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Buraquinhos por Onde Passar o Movimento: entrevista sobre téc-


nicas, criação e ensino de dança com Diana Gilardenghi

Space Where the Movements Can Pass Through: interview with Diana Gi-
lardenghi on dance techniques, on dance creation and on dance teaching

Giorgio Zimann Gislon


Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, Florianópolis/SC, Brasil
E-mail: giorgiogislon@gmail.com

Resumo Abstract

Nesta entrevista, Diana Gilardenghi discorre sobre In this interview, Diana Gilardenghi speaks about
as várias técnicas de dança que praticou durante the various dance techniques she practiced du-
seus anos de formação, conta o modo como atu- ring her formative years, tells how she currently
almente combina essas técnicas nas suas aulas combines these techniques in her contempo-
de dança contemporânea, narra suas experiências rary dance classes, narrates her experiences as
como professora de dança no ensino remoto durante a dance teacher in remote education during the
a pandemia de Covid-19 e comenta o processo de Covid 19 pandemic and comments on the crea-
criação do trabalho virtual Ocupação Mágica (2020). tion process of the work Ocupação Mágica (2020).

Palavras-chave Keywords
Criação em Dança. Dança Contemprâ- Contemporary Dance. Dance Creation.
nea. Ensino Remoto de Dança. Técni- Dance Remote Teaching. Dance
cas de Dança. Performance Virtual. Techniques. Virtual Performance.
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Diana Gilardenghi é professora, bailarina e tos2 e por, há mais de quatro anos, ser seu aluno de
coreógrafa de dança contemporânea, radicada em dança contemporânea, fiz essa entrevista primeiro
Florianópolis desde 1992. Possui formação em dan- como atividade da disciplina de Técnicas de Dança II
ça iniciada na Argentina, com cursos básicos feitos do curso de graduação em Teatro da UDESC. A ativi-
em Lincoln, cidade onde nasceu em 1957 e passou dade foi proposta pela professora Dra. Bianca Scliar
a infância, e continuada com a formação, entre ou- como forma de estudar as técnicas de dança por
tros cursos, no Taller de Danza Contemporânea do meio da escuta das experiências de artistas e profes-
Teatro San Martín de Buenos Aires. Nesses quase 30 sores de dança da região de Florianópolis.
anos de atividade em Santa Catarina, Diana – tan- A entrevista foi realizada com o objetivo de
to com os grupos em que participou, como Ronda entender como as técnicas de dança com as quais
e Triz Cia de Dança, como individualmente – ga- Diana teve contato durante sua formação e durante
