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A REOCUPAÇÃO E O VAZIO DEMOGRÁFICO EM DEBATE: ESTUDOS SOBRE O


MUNICÍPIO DE CAMBARÁ/PR

Autor: Mateus Torelli Fidelis1


Orientador: Marcio Luiz Carreri2

Introdução

Esse presente texto é um estudo vinculado ao projeto de pesquisa História Social do


Nordeste do Paraná. Visa explicitar alguns meios, métodos e possibilidades para pensar a
reocupação (TOMAZI, 1997) e o vazio demográfico (MOTA, 2007) no objeto de análise, ou
seja, no Norte ‘’Pioneiro’’ – nomenclatura esta, que, por sua vez é carregada de
problematizações (CARRERI, 2021). Para tal, o objetivo é realizar uma investigação sobre
como outros estudos se apropriaram dessas concepções para o desenvolvimento e compreensão
de determinado espaço e como podemos reforçá-las por meio dessa exposição sobre a região
nordeste do Estado. Analisando os acervos jornalísticos disponibilizados digitalmente pelo site
da Biblioteca Nacional, optamos pelo levantamento de fontes nos periódicos paranaenses e de
outros Estados próximos, como de São Paulo e até Rio de Janeiro. Assim, são necessários
alguns procedimentos, seja na busca por fontes nas pesquisas no site sobre diversos jornais, seja
no estudo do periódico em si, sobre quem dirige o respectivo jornal e para qual meio, fim e para
qual público as matérias jornalísticas são voltadas. Nessa perspectiva, são essencialmente
importantes para compreender o modo e a situação em que viviam as comunidades indígenas
nesse espaço no começo do século XX, desde que a narrativa memorialista local cambaraense
(PUGAS, 2002; FARIA, 2003), afirma ao contrário, desenhando um ambiente ausente de
presença humana anterior à reocupação, corroborando com o mito do vazio demográfico
Algumas problemáticas, reflexões e possibilidades foram levantadas partindo do estudo
de concepções que ajudaram a visar a historiografia sobre um determinado local com um outro

1
Graduando em História pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP e bolsista pelo PIBIC/Fundação
Araucária mateus.torelli12@hotmail.com
2
Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e professor de História
na Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP carreri@uenp.edu.br
2

viés interpretativo. São problemas que surgem partindo da crítica à chamada historiografia
tradicional, ou seja, aquela narrativa histórica direcionada para um tipo específico de classe: os
“pioneiros’’. Um bom exemplo disso é a tese de Nelson Tomazi. O autor extrai essas
contradições no próprio discurso sobre o Norte do Paraná3. Nesse sentido, surgem concepções
como a reocupação e o vazio demográfico, que, por volta da década de 19904, apareceu para
dar um outro sentido de analisar a história de regiões, espaços e territórios específicos do Norte
do Paraná, além do mais, para realizar uma crítica a produções historiográficas, jornalísticas e
educacionais que visam enfatizar a figura do “pioneiro’’ como principal agente histórico em
dada localidade.
Mas afinal, o que significa reocupação? Que sentido traz o vazio demográfico para a
compreensão de determinado espaço? Como poderíamos nos apropriar dessas concepções para
reinterpretar a “colonização’’ de Cambará-PR, de outros municípios, e até da mesorregião do
Norte “Pioneiro’’? Partindo dessas questões, nosso objetivo será de fazer uma breve síntese
sobre a reocupação e o vazio demográfico, estabelecer um diálogo entre essas noções e como
alguns autores se apropriaram das noções reinterpretando seus espaços ao longo de diferentes
décadas. Buscaremos, mais adiante, elucidar como essas concepções foram fundamentais para
o desenvolvimento da pesquisa sobre a história desse local, município próximo à Jacarezinho e
de fronteira com Ourinhos-SP, sendo separados pelo rio Paranapanema.

