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Resumo: o artigo busca apresentar a trajetória dos contatos diplomáticos entre congoleses
com portugueses, holandeses, espanhóis e a Santa Sé entre os anos de 1482 a 1665. Este
processo de aproximação deste povo africano com os europeus levaram a assimilação
de elementos do campo simbólico, político e religioso do Velho Mundo. Istomostra que
antes de ser apenas um fornecedor de mão de obra cativa para os impérios coloniais da
América o continente africano possui sua dinâmica econômica, social e política próprias.
A
presença dos povos da África na história do Brasil, geralmente, está relacionada ao conjuntu-
rado abastecimento de força de trabalho: sua organização, logística e dinâmica mercadológica.
Dados quantitativos quanto ao comércio de pessoas para trabalho escravo, todavia, não são
capazes de expressar a amplitude e a relevância das tradições, valores, conhecimentos, costumes
O REINO DO CONGO
As populações congolesas se localizam na parte ocidental da África Central ao sul das flores-
tas equatoriais do centro do continente, ao redor da foz do rio Zaire1, em terras de relevo geralmente
baixo com pontos contendo florestas densas e clima úmido, ocupando o espaço das atuais províncias
de Uíge e Zaire no noroeste angolano (OGOT, 2012; WHEELER; PÉLISSIER, 2012).
O Reino do Congo tem suas origens nos agricultores falantes de língua banto que habitavam a
parte ocidental do continente africano instalados próximos a foz do rio Zaire desde, aproximadamente,
400 a.C. Por volta do século II e V da Era Cristã a região assiste a chegada de outros povos falantes de
língua banto, criadores de gado, vindos do oriente. Daí as organizações sociopolíticas tornaram-se mais
complexas, e chefias formaram-se entre o oceano e o rio Zaire (OGOT, 2012). A etnia congo é formado
por outros seis grupos: Kishicongo-muxicongo, Sosso, Pombo, Sorongo e Zombo que se caracterizam
por falarem o idioma Quicongo. Os maiores grupos étnicos eram os Kishicongo-muxicongo que por
volta do século XIV formavam a maior parte da população do Reino (WHEELER; PÉLISSIER, 2012).
Dentre as menções mais antigas existentes na literatura voltada para ciências humanas e sociais
produzidas no Brasil sobre o tema, existe a indicação da presença da etnia congo no contingente de des-
cendentes afro-brasileiros. O médico e antropólogo Nina Rodrigues, em 1932, ao arrolar as composições
etno-linguísticas das populações africanas trazidas para o Brasil, faz menção ao grupo congo-angola
dentro do tronco Banto (RODRIGUES, 1933). Na década seguinte, o psiquiatra Arthur Ramos reafirma
a posição dos congo-angolanos dentro do tronco banto e postula a proeminência destes quanto à tota-
lidade dos trabalhadores africanos presentes no Brasil no século XIX (RAMOS, 1946).
OS PRIMEIROS CONTATOS
Em meio a essa série de conflitos e ocupações que quase levaram o Reino do Congo à extinção,
a nova elite dirigente congolesa busca ampliar seu leque de possibilidades de articulação internacional
buscando fazer frente às tentativas de cooptação lusitanas. Dentre elas merece destaque a procura
pelo seu pleno reconhecimento como um país cristão junto às demais nações europeias.O Manicongo
Mpangu-a-Nimi Lukeni Iua Mvemba, ou D. Álvaro II que reinou durante 1587 a 1613, envia uma
embaixada em 1605 aos Estados Pontifícios sob o reinado do Papa Paulo V. O enviado à Roma era
seu primo António Manuel – Marquês de Vunta5 (AMARAL, 1997). Ele é descrito como “homem de
cerca de trinta e três anos, negro, com pouca barba, mas de comportamento nobre e grave, e sobretudo
pio e devoto; que falava em língua portuguesa e castelhana bastante bem” (AMARAL, 1997, p. 04).
O envio de embaixadas era visto como um perigo por parte das autoridades lisboetas – já
mergulhadas na União Ibérica. Após três anos de viagem e escalas mais ou menos longas na colônia
portuguesa na América, em Portugal e Espanha e após vários percalços a missão chegou a Roma.
