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A Festa de São Benedito começou a ser realizada a partir de uma promessa feita na
cidade de Alcântara, Maranhão. A migração maranhense em fins do século XIX possibilitou o
deslocamento do festejo para o Amazonas. Os primeiros a chegar à região foram Felipe
Beckman e sua esposa Maroca Beckman, que vieram acompanhados de uma amiga da família
Maria Severa Nascimento Fonseca e seus três filhos: Manoel, Antão e Raimundo, que eram
considerados como filhos por Felipe.
Em uma das versões acerca da origem da festa Felipe Beckman teria prometido que se
ficasse isento dos arranhões de um gato doido, realizaria o festejo em honras ao santo preto 2.
Essa versão foi apresentada na etnografia produzida por Mario Ypiranga Monteiro em Cultos
de Santos & festas profanos religiosas em 1979 e publicada em 1983, essa perspectiva foi
reafirmada na etnografia do festejo realizada por Jamily Souza da Silva em 2010, que é
organizadora da festa no presente.
“(...) assim como não há uma História imóvel, também não há uma festa imóvel. A
festa na longa duração, assim como a podemos analisar através dos séculos, não é
uma estrutura fixa, mas um continuum de mutações, de transições, de inclusões com
uma das mãos e afastamos com a outra” (VOVELLE, 1987: 281).
Esses aspectos da religiosidade colonial também podem ter continuidade nas festas
religiosas do tempo presente. Todavia, atualmente há uma compreensão mais ampla em
relação aos significados das festas e suas estruturações, que envolvem toda a dimensão
experiência cotidiana. No estudo da Festa de São Benedito, uma questão significativa a
considerar é que a festa se originou do encontro entre as práticas católicas e as religiões de
matrizes africanas – o que pode ser caracterizado como hibridismo cultural.
A devoção a São Benedito possuía esse vínculo sincrético que envolvia os rituais de
candomblés. O relacionamento entre essas duas esferas trouxe desdobramentos significativos
na festa do Santo Preto, nos discursos e hierarquias que a enquadraram. Com a chegada da
colônia portuguesa em 1940 e dos capuchinhos que trouxeram a devoção de Nossa Senhora
de Fátima no bairro da Praça 14 de Janeiro houve um choque de culturas que gerou disputas
no campo simbólico e material do bairro. De um lado havia São Benedito, um Santo Preto,
que seria o percussor na vida das comunidades negras instaladas desde a fundação do bairro;
de outro Nossa Senhora de Fátima, uma santa branca, que seria o símbolo devocional dos
portugueses recém-instalados.
São Benedito, Santo Elesbão e Santa Efigênia (ou Ifigênia) fazem parte do rol de
santos pretos que foram promovidos e incorporados por africanos e afrodescendentes em suas
devoções5. A identificação com os santos de cor foi fundamental para sua aceitação por esses
3
SOUZA, Marina de Mello e. “Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisis, uma reflexão sobre a
miscigenação cultural”. Afro-Ásia. Nº 28, 2002, p.128
4
Expressão utilizada por Marina de Mello e Souza para explicar a incorporação e ressignificação do catolicismo
por africanos
5
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. “Devoção e identidades: significados do culto de Santo Elesbão e
Santa Efigênia no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais no Setecentos”. TOPOI. V. 7, Nº. 12, jan.-jun/2006, p.61
4
indivíduos, que passaram a manifestar suas crenças nas festas profano-religiosas através das
danças, requebros e batuques. A adoção de formas ibéricas e católicas nas devoções negras
possibilitou disfarçar a religiosidade africana, seja através da incorporação dos santos pretos,
da coroação de reis negros, da formação de irmandades negras e do festejar através de danças
e requebros, o catolicismo branco progressivamente se enegreceu, ampliando os espaços de
protagonismo desses sujeitos6.
6
Ideia utilizada por Marina de Mello e Souza para explicar a permissão às práticas mais próximas ao
catolicismo. Há uma diferenciação entre os calundus, os batuques que eram duramente perseguidos pelas
autoridades e os cortejos e danças na coroação de reis negros que eram acompanhados pelo padre nas festas em
torno dos santos padroeiros.
7
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Cultos de Santos & festas profanos religiosas. Manaus: Imprensa Oficial, 1983.
P. 233.
8
Segundo o relato dos festeiros, o mastro significa a ligação entre o céu e a terra, seguem-se várias etapas até o
encerramento oficial que acontece com a festa do “arranca-toco” que é realizada devido o aniversário de Maria
de Lourdes Fonseca, a “Tia Lurdinha”, que foi uma das coordenadoras do festejo. Nessa ocasião há a última
noite de oração e o resto do mastro é retirado.