nhou vários prêmios e apresentou-se em diversos o período de mais de 40 anos de sua prática pro-
locais do Brasil e do exterior, além de participar fissional reverberam na sua produção atual como
como jurada de festivais e carnavais, e de ser pro- artista e como professora de dança contemporânea.
fessora de dança em diferentes espaços da cida- O meio da entrevista foi uma videochamada feita
de. Por sua obstinação com a dança, muitas vezes em março de 2021 e posteriormente transcrita. Além
é chamada de Pina Bausch argentina. disso, em decorrência de a entrevista ser realizada
Nos últimos anos, destaca-se o trabalho de durante o período da pandemia de Covid-19, além
Diana com o coletivo Mapas e Hipertextos e, espe- de tratar da trajetória de Diana e do uso das técni-
cialmente, no projeto Corpo, Tempo e Movimento 1. cas de dança no ensino e na criação artística pre-
Ela participa desde o início desse projeto em 2014, sencial, trata também do ensino remoto de dança
do qual fazem parte também Milene Duenha, Palo- e da criação virtual em dança. Especialmente, do
ma Bianchi e Sandra Meyer. O projeto foi contempla- trabalho Ocupação Mágica 3 (2020), desenvolvido
do pelos editais Elisabete Anderle de 2014 e de 2017, junto com Paloma Bianchi e Hedra Rockenbach.
sendo realizado a partir de 2016. Na sua primeira
fase, consistiu na pesquisa, criação e realização em G.Z.G.: Com quais técnicas de danças modernas
Florianópolis de seis ações em dança. Na segunda e pós-modernas que você praticou ao longo da
fase, ofereceu apresentações, residências e oficinas sua formação você ainda tem afinidade?
em outras cidades de Santa Catarina. Algumas das
ações também foram realizadas em Belo Horizonte, D.G.: Mais do que afinidade, o que eu percebo é que
Curitiba e São Paulo. Paralelamente, Diana seguiu o corpo guarda marcas. O corpo guarda os primeiros
com suas aulas de dança contemporânea, compos-
tas a partir da utilização de princípios de movimento 2 Durante o período de 2016 a 2018, participaram do
de diferentes matrizes da dança moderna, pós-mo- Coletivo Mapas e Hipertextos também: Cassiana Lopes,
derna, bem como de práticas somáticas. Diana Piazza, Everton Lampe, Inês Saber, Luana Leite,
Milene Duenha, Paloma Bianchi, Raquel Purper e Thainá
A partir da proximidade com Diana, por ter Gasparotto. Mais informações sobre a produção do coleti-
sido seu companheiro de grupo no Mapas e Hipertex- vo podem ser encontradas em: https://mapasehipertextos.
wordpress.com/. Acesso em: 25 set. 2021.