3
Segundo o autor (...) discurso "Norte do Paraná" traz consigo um conjunto de idéias e imagens, quase que
formando um bloco fundido e refundido onde a sua simples enunciação faz com que se faça uma identificação
com algumas idéias basilares: progresso, civilização, modernidade, colonização racional, ocupação planejada e
pacífica, riqueza, cafeicultura, pequena propriedade, terra onde se trabalha, pioneirismo, terra roxa, enfim, todo
um conjunto de idéias e imagens construído através de vários anos, mas estruturado, principalmente entre os anos
30 e 50, procurando assim criar uma versão, do ponto de vista de quem domina, para o processo da (re)ocupação
desta região. (TOMAZI, 1997, p. 12)
4
Conforme Wander Proença: “Esses novos lugares sociais - as universidades – influenciaram diretamente a visão
historiográfica a respeito do Paraná. As produções oriundas dessa atmosfera acadêmica, por meio de projetos de
mestrados e doutorados dos professores que buscavam titulação para atender à demanda universitária, abriram um
leque de novas possibilidades de análises e abordagens para a historiografia que ascendia cada vez mais,
participando, juntamente com a virada historiográfica nacional, do processo de construção da cultura histórica,
mesmo que em uma pequena região em relação ao grande país. Como exemplos da primeira fase da produção
desse “lugar social” - Universidades Estaduais paranaenses, com pesquisas realizadas na UFPR, USP, UNICAMP
e UNESP - podem ser citados os seguintes autores e trabalhos: (...) Nelson Dácio Tomazi e “Norte do Paraná:
história e fantasmagorias”; “O Eldorado: representações da política em Londrina”, José Miguel Arias Neto; (...)
“O centro e as margens: boemia e prostituição na “capital mundial do café” (Londrina: 1930-1970)”, Antonio
Paulo Benatti; “As guerras épicas dos kaingang”, Lúcio Tadeu Mota, entre outros’’. (PROENÇA, 2015, p. 3049)
3

Reocupação e Vazio Demográfico: usos e apropriações

No prólogo do citado trabalho de Tomazi (1997) evidencia-se qual o intuito do autor em


utilizar a “reocupação’’ no lugar de “ocupação’’ ao processo de expansão agrária que se
estendeu por boa parte do século XX no norte do Paraná. Segundo o autor:
Inicialmente faço a distinção entre OCUPAÇÃO - o longo caminho percorrido
por povos que ocuparam a região, hoje situada ao norte do estado do Paraná,
desde há milhares de anos e que utilizavam todo este território como espaço
para o desenvolvimento de suas sociedades – e (RE)OCUPAÇÃO - como o
processo que se desenvolveu a partir de meados do século XIX, com a
preocupação de integrar estas terras, consideradas "vazias", ao processo de
valorização do capital ou ao processo de desenvolvimento do capitalismo no
Brasil. (1997, p. 10)

É pertinente a consideração do autor, levando em consideração que os primeiros


ocupantes desse espaço não foram colonos, paulistas, mineiros e os imigrantes, e sim as diversas
sociedades indígenas que desenvolviam suas experiências, cultura e relações de convívio. A
reocupação, nessa perspectiva, deve ser interpretada como um processo de desenvolvimento
que veio “integrar essas terras, consideradas vazias’’ (MOTA, 1992). Em se falando de vazio,
observa-se em seu estudo grande influência da concepção de vazio demográfico5.
Um dos precursores dessa ideia é o Lúcio Tadeu Mota, em sua dissertação. No capítulo
intitulado A Construção do “Vazio Demográfico’’ e a Retirada da Presença Indígena da
História Social do Paraná, defendida em 1992, o autor realiza uma investigação acerca de como
a historiografia do Paraná produziu a partir da década de 1950, com Wilson Martins, na década
de 1960 com os historiadores da Universidade Federal do Paraná, e com outras produções nos
anos posteriores, em como acabaram corroborando à ideia de que o espaço que se compreende
a região norte desse estado era “desabitada’’ antes da chegada dos “novos” ocupantes.
Dentro dessa perspectiva, o texto, se desenvolve em meio a expressões como;
boca do sertão, terras virgens, que sugerem a idéia de um Paraná vazio à
espera da colonização, seja via migrações proporcionadas pelo Estado, pela
ação de companhias colonizadoras, ou até mesmo pelo povoamento
espontâneo. (MOTA, 1992, p. 8)

5
Se referindo à influência, ele ressalta: “Somente muitos anos depois, surgiu outro trabalho significativo sobre a
questão indígena, incluindo os indígenas que habitaram as terras situadas ao norte do estado do Paraná. Este é o
trabalho de Lucio Tadeu Mota (1994) que procurou, em primeiro lugar, analisar e denunciar a construção da idéia
do "vazio demográfico", presente na historiografia paranaense, para depois analisar a presença e a resistência dos
Kaigáng no Paraná, recuperando a memória de luta deste povo”. (1997, p. 291)
4

