostra,aí,équeosaber habitaosabermítico”(Lacan2,p.103[1992,p.85]).Aoexcluira
tem uma origem, a verdade, mas que ele tende sempre a esquecer dinâmicadaverdadequehabitaosabermítico,aciência,nomes-
essaorigem,oquequerdizerqueeletendesempreaesquecersua momovimento,
verdade,comosefosseumsabersemverdade.Omito,aocontrário,
trata dessa origem. O mito é sua memória. Como o inconsciente, nadamaisconhecedeleanãosersobaformadoquereencontramos
nostermosdeFreud,omitoéamemóriadoqueohomemesquece. nasespéciesdoinconsciente,querdizer,comoresíduodessesaber,soba
Eénessesentidoqueomitotemavercomaverdadeemseuestado formadeumsaberdisjunto.Oqueseráreconstruídodessesaberdisjun-
nascente.Nãoesquecê-laésuafunção,eénissoqueapsicanálisese to não retornará de maneira alguma ao discurso da ciência. (...) Esse
aproximadomito.ComodizLacan,“nósanalistas,quetrabalhamos saberdisjunto,talcomooreencontramosnoinconsciente,éestranho
nadimensãodestaverdadeemestadonascente,nãopodemosesque- aodiscursodaciência.(ibidem).
cê-la”(Lacan3,p.29[1985,p.30]).
TodaametaeoparadoxodoMénondePlatão,segundoLacan, Oqueéesserecalcadopelodiscursodaciênciaquehabitaosaber
consistememmostrarcomoaepistéme,essesaberligadoporuma mítico?Oqueéesseresíduodesaberquenãopoderetornaraodis-
coerência formal, deixa escapar precisamente aquilo que constitui cursodaciênciasenãocomosaberdisjunto?Oqueéessaformado
avirtude,aaretédaexperiênciahumana:“OqueSócratesdestacaé saberqueapsicanálisereencontranoinconsciente,nasespéciesdo
muitoexatamenteoseguinte–nãoexisteumaepistémedavirtude” inconsciente,esseestranhoaodiscursodaciência?
(Lacan3,p.26[1985,p.26]).PéricleseTemístocles,queestãoaqui
278 Discurson.362007 Daenunciaçãodaverdadeaoenunciadodogozo 279
CláudioOliveira
DossiêFilosofiaePsicanálise
sabermíticonãoésenãoosaberqueadvémnolugardaverdade,o Heidegger,maisantigaquetodarevelaçãodetaloutalente.Ovelar-
sabercomoverdade.Eoqueéosabercomoverdade?SegundoLa- sedoveladonotodo,Heideggerochama“oMistério”,DasGeheim-
can,éumsaberquesesustentacomoumsemi-dizeretemaforma nis,expressãonaqualressoaojogofreudianoheimlich-unheimlich.
doenigma(Lacan2,p.39[1992,p.33]).Oenigmaéosabercomo Oqueohomemtemdemaispróprioéoqueeletemdemaismis-
verdade,namedidaemqueaprópriaverdadesósesustentaemum terioso;oquetemdemaispróximoéoquetemdemaisestranho.
semi-dizer. Averdadedecadauméummistérioparacadahomem.Porisso,o
Essaidéiadequeaverdadesópodeserditapelametade,deque mistério,enquantovelar-sedovelado,domina,segundoHeidegger,
elanuncapodeserditatoda,LacanaextraideHeidegger.Comoele oexistirdohomem.
mesmodiznaúltimaliçãodoSeminárioXVII:“Nãofuieuquemin- Édessareflexãoheideggerianaemtornodosimultâneodesvela-
ventouessadimensãodaverdadequefazcomqueelaestejaoculta. mentoevelamento,emjogoemtodaverdade,queLacanchegaao
ÉaVerborgenheitqueaconstitui”(Lacan2,p.216[1992,p.179]). enunciadodequeaverdadeénão-toda:“Oprópriodaverdadeéisto
VerborgenheitéotermoalemãocomoqualHeideggerpensaaes- – a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade” (Lacan
sênciadaverdade:aessênciadaverdade,paraHeidegger,éovelamento 2,p.39[1992,p.34]).Porisso,osemi-dizeréaleiinternadetoda
(Verborgenheit). Mas a essência da verdade é o velamento precisa- espéciedeenunciaçãodaverdade,etambémporisso,oquemelhor
menteporHeideggerentenderaverdadecomodesvelamento.Éque aencarnaéomito.
todaverdade,enquantodesvelamento,enquantodeixar-ser,é,“em LacanilustraissoatravésdomitodeÉdipo,masnãoatravésda-
si mesmo, ao mesmo tempo, um velar (Verbergen)” (Heidegger 5, quiloque,nomito,foitransformadoporFreudemcomplexo.Lacan
p.21[1979,p.141]).Ovelamento,namedidaemqueseentende serefereaofatodeque,nessemito,aQuimerapropõeumenigmaa
averdadecomodesvelamento,éonão-desvelamento.Eseumvelar Édipo,eemfunçãodarespostaquelhedáqueÉdiposetornaÉdipo.
pertenceessencialmenteatododesvelar,éporqueanão-verdadeper- Aquiapareceafunçãodoenigma,dosabercomoverdade,comoum
tenceàessênciadaverdade.Eoquesevela,emtododesvelamento? semi-dizer,aprópriaQuimeraencarnandoessesemi-dizernamedi-
A resposta de Heidegger é que o velamento (a Verborgenheit) é o daemquesefazaparecercomoummeio-corpo.
velar-sedoqueénotodo(DieVerbergungdesSeiendenimGanze). Omesmomitotambémmostracomoosabercomoverdadedefi-
Heideggerassimdescreveesse“notodo”: neoquedeveseraestruturadoquesechama,empsicanálise,uma
interpretação. Para entendê-la, é preciso insistir na diferença que
Este“notodo”apareceàpreocupaçãoeaocálculocotidianocomo Lacanpropõe,desdeoiníciodeseuensino,comoumadiferençade
oimprevisíveleoinconcebível.Este“notodo”jamaissedeixacaptar nívelentreaenunciaçãoeoenunciado.
apartirdoentequesemanifestou,pertençaelequerànatureza,quer Oenunciadoéoquesediz,aenunciaçãoéoquesequerdizer
à história. Ainda que a tudo constantemente determinando, este“no comoquesediz.Aenunciaçãoficaabolidanodiscursocientífico,na
todo” permanece o Indeterminado, o Indeterminável (...). Este deter- medidaemque,paraessediscurso,nãoháaquestãodoquesequer
minante,noentanto,nãoéumnada,masumvelar-sedoqueénotodo dizer, mas apenas a questão do que se diz. No discurso científico,
[eineVerbergungdesSeiendeimGanzen](ibidem). a questão do que se quer dizer fica abolida porque nesse discurso
280 Discurson.362007 Daenunciaçãodaverdadeaoenunciadodogozo 281
não se quer dizer nada: falta um sujeito que possa sustentar esse enunciado,sóquemopodedaréÉdipo.Omesmoocorre,paraLa-
CláudioOliveira
DossiêFilosofiaePsicanálise
quererdizer.Umdiscursosóépropriamentecientíficosenãoquer can,numaanálise.Oenigma,mesmocolhido,tantoquantopossível,
dizernada.Porisso,odiscursocientíficoéumdiscursoconstituído natramadiscursivadoanalisante,éumenigmanoqualaenuncia-
apenasdeenunciados.Nelenãoháenunciações,oqueéumoutro çãoéproduzidapelointérprete,istoé,oanalista.Aotratarafalado
mododedizerqueodiscursocientíficodeixadeforaaquestãoda analisantecomoenigma,oanalistaadevolveaoanalisantecomosua
verdade.Poisoqueinsistenoenunciado,comoasuaoutrameta- própriaenunciação,diantedaqualestetemdesevirar.Trataressa
de,aenunciação,éumefeitodaverdadesobreoenunciado.Sóum falacomoenigmaérestituiroqueelatemdeenunciação:ésobre-
enunciadoquetemrelaçãocomaverdadelevatambémconsigouma tudonãoconsiderá-lacomoconfissão,istoé,comoumenunciado
enunciação.Oenunciadocientíficonãopossuinenhumaenuncia- semenunciação,comoumenunciadosemverdade.Nãoéoanalista,
ção exatamente por não ter nenhuma relação com a verdade. No nesse sentido, que é colocado na função de sujeito suposto saber,
entanto,se,aofalar,umsujeitofaznãoapenasumenunciado,mas saberdesdeoqual,supostamente,interpretaria.Oanalista,comoa
também uma enunciação, é porque a relação com a verdade já se Quimera, interpreta, mas quem é suposto saber é o analisante. O
estabeleceuejáoatravessou.Nãoexisteenunciadodaverdade,mas analistaestáaliparafazersuporumsaberenquantoverdadenafala
apenassuaenunciação. deseupaciente.Ainterpretação,paraLacan,temaestruturadosa-
SeLacanintroduzadistinçãoentreoenunciadoeaenunciação, bercomoverdade.
o faz, justamente para que a função do enigma ganhe sentido. O Éporissoque,nodiscursoanalítico,osaberadvémnolugarda
enigmaé,paraLacan,umaenunciação,diantedaqualficamosen- verdade.Contudo,comolembraLacan,“oqueadvémaí,nocomeço,
carregadosdoenunciado.Diantedeumaenunciação,diantedeum temumnome–éomito”(Lacan2,p.126[1992,p.102]).Éoque
enigma,temosdenosvirar,comofezÉdipo,edepoissofrerascon- podeservistoquandosetratadaverdade,daquelaverdadeprimeira,
seqüências. A fórmula de Lacan é:“O enigma é a enunciação – e aquelaquenosinteressa,mesmoqueaciênciarenuncieaela,mesmo
virem-secomoenunciado”(Lacan2,p.40[1992,p.34]).Énesse queaciêncianosdêapenasseuimperativo:continuaasaber.Nesse
sentidoqueoenigma,namedidaemqueparticipadosemi-dizer,é campoabertopeloimperativodaciência,todavia,háumacertadis-
omédiumsoboqualintervémainterpretação.Lacanlembraquea cordânciacomalgoquenosconcerne.Eistoéocupadopelomito.
interpretaçãoécomfreqüênciaestabelecidaporumenigma. Essadimensãodeverdadedomitoéoquetenteiprivilegiaraqui
NamedidaemquedescreveomitodeÉdiponessestermos,Lacan e,aofazê-lo,acabeiporprivilegiarsuadimensãodeenunciação;mas
mudaumpoucoomodocomoseentendeomitoetambémcomo asegundaafirmaçãodeLacanqueli,noprincípio,faladomitonão
seentendeainterpretação.ParaLacan,éaQuimeraqueinterpreta comoenunciação,mascomoenunciado.Eladiz:omitoé“umenun-
Édipo,enãoocontrário,comoestamosmaisacostumadosapensar. ciadodoimpossível”(Lacan2,p.145[1992,.p.118]).Comoenten-
Namedidaemquelhelançaumenigma,namedidaemquelhelan- der essa oposição que encontramos nas duas afirmações de Lacan
çaumaenunciação,éÉdipoqueéchamadoadaraessaenunciação sobreomito?
umenunciado.OenunciadodeÉdipocifraoenigmadaQuimerae Comoenunciação,omitoserefereàverdade,mascomoenuncia-
estasedissolveemseuprópriomistério.AinterpretaçãodaQuimera dodizrespeitoaoreal.Porisso,Lacanafirmaque“entrenóseoreal
consisteemdaraÉdipoumaenunciação,enãoumenunciado.O háaverdade”(Lacan2,p.202[1992,p.166]).Omitopossui,por-
282 Discurson.362007 Daenunciaçãodaverdadeaoenunciadodogozo 283
tanto,umadimensãodeverdade,adosabercomoverdade–pura Tudoissoé,paraLacan,profundamenteinquietante.Nassuaspa-
CláudioOliveira
DossiêFilosofiaePsicanálise
enunciação–,mastambémumadimensãodereal,adeenunciado lavras:“Éprofundamenteinquietantequehajaumrealquesejamí-
doimpossível–puroenunciado.Omito,nessesentido,éalgoque tico”(ibidem).Lacannãohesitaematribuiraessefato,odequehaja
geramuitasinterpretações,seuefeitodeenunciação,efeitoporsua umrealmítico,acausadequeFreudtenhamantidosuadoutrinada
vezdesuadimensãodeverdade.Porém,omito,enquantoenunciado funçãodopai.NoSeminárioXVII,étambémporocasiãodaanálise
doreal,nãotemnenhumsentido.Oreal,paraLacan,éoimpossível, dolugardopainomitoqueLacanforjaaafirmaçãodequeomito
mastambémoquenãoquerdizernada.Orealnãotemsentido.É éumenunciadodoimpossível.Trata-se,naocasião,dedemonstrar
algotraumático.Omitoéamemóriadessetraumático:umamemó- queopaimortoéogozoe,comisso,nãoseestámaisnonívelda
riaenquantocifra. enunciação,masnodoenunciado,poisoqueLacandiz,naocasião,
EssasduasdimensõesdomitoaparecemnissoqueLacanpensa éque“noenunciadodomitodeTotemetabu,omitofreudianoé
como o nó do semi-dizer da verdade e o que dele corresponde à aequivalênciaentreopaimortoeogozo”(Lacan2,p.143[1992,
interpretação,eestãoligadasaissoqueelechamoudeenunciação p.116]).Ora,Lacanentendeaequivalênciaentrepaimortoegozo
semenunciadoeenunciadocomreservadeenunciação. como“sinaldopróprioimpossível”(ibidem).Eseorealéoimpos-
Taisdimensõesreaparecememsuasconferênciasamericanas,publi- sível,omitocomoenunciadodoimpossíveléumcertoenunciado
cadasem1975.AíLacanfalaqueaimagemdoanalistacomoalguém dogozo.
cujométierconsisteemsecalaréumerro,umdesvio.Lacaninsistena Assim,opercursoqueserealizaaqui,entreasduasdimensõesdo
ocasiãoemqueoanalistatemcoisasadizer,masreafirmaqueoque mito,éumpercursoquevaidaenunciaçãodaverdadeaoenunciado
eletemadizerédaordemdaverdade(Lacan4,p.42).Lacanretoma do gozo. Para que esse percurso pudesse ser feito, Lacan teve que
então,maisumavez,aquestãodomito,dizendoqueoqueaproxima acrescentaraoparhegeliano,sabereverdade,umterceiroelemento,
odizerdaverdadeeomitoéofatodequeverdadetemumaestrutura ogozo–umelementoausentenosprimeirosanosdeseuensino.O
deficção.Averdadetemumaestruturadeficção,segundoele,porque quemeperguntoéseessepercursoemdireçãoaogozopoderiater
passapelalinguagemealinguagem,temumaestruturadeficção.Ao sidofeitosemqueopróprionão-tododaverdadesetivessemostra-
mesmotempo,aproximaraverdadedomitojáimplicaemdizerque doaLacanapartirdeHeidegger–emoutraspalavras,semqueuma
nãosepodeesgotá-la,dizê-latoda.Aoutrametadedaverdadeapa- modificaçãodapróprianoçãodeverdadesetivesseoperadodeHegel
rece,então,comoumcertoimpossível.Oimpossíveldedizê-latoda aHeidegger,semqueLacantivesseseapropriadodessamodificação
éoimpossíveldegeneralizá-la,oimpossívelqueelavalhapratodos. emseucaminhoparaummaisalémdaverdade,cujascoordenadas
Trata-se de uma verdade particular. Mas o que pode particularizar eleencontraemFreud.
umaverdade,torná-lanãotoda,senãooreal?Énessemomentoda
argumentaçãoqueLacanintroduzaconsideraçãoemtornodoquehá
derealnomito:“Digamos,queoreal,tambémele,podesermítico”
(Lacan4,p.45).Issonãodiminuiaimportânciadomitocomodizer
daverdade,pois“nestadireçãoestáoreal”(ibidem).
284 Discurson.362007
Referênciasbibliográficas
DossiêFilosofiaePsicanálise
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heroínadapsicanálise?
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2002.
Tradução:RonaldoManziFilho
Antígona:heroínadapsicanálise?
Como Heidegger, Lacan lê a Antígona à luz da problemática da verdade (do
desejode)dosujeito/Dasein.OprivilégiodadoàfiguradeAntígonaearejeição Introdução
deCreontetambémtêmdeserentendidossobreessepanodefundofilosófi-
co.TalprivilégioproporcionaumavisãodeporqueLacandáaAntígona–e O texto de Lacan sobre Antígona é extremamente complicado e
somente a ela – uma significação paradigmática na determinação do foco da sobredeterminado. Nesse texto (as últimas seis sessões do seu se-
análise.Aponta-separaaanalogiafeitaporLacanentreTirésiaseoanalista.A mináriosobreaéticanapsicanálise)1,Lacantratará,naverdade,de
intervençãodeTirésiaspodeserentendidasegundoomodelodeumainterpre- diferentestemasedomodocomoelesestãointer-relacionados.Sua
taçãoanalítica.EssaintervençãocorrespondeàquiloqueLacanescreveusobreo leitura de Antígona oferece ao mesmo tempo uma teoria do dese-
objetivodaanálise:elatemdebuscarapassagemàfalaverdadeira,queuneum jo,umateoriadasublimaçãoeumateoria(dalógica)dotérmino
sujeitoaoutro,dooutroladodomurodalinguagem. daanálise.Ateorialacaniana(daverdade)dodesejofuncionaaqui
Palavras-chave:Lacan,Sófocles,Tirésias,analista como o agente unificador. Ela forma o centro pelo qual os outros
temassãotratados.Ateorialacanianadasublimação,assimcomo
Antigone,heroinofpsychoanalysis?
suateoriadotérminodaanálise,deveserentendidaapartirdosseus
LacanreadsAntigone,likeHeidegger,inthelightoftheproblematicofthetruth
insightsarespeitododesejo(easuaverdade).
