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DOSSIER

ISSN 2314-2189
doi: 10.34096/sys.n40.10492 121
Signo y Seña 40 (julio-diciembre, 2021): [121-143]

A escalada da violência
doméstica contra mulher
durante a pandemia da
covid-19 no discurso da ONU
Mulheres
" Cintia de Freitas Rodrigues Loureiro
Universidade de Brasília, Brasil
cintiafrodrigues@gmail.com

Viviane Resende
Universidade de Brasília, Brasil
resende.v.melo@gmail.com

Trabajo recibido el 26 de agosto de 2021 y aprobado el 20 de octubre de 2021.

Resumo

Este artigo analisa o comprometimento na ação discursiva da ONU Mulheres


Brasil (@onumulheresbr) em textos de posts do Instagram sobre a escalada
da violência doméstica contra mulheres durante a pandemia da covid-19.
A categoria analítica de modalidade, conforme propõe Fairclough (2003)
baseado em Halliday (2014), assim como conceitos e categorias dos estu-
dos decoloniais (Ballestrin 2013, 2017; Lugones 2014) e dos estudos de
gênero (Akotirene 2019; Carneiro 2011; Crenshaw 1990) foram utilizados
na análise discursiva dos dados. A investigação aponta que o organismo
internacional empregou esforço discursivo para mostrar comprometimento
tanto com as informações e posicionamentos que comunicou quanto com
a noção de obrigação e necessidade sobre os aspectos discutidos sobre
violência doméstica nos posts analisados. No entanto, a opção por tratar
problemas, ações e atores sociais de forma genérica atenua os efeitos ape-
lativos das modalidades.

Palavras-chave: violência doméstica contra mulheres, pandemia, ONU Mulheres,


análise de discurso crítica.
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A escalada da violência doméstica contra mulher... doi: 10.34096/sys.n40.10492 122
Cintia de Freitas Rodrigues Loureiro, Viviane Resende Signo y Seña 40 (julio-diciembre, 2021): [121-143]

The escalation of domestic violence against women during the


covid-19 pandemic in the UN Women’s discourse

Abstract

This article analyzes the commitment to discursive action in the UN Women


Brazil’s Instagram posts (@onumulheresbr) on the escalation of domestic
violence against women during the covid-19 pandemic. The analytical cate-
gory Modality, as proposed by Fairclough (2003) based on Halliday (2014),
as well as concepts and categories from decolonial studies (Ballestrin 2013,
2017; Lugones 2014) and from gender studies (Akotirene 2019; Carneiro
2011; Crenshaw 1990) were used in the discourse analysis. The investiga-
tion points out that the international organization used a discursive effort
to show commitment both to the information and positions it communicated
and to the notion of obligation and necessity on the aspects discussed about
domestic violence in the analyzed posts. However, the option to deal with
social problems, actions and actors in a generic way mitigates the appealing
effects of the modalities.

Keywords: domestic violence against women, pandemic, UN Women, critical discourse


analysis.

La escalada de la violencia doméstica contra las mujeres durante


la pandemia del covid-19 en el discurso de ONU Mujeres

Resumen

Este artículo analiza el compromiso en la acción discursiva de ONU Mujeres


Brasil (@onumulheresbr) en textos de publicaciones de Instagram sobre la
escalada de violencia doméstica contra las mujeres durante la pandemia
del covid-19. La categoría analítica de modalidad, propuesta por Fairclough
(2003) con base en Halliday (2014), así como conceptos y categorías de
estudios decoloniales (Ballestrin 2013, 2017; Lugones 2014) y estudios de
género (Akotirene 2019; Carneiro 2011; Crenshaw 1990) se utilizaron en
el análisis discursivo de los datos. La investigación señala que el organis-
mo internacional utilizó un esfuerzo discursivo para mostrar compromiso
tanto con la información y posiciones que comunicaba como con la noción
de obligación y necesidad sobre los aspectos discutidos sobre violencia
intrafamiliar en las publicaciones analizadas. Sin embargo, la opción de
tratar problemas, acciones y actores sociales de manera genérica mitiga
los efectos atractivos de las modalidades.

Palabras clave: violencia doméstica contra la mujer, pandemia, ONU Mujeres, análisis
crítico del discurso.

1. Introdução

No primeiro semestre de 2020, o Brasil e todo o mundo começaram a regis-


trar os efeitos secundários da pandemia da Covid-19. Além das centenas
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de milhares de vidas perdidas, há a depressão econômica e uma realidade


silenciosa e também mortífera: o aumento de casos de feminicídios e de
violência doméstica contra mulheres.1 Isoladas em casa e com convívio
intenso com os parceiros, as agressões contra brasileiras alcançaram níveis
alarmantes. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
(MMFDH) divulgou que, em abril de 2020, quando o isolamento social
imposto pela pandemia já passava de 30 dias, a quantidade de denúncias
de violência contra mulheres recebidas pela Central de Atendimento à
Mulher em Situação de Violência - Ligue 180 saltou quase 40% em relação
ao mesmo período de 2019.

Neste contexto, a violência doméstica pautou um volume considerável de


debates nas redes sociais. De acordo com nota técnica2 do Fórum Nacional
de Segurança Pública, houve aumento de 431% nos relatos de brigas entre
vizinhos no Twitter entre fevereiro e abril de 2020. Uma filtragem com foco
apenas nas mensagens que indicavam a ocorrência de violência doméstica
resultou 5.583 menções.