3 Ocupação Mágica foi premiada pelo edital, decorren-


1 Informações detalhadas sobre as ações do projeto te da Lei Aldir Blanc, SC Cultura em sua Casa. As três
Corpo, Tempo e Movimento podem ser consultadas em: apresentações virtuais de Ocupação Mágica estão
https://corpotempoemovimento.wixsite.com/corpotempo- disponíveis em vídeo: https://www.youtube.com/wat-
emovimento?fbclid=IwAR0A8lr63TM7q2JI9P4eDIFqGu- ch?v=1qbacGP66SM, https://www.youtube.com/wat-
q6xuitDiHiPaE8nuEfR7emtlk6XokxTj4. Acesso em: 25 ch?v=tkCjEoM3-RE e https://www.youtube.com/watch?-
set. 2021. v=ed0wb9rIxvg. Acesso em: 25 set. 2021.

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amores, que ficam muito impressos. Assim, se eu José Limón. Por sorte temos um latino-americano
tenho ou não afinidade com a técnica Graham não é com uma técnica conhecida. Mas claro que Limón
tanto a questão, é uma técnica que eu fiz por muito também fez aulas com europeus e norte-america-
tempo, por muitos anos. É um tipo de movimentação, nos. Nessa época, Doris Humphrey já trabalhava
de estrutura de aula, uma estrutura de aula muito clara, com o conceito de queda e recuperação. Vai para o
que eu ainda tenho presente nas minhas aulas. Uma chão e volta. Utilizava movimentos que não neces-
estrutura que começa no chão, que depois levanta, sariamente partem do centro, partem já de outros
depois faz diagonais e assim evolui para outras movi- lugares do corpo também. Estou falando de muito
mentações. Essa estrutura de aula eu ainda guardo. tempo atrás, do começo do século XX.
Eu mantenho, porque me ajuda a montar uma aula Na técnica Limón, também se trabalha com
e me ajuda na progressão. Como estrutura, eu sinto os conceitos de suspensão e sucessão. Isso já vem
que a técnica Graham é a que mais mantenho, por- de muito tempo atrás. Imagina que Limón nasceu
que foi talvez a técnica que mais fiz aulas. em 1908 e a Doris Humphrey é ainda anterior, de
Depois, fiz aulas de outras técnicas que tam- 1895. A partir da técnica Limón também incorporei
bém guardei, que não necessariamente começam em minhas aulas os balanços, cai e recupera, ir
deitado ou sentado no chão, mas que também se as- para o chão, tem outra dinâmica, outra continuidade,
semelham nessa progressão, que é uma progressão outra sucessão dos movimentos, outra ligação. Já
que também existe na dança clássica. Se começa a a técnica Graham parte do centro e trabalha com
aula com um aquecimento, se trabalha elementos no o princípio que ficou muito conhecido de contrac-
seu próprio espaço, na kinesfera, no espaço pesso- tion-release. Contrai e solta, contrai e expande.
al, depois vai se integrando ao ambiente, vai te co-
nectando com outros corpos, isso vai num crescen- G.Z.G.: Esse é um princípio que você mantém em
te até que termina, por exemplo, na dança clássica, suas aulas? Com contração e distensão no solo?
em variações com grandes saltos e piruetas. Essa
estrutura de aula continua sendo usada na dança D.G.: Mais ou menos. Porque as maneiras de contrair
moderna, essa estrutura do balé clássico, e também e distender depois foram se transformando nas técni-
em outras danças pós-modernas. Se mantém esse cas pós-modernas a partir de outro uso do peso. Na
tipo de evolução durante uma aula técnica. técnica Graham se mantém um vetor para cima, usa
Depois outra coisa que está muito presente muito o chão, mas com o corpo sustentado. É um uso
no meu corpo que eu aos poucos fui trazendo de do chão com o corpo sustentado e espiralado, desce
outras técnicas é o início do movimento ser de fora e sobe com um tônus muscular mais elevado, sus-
para dentro. Ou seja, das extremidades para o cen- tentado. Uma força muscular diferente do que agora
tro. O movimento pode surgir nas mãos, pode surgir se utiliza com as técnicas pós-modernas, como na
nos pés, pode surgir da cabeça, enquanto que na técnica Release, que utiliza um peso mais entregue
técnica Graham surge no centro do corpo. Na técni- para o chão, utilizando a gravidade de outro jeito.
ca Graham é muito claro que o movimento surge do Há movimentos que foram se transformando, que
abdômen, da bacia, do centro do corpo. podem ter uma estrutura parecida, porque a forma é
parecida, mas o uso do peso é diferente.
G.Z.G.: Qual técnica específica levou a essa pos- A coreógrafa e bailarina Trisha Brown é uma
sibilidade dos movimentos a partir das extremi- das que traz com mais ênfase esse uso do peso com
dades do corpo? equilíbrio e desequilíbrio, trabalha com desequilíbrio
dinâmico. Com o deslocamento do eixo gravitacional
D.G.: Uma delas foi a técnica Limón, do mexicano do corpo, a volta e saída do eixo, em equilíbrio e dese-