(of the desire of) the subject/Dasein. The privilege accorded to the figure of
AambiçãodeLacantemumalcancemaior:pormeiodaleiturade
AntigoneandtherejectionofCreontowhichhisinterpretationbearswitness,
Antígonaelenãoquerapenastratarumnúmerocrucialdetemasem
mustalsobeunderstoodagainstphilosophicalbackground.Italsoprovidesan
psicanálise,masdeseja,aomesmotempo,fornecerumaluzàessên-
insightintowhyLacangivesAntigone–andonlyAntigone–aparadigmatic
significanceinthedeterminationoftheaimofanalysis.wepointedtotheanal-
ciadatragédiagrega(verLacan7,pp.272-3,313).Semdificuldade,
ogymadebyLacanbetweenTiresiasandtheanalyst.theinterventionofTiresias alguém poderia ser tentado a encontrar algo frívolo nessa última
maybeunderstoodaccordingtothemodelofananalyticalinterpretation.The ambição. Estaria a psicanálise realmente em tal posição de revelar
interventionofTiresiasthenalsocorrespondstowhatLacanwriteselsewhere ossegredosdatragédiagrega?Quantoaessaquestão,ahistóriado
abouttheaimofanalysis:Theanalysismustaimatthepassageoftruespeech, esforçodapsicanáliseparalidarcomessaproblemáticanãoémuito
joiningthesubjecttoanothersubject,ontheothersideofthewalloflanguage. promissora.Muitasvezes,elanãovaimuitoalémdealgumasrefle-
Keywords:Lacan,Sophocles,Tiresias,analyst xõesimportunasetediosas(atéfazendopsicologismodelas)quenos
1
As citações das obras de Lacan foram traduzidas da edição original. Indicamos, por
isso, duas paginações: a primeira das edições inglesa e norte-americana, que o autor
utiliza, e a segunda, das edições em francês. Ambas estão indicadas nas referências
bibliográficas.(Notadotradutor).
288 Discurson.362007 Antígona:heroínadapsicanálise? 289
ensinamváriostiposdecoisassobreapsicanáliseepoucoounada põe,umacompletanegligênciadoenredo,precisamentepeloquea
PhillipevanHaute
DossiêFilosofiaePsicanálise
sobreatragédia.Nósestaríamoserrados,entretanto,emcaracterizar tragédiarecebesuaformasegundoAristóteles3.HeideggereLacan,
destemesmomodoosinsightslacanianossobreatragédia,designan- aocontrário,asseguramreciprocamentequeastragédiasdeSófocles
do-oscomomarginais,colocando-osprecipitadamentedelado.Ele nãodevemserentendidascomoAristótelesofez,ouseja,comouma
sãomaisqueummeroadornodaatualtemática.Nósdevemos,ao exposiçãodeaçõessucessivas,mutuamenteirredutíveis,edevicissi-
contrário,nosquestionarseotratamentoqueLacandáaostemas tudesdavida.Deacordocomeles,astragédiasnãosãocomposições
psicanalíticosmencionadosesesuavisãosobreatragédiaeotrágico de eventos; elas são, ao contrário, nada mais que o lugar no qual,
nãoestãointer-relacionadosunscomosoutrosdeummodointrín- respectivamente,averdadedoSer(edoDasein)eaverdadedode-
seco.Clarificaremosessaquestãoposteriormente. sejo(dosujeitoinconsciente)setornamvisíveis.Natragédia,escreve
Heidegger,“propriamentedizendo”,nadaacontece:elacomeçacom
uma ruína4. Lacan, por sua vez, compara a tragédia ao colapso de
Lacaneosignificadodatragédia umapirâmidedecartas:aescolhadeAntígonadeterminaasucessão
dascenasmutuamenteinterconectadasque,emsimesmas,fazema
ParaLacan,nãohádúvidasdequeAntígonaéaverdadeiraheroína significaçãoeaverdadedaescolhaoriginalposteriormenteexplici-
datragédiahomônimadeSófocles(verLacan7,p.262,305).Quem tada(verLacan7,pp.265-266,308-309).
gostariadenegarqueAntígonaincitaadmiraçãoemsuaresistência Nósfaríamosbememnãoperderdevistaocontextofilosófico(e
perseveranteàproibição,ditadaporCreonte,deenterrarseuirmão? maisespecificamenteheideggeriano)daleituralacanianadeAntígo-
Contudo,Antígonafazmaisqueumameraincitaçãoànossaadmi- na.Lacan,comoHeidegger(e,nestaquestão,todaatradiçãofilosó-
ração:elanosfascina.Elaé–eLacannuncadeixaderepetiristo–a ficadesdeoidealismoalemão),realmentelêessatragédiaporuma
únicaeverdadeiraprotagonistadatragédiadeSófocles.Noentanto, perspectivadamanifestaçãodaverdadedoSer,dodesejodoDasein
tudoissoéevidente.Há,certamente,umatradiçãodeleituraedein- edosujeito5.OprivilégioabsolutoconsentidoàfiguradeAntígona
terpretaçãodeSófocles2queparececoncordarcomLacan.Nãoape- nãopodeficarclaroseafastadodessaperspectiva.Umabrevecom-
nasfilósofoscomoHeidegger,mastambémalgunsespecialistasbem paraçãoentreasleiturasheideggerianaelacanianasobreAntígona
firmadosebemversadosdaantiguidadeseguemopontodevistade poderáilustraresteponto.
Lacan:AntígonaéaheroínadapeçaeCreontenãoénadamaisque
oanti-heróiquesofreasconseqüênciasdesuaprópria“insensatez”.
Entretanto,mesmonaantiguidadegrega,emaisprecisamentedesde
Aristóteles, tal leitura foi taxada como incorreta.A designação do
3
VerAristóteles1,pp.2320-2321(1450a115–1450a23)etpassim.
privilégiodafiguradeAntígona,poresteladodaquestão,pressu-
4
VerHeidegger2,p.128.
5
“Iln’ya,danslatragédieengénéral,aucuneespècedevéritableévénement.Lehérosetce
quel’entouresesituentparrapportaupointdeviséedudesir.Cequisepasse,cesont
2 deseffondrements,lestassementsdesdiversescouchesdelaprésencedeshérosdansle
ParaumaavaliaçãodainterpretaçãodaAntígonadeSófoclesconferirOudemans&Lar-
dinois8,pp.107-118. temps.”(VII,p.265,308)
290 Discurson.362007 Antígona:heroínadapsicanálise? 291
AleituradeLacaneHeideggersobreAntígona a questão do Ser)6. Embora seja mais que provável que Lacan
PhillipevanHaute
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Serpossasedaranósdeumnovomodo.Porém,oDaseinnãofaz doSer,que,emessência,estáparaalémdenossomundocotidiano
PhillipevanHaute
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istomeramenteporcaprichosubjetivo.ElefazassimporqueoSero familiar.Édessemodoqueelarepresentaumaverdadequenormal-
forçaaabandonarseusbemconhecidospassos,paraqueelepossa mentenosescapa11.
überhaupt(dequalquerforma)sedardeumnovomodo.Quantoa Nóssugerimosacimaqueateorialacanianadatragédiaeostemas
isto,oSernãopodeaparecerseparadodeumaatividade“violenta” psicanalíticosdequeLacantratanessecontextoestãoentrelaçados
dohomem.OSernãopodeocorrersemoDasein,poisemseuser intrinsecamente.Emseguida,ilustraremosessepontoemrelaçãoà
respondeoapelodoSer. problemática do término da análise, assim como ela é tematizada
Em Der Isters9, Heidegger retoma essa análise e dá um passo por Lacan em conexão com Antígona. A fascinação de Lacan por
além:nãosomentechamaohomemouoDaseindedasUnhei- Antígona (e algumas pressuposições filosóficas que nós deixamos
mlichste (o mais incomum), assim como acabamos de descrever, nu)dárazãoaumavisãodopropósitodaanálisequeéaomenos
masafirmaqueAntígonaéoserquerepresentaoDaseindeum discutível. Contudo, nós devemos primeiro explicar brevemente a
modo exemplar. De fato, Heidegger escreve que Antígona é der interpretaçãolacanianadeAntígonaantesdetomarmosessaquestão
unheimlichsteMensch(ohomemmaisincomum)porqueelafeza comprofundidade.
zu-geschickteErscheinen(aapariçãodanão-entrega)contra,qual
ninguémpodefazernada.Antígona,sejacomofor,rompeomun-
dodosere,assim,dosentido-dadohumanoedesuaspossibili- AinterpretaçãodeLacandaAntígonadeSófocles
dades.Elaestánaquelelugarondeomundoaparececomosendo
entregueaalgoquelheescapadeummodoradicalequenãotem A história de Antígona é bem conhecida. Ela quer enterrar seu
regresso possível: das zu-geschickte Erscheinen, quer dizer, o Ser irmão a todo preço. A despeito da proibição de Creonte, a quem
em-simesmo.HeideggerconcluiqueamortedeAntígonaselasua éóbvioque,comoumtraidordoestadoeassassinodoseuirmão
aderênciaaoSerem-si.10 Etéocles,Polinicenãomereceessahonra,elairáseesforçarduasvezes
Não é nossa intenção insistir fortemente na inegável proximi- paraconduzirsuavontadeatéofim.PorémCreonte,escreveLacan,
dade de Heidegger e Lacan com relação a Antígona. Para nossa cometeumerro.Elecometeainsensatezdedefenderquemesmoos
exposição, é mais importante que para Lacan, assim como para mortosestãosujeitosàautoridadepolítica(verLacan7,p.259,301).
Heidegger,Antígonarepresentadeummodoexemplaraverdade Eleé,então,nadamaisqueumanti-herói(verLacan7,p.277,323),
dohomememrelaçãoaalgoquepordefiniçãooelude.ParaLacan, ummeromomentodoestágioapartirdoqualAntígonapodereve-
AntígonaédirecionadaaodasDingquenãopodeserarticuladona larsuaverdade.ComoAntígonacolocamaistarde,Polinicedeveser
ordem dos significados, desconcertando o mundo a que estamos enterradoporqueéautadelfos:“morrendomeuesposo,poderiater
familiarizados.ParaHeidegger,Antígonaésujeitadaànecessidade outro,/filhosoutrohomem,perdendoum,poderiadar-me,/mas
11
É óbvio que esta comparação entre Heidegger e Lacan ainda permanece claramente
formal.Afimde“des-formalizar”essacomparaçãonósdevemos,porexemplo,nosper-
9
Heidegger3,pp.117-52etpassim. guntarcomooDingdeLacanérelacionadoaoSerdeHeidegger.Masisto,entretanto,
10
Ibidem,p.127. fogedenossoalcancenestainvestigação.
294 Discurson.362007 Antígona:heroínadapsicanálise? 295
irmão,vistoquepaiemãeforamrecolhidosàMorte,/jamaisserá Em sua resistência, Antígona apela às leis ctônicas das relações
PhillipevanHaute
DossiêFilosofiaePsicanálise
possívelqueoutrofloresça”12.Emoutraspalavras,emsuaresistência sanguíneas.Pode-sedizerque,comisso,elasobrevalorizaoslaços
aCreonte,Antígonaapelaparaasingularidadeeirreparabilidadede sanguíneos.Istoéindubitavelmenteverdadeiro,masédessamaneira
Polinice. que,deacordocomLacan,elacumpreoinfortúnio(mastambém
AsingularidadedePolinice,podenãosercompreendida,e,en- ainsanidade),oateidafamíliadeLaio.Antígonanãoénadamais
tretanto,emtermosdequalidadeouexpressaempalavras.Foiele queumexpoentedahistóriaincestuosadeLaioeoquedeterminaa
umbomouummauhomem,foibravooucovarde,forteoufraco? história:ooráculodeDelfos,amaldiçãoqueÉdipolançasobreseus
Todassãoqualidadesqueelecompartilhacomoutrosequetornam doisfilhosetc.ComoLacanescreve,Antígonaélenoeudcentralde
possivel que ele seja comparado com outros. A singularidade de laparole(onócentraldafala):elanãoénadamenosqueolugarem
Poliniceserefere,tambémaumpontoquelevaparaalémdessas queaspalavrasfundamentaisqueconduzemahistóriadafamíliade
qualidades:comoAntígonadiz,Polinicepodetersidoquemquer Laio vêm para ser percebidas. Em outras palavras, é precisamente
queeledesejasseserepodeterfeitooquequerqueseja,masisto nessemomentoqueAntígonaexecutaodestinodeLaioemseuul-
nãomudaofatofundamentaldequeeleeraseuirmãoe,comotal, timatoextremo–(executando)acadeiadesignificadosqueestáno
éirreparável.Éessasingularidade(queemsinãopodemaisseren- suportedesuaexistênciaepelaqualestarecebeumaforma;énesse
tendidaemtermosdequalidade,articuladacomossignificadosda momentoqueelaalcançaolimiteondeacoisaindizívelaparece–lá
linguagem)queAntígonadefendeeemnomedaqualelacontinua onde as“palavras fundamentais” são executadas sem deixar resto,
aoferecerresistênciaaCreonte,mesmocorrendooriscodeperder nósalcançamosopontoemquealinguagem,emsuaessência,éin-
suaprópriavida.DeacordocomLacan,éatravésdapaixãoporseu suficienteparafundamentarnossaexistênciadeumavezportodas.
irmão queAntígona renuncia a todos os bens deste mundo e ao Antígona,então,nãoénadamaisque“aescóriadomundo(...),coisa
quequerquepossauni-laaestemundo:suarelaçãocomHemon, vaziadetodaaparênciaespeciosa”13.ÉdestemodoqueAntígonare-
suapossívelmaternidade,suarelaçãocomsuairmãIsmênia,sua velaaverdadedenossaexistênciacomoseresdesejantes.Essedesejo
própriavida.Antígonadistancia-sedetudoquenormalmentenos éoefeitodalinguagemquefundamentalmentenosdeterminaeque
dácontentoesentidoemnossaexistência.Dessemodo,seudesejo ocorresobofundodeumDingindizívelqueresisteatodasasnossas
édirecionadoparaaquiloqueescapaàleidosignificado.É“puro” tentativasderecuperá-loàordemdosentido.
desejo (ver Lacan 7, p. 283, 329). E está purificada de qualquer Nós aqui trouxemos brevemente à memória a interpretação de
conexão com o que dá sentido, significação e orientação à nossa Lacan sobre Antígona. Nossa interpretação disto ilustra, uma vez
existência.Édirecionadaaalgo(dasDing)quenãopodemaisser mais,queLacantemexclusivaatenção,comonatradiçãoheidegge-
recuperadonaordemdosentido.Antígonaestabelece-senolimite riana,àverdade(dodesejo)dosujeitoqueéexpressaporAntígona
onde o sentido (que pode ser articulado na linguagem) ameaça demodoexemplar.EéexatamenteporLacanentenderotrágico
tornar-senão-sentido. como(confrontaçãocoma)verdadedosujeitodesejante(averdade
12
Sofocles9,p.87(versos905-912).Nestatraduçãoutilizamos:aversãoparaoportuguês 13
“(...)n’estplusquelerebutdelaterre,ledéchet,lerésidu,chosevidéedetouteappa-
DonaldoSchüler.(PortoAlegre:L&PM,1999).(Notadotradutor) rencespécieuse”(Lacan6,p.232,270).
296 Discurson.362007 Antígona:heroínadapsicanálise? 297
doSer,respectivamente)queelepodedizer,partilhandocomHei- Antígona,nãotemporissomenosafinidadecomoinfortúnio(Lacan
PhillipevanHaute
DossiêFilosofiaePsicanálise
degger,quenadarealmenteacontecenatragédiagrega:atragédia 7,p.300,347)14.
começa com uma ruína do sentido. Todos os outros protagonis-
tas(IsmêniaeHemon,assimcomoCreonteeTirésias)são,desse Em outras palavras, o desenrolar de nosso destino e a confron-
modo, reduzidos a meros elementos de decoração, sem nenhum tação com das Ding aqui também vão de mãos dadas. Na análise,
atributo ou verdade própria.A interação entre tais protagonistas quer-sefazernadamenosqueisto:confrontar-noscomumdestino
(aintrigaaqualAristótelesatribuitantaimportância),conseqüen- sem-sentidoqueocorresobofundodeumDingindizível.Comona
temente,nãorepresentanenhumpapelnaleituradeLacan(ouna tragédia,aanáliseé,nosentidomaisliteraldapalavra,umaconteci-
deHeidegger).Anteriormente,nósjáhavíamosindicadoqueesse mento-da-verdade.
empobrecimento é muito menos inocente que parece, visto que Seráquenóspodemosaceitaristocomosendosuficiente?Naaná-
temrepercussãoimediatanomodocomoLacantematizaemseu lisenãosequerproduzirumamudançasubjetiva?Nãoseespera,dos
texto (mas também noutro lugar) o término da análise. É o que analisadosqueconfiaramemnós,quealgoirámudaremsuasvidas,
abordareiadiante. queelespossamdealgummodorompercomopoderdosseusdes-
tinosparaexpandirsuasvidasdeummodoquenãoeramcapazes
anteriormente?Deveriaoanalistasomenteaspiraràaceitaçãodeum
OpropósitodaanáliseeoerrodeCreonte destinosem-sentido,oueledeveriatambémtornarpossíveldizerao
analisandoarazãopelaqualsuavidatevedetomarocaminhoque
Lacanfalaque,nofinaldapeça,Antígonanãoénadamaisque tomou,afimdequeoutraspossibilidadessetornarpossíveis?Nós
“aescóriadomundo(...),coisavaziadetodaaparênciaespeciosa”. jásugerimosacimaqueaescolhaunilateraldeLacaneHeideggerdo
Dessemodo,elaconfrontaasicomonadaabismaldaexistência privilégiodafiguradeAntígonaparecequestionáveldeumpontode
humana.MasLacanimediatamenteadicionaqueessaexperiência vistafilosóficoehistórico.Porrazões“econômicas”nósnãopude-
forma,aomesmotempo,otérminológicodeumaanáliserealmen- mosdesenvolveressaquestão.Nestemomentodotexto,entretanto,
te completa. Conseqüentemente, nós devemos, na análise (como nãopodemosmaisevitartalproblemática.AinterpretaçãodeLacan
Antígona),nosconfrontarcomonadaúltimodenossaexistência. nãosomentenosdirigeaconclusõesquelevantamquestõesdeum
E o caminho para tal não difere em nada daquele que Antígona pontodevistafilosóficoehistórico,comotambémtaisconclusões
percorreu:emanálise,espera-serestauraraspalavrasfundamen- não são tão óbvias pela perspectiva psicanalítica.Além disso, al-
taispelasquaisnossaexistênciarecebesuaforma epelasquaisé gunselementosnoprópriotextodoLacandãoorigemaumapro-
determinada.Lacanentãoescreve: blematizaçãodesuaprópriavisão.
