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UMA MISSÃO NO HAITI

13 de novembro de 2017.
Porto Príncipe, Haiti.

André Souto Bahia*

Haiti, por vezes confundido com o Taiti (Ilha no Pacífico), e sobre quem a maioria pensa se tratar de um
país do Continente Africano, é na verdade a República mais antiga de toda a América Latina, localizado
no terço oriental da Ilha Hispaniola, a segunda maior do Caribe, na América Central – também ocupada
pela vizinha República Dominicana. Considerado a “Pérola das Antilhas” em seu tempo áureo como
colônia francesa tem como principal legado a conquista da sua independência frente ao exército de
Napoleão como resultado da única revolução escrava bem sucedida da História. Infelizmente, o Haiti que
é conhecido (pouco conhecido, diga-se de passagem!), não é aquele que marcou a história por seu
legado de independência e prosperidade: rei do cacau, rei do café, rei do açúcar. Mas, são as catástrofes
naturais, a instabilidade política e social, e a pobreza extrema que ocupam as manchetes de uma parcela
da mídia que insiste em difundir um estigma difícil de ser revertido: o Haiti é o país mais pobre do
continente americano!

Uma breve análise nos ajuda a visualizar que a história do Haiti é marcada por três fatores cíclicos:
instabilidade política e econômica, intervenção militar estrangeira e vulnerabilidade geoclimática:
durante os primeiros 60 anos de vida sofreu um bloqueio econômico e comercial europeu que só foi
encerrado após o pagamento à França pelo reconhecimento da sua independência o que zerou os cofres
públicos haitianos, levando-o à dependência externa; no mesmo período as divisões internas entre os
generais que sucederam ao Herói da Independência, Toussaint Louverture – preso por Napoleão e morto
nos Alpes Franceses, e a ocupação por 30 anos do lado espanhol da Ilha, deram a tônica nas relações
políticas internas e com os vizinhos dominicanos; entre 1915 e 1934 viveu sob domínio norte-americano
que alegou defesa dos seus interesses econômicos; entre 1960 e 1987 foi a vez da ditatura dos Duvalier;
de 1990 a 2003 enfrentou um colapso político e social; de 2004 a 2017 a ONU manteve no país a Missão
de Paz para Estabilização do Haiti – MINUSTAH, sob o comando do Brasil; em 2004, 2008 e 2016 o Haiti
foi atingido por Furacões e Tempestades tropicais que causaram inúmeras mortes, arrasaram a
agricultura e provocaram inúmeros prejuízos na infraestrutura local; e em 12 de janeiro de 2010 a capital
do país, Porto Príncipe, foi assolada pelo maior desastre natural registrado na História das Nações
Unidas – um terremoto de 7,1 na escala Richter que ceifou a vida de mais de 200 mil pessoas, deixou 1,5
milhão desabrigados e atrasou o processo de estabilização objetivado pelas Nações Unidas.

Acompanhando a história recente do Haiti desde 2009 quando visitei pela primeira vez o país, e após
esses quase seis anos residindo em Porto Príncipe, já tendo servido em nove dos dez
Estados-Departamentos, tanto nas capitais quanto no interior, é impossível não constatar que o Haiti vem
melhorando gradativamente. Nesse período vimos pela primeira vez um presidente eleito pelo povo
passar a faixa presidencial ao seu sucessor (em fevereiro de 2012 René Preval – eleito em 2006, passou
a faixa em cerimônia oficial e pública ao cantor Michel Martelly); vimos um choque de ordem nos
principais centros urbanos do país promovido pelas prefeituras e pelo Governo Federal devolvendo os
limites das ruas e calçadas antes ocupados indevidamente e indiscriminadamente pelos muros dos
imóveis particulares, agora sendo pavimentados; vimos a iluminação pública das principais avenidas e
algumas vias secundárias se tornando realidade; assistimos a construção e inauguração do primeiro
viaduto do país; vimos a reconstrução do aeroporto da Capital com padrões internacionais, e a ampliação
do aeroporto de Cabo Haitiano, segunda maior cidade do país, passando a fazer voos internacionais;
vimos a inauguração do maior campus da Universidade Federal do Haiti, no Norte, em parceria com a
República Dominicana; somos testemunhas da ampliação da força policial nacional que assumiu todas as
ações e postos da MINUSTAH sem deixar que a estabilidade conquistada pelos Capacetes Azuis fosse
perdida, pelo contrário, temos visto que as novas turmas formadas pela Academia Nacional da Polícia do
Haiti tem produzido policiais imbuídos de uma nova motivação nacionalista de ordem e progresso;
percebemos que, apesar do ranço da corrupção geral e institucionalizada de outrora, há um movimento
intencional dos últimos dois governos em não apenas organizar a casa, como mudar o estigma de
dependência externa e carência de ajuda internacional para um país emergente, cujo carro-chefe é o
turismo através de suas praias paradisíacas banhadas pelo Mar do Caribe.