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quilíbrio constante. O corpo sempre está lidando com treinam técnicas que são muito puxadas.
a espacialidade e com resistência e entrega para a Com as danças pós-modernas, começa a ter
força da gravidade. Se entrega e volta a se sustentar. uma mudança, surgem técnicas que buscam na edu-
Com uma instabilidade constante, que por momen- cação somática maneiras de se mover e entender o
tos tenta recuperar uma falsa estabilidade, porque movimento sem machucar o corpo. Por exemplo, o
está sempre em movimento. Uma forma mais fluida, método Feldenkrais, que é da mesma época, tam-
mais borrada, enquanto que a técnica Graham, para bém foi estudado e incorporado em certa medida
dar um contraponto, utiliza formas sólidas, formas pelas danças pós-modernas na Europa e nos Esta-
compactas, mais fortes, mais dramáticas. dos Unidos por volta dos anos 1960, 1970, no Brasil
e na Argentina chegam um pouco depois. Método
G.Z.G.: Pensando nas suas aulas, poderíamos dizer Feldenkrais, técnica Alexander, Ideokinesis, Euto-
que você utiliza a estrutura de continuação da téc- nia, aqui técnica Klauss Vianna. Klauss Vianna foi
nica Graham com elementos de outras matrizes? um dos coreógrafos, mestre que trouxe essa preo-
cupação e cuidado a partir das técnicas somáticas
D.G.: Sim, em Buenos Aires eu fazia as aulas de para o Brasil, assim como também o bailarino e te-
técnica Graham com Cristina Barnils. Eu me identi- rapeuta do movimento Ivaldo Bertazzo.
ficava, eu amava o jeito dela passar, dela lidar com Na Argentina, eu lembro que a minha profes-
a técnica nas aulas. O fascínio da gente se entregar sora, Cristina, fazia aulas com a professora Fedora
ou querer fazer tal tipo de técnica tem muito a ver Aberastury, aulas que todos falavam que eram tam-
com o jeito de o outro te instigar. Como a Cristina bém aulas de uma técnica somática. Mas naquele
instigava o movimento, e ela falava que a aula de momento eu não me interessei por isso, mesmo
Graham dela não era uma aula ortodoxa. Porque a que tenha me aproximado de técnicas somáticas,
técnica Graham é associada com uma forma mui- naquele momento não percebi a importância de-
to mais compacta, dura, dura entre aspas, poderia las. Entendia que era outro caminho de conheci-
se dizer que é forte. Cristina já dava suas aulas de mento do corpo, na época eu queria dançar, não
uma forma um pouco mais suave e misturava al- queria fazer aulas de técnicas somáticas. Para
guns outros exercícios de outras técnicas. mim, naquele momento, a dança era entrar e trans-
A técnica Graham tem toda uma estrutura formar espaço, coordenação, musicalidade, pular,
de aula que vai evoluindo, vai se tornando mais era girar, era fazer movimentos difíceis e amplos.
complexa. Por isso que são anos de estudo, é ne-
cessário cursar: iniciante, intermediário, avançado. G.Z.G.: Quando você começou a dar aulas de
É uma técnica completa, que realmente te forma. dança?
Mas, ao mesmo tempo que forma, para mim o que
acontecia é que havia movimentos que no meu cor- D.G.: Quando eu morava em Buenos Aires, eu já dava
po eram muito incômodos. Porque, por exemplo, as aulas e fazia também outras aulas. Fiz por muito tem-
quartas posições buscam realmente que os ísquios po aula de dança expressionista alemã, com uma pro-
estejam no chão, trabalha uma quarta posição no fessora que se chamava Renate Schottelius. Assim,
chão e em sequência coloca a perna para trás le- ao mesmo tempo eu fazia aulas de técnica Graham,
vantando o tronco. Nesse sentido, se assemelha de dança expressionista alemã, de balé clássico, de-
muito ao balé clássico naquela posição do arabes- pois mais para frente fiz aulas com Teresa Duggan,
que, em que se está de pé com a perna para trás. que estudou nos Estados Unidos, e trouxe uma pro-
Força bastante. Havia pessoas que tinham dor no posta mais solta, mais fluida e articulada.
joelho, então, tem essas dores dos bailarinos que Essas abordagens e saberes foram se entre-