[...]éporsuapróprialeique[...]osujeitodespojaoescrutínio.Essa 14
“[...]c’estsapropreloidont[...]lesujetdépouillelescrutin.Cetteloiestd’abordtou-
leiésempreprimeiramenteaaceitaçãodealgumacoisaquecomeçou jours acceptation de quelque chose que a commencé de s’articuler avant lui dans les
a se articular antes dele na geração precedente e que é, propriamente générationsprécédenttes,etquiestàproprementparlerl’Até.CetteAtè,pournepas
toujoursatteindreautragiquedel’Atèd’Antigone,n’enestpasmoinsparentedumal-
dizendo, o Atè. Este Atè, por nem sempre atingir o trágico do Atè de heur.”
298 Discurson.362007 Antígona:heroínadapsicanálise? 299
PhillipevanHaute
DossiêFilosofiaePsicanálise
rói.ElenãosócometeumerroemnãoquererenterrarPolinice,mas seussentimentosdemedo,eleretrocedeaomundoimaginário.An-
tambémadmiteaintervençãodeTirésiaspelomedodasconseqüências tígonanosdeixamudosnosentidomaisliteral:porsepararapessoa
desuasações.Elereconhecesuasprópriasfaltaseseesforçaparades- domundofamiliar,ascategoriasdebomoumau,desentidoounão-
fazersuasconseqüênciasinextremis. sentido,comasquaisnósjulgamosnossomundoepelasquaisnosso
Opensamentoaristotélico,afirmandoqueatragédiafazumapos- mundo pode aparecer como significável, perdem sua significação.
sívelcatarseatravésdosentimentodepenaemedo,ébemconheci- ObservandoAntígona,nós,assimcomoocoronofinaldapeça,nos
do.DeacordocomLacan,medoepenasãoafetosquetêmumpapel desorientamos15.Antígona é justa ou não, boa ou má? Em conexão
no mundo na medida em que aparecem como familiares e“pró- comAntígona,umarespostasignificativaaessasquestõesnãoémais
priosàpessoa”.Nóssentimoscompaixãoapenasporalguémquese possível,porqueascategoriasepressuposiçõesquepoderíamosusar
mostracomoumigual,alguémemquempodemosnosreconhecer. perdemsuarelevânciaeforamcomoquepostasforadeação(verLa-
Medotambémsugereumperigosoreconhecimento;nóstememos can7,pp.281,324-325).Creonte,aocontrário(eestepodetersidoo
alguém,porexemplo,porquepodemosatribuirmotivoseintenções erromaissériodeledeacordocomLacan),cedeepermitequesuas
aeleouaelaquenãonossãointeiramenteestranhos.Medoepena, ações possam ser julgadas por categorias que estruturam o mundo
conseqüentemente,têmumpapelemnossasrelaçõescomooutro cotidiano.ÉdessemodoqueeleescapadaconfrontaçãocomdasDing,
na medida em que podemos nos identificar com ele ou ela. Esses quesetornouaúnica“medida”paraasaçõesdeAntígona.Assimcomo
afetosintervêmemnossacondutaparacomumalter-egoque,como paraHeidegger,AntígonapertenceaoSereCreonterepresentanada
tal,podeaparecercomofamiliar.Lacanfalaqueelespertencemao menosqueoesquecimentodoSer.Antígonatemsuavistadirecionada
domíniodoimaginário,querdizer,aodomíniodomundoaoqual adasDingaque,porcovardiaemedo,Creonteescapa.
somosfamiliaresepodemosnosvincular.
Disto, Lacan conclui que a catarse, como o sentimento de medo
ecompaixãotratadoporAristóteles,nãopodeseroutracoisasenão Tirésiaseafunçãodopsicanalista
umapurificaçãodesseimaginárioquenosmantémaumadistânciada
verdadedenossaexistência(verLacan7,p.247,290).Deacordocom Noentanto,CreonteéaúnicafiguradaAntígonadeSófoclesque,
Lacan,éprecisamentenaconfrontaçãocomafiguradeAntígonaque duranteocursodapeça,realmentemuda.Nofinaldapeçaeleas-
essacatarse(mesmoqueporumbrevemomento)setornapossívelao sumeumaposiçãosubjetivadiferentedainicial.Apósaintervenção
espectador.Antígonaé,afinal,docomeçoaofimdapeça,“desprovida deTirésias,elereconhecesuasfaltaseassumesuasresponsabilidades
demedoedepena”.Elaintentaumpontoparaalémdenossomundo porelas.EleassumeseupassadoaemqueAntígonaédeterminada
familiar.Elaécompletamenteseparadadetudoquepodedarconten- pelahistóriadafamíliadeLaio–emudasuaorientação.Antesde
toesentidoaestemundo.Paranós,espectadores,elatornapossível condenarmosCreonteporisto,comoLacanclaramenteofaz,nós
umaconfrontaçãocomo“fundoabismal”(Heidegger)denossaexis- devemosnoslembrardoseguinte:aomenosimplicitamenteLacan
tência(dasDing)detalmodoquenãoperecemosnaconfrontação
comisto. 15
VerSófocles9,verso801eosqueoseguem.
300 Discurson.362007 Antígona:heroínadapsicanálise? 301
comparaTirésiasaumanalista.E,setalcomparaçãoéválida(enós dedesordemabsoluta,querdizer,aexperiênciaqueAntígona(verLa-
PhillipevanHaute
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desejamosdestacar,umavezmais,quenósencontramosessacom- can7,p.262,306),mastambémTirésiaseÉdipo,sofreram.
paraçãonotextodeLacan),podemosaindaqualificar,semdificul- Essacomparaçãoentreosheróisdatragédiagregaeosanalistas
dades,amudançaqueTirésiasproduzemCreontecomooseuerro (lacanianos?) contemporâneos levanta involuntariamente nossas
último?SelevarmosasérioasugestãodeLacan,adequeAntígona suspeitas.Asaber,nãosepodesenãoperguntarcomoosinevitáveis
temumsignificadoparadigmáticoparaadeterminaçãodotérmino efeitosidealizantesdetalcomparaçãopodemsemanteremverifica-
daanálise,nãosedeveriaentãoaceitarqueaintervençãodeTirésias ção.Emesmoquetenhamosdeserextremamentecuidadososcom
também proporciona uma reavaliação do significado de Creonte taiscomentáriospsicologizantes,pode-seperguntarseopróprioLa-
paraaanálise?Perguntemo-nosprimeiramenteemqualevidência canescapadessesefeitosidealizantes.EmrelaçãoaAntígona,Lacan
nosbaseamosnaanalogiaentreTirésiaseoanalista. realmenteescrevequeelanãopodeentrarnazonaondedasDing
NãoéacidentalmentequeLacandizqueos“heróis”daantiguidade aparecesemsedescobrir“sozinhaetraída”(Lacan7,p.305,353).No
sãocegos(Édipo,Homero,Tirésias).Nósjáapontamosofatodequeo mesmocontexto,LacanchamaAntígonadeummártirporsuacau-
reconhecimentododestino(daspalavrasfundamentaisquesãoosu- sa17.Epodealguém,aqui,pensardeumoutromodosenãonafaça-
portedenossaexistência)vaidemãosdadascomaconfrontaçãocom nhadafundaçãodaEcolefreudiennedeParisnaqualLacanescreveu
oDingindizívelecomanão-fundamentaçãoúltimadenossaexistên- sobresi:“sozinho,comoeusemprefiqueidiantedacausaanalítica
cia.UmavezqueooráculodeDelfosveioparasuacompletarealização (seulecommejel’aitoujoursétédevantlacauseanalytique)”?Seráque
(acadeiadesignificadospelaqualaexistênciadeÉdiporecebeusua Lacanviaasi(emanalogiaaAntígona)comoummártirdacausa
forma),eledestróiseusolhos:“seeleseseparadomundopeloatoque analítica,comooverdadeiroheróidapsicanálisecontemporânea?
consisteemsecegar,éporquesomenteele,queescapadasaparências, Antígona,comosabemos,tem,paraLacanumsignificadoparadig-
pode chegar à verdade. Os antigos o sabiam – o grande Homero é máticoparaacompreensãodaanálise.Nóshavíamossugeridoigual-
cego,Tirésiastambém”(Lacan7,p.310,357).DeacordocomLacan,a mentequeosignificadodeAntígonadeveser,nessecontexto,explicado
cegueiradeÉdipoeaqueladeTirésiassereferem,conseqüentemente, emcontrastecomosdeTirésiaseCreonte.SesepodecompararTirésias
aofatodequeelestestemunhasdealgoqueera“insuportávelparaos aumpsicanalista(esuaintervençãocomCreontecomoumainterpreta-
olhoshumanos”16,eistosignificaclaramenteparaLacanqueeles,as- çãoanalítica)18,afiguradeAntígonaigualmenteaparecerádeummodo
simcomoAntígona,entraramnumazonaentreavidaeamorteonde diferente.Mesmoqueaquifalteespaçoparadesenvolveressahipótese
dasDingaparece.Porém,istonãoétudo.Lacanbuscatalexperiência demodoexaustivo,aseguir,desejamosapontarparaalgunselementos
(seaindapudermosaomenosusarestapalavraaqui)tambémcomo quepodemdarsuporteaisto.
pré-condiçãoparasituaraposiçãodoanalista:nofimdeumaanálise,
osujeitodevealcançaredevesaberodomínioeoníveldaexperiência
17
“Iln’yaquelesmartyrspourêtresanspitiénicrainte”.(Lacan7,p.267,311).
18
Em textos anteriores, Lacan havia matizado essa comparação. O analista, afinal, não
apenasrepresentaaverdadedosimbólico,assimcomoTirésias,masemprimeirains-
16
VerSófocles,ÉdipoRei,versos1652-1653(Sófocles10,p.583). tância,o“objetoa”,emsuaimpossibilidade.
302 Discurson.362007 Antígona:heroínadapsicanálise? 303
tendênciasedatradiçãodequenósparticipamos.Subseqüentemen-
PhillipevanHaute
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AntígonaversusCreonte te,Lacanescreveque,tomandotalperspectiva,poder-se-iadefato
perguntaraumcomputadorseumaaçãocorrespondeounãoaessa
[...]aomenosumdosdoisprotagonistas,atéofim,nãoconhecenem exigência:“nuncaajasenãodeummodoquesuaaçãopossaserpro-
medonempena,eestaéAntígona.Éporissoque,entreoutrascoisas, gramada”(Lacan7,p.77,94).
elaéaverdadeiraheroína.Aopassoque,nofim,Creontesedeixaatingir Osimplismoou,aomenos,aparcialidadedaleituralacanianade
pelomedo,eseestanãoéacausadesuaruína,éseguramenteosinal. Kantnãoprecisasertratadapornósaqui.Oqueémaisimportante
(Lacan7,p.258,300). paranossadiscussãoéoquesesegue:essaleiturapõeLacannuma
posiçãodedeterminar,semdificuldade,Sadecomoainevitávelima-
Lacan aqui sugere claramente que Creonte, como Antígona, não gem-especular perversa de Kant. O universo sádico não é, afinal,
conhecenemomedonemapenanoiníciodapeça.Nóstambémsa- distinguidopelaabsolutizaçãodeumpropósitosensual(porexem-
bemosqueaausênciademedoedepena,deacordocomLacan,éuma plo,ogozoaqualquerpreço).Aocontrário,deacordocomLacan,
dascaracterísticasdoheróideSófocles.Aomenosnocomeçodapeça, o universo sádico caminha junto com a viva resolução condizente
CreontenistoseassemelhaaAntígona.Écomamesmaresistênciade aumaleiuniversalenão-conseqüencialistadaconduta:“tomemos
Antígonaqueeleinsisteemseupontodevista.Mesmoassim,deacor- comomáximauniversaldenossaaçãoodireitodegozardooutro
docomLacan,elesnãoestãonomesmonível:Creonte,emcontrastea sejacomofor,comoinstrumentodenossoprazer”(Lacan7,p.79,
Antígona,cometeumerro.Ele,afinal,presumequealeipolítico-ética 96).Afimdeprovarquenãoseémaisdependenteemtodososmo-
dacidade-estadopodetambémseraplicadaaosmortos.Pode-senão dosdevinculaçõesepropósitossensuaisou“naturais”(família...mas
entenderesseerrocomosendodemasiadoracional,comosenósesti- tambémasrestriçõeseleisqueparecemtersidoimpostasanóspor
véssemosaquimeramenteinteressadosemumdesacertointelectual: natureza),osujeitoperversodeveprimeiramenteaplicaraquelalei
comarecusadepermitirquePolinicefosseenterrado,Creonte,diz decondutaparasuasvinculaçõesirracionais.Lacandizqueseper-
Lacan,estariacomoquedesejandoatacarPolinicedepoisdesuamor- cebedessemodooqueKant,adespeitodesimesmo,tinhaemvista
te(natural)(verLacan7,p.254,297).Lacan,dessemodo,põeCreonte emreferênciaàleimoral:seguindoumaleiuniversalatéoextremo,
nomesmonívelqueKant,edapessoaaquemLacanconsiderasera qualqueremoçãoousentimento,juntamentecomvínculosnaturais,
perversaimagem-especulardeKant:Sade. sãoeliminadosdouniversosádico.
ParaLacan,Kantéoprotótipodeumaéticanão-conseqüencialis- Édessaperspectivaquesepodeiluminarafantasiasádica:emsua
ta .ParaKant,obemmoralnãotemnadaavercomospropósitos
19 fantasia,osujeitosádicoquersedestacardetudoqueoligaànatu-
que alguém persegue e com os sentimentos, elevados ou não, que rezaeao“natural”comotal.Orepúdioànaturezaeaonatural(por
alguémpossateraorealizá-los.Aocontrário,obemmoraléexclu- exemplo,naordemdasexualidade)tornou-seumfimemsimesmo.
sivamentedominadopelademandadeuniversalidadequeédadana Dessemodo,odesejodoperversointentaumpontoparaalémda
naturezaracionaleaqualseesperaquesigamos,separadodenossas ordemdanatureza(edaculturaquetemestaordememconta)e
dasrestriçõesqueelaimpõeanós.Issonostrazaolimiteemqueo
19
Paraisto,verLacan7,pp.71-84etpassim,87-102(Delaloimorale). naturaleonão-cultural,quenoséfamiliar,ameaçamentraremco-
304 Discurson.362007 Antígona:heroínadapsicanálise? 305
lapso.Afantasiaorigináriadosadismoapresentatestemunhodisso: Creonte, procuram este ponto: das Ding – cada qual a seu modo.
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éafantasiadoeternosofrimentoque,porassimdizer,deixaavítima Masdevemosperguntarsenãoéporessecaminhoqueelesforam
intocada.Oobjetoésujeitadoàstorturasmaishorripilantes,masao lançadosnumacertarelaçãoespecularondeambasasposiçõesdeter-
mesmotemporetémumararaeintocadabeleza.Avitimasofre,mas minammutuamenteumaàoutra20Trataremosdissoadiante.
nãomorre(verLacan7,p.261,303).Fazendoassim,sujeitar-se-ia QueasposiçõesdeCreonteedeAntígonasejammutuamentein-
novamenteàleidacriaçãoedadestruiçãoquecaracterizaprecisa- terconectadas,istopodeserreveladopelofatodeCreonte,nocurso
mente a natureza a que o sádico deseja escapar. A fantasia sádica da tragédia, repetidamente apontar para sua impossibilidade em
nos traz para o limite do que ainda pode ser resgatado na ordem obedecerAntígonaporqueelaéumamulher.ParecequeCreontenão
dosentido.ElanostrazaolimitedeondedasDingaparece.Éoque cederásobnenhumacircunstânciaaAntígonapormedodesetornar
podemoscolocaragora:osádicousaalei(universal)paraforçarum igualaela.Emoutraspalavras,eletemeaperdadesuaidentidade.
acessoaodasDing–àquiloque,poressência,escapaàordemdalei. “Agora,entretanto,homemnãosereieu,homemseráela,/seper-
DeacordocomLacan,Creontepõeasinaposiçãodarazãoprá- manecerimpunetamanhoatrevimento”21.Creontenãopodeceder
ticakantiana.Aindamelhor:comopontodepartidadesuasações, aAntígonasemperdersuamasculinidade.Masemqueaansiedade
Creontetomaumamáximaqueparececumpririnteiramenteade- de Creonte é aqui baseada? Tal ansiedade possivelmente esconde
mandadeuniversalidadekantiana:nãosepodehonrarotraidordo uma identificação que já teve seu lugar num outro nível. Porque,
estado(Polinice)domesmomodoquesehonramaquelesque,até na verdade, enquanto Creonte acredita excluir e rejeitar Antígona
suamorte,serviramaoestado(Etéocles)(verLacan7,p.259,301). eoqueelarepresenta,elejásesubscreveusemreservaàlógicada
Contudo,aomesmotempo,Creontefazmaisqueisso:eleexpande açãodela.Afinal,seCreontetivesseconcedidoanteriormente,nada
ocampodeaplicaçãodessaleiparaalémdodomíniodosvivos.Ele teriaacontecido.Somenteporque(talcomoAntígona...ouseguindo
assumequealeipolítico-éticadacidade-estadogregaaindaseaplica seuexemplo?)teimosamenteinsisteemseupontodevista,Antígona
aofalecidoPolinice.ElequerpunirPolinicepassadasuamorte(na- podeserparanós,mastambémparaCreonte,oqueelaé,efazero
tural).LacandizqueCreontequerumeternosofrimentoaPolinice, queelafaz.Emoutraspalavras,Creonteestá,semsaber,enfeitiçado
umsofrimentoaoqualnemmesmoamortetrazumfim(verLacan porAntígona,eleestáfascinadoparaquelacomquemeleseidentifi-
7,p.254,297).Emoutraspalavras,Creonteusaalei(umamáxima ca.Essaidentificação(imaginária)lançaumaluzesclarecedorasobre
universalizável)afimdeforçarumacesso,aqualquerpreçoeapesar ainsegurançadeCreontecomrespeitoàsuaidentidade,assimcomo
detudo,àquiloquenãosepodedemodoalgumservisto:dasDing. sobreofrenesicomoqualelesesegurarapidamenteàlei,mesmo
Creonteseseparadetudoaquiloquedeusentidoàsuavida:sua láondeelanãoémaisaplicada.Naverdade,éprecisamenteporque
própriafelicidadeeadesuafamília,obem-estardoestado...tudo énoníveldoimaginárioqueaidentidadedeCreonteestáemjogo
issoelesubjugaeabandonaemvirtudedeseudesejodepunirPoli- queelenãopodeentendernumnívelsimbólico(noníveldalei)que,
nicemesmodepoisdesuamorte.Creonte,comoAntígona,procura permitindo a Polinice ser enterrado, ele nem obedece a Antígona
umpontoque,pordefinição,estáparaalémdequalquervinculação;
porissonãodevemosficarsurpresosqueCreonte,comoAntígona, 20
“(...)ladansedontils’agitentreCréonetAntigone”(Lacan7,p.320,369)
nãoconheçanemmedo,nempena.Defato,tantoaAntígonaquanto 21
Sófocles,Antígona,versos484-6.