Liliane da Costa Freitag, em sua tese intitulada Extremo-Oeste Paranaense: história


territorial, região, identidade e (re)ocupação, de 2007, em seu trabalho realizou reflexões sobre
desencadeamentos que foram surgindo a partir da reocupação na região do extremo-oeste do
Paraná, divisa com Argentina, Paraguai e Uruguai. Com o advento de grupos que viriam a
reocupar essa região após 1940, surgiram discursos que enfatizaram a imagem do pioneiro6,
acabando por silenciar as diversidades existentes nesse espaço. A autora se apropria das noções
enfatizadas anteriormente, como:
Em torno desse conceito, porém cabe uma nota: entendemos, como
movimento de (re)ocupação o empreendimento da colonização empresarial
desenvolvida no extremo-oeste paranaense a partir de meados do século XX,
com seus interesses intimamente vinculados à integração do território para
brasilidade. (FREITAG, 2007, p. 96)

E com base no Lucio Tadeu Mota, a autora constata que:


A transformação do espaço produtivo foi a fórmula encontrada para atingir o
tão sonhado progresso. Diversas práticas infra-estruturais tais como, abertura
de estradas e a construção das primeiras casas e estradas serviram como
atrativos aos novos habitantes do território. Conforme constatado por Mota
(1994), a territorialidade instaurada nesse processo de (re)ocupação e os
discursos que dele emanam justificaram a suposta existência do vazio
demográfico, uma vez que negligenciava a presença de nacionais, estrangeiros
e indígenas, antigos habitantes daquele espaço. (1997, p. 98)

Por meio dessas noções, Freitag evidencia as intencionalidades políticas sobre aquela
região, pois para as empresas reocupar “(...) significava incorporar à nação um território
reconhecido como vazio e ali, estabelecer novas vivências (...)’’. Já para o Paraná significava
“(...) receber um solo ocupado, produtivo, mercantilizado, livre dos perigos representados pela
presença maciça de estrangeiros na região’’ (2007, p. 109). Assim, por intermédio com a
reocupação e o vazio demográfico, a autora conclui:
A partir desse ponto de vista, a história regional emerge quando estas
empresas colonizadoras assumem o território. Tudo o que, supostamente teria
ocorrido antes seria considerado "pré-histórico", arcaico e serviria, por

6
Nisso, no que concerne na figura do “pioneiro’’ naquela localidade, afirma: Todavia, enunciados tais como:
“gente laboriosa”, “trabalhadores que amam a terra”, “sujeitos que plantaram cidades”, “pioneiros que derrubaram
matas”, “trabalhadores que plantaram progresso” ou ainda “colonos que plasmaram a civilização”, dentre outros
adjetivos, são elucidativos, pois apesar da imprecisão conceitual dos termos presentes nestas retóricas, tais idéias
esboçam com eloqüência, identidade para sujeitos. Alocuções dessa envergadura são atribuídas a todo migrante
de descendência européia, que por extensão reconhecem-se como laboriosos, pacíficos, econômicos, obstinados,
sacralizando assim, diferenças entre os sujeitos. (FREITAG, 2007, p. 102)
5

contraste, apenas para atingir a pujança, a grandiosidade e o progresso da


"nova sociedade" que da (re)ocupação se instaurava. Neste sentido, o território
estabelecido antes de tal empreendimento colonial representava a antítese da
civilização: notadamente estéril, precisava ser vencido pela “marcha do
progresso”. (2007, p. 109)

Carla Conradi, por sua vez, em O Movimento dos Guarani de Reocupação de 2009, trata
do movimento de reocupação e resistência dos indígenas Guarani no território denominado
Ocoy-Jacutinga, no contexto da construção da Usina Itaipu na década de 1980. Se a reocupação
no fim do século XIX e no decorrer do XX significava o estabelecimento do sistema capitalista
e o advento do símbolo “pioneiro’’, por outro lado, a reocupação (no sentido da autora)
significava a luta e resistência dos Guarani sobre o seu território, que já tinha sido reocupado
pela empresa.
Receber a nova área seria uma forma de criar um novo espaço de negociação
com a Itaipu e a Funai, a luta pelos ideais guarani continuaria. As práticas
seriam, no entanto, construídas a partir da experiência de viver naquele novo
espaço. Estar na reserva permitiria conhecer melhor o outro, a sociedade
nacional, e construir formas de luta para se pensar o amanhã e reocupar o
território de 1500 hectares. (CONRADI, 2009, p. 4695)