A incumbência de Funta era a de transmitir ao papa a adesão do Congo a Igreja Católica e solicitar
autorização para que o rei congolês pudesse nomear os bispos locais, à semelhança do rei português.
Ao saber da chegada de um emissário de terras tão distantes o papa prepara uma recepção vultosa ao
embaixador e demonstra bastante interesse como na expansão da fé católica nas terras da África e
em estabelecer diálogos diretos entre a Santa Sé e o rei dos congoleses. Antônio Manuel, marquês
de Funta, veio a falecer pouco após sua chegada a Roma. Por ordem do Papa, foi sepultado na Ba-
sílica de Santa Maria Maior. Essa demonstração de interesses no contato direto entre Roma e São
Salvador diminuiria a dependência dos congoleses da coroa portuguesa quanto a sua relação com o
restante da cristandade (AMARAL, 1997).
Há ainda outro episódio de um embaixador congolês em Roma em 1682, já próximo da data
de extinção do Reino dos Congos pelos portugueses, chamado Lourenço da Silva Mendonça que
apresenta cartas ao papa Inocêncio XI. Suas credenciais o naturalizavam como nascido na América
Portuguesa e ainda o ligavam aos reis do congo e de angola. Ele questionava a legitimidade da es-
cravização de africanos convertidos ao cristianismo e a seus descendentes. A exposição de Lourenço
considerava como “diabólico” o abuso da instituição da escravidão, relatava os malefícios físicos e
espirituais que o cativeiro ocasionava e pedia a condenação papal para a prática e a excomunhão em
caso de reincidência (GRAY, 1987).
Estas iniciativas congolesas junto à corte papal devem ser entendidas dentro de um contexto
de busca pela reconquista de sua hegemonia na região centro oeste africana dominado pela presença
europeia e mesmo em meio aos conflitos pelos quais o país ainda passava buscar uma forma de ad-
quirir pelo reconhecimento exterior, condições de romper e seu isolamento e arregimentar a sede da
Igreja Católica como uma possível aliada.
A utilização estratégica de elementos do campo simbólico e religioso para se fazer ouvir interna-
cionalmente mostram o quanto o espaço atlântico possibilitou a criação e reconstrução de comunidades,
ideias e valores envolvidos numa dinâmica em que nenhuma das partes pode ser considerada isolada-
mente (RUSSEL-WOOD, 1999). Dentro de um processo histórico tido, até agora, como eminentemente
português há a interferência de outros atores não diretamente relacionados, como a Santa Sé.
No entanto, esse relativo sucesso da missão congolesa junto a Santa Sé foi precedido por dificul-
dades em suas etapas preliminares. A mesma missão diplomática enviada por Álvaro II, que saíra do
Congo em direção a Europa de 1605 tinha também a presença de D. Garcia Baptista, como embaixador
Notas
1 Para facilitar a compreensão do tema tratado e evitar a confusão causada pela ampla utilização do termo
“Congo”, o rio do mesmo nome será chamado de Zaire, forma corrente no século XIX. O rio Congo, Zaire
ou Nzaidi nasce na região dos Grandes Lagos, sendo formado pelos rios Lualaba e Luapula. É o segundo
maior rio do continente africano, com 4600 quilômetros de extensão (LOPES, 2011).
2 Conforme Wheeler; Pélissier (2012), Manicongo é o título dado ao rei do Congo.
3 Conforme Ortiz (2000), transculturação é o fenômeno que envolve a adoção de formas culturais de um
grupo por outro. Esta transição se dá em diversos níveis, não desprovido de conflitos, assim a cultura alheia
se impõe sobre a originária.
4 Jaga é a denominação genérica dada, no século XVII, a grupos nômades de diversas etnias, especialmente
os imbangalas. Esta denominação mudo através dos séculos, entre elas agags, cembas, gallas dentre outros
(LOPES, 2011).
5 É possível encontrar as seguintes grafias: “Funta” ou ainda Nfunda.
Referências
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