306 Discurson.362007 Antígona:heroínadapsicanálise? 307
nemobedeceaomorto(eàsualei).Creonteconfundeobediência comAntígona.Éverdadeque,emcertoaspecto,aintervençãodeTiré-
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aAntígonacomobediênciaaomorto.AintervençãodeTirésiaslhe sias,assimcomoa“conversão”deCreonte,veiomuitotarde.Masisso
permiteresolveressaconfusão: nãoimpedequeCreontesejacapaz,nabasedessaintervenção,deas-
sumirumanovaposiçãosubjetiva,nabasedaqualumanovahistória
visto que lançaste um dos daqui entre os de lá, / ao encerrares, para talvezpossasetornarpossível.Nãosepodeentenderverdadeiramente
vilipendiar,umapessoavivanumasepultura,/enquantopreservasaqui comoessaproblemáticapodeserdeixadaforadeconsideraçãoseao
um de lá, propriedade / dos deuses infernais, cadáver sem sepultura, mesmotempodesignamosumvalorparadigmáticoàAntígonadeSó-
ultrajado./Oquefizestenãoépermitidonematinemaosdeusesládo foclesnadeterminaçãodotelosdaanálise.
alto,/aosquaistuimpusesteumcadáveràforça.22
defineopontoterminaldaanálise”(II,p.246,288).Afala(laparole), contexto?Lacannãocolocaessasquestões.SuafascinaçãoporAntígona
PhillipevanHaute
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devemosconcluir,podedarumanovavidajenseitsdodestinoedo provavelmentepreveniuqueelafosseencontrarneleaindaumTirésias.
oráculo.Averdadeirainconsciênciadosintomapodeserinterpreta-
dae,poressecaminho,podeserreinscritanomovimentocontínuo
domundo.Édessemodoqueaanálisetornapossívelumahistória Referênciasbibliográficas
queémaisque–etambémalgodiferentede–umamerarepetição
deumadeterminaçãorecônditadodestino23. 1.ARISTÓTELES.Poetics.InTheCompleteWorksofAristotle,therevisedOxford
Finalmente,retornemosbrevementeaAntígona.Nósnospergun- translation.Vol.II.Princeton:PrincetonUniversityPress,1984.
tamosseumareavaliaçãodeCreonteedeTirésiasnãonosobrigaria 2.HEIDEGGER, Martin. Hölderlins Hymne ‘Der Ister’: Vittorio Klosterman,
FrankfurtamMain.1983
aentenderafiguradeAntígonadeummododiferentedoqueLa-
3____;ZurEinführungindieMetaphysik.FrankfurtamMain:VittorioKlos-
canofaz.Faltaespaçoaquiparatratardessaproblemáticademodo
terman,1976
exaustivo.Noslimitamos,assim,aalgumasreflexõesbreves.
4.____ ; Zur Seinsfrage, Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klosterman.
Antígonaquerenterrarseuirmãoatodocusto.Lacanescreveque,a
1978
fimderealizaresseintento,elaestáprontaparalargartudo:suarelação 5.LACAN, Jacques. The function and field of speech and language in psycho-
comHemon,suamaternidadeetc.Nãoécuriosoqueumpsicanalista analysis.InEcrits–ASelection.NovaYork:W.W.NortonPublishers,c1977.
comoLacanmencioneadmitidamenteessetemamas,posteriormente, [Fonctionetchampdelaparoleetdulangageenpsychanalyse.InÉcrits.Paris:
nãofaçanadaoumuitopoucocomele?Écomoseessestemasnãoti- ÉditionsduSeuil,1953.]
vessemnenhumvaloràmulherqueAntígonaétambém;comoseesses 6.––––.TheSeminarofJacquesLacanBookII:TheEgoinFreud’sTheoryandin
temasnãofossemtambémcapazesdenosensinaralgosobreaposição theTechniqueofPsychoanalysis1954-1955.Cambridge:CambridgeUniversity
(simbólica)deAntígona.Meuirmão,dizAntígona,éoqueeleé,distan- Press,c1988.[LeSeminaireII(1954-1955):LemoidanslathéoriedeFreudet
tedetodacoisaboaoumáquesepodedizerdele,eéporissoqueele danslatechniquedelapsychanalyse.Paris:ÉditionsduSeuil,1978.]
deveserenterrado.Nãopodeumanalista,seguindoasprópriaspalavras 7.––––.TheseminarsofJacquesLacanBookVII,TheEthicsofPsychoanaly-
deLacan24,tambémescutarqueAntígonasefazouviremsuaprópria sis1959–1960.Londres:Tavisstock/Routledge,c1992.[LeSeminaireVII
(1959-1960):L’éthiquedelapsychanalyse.Paris:ÉditionsduSeuil,1986.]
mensagemdeummodoinverso:“Eusoumeramentesuairmã,eusou
8.OUDEMANS,Th.;LARDINOIS,A.TragicAmbiguity,Anthropology,Philoso-
meramentesuairmã”?Eelenãodeveriaseperguntar(oudever-se-ia
phyandSophocles’Antigone.Leiden:Brill.1987.
perguntaraele)oquearejeiçãodeAntígonaporsuamãe(eporsua
9.SÓFOCLES. Antigone. Loeb Classical Library Vol. 21. Cambridge: Harvard
maternidade), que Lacan simplesmente ignora, pode significar nesse
UniversityPress1994.
10.––––.OedipusatColonus.InTheLoebClassicalLibraryVol.21.
23
Aquestãoquedevemospôr(masquenãopodemosresponderaqui)éobviamentea
decomoestaposiçãopodeserreconciliada(eseistoépossível,comoépossível)como
pensamentodequeaanáliseédirecionadaporumaconfrontaçãocomo“fundoabis-
mal”denossaexistência,querdizer,comdasDing.
24
VerLacan5,pp.30-113,237-322.
Ensaiosobreasublimação
TaniaRivera
PsicanalistaeprofessoradoDepartamentodePsicologiaClínicada
UniversidadedeBrasília(UnB)
Ensaiosobreasublimação
Opresenteensaiodiscuteanoçãodesublimaçãoempsicanálise,aproximando-a
da noção freudiana do Estranho (Unheimliche). Ressalta-se a concepção con- Beloéoquefoiumdiasexual,segundoFreud.Naprimeiraincidên-
traditóriadosublimenoRomantismoparadestacarnoEstranhoaestruturade ciadotermosublimaçãoemsuaobra,eledefendequeoocultamen-
arranjosignificantecontraditórioporexcelência,semsíntesepossíveleligadoà
todocorpopromovidopelacivilizaçãomantémacesaacuriosidade
possibilidadedeseelevar“umobjetoqualqueràdignidadedaCoisa”,segundo
sexual,equeestapodeser“desviada(sublimada)paraaarte”casoo
acélebrefórmuladeLacan.Propõe-seconceber,emtalelevação,também,um
interesseseafastedosgenitaisemproldaformadocorpocomoum
realcedavertentedein-dignidadedaCoisa.
todo.“Parece-meindubitável”,afirmaeleemumanotaacrescentada
Palavras-chave: psicanálise, sublimação, Estranho (Unheimliche), Coisa (das
em1915aessetrecho
Ding)
queoconceitodo‘belo’enraíza-senaexcitaçãosexuale,emsuaorigem,
Onsublimation
significavaaquiloqueestimulasexualmente.Relaciona-seaissoofato
Thepaperdiscussesthepsychoanalyticalnotionofsublimationfromtheper-
spectiveofFreud’stheUnheimliche,whichisnothingbutastructureofcontra- dejamaispodermosacharrealmentebelososgenitais,cujavisãoprovo-
dictory signification without synthesis. The Unheimlich is responsible, in La- caamaisintensaexcitaçãosexual(Freud2,p.148).
can’sphrase,fortheelevation“ofanygivenobjecttothedignityathing(Ding)”.
Butsuchaprocesscouldalsobetheoccasionfortheglancingattheindignity Quasequarentaanosantes,aOrigemdomundo,deGustaveCour-
ofathing. bet,jápunhaemxequetalposição,aofazerdacruaapresentaçãoda
Keywords:psychoanalysis,sublimation,dasUnheimliche,dasDing genitáliafemininaumaobra,nãosemcausarcertoescândalo.Curio-
samente, esse quadro pertencerá, várias décadas depois, a Jacques
Lacan,quedesenvolverádeformamarcanteaquestãodosublimena
psicanáliseapartirdeFreud.MesmonasparedesdeLacan,contudo,
aobradeCourbetpermaneceráocultasobumapinturadeMasson,
pois,segundoSylvia,esposadopsicanalista,“ovizinhoouafaxineira
nãocompreenderiam”(Roudinesco13,p.195).
Lacan percebe bem essa contradição e faz dela uma definição do
sublime,aoafirmarenpassant,poucoantesdetratardobarroco,em
seuSeminárioXX,que“osublimeéopontomaiselevadodoqueestá
embaixo”(Lacan8,p.18).Osublimeestá,portanto,ligado,nopen-
samentopsicanalítico,aosexual,aogozo,aumadesmedidaque,no
314 Discurson.362007 Ensaiosobreasublimação 315
famosoensaioTratadodosublime,escritoemgregonosprimeirossé- drafilosofal.Aetimologiadotermonãodeixadeindicar,alémda
TaniaRivera
DossiêFilosofiaePsicanálise
culosdenossaeraeatribuídodemaneiracontrovertidaaLonguino, idéiadedeslocamentoparaoalto,aconotaçãodetransposiçãode
deveriaserdomadaporregrasestritasparaquesechegasseaoGrande. umlimiar(limensendo“limite”,emlatim).
Aindaqueosublimeaícomportassecertorisco,sendo,“porsuapró- NãoéàtoaqueFreudteriaresolvidodestruir,segundoseueditor
priagrandeza,escorregadioeperigoso”(Longin12,p.121,atradução inglês,omanuscritodedicadoaessanoçãonalevadetextosme-
éminha)epodendoentãolevarafalhas,essasseriamsuplantadaspela tapsicológicosdosanosdez(Strachey14,p.112).Empsicanálise,a
grandezaquecontaminariaaobracomoumtodo,elevando-a. sublimaçãoéproblemática:elaconfirmaaoposiçãoentreosexual
EmFreud,encontramosaidéiadequeasublimaçãoéumtrabalho e a cultura, a pulsão sexual e as pulsões de autoconservação, in-
detransformaçãoeultrapassagemdealgobaixoemdireçãoaoqueé dicandoumaviaprivilegiadaderesoluçãodoconflitoinerenteao
socialmenteidealizado.Asublimaçãochegaquaseacoincidircomo homem;aomesmotempoeestranhamente,elareverteocaminho
próprio trabalho de civilização ao ser definida como a substituição da civilização e reencarna, por assim dizer, o ideal. Apenas no li-
doobjetivosexualdapulsão,pordefiniçãodesmedido,porumameta miardadécadade1920,comosurgimentodapulsãodemorte,será
não-sexual, eventualmente valorizada socialmente, grande, elevada. possívelretomaressacontradiçãoparaassumiradesmedidacomo
Poressavia,asublimaçãodesignaumacaracterísticafundamentalda inerenteàestética,eressaltaroconflito,acontradiçãosemresolução,
pulsão,asuaflexibilidade,ofatodeelaservotadaadestinosmúlti- comofundamentaltantoàartecomoàpsicanálise,comanoçãode
plos,aumasubstituiçãoeaumencadeamentodeobjetos,postoque Estranho(Unheimliche).
seuprimeiroobjetoestáirremediavelmenteperdido,éinatingível.Ela
ressalta,assim,aderivaprópriaaofuncionamentopulsional,deriva
queLacanchegaaproporcomotermocapazdetraduziroTriebfreu- OEstranho
diano(cf.p.ex.Lacan8,p.102).Asublimaçãoindicaaextraordinária
capacidade que possuem as pulsões sexuais, particularmente, de se AomesmotempoemqueescreveobombásticoAlémdoprincípio
distanciaremdoscaminhosligadosàsuametaoriginal(Freud3,pp. doprazer,Freudretiradesuagavetaeretrabalhaoesboçorealizado
209-32).Elaseria,nessaperspectiva,ocaminhoqueeventualmente anosantessobreoestranho.Opsicanalistararamenteserialevadoa
transformaosexualembelo,ouseja,queamortizaecivilizaapulsão, investigaçõesestéticas,afirmaelenaaberturadesseescrito,pois
àmaneiradorecalcamento,graçasàplasticidadeaelainerente.
Noentanto,asublimaçãoétomadacomoumdestinodistintoe opera em outras camadas da vida mental e pouco tem a ver com os
maissaudável,porassimdizer,queorecalcamento;elaguardauma impulsos inibidos em sua meta, amortecidos e dependentes de tantas
potênciatransgressora,umapossibilidadedeultrapassagemdore- constelaçõesconcomitantesquesãohabitualmenteomaterialdaestéti-
calcamentoquetambémdizrespeito,diga-sedepassagem,àquestão ca(Freud4,p.229.)
espinhosadecaracterizaroquerealizaumaanálise.Sabemosque,
emalquimia,otermosublimaçãoindicaapossibilidadedeumsalto Dobeloedaharmoniaopsicanalistanãoterianadaadizer,ele
nacadeiadetransformaçõesdoselementos,indo-se,porexemplo, queseocupadosexualedoconflito,dadesmedida.Eleseconten-
diretamentedoestadosólidoaogasoso,nabuscaincansáveldape- taria em debruçar-se, então, sobre um domínio da estética pou-
316 Discurson.362007 Ensaiosobreasublimação 317
co explorado, o do Unheimliche. Mais do que se ocupar de uma tianismotrazumarupturaentrerealidadeeidéiaquelevaauma
TaniaRivera
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noção específica dentre outras, porém, Freud tratará aí de forjar retomadadoconflitoquedefineosublime,aomesmotempoem
umanovacategoriaque,podemosdizer,vemtomarnopensamento quetomaoconteúdodequesetrata“espiritual”enãomaisdire-
psicanalíticoolugarreservadoaobeloeaosublimenaestética. tamentesensível.
OEstranhodizrespeitoaumacategoriadoassustador,doangus-
tiante,queFreudcaracterizarácomosendopordefiniçãocontraditó- Onovoconteúdoaíobtidojánãoestáligadoàrepresentaçãosen-
ria,porremeteraoqueéconhecido,hámuitofamiliar.“Unheimliche sível,masencontra-seliberadodessacorrespondênciadiretaque,reco-
nomeia”,segundoShellingcitadoporFreud,“tudoaquiloquedeve- nhecidacomodenaturezanegativa,évencida,superadaetransformada
riaficarnosecretoenooculto,masépostoemevidência”(Freud4, em uma correspondência, uma unidade desejada e consagrada pelo
p.235).Édeumcertoagenciamentosignificantequesetrata,mais espírito.Nestesentidopode-sedizerqueaarteromânticaéumesforço
fundamentalmente: o termo toma a conotação, segundo a longa daarteemsuperarasimesma,semporissosairdospróprioslimitesda
pesquisasemânticarealizadapelopsicanalista,tantode“estranho” arte(Hegel5,p.141).
quanto de“familiar” (heimlich), apesar do prefixo un- vir negar o
radicalheim. OTratadodosublimeressoa,semdúvida,nessaselaboraçõeshe-
Nãomecabeaquidestrincharaprofusãodereflexõesestéticasem gelianas, assim como influenciará Kant e dará um importante elã
queobeloeosublimetomammatizescomplexosevariados.Pon- ao Romantismo a partir de sua tradução para o francês, feita por
tualmente,gostariaapenasdelembraralgumaspassagensdeHegel, BoileaunoséculoXVII.Essaobraencontraecosaindanofamoso
nas suas lições berlinenses que constituem a Introdução à estética, prefácio a Cromwell, publicado porVictor Hugo em 1827. Para o
ondeeletratadosublimecomoalgoligadoaumprimeiromomento grandeescritorfrancês,obelo,“estabelezauniversalqueaAntigüi-
daproduçãoartísticanahistóriadahumanidade,omomentocor- dade derramava solenemente sobre tudo, não deixava de ser mo-
respondenteàartesimbólicaeàarteoriental.Aíaidéiaseapresenta- nótona”(Hugo7,p.33);assimosublimenecessitarádecontrastes,
riasobumaformaquelheé“alheia,inadequada,nãoéoutrasendoa precisarádogrotesco,dovil,precisarásercontraditório.Essatensão
matérianatural,sensívelemgeral”.Tentandoadequarasiessaforma, érapidamenteresolvida,porém,emumaespéciedesíntese,poiso
aidéia,ainda“desmedida”,tratarádelade“maneiranegativa,tenta grotesco,comoum“termodecomparação”,fazcomquepossamos
elevá-laasieofazdeformaigualmentedesmedida,triturando-a, elevarparaobelouma“percepçãomaisfrescaemaisexcitada”(ibi-
violentando-aenelasederramando.Nissoconsisteosublime(...)” dem).Teríamos,então,que“ocontatododisformedeuaosublime
(Hegel5,p.133).Osublimetoma,aí,daviolênciaedadesmedida, modernoalgumacoisademaispuro,demaior,demaissublimeen-
doconflitoentreformaeidéia,suaprópriaforça. fimqueobeloantigo”(Hugo7,p.34).