Sobre a região centro-norte do Paraná destacamos o texto de Erika Ferreira, em que


analisa os mitos da Companhia de Terras do Norte do Paraná (CTNP) no que diz respeito à
reocupação de Apucarana, cidade próxima à Londrina. Nesse contexto, o empreendimento dado
pela a autora acerca dessa concepção sobre o local de análise seria a partir da investigação sobre
a Companhia de Terras, as interferências inglesas nas negociações e também sobre o discurso
criado a partir desse momento7. Nisso:
Apucarana foi projetada em 1934. Idealmente, a CTNP pretendia estabelecer
cidades maiores com mais ou menos 20 mil habitantes distantes 100 km uma
da outra, sendo estas abastecidas por povoados denominados patrimônios de
até 5 mil habitantes. Segundo Maria do Carmo Carvalho Faria em seu artigo
“Apucarana – Processo de Ocupação e Colonização” (2014, p. 179), as
cidades projetadas seriam Londrina, Maringá, Cianorte, e Umuarama e os

7
Sobre essa parte, a autora elabora uma síntese, expressando: “No início da colonização, o grupo financeiro de
Londres não tinha por meta lotear e vender a terra na forma da pequena propriedade, mas a de cultivar o algodão
na forma do latifúndio. Porém, essa iniciativa, como vimos, foi frustrada pela elite paranaense que se opôs ao
projeto da companhia em trazer Assírios do Iraque para trabalhar nas lavouras algodoeiras. Com isso, os ingleses
mudaram seus planos iniciais. Em vez do empreendimento agrícola nas formas do latifúndio e da monocultura
algodoeira, decidiram, ao contrário, partir para o ramo imobiliário, loteando e vendendo aquelas terras. E mesmo
assim, a ideia inicial era vendê-las em grandes lotes para atender a demanda de fazendeiros mineiros e paulistas
que queriam expandir seus investimentos agropecuários para o norte do Paraná.’’ (2015, p. 3403)
6

patrimônios “Apucarana, Cambé, Rolândia, Arapongas, Jandaia do Sul, entre


outros”. (FERREIRA, 2015, p. 3404)

Em uma perspectiva semelhante, se tratando da cidade Ivatuba-PR que integra a região


metropolitana de Maringá, João Rodrigues (2016) compreende a reocupação dessa cidade por
volta da década de 1930, juntamente com o estabelecimento da Companhia de Terras na região.
Além disso, nos atenta para a perspectiva do vazio demográfico, enfatizando a presença dos
primeiros ocupantes dessas terras. Segundo o autor:
Podemos considerar que a fundação da cidade de Ivatuba está vinculada ao
processo de re-ocupação do Norte do Paraná. O norte paranaense, conforme
já apontam consistentes pesquisas sobre o tema, já era local de ocupação
humana há muito tempo. Conforme aponta Mota, o lugar já era ocupado por
populações indígenas há cerca de 8 mil anos, podendo mesmo chegar a 13 mil
anos (MOTA, 2005). A região também passou por expedições de
reconhecimento militar e reduções jesuíticas ao longo do tempo, chegando ao
século 20 com algumas áreas ocupadas por agricultores. Entretanto, a partir
da década de 1930, passa por um processo de parcelamento, comercialização
e ocupação do solo de modo mais ofensivo, a chamada ocupação capitalista.
A partir desta década, com a atuação de companhias de colonização, entre elas
a Companhia de Terras Norte do Paraná (C.T.N.P.), que viria a se tornar a
Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (C.M.N.P.), em meados de 1940.
(RODRIGUES, 2016, p. 5)

Na região Norte “Pioneiro’’ do Paraná, podemos encontrar a concepção em estudos na


área de História da Educação, como no artigo desenvolvido pelo Flávio Ruckstadter e Vanessa
Ruckstadter sobre os a criação de Ginásios nos anos de 1938 a 1961. Problematizando essa
criação na região nordeste do Paraná, nos atesta que “(...) o processo de criação de escolas de
nível primário e secundário deve ser investigado a partir da crescente urbanização em
decorrência do movimento de reocupação das terras desde as primeiras décadas do século XX
(RUCKSTADTER & RUCKSTADTER, 2022, p. 628)’’.
Na perspectiva da história das instituições escolares, na dissertação de Ronaldo Cunha
sobre o processo de fundação do Colégio Nossa Senhora das Graças, compreende – com base
no Tomazi (1997) – a história de Cambará partindo da concepção de reocupação e vazio
demográfico nos atentando para os primeiros habitantes desse espaço, afirmando que “vale
lembrar que as terras que hoje fazem parte do município de Cambará e região não eram
desabitadas. Desde muito tempo eram povoadas por indígenas (...)’’ (CUNHA, 2021, p. 67).
Porém, mesmo que não seja o objetivo do autor na sua pesquisa, se falando do contexto histórico
7