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laçando e aos poucos originam mudanças no meu técnica construída, aprendida, ela, entretanto, con-
rumo. Eu buscava também fluidez e conexões nos seguia se renovar, se refazer. E eram os mesmos
movimentos, movimentos mais contínuos, mais le- elementos, mas desde outro lugar. Eram aparente-
ves. Assim, aos poucos fui incorporando elementos a mente os mesmos movimentos, mas com pequenas
partir da base que eu já tinha. Porém, quando quero alterações. Me impressionava como ela conseguia
inserir nas aulas outro movimento com outros princí- elaborar e levar isso para as aulas. E ela dizia que
pios, não é simples, porque preciso fazer uma reestru- a aula é algo em transformação constante, mesmo
turação e encontrar sentido na relação entre o que já que contenha os mesmos princípios. Um pequeno
existe e a forma como é feita essa inserção. desvio já ressignifica o movimento no corpo. Aqui-
lo que eu fazia semana passada agora encontrei
G.Z.G.: Essa inserção de outros movimentos na outro lugar, outro caminho, outro entendimento. De
estrutura de aula da técnica Graham vem mais da modo que o corpo funciona de outro jeito. Isso eu
sua experiência corporal experimentando outros admirava na Cristina, ela conseguia encontrar outros
movimentos ou da relação com os alunos com buraquinhos por onde passar o movimento. E te to-
corpos múltiplos? cava, estava contigo o tempo todo. Te acompanhava.
Sentia que ela estava ali, junto.
D.G.: A técnica Graham e o balé clássico não são para Assim, dependendo do grupo, da turma, pode
todos os corpos. Isso pensando no balé clássico que ter pessoas mais iniciantes junto a outras que por
busca atingir um nível profissional, agora claro existe ter mais tempo de trabalho juntos eu consigo pedir,
um tipo de aulas de balé que se adapta também a ou- sugerir mais. Assim, se faz possível e enriquecedor
tros corpos, que trabalha desde um lugar menos vir- considerar e ouvir o momento de cada um. Por isso
tuoso, outros modos de se relacionar com a técnica, não persiste tanto essa coisa dos níveis, nível ini-
tem outro olhar. A técnica Graham, como ela é, é uma ciante, intermediário, avançado. Agora tudo isso está
técnica difícil, complexa, mas muito rica. Na técnica muito mais diluído porque já não importa tanto o pre-
Limón, técnica Cunningham, técnica Release e nas ciosismo, o certo e errado. E também porque, numa
chamadas técnicas somáticas que foram incorpora- aula, se pode dar espaço para que alguém com mais
das, a dança pode ser trabalhada desde uma abor- experiência faça movimentos mais desafiadores e
dagem focando na atenção, na intenção, na percep- ter uma proposta que ao mesmo tempo quem está
ção e observação do como se faz, uma descoberta iniciando perceba até onde pode ir, assim se pode
pessoal da movimentação e das próprias sensações, ter uma forma não tão homogênea de conduzir a
ampliando escuta e cuidado com o corpo. aula respeitando os limites de cada um.
Eu procuro fazer uma seleção de possibili-
dades dentro do material e caminhos já trabalhados G.Z.G.: Como as técnicas de treinamento se re-
e mais incorporados, assim como tento introduzir lacionam com os trabalhos que você fez para se-
outros princípios e elementos para acrescentar nas rem apresentados ou realizados artisticamente?
aulas. Nem sempre consigo sustentar uma pes- Como essa relação foi mudando durante sua tra-
quisa e dar continuidade, assim como evoluir pro- jetória na dança?
gressivamente; no entanto, o outro, os alunos, me
devolvem muito. Porque é possível ler a necessida- D.G.: Ao longo da trajetória foi mudando sem dúvida.
de no corpo deles. Nisso está o que é interessan- No início, os trabalhos feitos para serem apresenta-
te em uma aula, essa troca, esse diálogo de cor- dos estavam muito mais atrelados às técnicas, o tra-
pos, é uma troca constante. Por isso eu admiro a balho partia das técnicas praticadas nas próprias au-
minha professora, Cristina, porque ela, tendo essa las e mais para frente os processos de criação foram