Na arte clássica, que se sucede como segundo momento da Ao contrário da síntese que acompanha em Hegel e em Hugo
produçãoartística,osensíveldeixadeserparaHegelonatural, o sublime em sua maior realização, o Unheimliche caracteriza-se,
e a forma torna-se perfeitamente de acordo com seu conceito. estruturalmente,pormanterintactaatensãoentreosdoistermos
Contudo, o terceiro tempo, o do Romantismo, virá representar opostosqueodefinem–oestranhoeofamiliar.Entreelesnãohá
asíntesedacontradiçãoentreessesdoismomentos,poisocris- conciliação, nenhuma síntese permite ultrapassar tal contradição.
318 Discurson.362007 Ensaiosobreasublimação 319
Entreoqueficaocultoeoqueapareceeépostoemevidência,para císica,mastorna-seposteriormenteuminquietante“anunciadorda
TaniaRivera
DossiêFilosofiaePsicanálise
aludiràdefiniçãodeShelling,oEstranhoinauguraumavisibilidade morte”(Freud4,p.247).Oumelhor,aimagemconvocaaimagem
opaca,oumelhor,umaalternânciaconstitutivadoolhar–edosujei- corporal,constitutivadosujeito,queéaomesmotemponarcísicae
to.AolongoestudoarespeitodotermoUnheimlichsegue-secomo mortífera,poisreinseredemaneirainsidiosaacastração,remetendo
sabemos,notextofreudiano,umaleituradofamosoconto“OHo- aoquenãoévisível,poiséexatamenteoquefaltaàimagem,aomes-
memdaAreia”,deE.T.A.Hoffmann.Freudvênessecontofantástico motempoemqueasustenta.
umapotênciadeinquietanteestranhezaoriundadaarticulação,aí
magistralmenterealizada,entreolharecastração.Omotivodaperda
da visão, dos olhos que seriam arrancados pela figura lendária do ACoisaesuain-dignidade
homemdeareia,naameaçafeitaàscriançasquenãoquisessemir
dormir, refletiria a ameaça de castração proferida pelo pai. Não é ComoEstranho,ocampodaarteéirremediavelmenteafastado
àtoaquealínguarefere-seaalgoextremamenteimportantecomo dasaltasrealizaçõesnasquaisapulsãoéamortecidaereformulada
sendoameninadosolhos,apupiladealguém. socialmente, para se localizar no terreno angustiante do olhar em
Aimagemdánotíciasdacastração,convocandoaseatualizaro suasrelaçõescomacastração(mesmonodomíniodaliteratura),atra-
momento de constituição de si que é imagético e concebido atra- vésdeumarranjosignificantequerefazoconflitoirresolúvelentre
vésdoencontrodobebêcomsuaimagemnoespelho,comoavança Eroseapulsãodemorte.Apartirdessaconfiguração,omovimento
Lacan em seu famoso“Estádio do espelho”.Assim, um importan- pulsionalnãoserámaisressaltadoemsuapossibilidadedeelevar-se
te motivo de estranheza é, para Freud, o do duplo, tão explorado além do sexual, mas se tornará prioritariamente o da repetição do
pelaliteratura.Oprópriopsicanalistareencontraseuduploemuma mesmo,aindaqueminimamentetransfigurado,embuscadaretoma-
viagemdetrem,numa“aventura”porelecontadaemumanotaa dadaprópriaorigemecausaúltimadodesejo,aCoisa(dasDing).
seutexto.Aportaespelhadaanexaaseucompartimentodeviagem O objeto primordial é irremediavelmente perdido e, portanto,
abrira-secomumsolavancoeFreudviraentãoentrarum“senhorde abre as portas para toda uma cadeia de substituições, inauguran-
idade,deroupãoebonédeviagem”(Freud4,p.262).Apenasquan- doodesejocomoderiva,comojádissemos.Esseobjetopermanece,
doiaselevantar,paraavisaraessehomemdeaparênciafrancamente contudo,como“excluídonointerior”,naspalavrasdeLacanemseu
desagradávelqueeleentravanocompartimentoerrado,Freudsedá SeminárioVII(Lacan9,p.122).Elecavaumvazionoseiodosujeito,
contadequeestádiantedesuaprópriaimagemrefletidanoespe- à maneira do vaso que se constitui em torno do vazio. É em uma
lho.Freudseestranhanoespelho,etalestranhamentoacompanha conversacerradacomaconferênciadeHeideggersobreaCoisaque
sempre,aindaquedemaneirasutil,oreconhecimentonoespelho Lacan,pinçandoempoucasocorrênciasnaobradeFreudotermo
queinauguraoeu.Quandoesteseconstitui,eleaomesmotempo dasDing,fazdelaumirrepresentávelquesóapareceveladoousefaz
seestranha,dividindo-senaimagem,figurandonelaaoperaçãoque presenteporsuasruínas,osobjetosquefugazmenteparecemtomar
odivideporsuaentrada,nalinguagem,nosimbólico,denominada seulugar.Queéumacoisa?–jáseperguntavaHeidegger.Ovaso,esse
porFreuddecastração,paramarcarsempresuaincidênciacorporal. objetocapazdeindicarcomcerteza,emescavaçõesarqueológicas,a
Assimoduploéinicialmente,naplumadeFreud,umagarantianar- presençadohomem,permitiráqueofilósofoprossigaemsuaques-
320 Discurson.362007 Ensaiosobreasublimação 321
tãoparadefiniracoisacomoconstituídaporumvazio.“Acoisidade umaobradearte.Essaobranosinteressaaquiparticularmente,pois
TaniaRivera
DossiêFilosofiaePsicanálise
dovaso”,dizele,“nãoreside,demodonenhum,namatériadeque nelaseapresenta,diferentementedarodadebicicleta,ocaráterabjeto
eleconsiste,masnovazioquecontém”(Heidegger6,p.123).Ovaso, doobjetoqualquerqueérestodaCoisa,oobjetoadoléxicolacaniano,
comobemnotaLacan,criaovazioe,aomesmotempo,introduza oobjetoqueseperdenovamente,apartirdaquedadaCoisa,eque
perspectivadeviraserpreenchido.Issofaráopsicanalistaafirmar se concretiza nos produtos que saem do corpo, nos objetos-abjetos
que“éapartirdessesignificantemodeladoqueéovasoqueova- perdidosoferecidosaoOutro,quesãooxixi,asfezes,osolhosno“O
zioeocheioentramcomotaisnomundo,nemmaisnemmenos,e homemdeareia”etc.AFonteressalta,ainda,emsuaausênciamesma,
comomesmosentido”(Lacan9,p.145).Seovasopodeseencher ocorpodeondesaiesseproduto,afontedaurina,afontequeéapul-
éporqueemsuaessênciaeleévazio.Ovaso“encarna”,éafiguração são,emtodasuadesmedida.Aoelevaresseobjetoàdignidadedeum
concretadissoqueestranhamenteintroduzemantémemtensãoa objetoabsoluto,suaabjeçãonãoéaídeixadadeladoemproldeuma
oposiçãoentrevazioecheio.Aomesmotempovazioecheio,esse elevação,mas,pelocontrário,éressaltada,retomada,postaemrelevo.
significanteagenciaumacontradiçãounheimlich,exatamentecomo Asublimação,aqui,elevaoobjetoàindignidadedaCoisa.
osignificanteUnheimliche,alçadoporFreudaumaposiçãocentral É muito amplo o campo da produção artística, principalmente
paraaestética. contemporânea,queexploraessadimensãodeindignidade,deabje-
Desse modo, o vaso oferece a Lacan, através de Heidegger, um ção,refazendonasublimaçãoocaminhoinversoàdessexualização,
modelo da Coisa como pura perda, em última instância, mas que paradarlugaraoabjetoerecolocaremmovimentoapulsãoemsua
podesercontornadaporumaoperaçãosignificante(umaoperação desmedida, convocando o gozo. In-dignidade e dignidade seriam,
demodelagemdoSignificante,comosugereotrechoacima,emque nessaperspectiva,mantidasemtensãonasublimação,comooUn-
Lacancaracterizaovasocomo“significantemodelado”).Talopera- heimliche,refazendoessearranjosignificantequeéumamodelagem
çãodesublimaçãoconsistiriaem“elevaroobjeto(...)àdignidadeda dosignificante.Talmodelagemcomportaumadimensãodecriação,
Coisa”(Lacan9,p.133),emqueressoaafórmuladeLévi-Strauss, aorefazerovazioemtornodoqualseconstituiosignificante.
publicadaalgunsanosantes,segundoaqualaarteconfereàobra“a
dignidadedeumobjetoabsoluto”(Lévi-Strauss11,p.45).Qualquer
objetopoderiaseralçadoatal“dignidade”–umarodadebicicleta, Osujeitoeoatocriador
por exemplo, no primeiro readymade produzido por Marcel Du-
champem1913.Bastaumamínimaoperaçãosignificantesobreo Talcriação,sedizrespeitoaosobjetoseàCoisa,concernetam-
objeto,umgiroemrelaçãoàsuaposiçãohabitual,paraqueosigni- bémradicalmenteaosujeito.ParaHeidegger,ovaso(Gefass)contém
ficanteRodadebicicleta,tornadotítulo,sedescoledeseusignifica- (fasst)ovazio.Ooleiroqueformaemseutorno“paredesefundo”,
dohabitualere-apresentesuacoisidade,ouseja,apresente-secomo dizofilósofo,
contornodovazio,remetendoaoobjetoperdido.
Ou ainda, em um exemplo mais escandaloso, basta realizar um não fabrica propriamente o cântaro. Apenas conforma a argila. Não;
quartodegiroemumurinol,dessesdesanitáriospúblicos,retirando- conformaovazio.Porele,neleeapartirdele,ooleiromodelaaargila
o de sua posição vertical, e intitulá-lo Fonte (1917), para fazer dele numaforma.Emprimeirolugaresempre,ooleiro“captaeconcebe”
322 Discurson.362007 Ensaiosobreasublimação 323
(fasst)oincaptáveleinconcebível(dasUnfasslich)dovazio,eoproduz, nasalgunsanosapósaconferênciadeDuchamp,apontaparaofato
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DossiêFilosofiaePsicanálise
comocontinente,naformadovaso.Ovaziodovasodeterminacada deque,nafaladoanalista,talvezsejafundamentalmenteoperantea
gestodoproduzir(Heidegger6,p.123) enunciação,maisdoqueoenunciado.Istobastaparaqueseperceba
queafalaéato,eparaqueseretireoacentodapropaladainterpreta-
Oprópriooleiro“contém”(fasst,apreendeeconcebe),comoovaso, çãoanalítica,queconteriaumasignificação,emproldacriaçãosigni-
oquenãosepodeconter(dasUnfasslich:“oquenãosepodeconter”, ficanteaquedarialugaraintervençãodoanalista.Oanalista,afirma
etambém“oquenãosepodeconceber”),aocriarovaso.Cadagesto Lacan,“épornãopensarqueeleopera”(Lacan10,p.377).Fazendo-
criador é determinado pelo vazio, produz-se dele, é ex-nihilo. O ato seere-fazendo-seemtornodovazio,oquelheseriapossívelgraçasa
criadoréentãoesburacado,implicaemumcertoesvazianentodolugar suaprópriaanálise,oanalistapoderiadarlugaraoatoqueconvidao
dosujeito;háumcertoexíliodoautornarealizaçãodesuaobra.Du- analisando,porsuavez,aalgumacriação.(Pensoemumanalisando
champressaltatambém,comseusreadymades,esseaspectodacriação. quemedissecertavezdesopetão:“vocêéumburaco”.)
Aotomarobjetosindustrializadoscomoumarodadebicicletaeum Oexíliodoartistacomocondiçãodaobrapareceabri-laàparti-
urinol,elepõeemquestãoaautoriadaobra.Estasitua-seaíemapenas cipaçãodeoutroscriadores,sódepois,nomomentodesuarecepção.
umgesto,esubtrai-seàpossibilidade,tradicionalmenteexploradapor ParaDuchamp,oato
intérpretesecríticos,desebuscarnaobraelementosdasubjetividade
doartista.Oartistaélevado,noatocriador,arenunciaraoseulugarde nãoérealizadopeloartistasozinho;opúblicoestabeleceocontatoen-
sujeitoemproldovazio,enessemesmogestoremodela-secomosujei- treaobradearteeomundoexterior,decifrandoeinterpretandosuas
to,sujeitoumtantoocultodesimesmo,umtantoestranho,reconsti- qualidadesintrínsecase,destaforma,acrescentasuacontribuiçãoaoato
tuindo-sepeladivisãomesmaqueoconstitui,segundoapsicanálise. criador(Duchamp1,p.189)
Oartista,comonotaDuchampaofalardoatocriadoremconfe-
rênciade1957,nãoécapazdedescreverobjetivamenteasdecisões Também a intervenção do analista só se realiza como obra na
quetomaduranteoprocessodecriaçãodeumaobra,enãodetém transferência, ou seja, desde que o analisando a retome em sua
“papelalgumnojulgamentodoprópriotrabalho”(Duchamp1,p. própria criação.A criação em ato, seja ela em análise ou em arte,
198).Hánecessariamenteuma“falha”,uma“inabilidade”doartista, conformando-seapartirdovazioemantendo-ooperante,mesmo
ainda segundo Duchamp, em“expressar integralmente sua inten- ao preenchê-lo um tanto, convoca o outro a ocupar esta mesma
ção”,eénessedescompassoentreoqueseintencionafazereoque posição,tornando-seumtantovasoesendoconvidadotambéma
realmente se produz que residiria o“‘coeficiente artístico pessoal’ retomaressamodelagemdosignificantequere-modela,nomesmo
contidonaobra”(Duchamp1,p.189).Setalcoeficienteé“pesso- golpe,tambémosujeito.Duchampchegaadizer,maisradicalmente,
al”,eledespersonaliza,eleéumamedidadaestranhezaaquesevê referindo-seàpintura:“osolhadoresfazemoquadro”(Duchamp1,
submetidoocriadoraorealizarumaobra,justoocontráriodeuma p.247).Opoderdaobradeartedeenlaçarseupúblico–seupoder,
confirmaçãodesuaidentidade. digamos,desedução–estáintimamenteligadoàquestãodo“reco-
Tambémoqueoperaemumtratamentoanalítico,segundoLa- nhecimentosocial”queFreudváriasvezessublinhacomoessencial
can,éumato.Oatoanalítico,noçãoqueopsicanalistapropõeape- paraosucessodasublimação.Háumlaçosocialrealizadopelaobra,
324 Discurson.362007
apartirdoreestranhamentoaqueelaconvidaosujeito.Aoapresen-
DossiêFilosofiaePsicanálise
tar-senolugardein-dignidadedaCoisa,aobrafazumapromessa
queelanãocumprirátotalmenteelanosconvidaarefazeroqueela
nãoé,enganchando-nosàmaneiradoamor,queé,paraLacan,sem-
predaroquenãosetem.
Referênciasbibliográficas Observaçõessobreotemada
atemporalidadeemFreud,KanteBergson
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neiro:Imago,vol.XIV,1996(1969).
ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson
Este artigo mostra que a freudiana“atemporalidade” dos processos psíquicos
não deve ser entendida como uma conseqüência trivial da distinção entre QuandoKant,nascélebrespáginasda“Estéticatranscendental”da
processos psíquicos conscientes e inconscientes. Ele mostra que Freud possui Críticadarazãopura,diferenciavaotempodoespaçocomoformas
umacaracterizaçãopositivaefenomenológicadessaatemporalidade,obtidae
dossentidosinternoeexterno,respectivamente,davaeleexpressãoa
afirmadaparaalémecontraaqueladistinção,equeodesafioqueFreud,com
umaconcepçãoque,indiferenteàargumentaçãotranscendentalpro-
esta atemporalidade, lança a uma filosofia “kantiana” não é completamente
priamente dita, permanecia (e permanece) ao mesmo tempo como
desprovidodesentido,maspodeserre-elaboradonumaperspectivadealgum
uma concepção fundamental e não-explicitada, tanto do entendi-
modobergsoniana.
mento comum como do entendimento filosoficamente instigado.
Palavras-chave:atemporalidade,Freud,Kant,Bergson
TalcomoquandoWittgenstein,nasInvestigaçõesfilosóficas,sereferea
SantoAgostinhoparatrazeràluzumaconcepçãoque,nãoé,emtodos
OntimelessnessaccordingtoFreud,KantandBergson
ThispapershowsthattheFreudian“timelessness”ofpsychicalprocessisnot
osseuscontornosepormenores,nemexplicitamentedefendidapor
tobeunderstoodasabareconsequenceofhisdistinctionbetweenconscious SantoAgostinhonempornenhumoutrofilósofo,masque,poroutro
and unconscious psychical process. It shows that Freud have a positive and lado,permanecesurdaeobscuramentecomoabasedetodasascon-
phenomenologicalcharacterizationofthattimelessness,obtainedandaffirmed cepçõesanterioressobrealinguagem,podemosaquidenominarcomo
beyondandagainstthatdistinction,andthatthechallengethatFreud,withthis “kantiana”aestaconcepção,eistotãosóportersidoKantquem,como
timelessness,throwstoa“Kantian”philosophyisnotcompletelysenseless,but o“SantoAgostinho”deWittgenstein,maischegoupertodesereferir
canbewellworked-outinasomewhatBergsonianlines. explicitamenteaela1.Talconcepçãoéfacilmenteapreensívelmediante
Keywords:timelessness,Freud,Kant,Bergson uma análise a respeito do uso de algumas expressões na linguagem
comum:supondocomonãoproblemática2umadistinçãoentreum
1
Talconcepção,conformeafirmamoshápouco,éindiferenteàargumentaçãokantiana
propriamentedita,querdizer,aconsideraçãodotempoedoespaçocomoformaspuras
daintuiçãosensível,eoaporteoferecidoportaisformasàquestãosobreapossibilidade
dejuízossintéticosapriori,emnadaéafetadapeladiferenciaçãoe“distribuição”daque-
lasformasentreumsentidointernoeumsentidoexterno.