dessa cidade, cabe indagar sobre como foi o processo de repovoamento – especificamente -
nessa localidade (no que condiz na relação entre os indígenas, posseiros e os reocupantes).
Destacando a reocupação e o vazio demográfico8, confirmamos que são concepções
basilares e fundamentais para reinterpretar a história de algumas regiões do Paraná,
evidenciando a contradição do “pioneiro’’ e os ocultamentos históricos que foram decorrentes
desse momento que vai demarcando localidades e impondo territórios no espaço em que se
encontra o Paraná; em um caso específico, vimos a reocupação sendo apropriada para a
interpretação da resistência indígena sobre seu território na década de 1980 se falando da
instalação da Usina Itaipu (Conradi, 2009).
Podemos constatar que o uso e a apropriação dessas noções, é utilizada e reutilizada em
diversos estudos, mesmo que não tenha o mesmo sentido e nem o mesmo recorte
historiográfico. O debate entre essas concepções surge a partir da dialogicidade que elas trazem
para a compreensão dos discursos, dos apagamentos, da exploração, da violência contra as
populações indígenas e sertanejas, junto com o ocultamento de sua presença na história do
Paraná (MOTA, 1992). Com base na reocupação e o vazio demográfico, evidencia-se a
presença indígena nesse espaço e ao mesmo tempo contrapõe-se a narrativa tradicional da
cidade de Cambará, que carrega consigo a idealização da figura do “pioneiro’’ de um lado e do
outro os discursos que corroboram para a imagem de um espaço “desocupado”. Assim, tivemos
que recorrer para jornais da época que nos ajudaram a contextualizar esse período de outra
maneira.

Cambará e as evidências de um local ocupado

8
Há ainda exemplos sobre o mito do vazio demográfico em compreensão para outras localidades do Paraná, como
no caso da região sudoeste. Cada espaço, na soma das relações sociais que ali se estabelecem, trazem consigo suas
próprias especificidades. Estudando o nordeste do Paraná e até outras regiões percebemos que após a reocupação
territorial há o advento da figura considerada “pioneira”, no sentido dos paulistas e mineiros. Já nos estudos de
Ronaldo Zatta, na região sudoeste, partindo da “colonização oficial” com a criação da Colônia Agrícola General
Ozório (CANGO) em 1943, enfatiza que a figura privilegiada na narrativa histórica são os catarinenses e gaúchos.
A intitulação de cunho pretencioso “pioneiro” não é algo exclusivamente voltada à análise dos paulistas e mineiros
que vinham reocupar o espaço ao norte do Paraná, mas também era voltada para populações localizadas no sul
desse país que vinham reocupar os locais que compreende o sudoeste desse Estado. Ver: ZATTA, Ronaldo. A
colonização oficial do sudoeste paranaense e o mito do “vazio demográfico”. XV Encontro Regional de História:
Curitiba, 2016.
8

Seguindo a perspectiva da historiografia tradicional, a história da cidade tem como