O que muita gente não entende é que a tarefa nem é fácil, nem rápida! Sem contar que as demandas são
históricas e imensas. No final do ano passado o sul do Haiti foi atingido pelo Furacão Matthew que
arrasou alguns municípios da região. Ao contrário dos episódios anteriores, não apenas as ONGs e a
ONU estão engajadas na assistência às famílias vitimadas, mas, vemos o Estado Haitiano instalando a
maior usina elétrica solar do país na cidade mais atingida pelo Matthew, de onde todo o Grande Sul será
abastecido, e que somada a outras duas e à Hidrelétrica de Pélegri, no Centro, todo o país receberá
energia elétrica 24 horas a partir de janeiro de 2019.

A Capital é o centro político, econômico, industrial e educacional do País – praticamente tudo depende de
Porto Príncipe. Ao menos era assim até ano passado. Vários serviços públicos estão sendo
decentralizados para as outras cinco principais cidades do país, incluindo campus universitários, serviços
cartoriais, de imigração e financeiros. Junto com a inauguração de quatro Hotéis cinco estrelas e de um
Resort no litoral, além de Labadee, no Norte, que há anos recebe transatlânticos turísticos, uma
península está sendo preparada para concorrer com Punta Cana (na República Dominicana) – a Costa
do Ferro, onde vários Resorts são esperados até 2021.

Apesar de um momento de instabilidade política em 2015 quando as eleições acabaram sofrendo um


boicote promovido pela oposição e a presidência ficou sob interinato durante todo o ano, em fevereiro de
2016 um novo presidente foi empossado e um período de estabilidade política tem predominado, com a
posse do primeiro ministro em consenso com a oposição e a formação do governo acontecendo de modo
pacífico e progressivo. O atual governo tem promovido um canal de comunicação mais transparente com
a população através das redes sociais e emissoras de rádio e TV nacionais. E mesmo nos momentos em
que movimentos sindicais e políticos decidem ir às ruas reinvidicar mudanças, já não impera mais o pavor
e o medo do caos pois a polícia local não apenas dispõe de meios como tem amadurecido na garantia da
lei e da ordem. Naturalmente que uma cidade com quase 3 milhões de habitantes apresenta seus
cuidados e suas debilidades próprias, especialmente onde o Estado foi ausente por longos períodos. Mas
é fato que os índices e a sensação de segurança tanto de Porto Príncipe quanto do Cabo Haitiano são
menores que qualquer capital no Brasil e em vários países da América Latina.

Todo processo de mudança necessita de investimentos no tripé educação, fiscalização e punição, sendo
esse processo potencializado com avanços na infraestrutura. A negligência em qualquer um desses eixos
leva ao insucesso, e a mudança dificilmente ocorrerá. Por isso frisei acima que a tarefa não é nem fácil,
nem rápida, e as demandas são múltiplas! O trânsito é um dos principais meios de verificação do nível de
educação, moral e ética de um povo. E aqui no Haiti, ele é um caos! A ausência de formação e
fiscalização dos condutores, somado à impunidade diante do não cumprimento das leis de trânsito (elas
existem!), torna os investimentos na melhoria da infraestrutura (pavimentação e iluminação de ruas,
instalação de semáforos e até mesmo a ação de agentes de trânsito nos horários de pico) quase
ineficientes. Na Educação, a nova estrutura da Educação Básica, em vigor desde 2015, somada à
reconstrução dos Liceus e Escolas Públicas, e ampliação do acesso à escola, ainda sofrem com a
ineficiência no processo de formação de educadores cuja maioria ainda não possui nem mesmo nível
técnico (normalista), e na fiscalização e apoio à estruturação das escolas, principalmente as particulares
que ocupam mais de 80% da oferta de ensino do país. Na Saúde, a inauguração das novas unidades
hospitalares, a reconstrução e ampliação dos Hospitais e Centros de Saúde realizados nos últimos anos
ainda não são suficientes, pois, há falta de pessoal formado e treinado, de recursos para a manutenção e
suprimentos, e fiscalização e penalização dos agentes encarregados da entrega dos serviços que
deveriam ser gratuitos à população, mas, não são!