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derivando para outros assuntos, outras motivações, Aires também fiz aulas de composição e improvisa-
trabalhando com algum conceito, com alguma ideia, ção. Aula de improvisação, composição e dinâmica
com alguma imagem ou procedimentos compositivos. do movimento com Ana Itelman, que foi uma gran-
Ou seja, outros dispositivos de criação para chegar a de mestra, muito importante na Argentina. Em 1975,
um trabalho de dança. No início estava bem conec- ela havia voltado dos Estados Unidos, e tinha sido
tado com as próprias técnicas das aulas. professora e diretora do departamento de dança do
Na época que eu morava em Buenos Aires Bard College em Nova York, trabalhou com Mer-
fazia trabalhos que eram coreografados. Eu dançava ce Cunningham, Hanya Holm e Alwin Nikolais, já
e eu era coreografada pelos diretores e diretoras. Ou numa viagem anterior conheceu a Martha Graham,
seja, eram movimentos sequenciais organizados de estudou teatro com Lee Strasberg, estudou pintu-
modo coreográfico. Muitos trabalhos com essa estru- ra, enfim, era estudiosa, uma pesquisadora incan-
tura. Depois fiz trabalhos com Teresa Duggan que ha- sável. Ela criou e desenvolveu um método próprio
via estudado com uma discípula da Trisha Brown, Te- de pesquisa e criação, no entanto, eu me pergunto:
resa já deixava que o bailarino trouxesse seu material, por que no decorrer fui achando tantas conexões
partia de uma proposta, e nós buscávamos em nós e familiaridades com seu método? Será que Ana
as possibilidades de desenvolver essa proposta, os Itelman estudou Laban e Viewpoints? Ou talvez to-
bailarinos como coautores. Também e paralelamente mou contato de uma forma indireta? Porque essas
participava de outro grupo em que a gente trabalha- informações circulam, são conceitos, sistemas e me-
va nesse sentido, Platercaster, que era de dança-te- todologias muito presentes na dança.
atro e era muito bom, eu gostava bastante. Eu lembro sempre de uma pergunta para Ale-
Quando me mudei para cá em 1992, eu jandro Ahmed, coreógrafo do Grupo Cena 11: “Você
coreografava e ministrava aulas de dança con- usa contato improvisação?” E ele respondeu: “Não,
temporânea, alguns trabalhos curtos que podiam eu não uso”. Mas se poderia ver similaridades, há
ser de cinco minutos ou mais em que eu criava a elementos comuns… Assim, as coisas se contami-
partitura para outro dançar. Aos poucos fui me nam de tal forma que, quando você conhece algum
afastando desse tipo de trabalho e fui participan- artista, pode ou não saber o histórico da pessoa, por
do de trabalhos mais colaborativos, dando ênfase onde passou. E, às vezes, a pessoa não sabe, ou
para que o corpo do outro, para que os corpos dos sabendo pode não transmitir esse conhecimento.
bailarinos encontrassem os próprios movimentos, Quando você pergunta: “Aquele movimento vem
para que a criação fosse mais autoral, para que da Graham? Vem de onde? Parece com Pilates?”,
os corpos pudessem explorar sua própria lingua- claro sim, às vezes eu sei de onde vem e outras
gem. De modo geral, o processo foi esse. não sei com exatidão. Quando falam que a dança
se utiliza dos princípios da ioga, claro que utiliza
G.Z.G.: Esses processos criativos têm relação exercícios e conceitos da ioga porque a dança se
com práticas de performance? Ou como pen- conectou com a ioga muito tempo atrás, no início do
sar em termos técnicos esses outros modos de século XX. Tem ioga na dança, pois passa por luga-
criar? res e posições que utilizam alguns princípios. Está
tudo assim misturadíssimo e conectado.
D.G.: Performance eu não estudei muito. Se eu me Naquela época em Buenos Aires passava
relaciono com a performance é através da prática muita gente, e fazíamos muitos cursos, de diversas
com as pessoas com quem trabalhei no projeto técnicas. Tinha professores que vinham de fora e da-
Corpo, Tempo e Movimento e no coletivo Mapas e vam, digamos, três meses de cursos e workshops, e
Hipertextos. Entretanto, quando estava em Buenos as pessoas pegavam isso com vontade, chupavam e

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transformavam. Tudo ia se transformando. olhando para o outro é muito diferente do presencial,