marco inicial a data de 1904, com o estabelecimento de Alexandre Domingos Caetano, que
segundo a autora Alba Pugas “(...) chegou em Cambará num carro de bois e se estabeleceu às
margens do rio Alambari, próximo a uma aldeia de índios, de índole pacífica, com os quais
manteve um bom relacionamento (...)’’ (2002, p. 16). Consideramos que a autora compreende
a história dessa localidade partindo da visão de mundo do colonizador, pois a partir dela não há
uma indagação sobre a presença de comunidades indígenas antes e depois de 1904.
Consequentemente, no contexto das frentes de expansão, surge a figura do Major Antônio
Barbosa Ferraz Junior, que após vender sua fazenda de café em Ribeirão Preto, realiza a compra
de terras para o estabelecimento de sua fazenda nesse espaço entre os anos de 1908 e 1910. A
figura desse grande proprietário deixou muitas marcas nessa região no contexto econômico,
político e social, vindo a ser o primeiro prefeito da cidade em 1924 (no mesmo ano que Cambará
é decretado como município por lei).
Com base no vazio demográfico, indagamos sobre a presença indígena no espaço que
compreende a cidade de Cambará no contexto da reocupação territorial, como também,
buscamos pensar sobre sua existência em outras localidades da região nordeste do Paraná.
Podemos estudar sobre qual era o estado das populações indígenas com os posseiros, e além do
mais, as suas relações com o reocupante. Seguindo a segunda parte do livro de Alba Pugas,
vários relatos dos “pioneiros’’ reafirmam que quando chegaram nessa localidade não havia
“nada’’, só havia “mato’’9.
Com base em Nelson Tomazi, Lúcio Mota e outros pesquisadores(as)10, podemos
afirmar que essas expressões visam ocultar a presença indígena e sertaneja nesse espaço,
corroborando para a criação de um tipo narrativo que concerne ao interesse de classe dos
“pioneiros’’ enquanto principais sujeitos históricos, pois os mesmos não consideravam esses
grupos como parte de seu estilo de vida “civilizado’’ ou “moderno’’.
Em se falando de vazio demográfico, surge como questão: como poderíamos nos
contrapor com evidência(s) ao discurso do “pioneiro’’ e assim, reforçar a concepção da

9
Para maior aproximação sobre esses relatos organizados pela Alba Pugas, ler a segunda parte do livro PUGAS,
Alba. De Alambari a Cambará: um resgate histórico. Ed. Iara Artes Gráficas LTDA: Cambará, 2002.
10
Tais como citados anteriormente como Carreri (2021), Freitag (2007), Rodrigues (2016) e etc.
9

reocupação? Em o jornal O Paiz11, do Rio de Janeiro, em um telegrama do inspetor Ozório,


relatando na seção Proteção aos índios, informa:
“Salto Grande, 10 – Visitamos aldeias Guaranys e Cayuás existentes nas
proximidades da comarca de Jacarezinho. Todas estão em satisfatória
prosperidade. Auxilliado pelo engenheiro Pereira Barreto, conseguimos
batelão para descer o Paranapanema com destino a S. Jeronymo. (OZÓRIO,
1911, p.4)

Essa informação, extraída da correspondência do Ozório, se torna importante para


localizar a população indígena Guarany e Cayuá nesse espaço, nas “proximidades da comarca
de Jacarezinho”. Ainda nesse periódico nesse mesmo ano, há a reportagem intitulada Tentativa
e Massacre aos Indios, se referindo para região nordeste do Estado e com os seguintes tópicos:
“cadáver de uma índia encontrado em plena matta virgem – inquérito feito”. Nisso, segue o
jornal:
Ficou apurado que quatorze indivíduos armados de Santo Antônio da Platina,
às mattas onde vivem os índios “coroados’’, com o propósito deliberado de
massacra-los, tendo a sinistra expedição se demorado cinco dias nas suas
correrias, dando descarga contra os infelizes selvícolas.
Em plena matta virgem foi encontrado o cadáver insepulto de uma índia em
adiantado estado de putrefação. Affirmam algumas testemunhas que se trata
de uma índia que morrera de typho-malaria, moléstia reinante nos referidos
rios. Mas não é de duvidar que seja uma victima dos terríveis “bugreiros’’ (...).
(O PAIZ, 1911, p. 6)

Em seguida, a matéria irá prosseguir afirmando que a população de Jacarezinho se


encontrava aterrorizada com tal situação. Mas tal apontamento é generalista, pois quando se
fala da população em si, não é direcionada à população indígena e posseira daquela região, mas
aos novos reocupantes que vinham desenvolvendo relações sociais ditas “civilizadas”. Através
desses dois recortes jornalísticos, podemos notar a presença indígena nesse espaço em duas
condições: por meio do seu reagrupamento próximo a Jacarezinho12; e também nos conflitos