Em meio a todo esse processo de mudanças e desafios para a construção de um novo Haiti,
encontramos brasileiros que tem dedicado suas vidas em ações de amor e voluntariado. No norte do país
desde 1999, a missionária Lucimeri Regina coordena um projeto de alfabetização e apoio a escolas em
todos os Estados do país. A ONG Viva Rio chegou ao Haiti em 2004, e entre os inúmeros projetos
desenvolvidos ao longo dos anos, atualmente possui a Academia Pérolas Negras que, entre outras
ações, forma futuros atletas para as Seleções Nacionais de Futebol, e ainda, mantém um Centro de
Formação em Hotelaria e Turismo há 60 km da capital. A Secretaria Geral de Missões da Igreja do
Evangelho Quadrangular tem enviado missionários brasileiros no país desde antes do terremoto de 2010,
e atualmente mantém um casal que apoia orfanatos e serve igrejas locais. Há ainda vários outros
missionários brasileiros, evangélicos e católicos, servindo em comunidades de alta vulnerabilidade, e que
na sua maioria, atuam no trinômio: igreja-orfanato-escola, uma vez que o entendimento geral baseia-se
na compreensão que a mudança que o Haiti precisa será produzida pelos valores do Evangelho (através
da Igreja), no cuidado e investimento na próxima geração (orfanatos e escolas).

A agência missionária da Convenção Batista Brasileira – Junta de Missões Mundiais (JMM), desde 2009,
já enviou mais de 600 voluntários através de caravanas de curta duração, que atuam em comunidades da
periferia da Capital e no interior através de ações em saúde, educação, esporte, artes, construção civil, e
capelania comunitárias. Em 2013 a Caravana da Esperança (Tour of Hope) atuou junto com o Exército
Brasileiro em Bel Air e Cité Soleil – os dois bairros mais populosos e vulneráveis da Capital, parceria que
rendeu reconhecimento da ONU. Anualmente são enviadas três Caravanas: janeiro, julho e dezembro.
Atualmente, a JMM no Haiti é composta por uma equipe multidisciplinar formada por oito missionários
efetivos e oito jovens voluntários que integram a 3ª Turma do Programa Radical que vêm implementando
desde o ano passado o Plano Nacional Por Um Novo Haiti centrado em três eixos principais:
desenvolvimento comunitário, educação transformadora, e, acolhimento de crianças. Através do Por Um
Novo Haiti está sendo implantado o 1º Centro de Desenvolvimento Integral na comunidade de
Rosembert, na periferia da Capital que irá contemplar projetos de iniciativa comunitária e ainda ações em
saúde preventiva, formação continuada de educadores das escolas de educação básica da região,
capacitação de lideranças comunitárias, e fortalecimento das igrejas locais para o desenvolvimento
comunitário. O Por Um Novo Haiti também visa implantar até 2021 um programa de Casas Lares para
acolhimento de crianças em situação de orfandade e vulnerabilidade social, um programa de República
para adolescentes e jovens oriundos de casas de acolhimento que necessitam ser preparados e
acompanhados no processo de inserção social, ampliar o Programa de Educação Pré-Escolar (PEPE)
que já conta com quatro unidades em três Estados, atendendo cerca de 135 crianças, e ainda,
implementar ações de desenvolvimento integral em parceria com a Primeira Igreja Batista de Aracruz/ES,
que mantém um casal missionário na capital do Sul, Les Cayes.

Quando recitamos a oração do Pai Nosso aprendemos com Jesus que devemos não apenas esperar por
uma vida na eternidade com Deus, mas, que seja feita a vontade d’Ele aqui nessa terra como ela é feita
nos céus! E essa é a principal razão desses homens e mulheres, brasileiros, haitianos, americanos,
chilenos, uruguaios, colombianos, sul-coreanos e gente de vários outros lugares do planeta que tem sido
a resposta de Deus às orações e ao clamor do povo haitiano para que venha a nós o Seu Reino que “não
é nem comida, nem bebida, mas a justiça, a paz, a alegria que vem do Espírito, e o [desenvolvimento
comunitário]” – edificação mútua na linguagem paulina, conforme escrito na carta do apóstolo Paulo aos
cristãos da cidade de Roma (Romanos 14:17-19).

(*) André Souto Bahia é casado há 18 anos com Verônica Bahia, pai de Jéssica (14) e Sara (10), teólogo,
mestrando em Missiologia, pastoreou no Brasil entre os anos 2000 e 2011, e serviu como Oficial do
Exército Brasileiro entre 2002 e 2009. Atualmente cursa MBA em Gestão de Projetos pela Faculdade
Estácio, e é missionário no Haiti desde 2012 pela JMM.

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