2
Nemseriaprecisodizeroquantoestadistinção,presenteespontaneamentenoentendi-
mentocomum,jásetornouproblemáticaparaoentendimentofilosófico.Porenquanto,
porém,interessa-nossomentedelinearoscontornosdaquelaconcepção,e,deummodo
geral,mesmoquejánãosetratede“doismundos”,trata-sededoismodosradicalmente
distintosmedianteosquaisempregamosconceitos“mentalísticos”emcontraposiçãoaoem-
pregodeconceitos“fisicalistas”.
328 Discurson.362007 ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson 329
mundomental,privado,eummundofísico,público,entreummun- pertinentes ao mundo físico: uma metáfora não consiste apenas
HélioLopes
DossiêFilosofiaePsicanálise
dopovoadoporrepresentações,pensamentosetc,eoutromundo naultrapassagemdeumlimitelógico-conceitual,mastambémno
povoado por objetos e processos materiais, podemos constatar reconhecimentodolimiteassimultrapassado.Semaultrapassa-
facilmente que, enquanto a“forma” ou a estrutura fundamental gem,nãoteremosumametáfora,esimumaexpressãoliteral,mas
doprimeiromundoésupostaserunicamenteotempo,aformae semoreconhecimentodolimiteultrapassadotampoucoteremos
aestruturafundamentaldosegundoésupostaseroespaço,ouo uma metáfora, mas um erro ou equívoco categorial, tal como o
espaçoeotempoconjuntamente.Emrelaçãoaobjetoseeventos equívoconoqualestariaenredadoosujeitoque,munidodeuma
físicos,fazsempresentidoperguntar,alémdo“Quando?”,também fitamétrica,tentasseavaliara“profundidade”deumpensamento.
o“Onde?”, ao passo que, em relação às representações e pensa- Ora,senós,diantedetaismetáforas,imediatamenteasreconhe-
mentos,ouemrelaçãoàquiloquepertenceaomundo“mental”,só cemos como tais, reconhecemos também imediatamente, e por
fazsentidoperguntarpelo“Quando?”,enãofazsentidoperguntar esse mesmo ato, o limite lógico-conceitual por elas proposital-
pelo“Onde?”. Unicamente a forma do tempo parece pertinente menteultrapassado.Ouseja,reconhecemosqueoseventosmen-
aoseventosdomundomental.Éclaroque,àsvezes,pretendemos tais não podem ser submetidos à forma do espaço. Em relação
estarfalandodeformasignificativaaodizerque,apesardetudo, aotempo,poroutrolado,ocorrejustamenteocontrário:nãosó
pensamentos e representações ocorrem“na cabeça” das pessoas, acontece de acharmos pertinente a indagação sobre, por exem-
mas isto não corresponde a uma localização espacial efetiva, já plo,omomentodotempoemquenosocorreuumpensamento,
que esse procedimento aparentemente localizacionista tem um ousobreseessepensamentoéumadivagaçãopassageiraouuma
limite,oquenãoéprópriodasverdadeiraslocalizações:dizer,por preocupação constante, mas, mais ainda, pode-se suspeitar se o
exemplo,queumpensamentoocorre“nacabeça”deumapessoa tempo não constitui o modo de existência mesmo dos eventos
nãonosobrigaaatribuirsentidoàquestãosobrequedistânciahá mentais. De qualquer modo, e sem querer aqui fazer referência
entreestepensamentoeoutros,ousobreseopensamentoocupa a uma boa quantidade de autores para quem o tempo constitui
acabeçatodaousóumaparte,ouainda,estandoessapessoa(com umacategoriaontológicafundamental,nalinguagemcomumas
suacabeça)atrêsmetrosdeoutra,seoquepensaaprimeirapes- expressõesqueafirmamuma“temporalização”deeventosmen-
soaestáounãoatrêsmetrosdoquepensaaoutrapessoa.Éclaro tais não são metafóricas nem constituem erros categoriais, mas
tambémquehá,nalinguagemcomum,umaenormequantidade parecemsimexpressõesliterais,asúnicasadequadasparaades-
delocalizaçõeseespacializações“metafóricas”deeventosmentais, criçãodo“mundomental”.E,comosempreédifícilfalardaquilo
comoquandosediz,deumpensamentoqueeleé“profundo”ou queé“óbvio”apontodesetornarnãoexplicitável,vejamoscomo
“superficial”,queele,poruminstante,“passou”pornossacabeça, Kantmesmoserefere,na“Estéticatranscendental”,àconcepção
ou, de uma intenção, que nada mais“longe” ou mais“distante” queprocuramosinvocaraqui:
denós,etc.Noentanto,justamenteporseremmetafóricas,epor
seremreconhecidasimediatamentecomotais,équeessasexpres- I-“Oespaçonãoésenãoaformadetodososfenômenosdossentidos
sões indicam a diferença essencial no modo como empregamos externos...”(B-43),e“Otemponadamaisésenãoaformadosentidoin-
os conceitos mentalísticos enquanto contrastados aos conceitos terno,istoé,dointuiranósmesmosenossoestadointerno”.(B-50)
330 Discurson.362007 ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson 331
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foradenósetodosjuntosnoespaço[...]Osentidointerno,medianteoqual rolugar,Freud,comela,pretende“embarcarnumadiscussãofilosó-
amenteintuiasimesmaouoseupróprioestadointerno[...]consisteape- fica”,eessaatitudecontrariaadisposiçãomaiscomumefreqüente
nasnumaformadeterminadaunicamentesobaqualépossívelaintuição de Freud em relação à filosofia, onde, colocando-se normalmente
doseuestadointerno,demodoatudooquepertenceàsdeterminaçõesin- naposiçãodocientista,cujotrabalhopersistenteehumildeacaba
ternasserrepresentadoemrelaçõesdetempo.Otemponãopodeserintuído pordemolirosmajestosos“castelosdecartas”aprioridosfilósofos,
externamente,tampoucoquantooespaçocomoalgoemnós.(B-38) Freud, diante da objeção destes, no sentido de que todos os pro-
III-Otempoéacondiçãoformalaprioridetodososfenômenosemgeral cessospsíquicossãoprocessosconscientes,nãotinhaoutraatitude
[...](pois)[...]todasasrepresentações,tenhamcomoobjetocoisasexternas quenãoo“dardeombros”docientistanaturalàsadmoestaçõese
ounão,emsimesmas,comodeterminaçõesdamente,pertencemaoestado “primeirosprincípios”dosfilósofos.Emsegundolugar,nela,Freud
interno,aopassoqueesteestadointernosubsume-seàcondiçãoformalde sedirigeaumafilosofiaespecífica,afilosofiakantiana,edirigeum
intuiçãointernaeportantoaotempo[...](ouseja,otempoé)[...]acon- desafioaela:elequerqueosfilósofoskantianosatentemparauma
dição imediata dos fenômenos internos (das nossas almas) e por isso “descoberta”docientistanatural,descobertaestaque,emseuen-
tambémmediatamenteadosfenômenosexternos(B-51) tender,abalariaoucontrariariaalgumasdasformulaçõesapriori
dessafilosofia.Essedesafioparecetertidopoucarepercussãojunto
Umdosaspectosmaisestranhoseexóticosdateoriapsicanalítica, aosfilósofos,eaatitudemaiscomumdestespodeserexemplifica-
talcomoelaboradaporFreud3,éaqueleemquesepretendejustamen- dapelotratamento,muitobreve,queAssoundáarespeito:segundo
tenegartalconcepção,eisto,ainda,naformapelaqualelafoi,acima, ele, tal desafio da atemporalidade tem origem num desvio schope-
esboçadaporKant;emAlémdoprincípiodoprazer,Freuddiz: nhauerianodadoutrinadeKant,numaequivocadapsicologizaçãoou
antropomorfizaçãoda“Estéticatranscendental”,queFreudteriaassu-
OteoremakantianodequeTempoeEspaçosãoformasnecessárias mido,tornando-seassimequívocaareferência,porpartedeFreud,à
denossopensamentopodehoje,devidoacertosconhecimentospsica- questãodaatemporalidadeaKant.Dessemodo,segundoAssoun,
nalíticos,sercolocadosobdiscussão.Nósaprendemosqueosprocessos a questão da atemporalidade deveria ser redirecionada:“não é por
psíquicosinconscientessãoemsiatemporais(zeitlos).Istoquerdizer,em simplescarênciadeinformaçãofilosófica,comopoderíamossuspei-
primeirolugar,queelesnãosãotemporalmenteordenados,queotempo tar,mascomoantagonistadeSchopenhauerqueFreudsecomporta
emnadaosalteram,quenãosepodelhesaplicaraidéiadotempo(Freud aqui”(Assoun2,p.163).Noentanto,aquestãodaatemporalidade
1,p.238;vol.XVIII,p.28) não repercute, como pretende Assoun, de modo significativo na
doutrinadeSchopenhauer,ou,serepercute,ofazapenasonde,nessa
doutrina,SchopenhauersepretendeabsolutamentefielaKant.Ou
melhor:mesmotendosidoSchopenhauerquem,entreoutros,proce-
deuàquelaantropomorfizaçãodadoutrinatranscendentaldeKant,
3
Porteoriapsicanalítica,aqui,deve-seentenderapenasaquelaconstantedostextosde
essaantropomorfização,porsimesma,ouoreconhecimentodessa
Freud.Nãonosinteressadiscutirdesenvolvimentosdessateoriarealizadosporseusdis-
cípuloseseguidores. antropomorfização como equívoca, por si mesma, não é suficiente
332 Discurson.362007 ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson 333
pararesolveroudissolveroproblemadaatemporalidade.Essaatitu- formevimosacima,jánãonosinteressadecidir)afilosofiakantiana,
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dedeAssounserve-nosaquicomoexemplodaposiçãomaiscomum talcomonestapassagemdosescritosMetapsicológicosde1915:
assumidapelosfilósofoskantianosfrenteàqueledesafiolançadopor
Freud:segundoeles,Freud,desconhecendoocaráterpropriamente AssimcomoKantnosadvertiuparaquenãonegligenciássemoso
transcendental da filosofia kantiana, teria erroneamente entendido condicionamento subjetivo de nossas percepções, e para que não to-
a“Estéticatranscendental”comoveiculandoumaespéciedeteoria mássemosnossaspercepçõesporidênticasaopercepcionadoincognos-
empíricaarespeitodosprocessospsicológicosenvolvidosnapercep- cível, assim adverte também a psicanálise para que não se coloque a
çãodotempoedoespaço,demodoquesua“descoberta”,elames- percepção consciente em lugar dos processos psíquicos inconscientes
ma empírica, a respeito de processos psíquicos atemporais deveria quesãoseuobjeto.(Freud1,volIII,p.130.VolXIV,p.171)
serdirecionadanãoaKant,masaalgumadetaisteoriasempíricase
psicológicasarespeitodapercepçãodotempoedoespaço.Emnosso Aoprocurarestabelecer,assim,umaequivalênciaentreoseucon-
entender,talatitudenãoresolveoproblema:vimos,acima,Kantse ceito de Inconsciente e a“coisa-em-si” kantiana, Freud, mais uma
estenderemconsideraçõesque,emboradesvinculadasdaargumen- vez,poderiacontarcomoapoiodeumasériedeconsideraçõesdo
tação transcendental propriamente dita, são, porém, considerações próprio Kant: com efeito, ainda na“Estética transcendental”, Kant
suas,deKant.FilósofoscomoAssounacabariamporconcluirquenão negaarealidadeabsolutadotempoemrelaçãoaoobjetodosentido
apenasFreud,masKanttambémestariaequivocadoaonãoseparar interno,oqueredundanareafirmaçãodaidealidadedotempoem
claramenteaquiloqueeradaquiloquenãoerapertinenteaessaargu- relaçãoaoobjetodosentidointerno(B-55ess),e,alémdisso,afirma
mentaçãotranscendental,eaoterseestendidoemconsideraçõescuja queosentidointernoérealmenteum“sentido”,querdizer,queatravés
únicautilidadefoiadeterdadoocasiãoàequivocadaantropologiza- deleamenteouaalmaintuiasimesma,nãocomoéemsimesma,mas
çãodesuadoutrina.Contudo,podemosdeixaressesfilósofoscom apenascomoapareceasimesma,conseqüentementeapenascomofe-
o transcendentalismo kantiano inteiramente preservado e intacto, e nômeno,enãocomocoisa-em-si-mesma(B-68-70).ÉclaroqueFreud
nosreferiraum“outro”Kant,oKantvisadoporFreud,poisnosso nemsempremantémestaequivalênciadeformacompletae,deum
interesse é avançar no problema. A questão sobre se, dada a tarefa modogeral,elaéduvidosaàmedidaemqueaafirmação,porpartede
transcendentalmesma,Kantdeveriaounãoterseestendidonaquelas Freud,detalequivalênciafossealgomaisdoqueumartifícioretórico.
considerações,éumaquestãoquecompeteàquelesfilósofosresolver, Porém,écuriosaamaneiracomoessapassagem,quandoconsidera-
enãonosinteressaaqui. daconjuntamentecomapassagemanterior,naqualFreudveicula
AqueledesafioqueFreuddirigeaKant,noentanto,repercutenum oseudesafiodaatemporalidade,causaperplexidademesmoantes
outrotipodereferênciadeFreudaKant:comefeito,emalgumasdas deseremconduzidasaKant:bastacolocarmosasduaspassagensde
inúmerastentativasemqueFreudprocuracontestaraequivalência Freud,acimacitadas,emrelaçãoentresi,paraapercebermo-nosde
que, segundo ele, os“filósofos” em geral admitem entre processos queumaanulaaoutra.Odesafio,veiculadopelaprimeirapassagem,
psíquicoseprocessosconscientes,ouemalgumasdasinúmerasten- setornainócuoeincompreensívelseadmitirmos,talcomoadmitea
tativasqueFreudfaznosentidodeavançaraidéiadeprocessospsí- segundapassagem,umacompletaequivalênciaentreoInconsciente
quicosinconscientes,eleinvoca(legitimamenteounão–isto,con- freudianoeacoisa-em-sikantiana,poroutrolado,essaequivalência
334 Discurson.362007 ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson 335
precisariaaomenosseratenuada,casosequeirapreservaraquelede- eincompreensível,temaindaoinconvenientedefazeraquestãoda
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safio.Imagine-se,porexemplo,comoreagiriaumdesafiadofilósofo atemporalidadedependerdaquestão,decontornosmenosprecisos,
kantiano.EleprovavelmentediriaaFreud: arespeitodo“psíquiconão-conscienteouInconscienteemgeral”.Se
aquelaafirmaçãodaatemporalidadefosseummerodesdobramen-
Poisbem,seoseuconceitodeInconscienteéequivalenteàcoisa- todaequivalênciaentreInconscienteecoisa-em-si,entãoteríamos
em-si,então,naturalmente,epordefinição,eleéatemporal,domesmo de nos entender, primeiro, a respeito dos“processos psíquicos in-
modocomoacoisa-em-siéatemporal,enãovejoondepoderiaestar conscientesemgeral”,parasódepoisabordaros“processospsíqui-
o caráter polêmico dessa afirmação da atemporalidade com que você cos atemporais”. Foi seguindo esta alternativa que, para muitos, o
pretendemedesafiar. temadaatemporalidadetornou-sealgodeincompreensívelnate-
oria freudiana: juntamente com as outras“características especiais
Éclaroentãoque,seosprocessospsíquicosquesão,segundoFreud, dosistemaIcs”,taiscomomencionadasporFreudnosescritosMe-
atemporaissãoosprocessospsíquicosinconscientes,eseessespro- tapsicológicos de 1915 (Freud 1, vol III, p. 145-6; vol. XIV, p. 187),
cessosinconscientessãodamesmaordemdacoisa-em-sikantiana, aatemporalidade,assimcomoa“ausênciadenegação”,a“ausência
entãotaisprocessosseriam,pordefinição,atemporais,jáqueocon- detestederealidade”etc.,seriaoresultadodeumainferência,se-
ceitodecoisa-em-siéobtidojustamentemedianteaabstraçãodas riaumaespéciede“construtoteórico”que,talcomoacoisa-em-si
formaspurasdaintuiçãosensível,e,dentreestas,dotempo.Porém, kantiana,nãoéimediataediretamentedado,masalgoquedevemos
nessecaso,ocaráterdedesafiocomqueFreudrevesteaafirmaçãode apenaspostularcomosubjacenteaosfenômenos,demodoatornar
talatemporalidadeseriaincompreensível,absolutamentedeslocado compreensívelaquiloqueédiretamentedado.Emsuma,se,confor-
eequivocado.Seriacomosealguém,querendocontestaroqueaca- meadmiteaconcepçãoqueprocuramosinvocarnoiníciodesse,a
bamosdedizer,dissesseamesmíssimacoisaquedissemos.Vemos, consciênciaé,depontaaponta,temporalmenteestruturada,então,
assim, que o caráter polêmico da afirmação da atemporalidade só pensa-se,o“outro”dessaconsciêncianãocomportaráaestrutura-
poderia ser preservado se admitíssemos, como Freud admitirá na çãoqueessencialmentecaracterizaessaconsciência,e,portanto,este
seqüênciadaúltimapassagem,acima,queoInconscienteeacoisa- Inconsciente será, naturalmente, atemporal, já que a temporalida-
em-sikantiananãocoincidemperfeitamente,quenãosão,ambos, de só vigoraria onde vigora uma consciência. Daí a afirmação da
igualmenteincognoscíveis,queoInconscienteé“menosincognoscí- atemporalidade,segundoessaalternativa,seriatrivial,eincompre-
vel”queacoisa-em-si. ensívelseriaapenasaatitudedeFreud,quepretenderevesti-lacom
Este,portanto,éoprimeiroaspectocomqueseapresentaopro- umcaráter“fenomenológico”,queinsinuaserelaalgodiretamente
blemadaatemporalidadeemFreud:ouaafirmaçãodessaatempo- dadoàexperiência.Ora,vê-seclaramenteque,seguindoessaalter-
ralidadenãopassadeumanovaformadeestabeleceraequivalência nativa,otemadaatemporalidadeemFreudesvai-secompletamente.