é um esforço muito maior, a espacialidade é outra.
G.Z.G.: Como você alterou suas aulas por causa Comecei a estruturar uma aula guiada pela voz, com
das restrições da pandemia? o material que já tinha, mas guiado pela voz. Cada um
podia se mover no seu próprio espaço a partir de co-
D.G.: No primeiro mês, eu não sabia se queria dar mandos que eu dava. Foram quatro áudios e depois
aulas on-line. A gente também não sabia quanto tem- alguns dos alunos me falaram que queriam encon-
po iríamos estar nesse processo todo, nesse mo- tros on-line, que queriam ver uns aos outros. A gente
mento de pandemia, que está levando tempo demais. se encontrou on-line e foi lindo, porque foi a forma
No início, não encontrava muito sentido em dar aulas que a gente teve de estar junto durante a pandemia,
on-line, a vida e o mundo estavam se transformando de poder seguir juntos, se ouvir, se ver.
tanto que eu não sabia que tipo de aulas dar e nem A partir desses encontros, pensei em dar
o porquê. Aos poucos, fui sentindo a necessidade de um início de aula, como a gente já fazia no pre-
me movimentar e pensei que realmente era preciso sencial, no chão, em que começamos sentados ou
continuar, nos mover, temos que nos juntar, temos deitados, mais quietinhos no lugar. Um aquecimen-
que seguir. Mas a realidade continua sendo tão forte to, alongamento, trabalho articular, um trabalho de
que tem dias que tenho que fazer esforço. Um esforço preparação, de sensibilização para partir para o
enorme para me conectar com a dança, me conectar espaço. Seguir para uma exploração do próprio es-
com o movimento. Está difícil. Quando você me falou paço. Eu me preocupei com o início da aula, que
dessa entrevista, eu pensei que eu estou realmente era de uma hora, às vezes 50 minutos, pois achei
em crise com as aulas. Eu já estava um pouquinho o momento propício para destinar o restante do
em crise antes, mas de outra forma. Digo que estou tempo a uma proposta investigativa que conside-
em crise, porque não me parece nada simples dar rasse o uso da câmera, enquadramento, jogos de
uma aula nesse novo formato à distância. primeiro plano, variação entre planos-detalhe e
Ano passado (2020), apesar de ter sido o pri- planos gerais, enfim, aspectos mais específicos de
meiro ano de pandemia, consegui recriar as aulas um outro espaço, um espaço virtual, desconheci-
um pouquinho, porque me detive mais na pesquisa. do, o qual nunca tínhamos investigado.
Senti que era o momento de pesquisar mais do que Esse início de aula on-line é bem similar ao
fazer uma aula convencional de movimento guiado, que já fazíamos no presencial, mas de uma forma
direcionado. Por isso que surgiram as propostas do mais restrita, sem utilizar sequências com muita du-
trabalho Duplas Superfícies4 e de solos individuais ração, nem movimentos de mais difícil compreensão,
com o espaço da casa. Logo no início quando o nosso seja pela troca de frentes ou por uma maior comple-
grupo se conectou, que foi a partir de vocês, a partir xidade. Movimentos que eu conseguia levar, guiar
do estímulo de vocês, comecei com aulas por áudio, pela voz, com pouco deslocamento espacial, de for-
só depois fui dar aulas via Zoom. A primeira proposta ma que não exigisse muito, que não precisasse estar
foi de aulas por áudio, porque nesse contexto estar olhando para a tela. E, depois, partíamos para um
segundo momento de pesquisa espacial, dos espa-
4 Esse trabalho foi proposto por Diana, teve a gravação ços da casa. Primeiro veio a questão das superfícies,
e finalização feita por Hedra Rockenbach, e foi dançado usando as superfícies de apoio dos espaços de cada
por Giorgio Gislon, Josefina Hernandez Daels, Iam Cam- um. Depois veio a arquitetura espacial, que foram
pigotto, Lilian Yamaguchi, Lucila Vilela, Lucy Montardo,
Marisa Solá, Paloma Bianchi, Sandra Meyer, Thaís Roloff duas propostas: arquitetura do espaço e superfícies.
e Vera Torres. Está disponível em: https://www.youtube. Foram dois trabalhos que a gente conseguiu desen-
com/watch?v=ShZb88MRlvc&t=113s. Acesso em: 25 set. volver. Eu sempre fazia alguma proposta de investi-
2021.