11
Esses periódicos estão disponibilizados digitalmente no site da Biblioteca Nacional na parte da Hemeroteca
Digital. Além de O Paiz, encontramos outros que podem servir como base para a contextualização das relações
entre os seres, a terra e o Estado no nordeste do Paraná. Dentre esses jornais estão: Dezenove de Dezembro; Diário
da Tarde; A República (órgão do Partido Republicano Paranaense); O Commercio; O Dia; O Estado do Paraná.
Fora do Paraná, podemos citar: O Pharol (Minas Gerais); A Imprensa, Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil, Jornal
do Commercio, O Fluminense, O Malho, O Paiz e O Puritano (Rio de Janeiro); Gazeta de Joinville (Santa
Catarina); e por fim, Correio do Sertão (São Paulo).
12
Onde também poderia ser incluída a cidade de Cambará, ou (compreendendo o período de 1911) a Villa
Alambary.
10

contra os bugreiros, como elucidado na citação anterior. Essa fonte jornalística acaba sendo
frutífera para a compreensão dessas condições em meio à reocupação. No caso de Cambará, a
evidência da presença indígena é notável, como por exemplo na toponímia do rio Alambari,
que, dado pelos indígenas Guarani, se torna um meio para explicitar sua passagem e presença
naquela localidade13.
Contudo, podemos perceber a diversidade indígena nessa localidade, como no caso da
primeira citação em que o jornal se refere aos Guarani, e na segunda citação, aos Kaingang.
Portanto, compreendemos o espaço de Cambará como um local que está em constante
movimento no início do século XX, desde que os indígenas e os sertanejos estavam sendo
empurrados pela frente de expansão, e ao mesmo tempo pela frente pioneira14 resultando em
relações conflituosas, tanto com o posseiro como com os “civilizados’’. Assim, confirmamos
também que o espaço não estava ausente de presença humana, ao contrário do que a
historiografia tradicional cambaraense (PUGAS, 2002; FARIA; 200115) dão a entender.

REFERÊNCIAS

CARRERI, M. L. O ‘’Norte Pioneiro’’ do Paraná: região, modernização e dominação.


ANPUH-Brasil – 31° Simpósio Nacional de História. Rio de Janeiro, 2021.
CONRADI, C. C. N. O movimento dos Guarani de reocupação e recuperação de seus
territórios no oeste do Paraná. IV Congresso Internacional de História: Maringá, 2009.

13
Para a compreensão do patrimônio Alambari e as representações indígenas contidas na cidade de Cambará, ver:
FIDELIS, Mateus Torelli. Reocupação do Norte Pioneiro do Paraná: o caso de Cambará, Alambary e os indígenas.
Revista Angelus Novus, v. 13, n. 18, p. 196003, 2002. https://www.revistas.usp.br/ran/article/view/196003. Acesso
em: 10 ago. 2022.
14
Para a compreensão das frentes que vinham reocupando esse espaço, consultar MARTINS, José de Souza. O
tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e
frente pioneira. Tempo Social, São Paulo, p. 25-70, 1996, p. 32.
15
Segue um exemplo da interpretação histórica da autora de cunho memorialístico sobre Cambará: “Histórico –
As origens de Cambará se mesclam com as de Jacarézinho e Tomazina. Juntos, estes três municípios formaram
nos seus primórdios, uma verdadeira “ponta de lança” para aquilo que seria o grande desenvolvimento colonizador
em terras paranaenses, a partir dos anos trinta. A excepcional qualidade da terra, foi de fato, o que atraiu para a
região os primeiros moradores que se tem notícia. Em 1904, Francisco Moreira e Alexandre Domingos Caetano
(...) se estabeleceram às margens do Rio Alambari (...). Quando tudo ainda era a mais pura floresta, se
estabeleceram no incipiente povoado as famílias de Vigilato Barbosa, José Soares (Zé Pechinha), Francisco Lopes,
João Pires, José de Paula Garcia e tantos outros pioneiros de real valor (...). As pessoas é que fazem a história,
seguindo esta máxima, os povoadores de ALAMBARI não cruzaram os braços e deitaram o mato ao chão e na
terra as sementes de feijão, arroz e milho, entremeando o quadrilátero cafeeiro (...)”. (FARIA, 2001, p. 6) (Grifos
do autor)
11

CUNHA, R. S. O processo de fundação do Colégio Nossa Senhora das Graças na cidade de


Cambará/PR (1950-1955): política, fé e educação. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Estadual do Norte do Paraná - Jacarezinho, 2021.
FARIA, A. A. Alma da Terra Cambará: Portal de Ouro do Norte Pioneiro. Curitiba: Opta
Gráfica e Editora, 2001.
FERREIRA, E. L. Histórias e mitos da colonização do Norte do Paraná e do desenvolvimento
de Apucarana. VII Congresso Internacional de História: Maringá, 2015.
FIDELIS, Mateus Torelli. Reocupação do Norte Pioneiro do Paraná: o caso de Cambará,
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