entreInconscienteecoisa-em-si,ouaafirmaçãodaatemporalidade, Épreciso,portanto,levarasérioasegundaalternativa;éprecisodar,
mantendoocaráterdedesafiocomqueFreudareveste,constitui-se ao menos provisoriamente, um crédito ao desafio com que Freud
emfatopolêmicofrenteaessaequivalência.Aprimeiraalternativa, reveste a sua afirmação da atemporalidade. É preciso entender tal
alémdoinconvenientede,conformevimos,tornarodesafioinócuo afirmaçãocomosendoconquistadaparaalémecontraumasuposta
336 Discurson.362007 ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson 337
equivalênciaentreinconscienteecoisa-em-siadmitirqueFreud,ao quedatavamdequinzeavinteecincoanosatrás,encontravam-seim-
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revesti-lacomumcaráterfenomenológico,nãoestavaenganando-se pressionantementeintactas,epossuidorasdenotávelforçasensória,e,
asimesmo,nemestavaprocurandonosenganar.Éistooque,na quandoretornavam,elasagiamcomtodaaforçaafetivade(própriaàs)
seqüência,procuraremosdemonstrar. novasexperiências.(Freud1,vol.II,pp.9-10)
Graçasaessacaracterísticaatemporal,essaslembrançasprolonga-
II vamoefeitodeumeventotraumáticoque,hámuitotempo,deixara
deocorrer,econstituíamevidênciadequeesseevento,contínuaedi-
Freudesteveàsvoltascomoproblemadaatemporalidadeemtoda retamente,atravésdesualembrança,mantiveraosintomaatéentão.
asuaobra4.Comefeito,jánaComunicaçãopreliminarencontramos Ofatodealembrançaseconservarintactaporlongosperíodosde
Freud(eBreuer)anunciandoadescobertadequeoevocardeuma tempoécondiçãodeumtraumatismocontínuo,eadeterminação
determinada lembrança coincidia com o desaparecimento de um dotraumatismopsíquicocomocontínuoé,segundoFreudeBreuer,
determinado tipo de sintoma histérico, e isso é ocasião para que aprincipalcontribuiçãoqueentãosefaz,nosEstudossobreahisteria,
eles proponham uma extensão do conceito de histeria traumática paraateoriadahisteria.Acomodarteoricamenteesseprocessocau-
(namedidaemquesedetermina,assim,umtrauma“psíquico”para sal,assimcomoacaracterísticaatemporaldalembrança,queotorna
um maior número de sintomas histéricos), e para que eles deter- possível,éaprincipaltarefaaquesededicamBreuereFreud.Com
minemanaturezadarelaçãocausalentretraumaesintoma;trata- esse fim, eles mobilizam considerações extraídas de uma segunda
sedaquiloquechamamde“causaçãodiretaoucontínua”,opostaa característicadalembrançapatogênica.Estas“estãocompletamente
umacausaçãoindiretaouapenasdesencadeadora.Otraumaagora ausentesdamemóriadospacientes,quandoelesestãonumestado
ésupostoagircontinuamente,atravésdesualembrança,naprodu- psíquiconormal,ouestãopresentesapenasnumaformaextrema-
ção do sintoma. Essa conclusão, dizem Freud e Breuer, é apoiada mentesumária”(Freud1,volII,p.9).Apenassobhipnoseelasapa-
na primeira das duas características da lembrança patogênica que recem.Essaressalvajánosadvertedequetalcaracterísticanãoétão
elesdescobrem:“aslembrançasquesetornaramosdeterminantes decididamenteafirmadaquantoaprimeira,poistais“estadoship-
dofenômenohistéricopersistem,pormuitotempo,comumfrescor nóides”nãopodiamsersempredistinguidosdemaneiraprecisados
impressionanteecomtodasuacoloraçãoafetiva”(Freud1,vol.II,p. estadosdeconsciêncianormal,e,defato,seusconteúdosformavam
9)Essaslembranças umaescalacontínuaentreidéiasperfeitamenteconscienteseidéias
quenuncaentrariamnumaconsciêncianãohipnotizada,entreuma
rememoraçãocompletaeumaamnésiatotal(Freud1,vol.II,p.12
e229).Ouseja,enquantoaprimeiracaracterística,acaracterística
atemporal,édiretamenteextraídadaconstataçãodequeosintoma
4
Estetextodesenvolvealgumasdasconsideraçõesjáfeitasem1991,emminhadissertação é uma forma de lembrar e que“histéricos sofrem principalmente
demestrado,apresentadaaoCursodePós-GraduaçãoemLógicaeFilosofiadaCiência
dereminiscências”,asegundacaracterística,acaracterística“incons-
daUniversidadeEstadualdeCampinas(Unicamp).Láprocediaumadetalhadaanálise
dotemadaatemporalidadeaolongodetodaaobrafreudiana. ciente”dalembrança,parececorresponderaumníveldeteorização
338 Discurson.362007 ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson 339
maiselevado.Podemosnotar,sobretudo,queumdosaspectoscom lembrançasquenãoeramdesgastadaspelotempo,seriadevidonão
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queaatemporalidadedecertosprocessospsíquicoscostumeiramen- aofatodequeforamproduzidasnumestadodiferenciado,“hipnói-
teseapresentaaFreud,aindestrutibilidadeouo“nãopassarcomo de”,deconsciência,masaofatodeteremrecebidouma“quantidade
tempo”,jáestáaquipresente,eéafirmadocomopertinenteaonível deinvestimentoouafeto”quenãoreceberamnaorigem.Todoesse
fenomenal,comosendodaordemdosfatosoudadosdiretosàobser- complexomecanismo,queviriaasersubstituídoembreve,dadaa
vação5.Talatemporalidadenãoé,jáaqui,ummerodesdobramento descoberta da“sexualidade infantil”, é claramente mobilizado por
dahipótesearespeitodo“psíquicoinconsciente”,hipótesecujoem- Freudcomvistasàacomodaçãoteóricadofenômenodaatemporali-
brião, a segunda característica mencionada acima, não é nem tão dade.E,jánessaépoca,Freudexprimedúvidasarespeitodamedida
decididamenteafirmadanempertenceaomesmonívelfenomenal. emqueelepróprioteriaconseguidotalacomodação.Numaconfe-
Sabe-se que Freud, logo depois, viria a abandonar essa idéia de rênciaemqueexpõesuateoriadasneurosesdaépoca,dizele:
“estadoshipnóides”,assimcomoousodahipnose,edesenvolveria
uma“teoriadasedução”,queveiculavaummecanismocausalmais porquepessoassaudáveissecomportamdemododiferente?Porque
complexo:duranteainfância,acriançateriasidovítimadeumas- todasassuasexcitaçõesdemuitotempoatrásnãoentramemoperação
salto sexual, experiência que, na ocasião, lhe foi indiferente, dado maisumavez,quandoocorreumaexcitaçãonova,presente?Tem-sea
queacriançanãoestavasexualmentepreparada;masessalembrança impressão, de fato, de que, com pacientes histéricos, é como se todas
permaneceunamemória,talcomotodasasoutraslembranças,e,ao suas experiências antigas [...] retiveram seu poder efetivo [...] Parece
serassociativamenteevocadaporoutraexperiência,ocorridaapós queadificuldadededispordeumaimpressãopresente,aimpossibilida-
a puberdade, provocaria uma inusitada liberação de desprazer, já dedetransformá-lanumalembrançaimpotente,éligadaprecisamente
que, nesse meio-tempo, a puberdade trouxe consigo um aumento aocaráterdoinconscientepsíquico[...]orestantedoproblemasitua-se,
descomunalnaquantidadedeexcitação.Essaproduçãodedesprazer umavezmais,nocampodapsicologia–e,maisainda,deumapsicolo-
tomaoEudesurpresa,poiseleestáacostumadoaespreitarfontesde giadeumtipoparaaqualosfilósofostêmfeitopoucoparaprepararo
desprazerapenasnaspercepções,nãoemlembranças,demodoque caminhoparanós(grifonosso).(Freud1,vol.III,p.218-9)
oEusevêforçadoaprocederaumadefesapatológica,retirandoo
afetodalembrançaealocando-o,sejaeminervaçõessomáticas,seja Vemos,assim,quejánessaépocaFreudendereçavaaafirmaçãoda
emoutrasidéias,aomesmotempoemquereprimeetornaincons- atemporalidadeàfilosofia,equeixava-sedofatodequeestaainda
cientealembrança.Assim,osurgimentodelembrançasatemporais, não havia sequer vislumbrado instrumentos conceituais mediante
osquaistalfenômenopoderiaseracolhido.Quantoàoutraafirma-
5
ção,aafirmaçãodo“psíquicoinconsciente”,nãoéinteiramentejus-
Para uma maior confirmação dessa afirmação, poderíamos nos referir ao impressio-
nante relato que Breuer faz da alternância de estados pela qual passava sua paciente,
tificadaacostumeiraqueixafreudiananosentidodequeafilosofia,
AnnaO.,ondeela,numestadohipnóide,literalmentevivianumaépocaanterioràatual, emuníssono,nãoaadmitiria:poistalcomoFreudocita,emChistes
chegandomesmoadesviardemóveisquejánãoseencontravamnomesmolugar;que e sua relação com o inconsciente, Lipps já havia antecipado aquilo
issoeraefetivamenteoqueestavaocorrendo,dizBreuer,nãoénenhumasuspeita,ou
nenhumainferência,maséumfato“confirmadoacimadequalquerdúvida”.(Freud1,
que,depois,setornariaaforma,digamos,padrãomedianteaqual
vol.II,p.33) FreudintroduziriaseuconceitodeInconsciente:osdadosdacons-
340 Discurson.362007 ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson 341
ciênciaapresentariamváriaslacunas,epermaneceriamininteligíveis sente,masnãoemimagenssensíveis;ouseja,oaspectoatemporalé,
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zemosonhosãoditascaracterísticasdeum“outrodomínio”,deum nadamaiséqueaatemporalidadenumaoutraperspectiva:Freudfala
outrosistemaquenãoosistemaPcs-Cs.Ouseja,aquiaafirmaçãoda dosujeitodesejandorestabelecernofuturoumestadodecoisaspassa-
atemporalidadeperdeocaráterdedadofenomenal,ejáseencontra do;nósodescreveríamosassim,masédesupor-seque,paraosujeito
na dependência da afirmação a respeito do Inconsciente em geral; mesmo,essepassadonãoseja“passado”,queelerecusa-sejustamente
conformeveremos,ésobessadependênciaquelheadvirácaracteriza- areconhecertalestadodecoisascomo“passado”,equeadereaum
çõeseminentementenegativas.Antes,porém,observemosamaneira eternopresente.Emsuma,nãosetrataapenasdedizerqueodesejoé
comoaafirmaçãodaatemporalidade,oprimeiroeessencialaspecto atemporal,massim,etambém,queoquesedesejaprimordialmente
dossonhosmencionadoacima,seacoplaàtesedosonhocomorea- éaprópriaatemporalidade.
lizaçãodedesejo.Modeladosobrea“vivênciadesatisfação”,odesejo NosescritosMetapsicológicosde1915,aatemporalidade,designa-
serádefinidocomoumimpulsoqueprocurarestabelecerumasitua- dacomoumadas“característicasespeciaisdosistemaInconsciente”,
çãoanteriordesatisfação,comoumimpulsoqueprocurareinvestira ganhaumacaracterizaçãoeminentementenegativa:
imagemmnêmicadapercepçãodoobjeto,cujaapariçãoanteriorfoi
simultâneaàeliminaçãodatensãoproduzidapelanecessidade.E,por Os processos do sistema Incs são atemporais, isto é, eles não são
“realizaçãodedesejo”,Freudentendeoreaparecimentodessapercep- temporalmenteordenados,nãosãoalteradospelapassagemdotempo,
çãodoobjetodesejado.Freudsupõequeasprimeirasrealizaçõesde nãotêm,demodoalgum,nenhumarelaçãocomotempo.Arelaçãoao
desejoforamalucinatórias,ondeatensãogeradapelanecessidadeera tempoprende-se,maisumavez,aotrabalhodosistemaCs.(Freud1,vol.
imediatamentetransferidademodointegralparaaimagemmnêmica III,p.145-6;vol.XIVp.187).
doobjeto,queantesforaconcomitanteaodesaparecimentodatensão.
Numasegundafasedessavivência,arealizaçãoalucinatóriadedesejos Taiscaracterísticasespeciais,que,alémdaatemporalidade,contam
cedelugaramodosmaiseficientesderealizardesejos,aquelaimagem coma“ausênciadenegação”eo“processoprimário”,sãoaquiloque,
mnêmica não é mais integralmente investida, e esses modos mais paraalémdoatributodeserounãoconsciente,serviriamparacarac-
eficientescobrematotalidadedosatosmentais.Nessesmodosmais terizarosprocessospsíquicosinconscientes,econstituiriam,noenten-
eficientes,porém,oquesedesejaéomesmo,querdizer,realizardese- derdeFreud,umaforterazãoparaadivisãodamenteem“sistemas”,
jos,eestesúltimosmodosrepresentamapenasdesviosouadiamentos namedidaemquesereferemaleisdiferenciadasdefuncionamento
provisóriosemrelaçãoaoqueeravisadonaprimeirafase.Poderíamos dos processos psíquicos. Trata-se de uma caracterização eminente-
dizerque,segundoFreud,emtodososatospsíquicosvigoraestemes- mentenegativa:negaraatribuiçãodeumpredicadoaumsujeitonão
moeúnicoesquematemporal:trata-sederestabelecer,nofuturo,um éomesmoquepredicaressesujeitocomoutropredicado,anãoser
estadodecoisasanteriorepassado.Presentenãosónossonhos(Freud quando o número de predicados possíveis seja limitado, o que não
1,vol.II,p.588;vol.V,p.621)mastambémnasações-com-propósitos, pareceserocasoaqui.Dizerqueosprocessospsíquicosemquestão
essemesmoesquematemporalémuitobemdescritoporFreud,emO nãosãotemporalmenteordenadosnãonosinformasobrecomoeles
Poetaeofantasiar(Freud1,vol.X,p.147-8),noquedizrespeitoaos sãoordenados(seéquesãoordenadosdealgummodo);dizerque
devaneios,queconstituemummeio-termoentreossonhoseasações- elesnãosãoalteradospelapassagemdotemponãonosinformasobre
344 Discurson.362007 ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson 345
oqueospodealterar(seéquesãoalteradosdealgummodo);enfim, estesinterpoladosapenascomoobjetivodepreencheraslacunas
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dizerquenãomantêmrelaçãoalgumacomotemponãonosinforma destesúltimosetorná-losinteligíveis.Querdizer,o“descobridor”,
sobreseusoutrostiposderelações,seéqueashá.Alémdenegativa, quemencionamoshápouco,reconheceria,agoramaissóbrio,que
porém, essa caracterização da atemporalidade comporta uma apa- narealidadenãoviuumnão-ar,nemumanão-água,nemumanão-
rênciafenomenológica;Freudparecepretenderestardescrevendoum terra. É sob essa perspectiva, finaliza esta opinião, que devemos
estadodecoisas,nãoinferidoouhipoteticamenteconstruído,masdi- considerarasanalogias,retiradasdamitologia,daarqueologiaede
retamentedado.Há,portanto,umacertatensão,nessacaracterização outros domínios exóticos, às quais Freud recorre ao comunicar a
daatemporalidade,entreosseusaspectosnegativoefenomenológico, “descoberta”daatemporalidade:comelas,Freudestariatentando
e,conformeafirmamosanteriormente,éessatensãooquetemfeito dar a ilusão de que se trata da descrição de um estado de coisas
dotemadaatemporalidadeumtemaaomesmotempoexóticoenão quando, na realidade, nada está sendo descrito. A caracterização
elaboradodateoriafreudiana. negativadaatemporalidadeseriaumdesdobramentotrivialdoale-
Comoobjetivoderesolveressatensão,formou-seumaopinião gadocaráterincognoscíveldoInconsciente,eocaráterfenomeno-
queprocurarepresentarFreudcomoquerendodar-nosaimpres- lógicocomqueFreudacercanãodeveriaserlevadoasério.
são de ter descoberto um outro domínio da realidade, domínio Para mostrar o equívoco presente nessa opinião, basta-nos de-
estetão“outro”que,aprincípio,nãopoderiaserdescritoanãoser monstrar que a afirmação freudiana da atemporalidade não é um
negativamente:Freudestariasecomportandoaquicomoosujeito merodesdobramentodadistinçãoentreprocessospsíquicoscons-
que,querendosepassarpelo“descobridor”deumnovocontinente, cientes e inconscientes; que ela, ao contrário, é obtida e mantida
afirmassequeconstatoulánãohavernemar,nemágua,nemterra. contra e para além dessa distinção. Deveremos, assim, encontrar
Omodocomoaquelaafirmaçãodaatemporalidadesurge,continua Freud fornecendo uma caracterização positiva da atemporalidade,
talopinião,nosfariasuspeitarque,antesdeentende-la,deveríamos pois, conforme vimos, a monótona caracterização negativa desta,
nosentenderprimeiroarespeitodadistinçãoentreprocessospsí- asimples“imutabilidade”ou“indestrutibilidade”dedeterminados
quicosconscienteseinconscientes,jáqueaatemporalidadeédita processospsíquicos,eraoresultadodiretodofatodeestaatempo-
serumatributo,entreoutros,destesúltimos.Segundoessaopinião, ralidade ser pensada como um mero desdobramento da distinção
bastariaconsideraressadistinção,juntamentecomaidéiadaor- entreconscienteeInconsciente.E,umavezdepossedessacaracte-
denaçãoeminentemente(talvez,mesmo,exclusivamente)temporal rizaçãopositiva,estaremosdandocontadocaráterfenomenológico
daconsciência,paraqueaatemporalidadefossefacilmentededu- com que Freud cerca sua afirmação da atemporalidade, e, assim,
zida.Nessecaso,aatemporalidadenãoserianadamaisdoqueum estaremos restituindo o caráter polêmico do desafio que, com ela,
casoparticularetrivialdadistinçãoentreconscienteeinconscien- Freudendereçaa“Kant”.