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gação que durava de meia hora a 50 minutos. Esse D.G.: A proposta de nos juntarmos para inves-
ano não estou conseguindo propor investigações, tigar veio da Paloma e da Hedra. A Hedra já ti-
talvez porque cansei um pouco, encontros remotos nha uma concepção do que era possível fazer
pedem outro tipo de relação, uma interação media- com essas ferramentas audiovisuais que ela
da pela tela, tenho certo cansaço, e também quero domina e com a experiência do que tínhamos
entender o que pede o momento, o que é possível feito nas aulas de dança num processo que fi-
hoje para mim, para os meus alunos, nessas circuns- cou com o nome de Duplas Superfícies.
tâncias tão difíceis que vivemos. No momento estou A partir disso, a Hedra veio com essa outra
buscando o que me motiva para esse ano, o que proposta. Uma proposta de fixar o espaço. É diferente
trazer para uma nova proposta criativa. do que foi feito em Duplas Superfícies, em que os es-
paços se movimentavam por uso de recursos audio-
G.Z.G.: Quais as diferenças no uso das técnicas visuais, porque o espaço é fixo. A ideia de encontrar
nas aulas on-line? um terceiro lugar para estarmos juntas, Paloma e eu,
vem da ideia da busca de um novo espaço formado
D.G.: O que acontece é que esse ano estou levan- pela sobreposição entre a casa da Paloma e a minha.
do mais tempo para elaborar uma aula com alguma A gente pesquisou, buscou em que situações usar
novidade, com outros elementos. Como eu também essa sobreposição, que a Hedra já tinha como ideia.
estou precisando me movimentar e estou querendo Fomos buscando ângulos e nos enviamos fotos para
estudar, o que tenho encontrado on-line são várias entender e selecionar os lugares, os espaços possí-
aulas do método Feldenkrais. Eu conhecia o méto- veis das nossas casas. A Hedra fez uma seleção do
do, mas nunca tinha feito com continuidade. Usava que era interessante, por exemplo: “Aqui a porta da
e uso algumas técnicas somáticas, porque a dan- Paloma se mistura com a porta do banheiro da Diana
ça pós-moderna traz consigo elementos somáticos e aqui se abre um espaço”. Esse olhar da Hedra de
que se entrelaçam com a dança desde muito tempo. ver que isso poderia render alguma coisa interessan-
Mas, por vezes, não sabia identificar bem o que vi- te, dessa mistura conseguimos criar um terceiro lu-
nha de qual método, se era exatamente da técnica gar. A gente foi buscando também o que queríamos.
Alexander, do método Feldenkrais, ou da BMC (Bo- Queríamos estar juntas, respirar juntas, nos tocar e
dy-Mind Centering). Eu conhecia alguns princípios, estávamos impossibilitadas de fazer isso por causa
mas não posso dizer que uso técnicas somáticas. do distanciamento requerido pela pandemia. Assim,
Eu brinco com os alunos quando dou um movimen- criamos uma possibilidade de brincar que eu estou
to dizendo: “Esse aqui é do Feldenkrais”, mas na na casa dela e que ela está na minha casa e não
verdade eu não sigo, não passo para os alunos saber quem está onde. Esse não real, que é real. Se
exatamente como se faz no método Feldenkrais, eu adaptar a essas outras realidades produzidas à dis-
mudo. Eu pego algum princípio que considero que tância. Foi buscar os lugares e afinar o tempo, para
para mim foi interessante e vou levando para ou- haver sincronia entre nós duas e criar esse terceiro
tro lugar, outra relação, tento combinar, modificar o lugar. Brincar com a questão da luz, as luzes que
tempo, o andamento, utilizo como ponto de parti- se acendiam e se apagavam, a planta da Paloma
da. Me permito mudar e redirecionar. que caía na minha casa, assim eu precisava saber
onde caía no meu espaço a planta dela. Eu sabia
G.Z.G.: Durante a pandemia você criou Ocupação onde caía, eu marcava no chão. Aqui estou embaixo
Mágica (2020), junto com Paloma Bianchi e Hedra da planta dela, aqui estou na mesa dela. Agora ela
Rockembach. Como surgiu o trabalho? sentou no meu sofá, porque o sofá que aparecia era
o meu sobreposto no espaço dela. Assim, o desafio

72 Gislon // Buraquinhos por Onde Passar o Movimento:


entrevista sobre técnicas, criação e ensino de dança com Diana Gilardenghi
Revista Cena, Porto Alegre, nº 36 p. 65-73 jan/abr. 2022
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 36

era buscar espaços comuns sem ser comuns. Um


comum criado, uma criação de um comum.
A partir disso criamos a movimentação.
Achamos que um movimentar cotidiano era me-
lhor do que buscar mais complexidade de mo-
vimento. Um estar que conversava com nosso
momento de espera, de estar, de olhar para fora
e para dentro. Uma espera, basicamente uma es-
pera. Um estado lacônico, suspenso.

Recebido: 08/12/2021
Aceito: 04/02/2022
Aprovado para publicação: 25/02/2022

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entrevista sobre técnicas, criação e ensino de dança com Diana Gilardenghi
Revista Cena, Porto Alegre, nº 36 p. 65-73 jan/abr. 2022
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena

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