5
Urbano pela Fundação Palmares. As notícias referentes a Festa de São Benedito e outros
símbolos do bairro consagrados pelo órgão de comunicação normalmente apareceram com
maior frequência no dia do aniversário da Praça 14 de Janeiro. A partir dos periódicos
coletados, pode-se analisar que inicialmente a narrativa da imprensa apresentou a
homogeneização dos elementos simbólicos que compunham o bairro, de que faziam parte os
maranhenses devotos de São Benedito, a Igreja Nossa Senhora de Fátima e a Escola de Samba
Vitória Régia.9
9
: A crítica, nº11.515. Manaus, 14 de janeiro de 1983/A crítica, nº 12.682. Manaus, 14 de janeiro de 1986.
10
Jornal A crítica, nº11.515. Manaus, 14 de janeiro de 1983.
6
marginal, dessa forma, o reconhecimento simbólico foi atribuído à devoção de Nossa Senhora
de Fátima.11
11
A crítica, nº 14.313. Manaus, 14 de janeiro de 1990/ A crítica, nº 15.349. Manaus, 14 de janeiro de 1993/ A
crítica, nº 17.238. Manaus, 14 de janeiro de 1999.
12
Jornal A crítica, nº 15.349. Manaus, 14 de janeiro de 1993.
13
Ibidem.
7
pela imprensa. A devoção de São Benedito parece ser até coadjuvante de uma história que
inaugurou com a chegada dos maranhenses no local. Há uma hierarquização das
religiosidades do bairro que colocou Nossa Senhora de Fátima no topo e simultaneamente
deslocou a devoção ao santo preto para um patamar inferior.
Apresenta-se uma suposta “passagem” para uma festa mais catolizada, colocando-se
em um patamar “mais cristão”. Apesar de ressaltar uma resistência da devoção a São Benedito
o discurso do jornal demonstrou o caráter frágil das religiosidades negras que pareciam
desaparecer com a chegada do progresso e a morte dos mais velhos responsáveis pela tradição
festivo-religiosa.15Ainda que os batuques e cultos afro-brasileiros não existam mais, deixaram
sua herança aos remanescentes no quilombo, que pode não ser visualizada materialmente, mas
espiritualmente. Alguns aspectos como o mastro e as comidas afro-brasileiras evidenciam
continuidades da religiosidade, do universo mental e cotidiano africano.
As religiosidades negras não deixaram de ser realizadas simplesmente por que não
havia a presença dos mais antigos que estavam à frente dos rituais de candomblé. Houve uma
pressão que foi criada pela igreja e apoiada pela imprensa em invisibilizar e dominar esses
ritos, que se distanciavam daquilo que era enxergado como o “verdadeiro catolicismo” ou
catolicismo puro. Essa estratégia abalou a estruturação da festa que progressivamente se
catolizou.
14
A respeito da orientação racista do jornal foi apresentada uma charge no A crítica associando a figura de um
sambista a um macaco na edição comemorativa do aniversário da Praça 14 de Janeiro. Verificar em: A crítica,
nº15.001. Manaus, 14 de janeiro de 1992.
15
A crítica nº 13.760. Manaus, 14 de janeiro de 1989.
8
africanas nas etapas festivas, nas rezas e espiritualidades dos remanescentes de quilombo.
Com o movimento de catolização da Festa de São Benedito houve uma abertura na sociedade
que proporcionou uma maior visibilidade ao festejo, inclusive através da imprensa.16
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Fontes documentais
1. Literatura de referência
BRASIL. Portaria Nº 104, de 23 de setembro de 2014. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
24 set. 2014. Disponível em URL: < https://www.jusbrasil.com.br/diarios/77122315/dou-
secao-1-24-09-2014-pg-21> Acesso em 05 set. 2017.
MATTOS, Hebe e ABREU, Martha. Festas, patrimônio cultural e identidade negra. Rio de
Janeiro: 1888, 2011.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Cultos de Santos & festas profanos religiosas. Manaus,
Imprensa Oficial, 1983.
PRANDI, Reginaldo. As Religiões negras no Brasil para uma sociologia dos cultos afro-
brasileiros. Revista USP, São Paulo (28): 64-83, Dezembro/Fevereiro 95/96.
PRIORE, Mary Del. Festas e Utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 2002.
SILVA, Jamilly Souza. A festa de São Benedito no bairro da praça 14. In: SAMPAIO,
Patricia (Org.) O fim do silêncio: presença negra na Amazônia. Belém: Editora Açaí/ CNPq,
2011.
SOUZA, Marina de Mello e. “Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisis, uma reflexão
sobre a miscigenação cultural”. Afro-Ásia. Nº 28, 2002.