te. Acrescente-se a isso as inúmeras passagens de Freud, em que
ele afirma serem os processos psíquicos inconscientes apenas um
construto teórico, uma “construção auxiliar”, que não se refere,
nempretendesereferir,anada.Taisprocessosinconscientesseriam
apenasinferidosapartirdosprocessosconscientes,eseriamentre
346 Discurson.362007 ObservaçõessobreotemadaatemporalidadeemFreud,KanteBergson 347
III osaspectosqueelechama,significativamente,de“fenomenológicos”
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dopensamentoobsessivo,afirma:
Acaracterizaçãonegativadaatemporalidadepareciaestarestrei-
tamenteligadaàquiloqueFreudpensavacomoocorrendonahis- Não procurarei empreender, desta vez, uma apreciação psicológi-
teria;desdeaComunicaçãopreliminar,comovimos,arepressão,na cadopensamentoobsessivo.Elatrariaresultadosextraordinariamen-
histeria,comportavadoisaspectosprincipais:aidéiarejeitadaera tevaliososefariamais,paraaclarificaçãodenossoconhecimentoda
excluída da consciência e essa idéia permanecia inalterada no in- natureza do consciente e do inconsciente, do que o estudo da histeria
consciente.Tantoaquelaexclusãocomoestainalterabilidadeeram oudosfenômenoshipnóticos.Seriamuitodesejávelqueosfilósofose
pensadasdeformaabsoluta,eacaracterizaçãodaatemporalidade psicólogos, que desenvolvem suas perspicazes teorias sobre o incons-
não podia ser mais que negativa: era preciso que a idéia existisse cientepor“ouvirdizer”ouapartirdedefiniçõesconvencionais,fossem,
inalteradapelotempo,poisossintomas,quesãoformaspelasquais antes,buscaramaisdecisivaimpressãonofenômenodopensamento
estaidéiaeralembrada,aindaexistiamigualmenteinalteradospelo obsessivo...Mencionareiaqui,apenas,quenaneuroseobsessivaocasio-
tempo,aomesmotempoemqueasformasnãopatológicasdelem- nalmenteosprocessospsíquicosinconscientesirrompemnaconsciênciade
brarpareciamcompletamenteexcluídas.Quandosevoltouparaa forma pura e não distorcida, que tais irrupções podem efetuar-se nos
neuroseobssessiva,ecomoconseqüentedesenvolvimentodanoção maisvariadosestágiosdoprocessodepensamentoinconsciente,equea
deregressão,Freudcomeçouavislumbrarapossibilidadedehaver idéiaobsessiva,nomomentodairrupção,deveserreconhecidaemsua
modificaçõesnoInconsciente(Freud1,vol.VII,p.250;vol.XVIII, maiorpartecomoformaçõeshámuitoexistentes”(grifonosso)(Freud1,
p.199),poisanoçãoderegressãoéconstruídasobreasde“mudan- vol.VII,p.88;vol.X,p.228)
ça”e“desenvolvimento”,esignificaoregressoafasesanterioresde
desenvolvimento,demodoqueumafaseposterior,umavezaban- Essa passagem é muito importante: ao invocar os “filósofos”,
donada,podenãoserrecuperadanovamente(Freud1,vol.XI,p.45; Freuddeixaclarooâmbitopropriamentefilosóficodasimplicações
vol.XIV,p.286).Defato,naprimeiravezemqueusaotermoZeitlo- daquiloque,aseguir,elevaiafirmar.Amaiorrelevânciadoestudo
sigkeit,Freudjáafirmaquetaisprocessospsíquicossãopreservados daneuroseobsessiva,enquantocontrastadaamenorrelevânciado
nãoapenasnaformaemqueforamprimeiramenterecebidos,mas estudodahisteria,noquedizrespeitoaoconhecimentodanatureza
tambémemtodasasformasqueelesadotaramemseusposteriores daconsciência,torna-semaiscompreensívelquandonotamosque,
desenvolvimentos(Freud1,vol.VI,p.274-5).Começamosaperce- emoutrolugardessemesmotexto,Freudafirmaquenarepressão,
ber, assim, que Freud, a respeito da atemporalidade, não se limita realizada mediante regressão, própria às neuroses obsessivas não
mais a afirmar apenas a “indestrutibilidade” ou “inalterabilidade ocorreaamnésiacaracterísticadahisteria,eaidéiatraumáticaper-
pelotempo”dorecalcado;nãoselimitamaisaexcluirtaisprocessos manececonsciente(Freud1,vol.X,p.195-6).Ouseja,parecequeo
psíquicos do domínio daquilo que está sujeito ao tempo, mas em estudodahisteriaacabousendocontaminadopeloambiente,“es-
conexãocomaregressãoeaneuroseobsessiva,aproxima-sedeuma petacularemisterioso”,dosexperimentoshipnóticos,ondeparecia
caracterizaçãopositivadaatemporalidade,comopodemosvernesta haverumaclaraeincisivadistinçãoentreoqueeraeoquenãoera
passagemdeOhomemdosratos,onde,emmeioàsdiscussõessobre conscienteparaopaciente.Tudoistovemcorroboraraprincipale
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surpreendenteafirmaçãodeFreud:essesprocessos“inconscientes” criançanumhomem,entãoaldeiaecriançaperecemedesaparecemna
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irrompem na consciência de forma pura e não distorcida, e aí, na cidadeenohomem[...]Acontecediferentementenodesenvolvimento
consciência, eles se mostram atemporais. Tais processos atempo- psíquico.Aqui,nãosepodedescreveroestadodecoisas,aoqualnãohá
raisperdem,aqui,qualquerconotaçãode“processosinascessíveisà outroquesecompare,anãoseratravésdaafirmaçãodequecadafase
consciência”ede“processosapenasinferidos”.Aoenfatizarquetais dedesenvolvimentoanteriormantém-seconservadaaoladodaposterior
processosirrompemdeforma“puraenãodistorcida”naconsciên- quesurgiuapartirdaanterior.(grifonosso)(Freud1,vol.IX,p.45;vol.
cia,Freudestá,talvezcomoemnenhumoutrolugardesuaobra, XIV,p.286)
pondoemquestãoaquelaque,normalmente,éentendidacomoa
proposição fundamental da psicanálise: a distinção, tanto descri- Essa caracterização positiva da atemporalidade recebe de Freud,
tivacomo,principalmente,sistemática,queacensuraoperaentre emOmal-estarnacivilização,umalongaexposição,quenãopode-
oConscienteeoInconsciente.Eoqueselheapresenta,assim,na mosreproduziraqui;nela,asobrevivênciaepermanênciadopassa-
consciênciasãoprocessospsíquicosatemporais,processosquenão doaoladodosestágiosquesedesenvolveramapartirdeleépensada
apenassãosurpreendentementeantigos,masquetambémapresen- emanalogiacomodesenvolvimentohistóricodacidadedeRoma.
tamdesenvolvimentoseestágiosquepermanecemconjuntamente Freudseesforçaemimaginar,porexemplo,asformasanterioresde
comosestágiosanterioresapartirdosquaissedesenvolveram.Isto umaconstruçãocomocoexistindocomasformasposterioresassu-
restituitodoosentido,todaaimportância,queotemadaatempo- midaspelamesmaconstrução.Veríamos,porexemplo,ummesmo
ralidade tem para Freud, e torna compreensível a sua atitude, no prédiocomovelhoenovo,eistoaomesmotempo.Aofinal,Freud
sentidodequetaltemamereceriaumaconsideraçãofilosófica.Não abandonatodaatentativa:
setrata,naafirmaçãodaatemporalidade,deinferirprocessosque,
porseremsupostosinconscientes,eporsupor-sequeaconsciência Não há, evidentemente, nenhum sentido em imaginar o restante
é,depontaaponta,temporalmenteestruturada,concluiporcarac- da fantasia, ela conduz ao inimaginável e, mesmo, ao absurdo [...] o
terizarnegativamenteosprocessosemquestãocomo“atemporais”; mesmoespaçonãocomportadoisocupantesdiferentes.Nossatentativa
trata-se, sim, de apontar para o fenômeno no qual determinados pareceserumabrincadeiraociosa;elatemapenasumajustificação:ela
processosconscientesapresentam,relativamenteaotempo,caracte- nosmostraquãodistanciadosestamosdedominarasparticularidades
rísticasespeciaisdedesenvolvimentoemudança. davidapsíquicaatravésdarepresentaçãointuitiva.(Freud1,vol.IX,p.
Comefeito,Freud,numasériedepassagens,procuraestabelecer 200-3;vol.XXI,p.66-71)
ascaracterísticasdaquiloquenãopoderíamosdesignardeoutrama-
neiraanãosermedianteanoção,difícil,deum“desenvolvimento Inimaginável e absurda, essa concepção de um desenvolvimen-
atemporal”: toatemporalpareceaFreud,aomesmotempo,tantodifícildeser
desenvolvidacomocheiadepromessasemseusresultados;éassim
Odesenvolvimentopsíquicopossuimesmoumaparticularidadeque que,porúltimo,encontramosFreud,nasNovasconferênciasintro-
nãoseencontraemmaisnenhumoutroprocessodedesenvolvimento. dutórias,lamentandooestadoemquetevededeixaroproblemada
Quandoumaaldeiavaicrescendoesetransformanumacidade,ouuma atemporalidade.“NoIsso”,dizele,
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percebe-se,comsurpresa,aexceçãoaoteoremafilosóficodequeEs- einconsciente,etermostradotambémqueFreudnãoselimitaaca-
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paçoeTemposãoformasnecessáriasdenossosatospsíquicos.NoIsso racterizarnegativamenteaatemporalidade,istoé,queFreudconquis-
nãoseencontraoquecorrespondeàidéiadotempo,nãohánenhum ta,contraeparaalémdaqueladistinção,umacaracterizaçãopositiva
reconhecimento de um transcurso temporal e não há, o que é mais desta.Dessaforma,mostramosqueodesafiodaatemporalidade,que
notávelequeaguardaapreciaçãonopensamentofilosófico,nenhuma Freudlançaàfilosofiaemgeraleàfilosofiade“Kant”emparticular,
alteraçãodosprocessospsíquicospelotranscursodotempo. sótemsentidoseessaatemporalidadefornãoumainferênciaouum
Sempretenhotidodenovoaimpressãodequenóstemosfeitomui- construto teórico, mas algo pertinente ao nível fenomenal mesmo,
topoucouso,paranossateoria,dessefatoindubitavelmenteestabeleci- istoé,setalatemporalidadefordadaàconsciênciamesma.Oqueestá
dodainalterabilidadedorecalcadopelotempo.Aípareceabrir-seum implicadonestacaracterizaçãopositivadaatemporalidade,portanto,
acesso aos mais profundos conhecimentos. Infelizmente, eu também não é a mera inalterabilidade ou indestrutibilidade pelo tempo de
nãofizprogressosnisso.(Freud1,vol.1,p.511;volXXII,p.74) certosprocessospsíquicos,masum“desenvolvimentoatemporal”,ou
seja,umdesenvolvimentoondeosestágiosanteriorespersistemcon-
Notamos, assim, que por “atemporalidade” Freud não entende juntamentecomosestágiosposterioresquesedesenvolveramapartir
apenas a“inalterabilidade”,“indestrutibilidade” etc. de determina- deles.Como,porém,emprestarsentidoaessanossaafirmaçãodeque
dosprocessospsíquicos,mas,maisqueisso,umaespéciededesen- taltipodedesenvolvimentopodeserencontradonaconsciência?
volvimento onde as fases ou estágios anteriores persistem ao lado
ou conjuntamente com as fases ou estágios posteriores derivados
dosprimeiros.Tambémnãosetratamais,eapenas,denegaratais IV
processos qualquer inserção temporal, mas de atribuir-lhes uma
temporalidadeespecial,nãoencontrávelemoutrosprocessosdede- CabeaBergson(3)semdúvida,oméritodeterdesenvolvidoacon-
senvolvimento,ondeosurgimentodeumnovoestágioanulacom- cepçãodeumaduraçãooutemporalidadepura,dandocontaassimda
pletamenteoestágioanterior.Jánãosetratamaisdecomparartal solidariedadeestreitaqueháentreoEu(ouaconsciência)eoTempo,
atemporalidadecomaquiloqueteriaocorridocomPompéia(Freud aomesmotempoemqueprocuradeterminarascaracterísticaspró-
1, vol. X, p. 39-40 e vol. XI, p. 397-8; vol. IX, p. 34 e vol. XXIII p. prias dessa temporalidade, isto é, procura depurá-la de tudo aquilo
260),quepermaneceumeramenteinalteradasobeporcausadoso- que na realidade não lhe é pertinente. No âmbito de uma crítica às
terramento,masdecompará-lacomumacidadecomoRoma,que concepçõesdapsicologiaassociacionista,taiscomoasde“quantidade
possuiumlongopassadohistóricoaindadecertaformapresentee intensiva”ede“estadospsicológicos”,Bergsonprocuramostrarquea
vivo.Porém,teriaFreudrazãoemafirmarquetaldesenvolvimento temporalidadehomogênea,talcomoimplicadanessasconcepções,na
“atemporal”nãoépassíveldeumarepresentaçãointuitiva?Porque consisterealidadenumatransposiçãooutraduçãoindevidadotempo
aconcepçãodetaldesenvolvimentopermaneceuparaFreudtãodi- emespaço.Ouseja,trata-sedemostrarqueaquelasconcepçõessãone-
fícil? cessariamenteconstruídassobreaintuição,nãodotempomesmo,mas
Acreditamostermostradoqueaafirmaçãofreudianadaatempora- doespaço:emrelaçãoà“quantidadeintensiva”,porexemplo,Bergson
lidadenãoéummerodesdobramentodadistinçãoentreconsciente mostraqueamedidaeonúmerosupõemummeiohomogêneoonde
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doiselementosqualitativamenteiguaisaindapossamserapreendidos outrosestados.Emsuma,Bergsonprocuramostrarqueaintuiçãodo
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mostrarcomotalaproximaçãoépossível,gostaríamosdenosreferir
àinteressantíssimaanálisequeFreudrealizadoMoisésdeMichelan-
gelo(1914):demodoacompreendercertosdetalhesdessaestátua(o 1.Ostrabalhosenviadosparapublicaçãodevemserinéditos,conter
modocomoosdedosdamãoestavamcravadosnabarba,aposiçãoda nomáximo40laudas(30linhasx70toques)eobedeceràsnormastéc-
tábuadepedraquecontinhaosmandamentosetc.),Freudimpõe-lhe nicasdaABNT(NB61eNB65).
movimento,eacabareconhecendo,naposiçãoatual,umaespéciede
compromissoentreduasposiçõesimediatamenteanteriores,demodo 2.Osartigosdevemseracompanhadosderesumodeaté100palavras,
queaposiçãoatualcomoqueguardavestígiosdasposiçõesanteriores, emportuguêseeminglês(abstract),palavras-chaveemportuguêseem
como que está sobrecarregada de vestígios do passado.A exposição inglês,ereferênciasbibliográficasemordemalfabética,obedecendoas
freudianadatransiçãoentreastrêsposiçõesémuitomaiscontínua normasdereferênciabibliográficadaABNT(NBR6023).
doqueosdesenhosqueeleintroduz,enessaexposiçãoasdiferentes
posiçõesdoMoisésinterpenetram-semutuamente,elasapresentama 3.Acomissãoexecutivareserva-seodireitodeaceitar,recusaroure-
mesma“interpenetraçãomútua”queeradestaquenaanálisebergso- apresentarooriginalaoautorcomsugestõesdemudança.Osrelatores
nianadaduraçãopura.Aqui,éverdade,nãodizemos,comoBergson, deparecerpermanecerãoemsigilo.
queumaposição“anuncia”ou“prefigura”aposiçãoimediatamente
futura,masqueela“guardavestígios”daposiçãoimediatamentepas-
sada;noentanto,oprocessoéfundamentalmenteomesmo. NotestoContributors
OuroPreto,novembrode2004. 1.Articlesareconsideredontheassumptionthattheyhavenotbeen
published wholly or in part. Contributions should not exceed forty
double-spacepages.
Referênciasbibliográficas 2.Asummaryabstractofupto100words(PortugueseandEnglish)
shouldbeattachedtothearticle,includingkey-words(Portugueseand
1.FREUD,Sigmund.Studienausgabe,FischerTaschenbuchVerlag,Frankfurtam
English)andbibliographyinalphabeticalorder.
Main.–TheStandardEditionoftheCompletePsychologicalWorksofSigmund
Freud.TheHorgartPress/InstituteofPsychoanalisys,Londres,1953-74.
3.Allarticleswillbestrictlyrefereed.
2.ASSOUN,Paul-Laurent.Freud,afilosofiaeosfilósofos,SãoPaulo:Liv.Fran-
ciscoAlves,1978.
3.BERGSON,Henri.Ensaiosobreosdadosimediatosdaconsciência.Lisboa:Edições
70,1988.
Edição JoanaMonteleone
Assistenteeditorial: ClarissaBoraschiMaria
Assistentedeprodução GuilhermeKrollDomingues
Imprensa RodrigoBorgesDelfim
Administração AilaReginadaSilva
Comercial RonaldoCapel
Estagiária MaríliaChaves
Capa,projetográficoediagramação ClarissaBoraschiMaria
Revisão JoséMunizJr.
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