Além de usuários e usuárias de redes sociais, contas institucionais ligadas


ao poder público, empresas privadas, organismos internacionais e organi-
zações da sociedade civil também focaram esforços comunicacionais sobre
o aumento de casos de violência doméstica contra mulheres. Diante deste
cenário, investigamos a ação discursiva na rede social Instagram, da ONU
Mulheres, entidade ligada à Organização das Nações Unidas e que tem
atuação no Brasil, diante do crescimento da violência doméstica durante a
pandemia da Covid-19. Neste artigo analisamos especificamente a moda-
lidade nos textos dos posts do órgão, com o intuito de observar o compro-
metimento da instituição em seu posicionamento e ação discursiva. Como
decisão metodológica para a composição de corpus, limitamos o recorte
temporal a cinco meses, de março a julho de 2020, para a coleta de dados
dos posts do perfil.

Neste artigo, tomamos o arcabouço teórico-metodológico dos estudos críti-


cos do discurso (ECD), com o suporte teórico também dos estudos decolo-
niais e dos estudos de gênero, como parte de investigação em andamento
baseada na análise situada de textos. A pesquisa é relevante também por
seu enquadramento na crise social de disseminação mundial de uma nova
doença e de esforços contínuos de governos de todo o mundo para controlar
e amortizar os efeitos de curto, médio e longo prazos da Covid-19.

A emergência mundial de saúde também lançou luz sobre a profundidade


e a gravidade de problemas sociais vivenciados por mulheres de todas as

1 Entendemos que a violência doméstica não é restrita à violência de homens contra mulheres, pois extra-
pola os limites da cisheteronormatividade. Contudo, neste trabalho concentramos o olhar sobre a violência
doméstica praticada por homens contra mulheres.
2 A nota técnica “Violência Doméstica durante a pandemia de covid-19” pode ser acessada emhttps://forum-
seguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-19-v3.pdf. Acessada em 27 de abril
de 2021.
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nacionalidades. De acordo com a ONU Mulheres3, na saúde elas estão na


linha de frente no atendimento médico e social, representando 70% da
força de trabalho nestes setores em todo o mundo. Com isso, estão também
mais expostas ao novo vírus. As mulheres também são maioria no mercado
informal e no trabalho doméstico, ocupações de alta vulnerabilidade. No
ambiente familiar, a maior quantidade dos serviços domésticos é reali-
zada por mulheres, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística4. Exaustas e confinadas dentro de casa por conta do isolamento
social imposto pela pandemia, elas ainda estão mais suscetíveis à violência
doméstica.

Com este artigo, queremos contribuir para compreensão do papel de um


organismo internacional com atuação no Brasil a respeito do embate ideo-
lógico em torno de gênero e de caminhos para uma comunicação contra
hegemônica, cidadã, humanizada e empática. Para isso, além desta intro-
dução e das considerações finais, organizamos o artigo em três seções: na
primeira assumimos perspectivas sobre poder, gênero e interseccionali-
dade; em seguida, apresentamos nossa abordagem em estudos críticos do
discurso neste artigo e definimos o escopo analítico; por fim, na terceira
seção, apresentamos nossas análises.

2. Poder, gênero e interseccionalidade

Sabemos que somente uma perspectiva discursiva não é suficiente para


discutir o problema da violência doméstica contra mulheres no Brasil, assim
como o nível de desigualdades ao qual as mulheres brasileiras estão subme-
tidas. Por isso, buscamos também o suporte de conceitos e categorias dos
estudos decoloniais e dos estudos de gênero para compreender o atraves-
samento dos componentes classe, gênero e raça na prática e nos eventos
discursivos investigados. Também foram necessários levantamento sobre
o contexto da criação da ONU e reflexão sobre o papel deste ator global
para analisar o discurso institucional da ONU Mulheres no Instagram, seu
posicionamento e comprometimento com as questões levantadas.

A criação da nova organização internacional ocorreu após o fim da Segunda


Guerra Mundial, com países enfrentando graves dificuldades em busca de
se reconstruírem economicamente. Com apoio de 50 nações, a missão da
ONU à época era unir os países e afastar a possibilidade de uma outra gue-
rra mundial. Com o passar das décadas e parcerias com fundos, agências e
organizações, o Sistema ONU ampliou sua atuação, hoje com foco assumido
de construir um mundo mais sustentável e frear a mudança climática, entre
outras metas estruturantes.

3 Informações da notícia “COVID-19: Mulheres à frente e no centro”, sobre Declaração de Phumzile Mlambo-
Ngcuka, vice-secretária geral da ONU e diretora executiva da ONU Mulheres, podem ser acessadas em http://
www.onumulheres.org.br/noticias/covid-19-mulheres-a-frente-e-no-centro. Acessado em 16/11/2020.
4 Informações da notícia “Em média, mulheres dedicam 10,4 horas por semana a mais que os homens aos
afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas” podem ser acessadas em https://agenciadenoticias.ibge.
gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27877-em-media-mulheres-dedicam-
10-4-horas-por-semana-a-mais-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas. Aces-
sado em 16/11/2020.
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Com presença no Brasil desde 1947, a ONU apoia o governo brasileiro


com “projetos de cooperação internacional, no desenvolvimento de capa-
cidades humanas e institucionais para enfrentar os desafios da superação
das assimetrias sociais e econômicas, o exercício pleno da cidadania e dos
direitos humanos”, entre outras iniciativas, que têm como guia os Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável5 estabelecidos pela instituição. Entre os
objetivos está a Igualdade de Gênero6, especificamente “Alcançar a igual-
dade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Em 2010 foi
criada a ONU Mulheres, que enuncia esforços para promoção da liderança
e participação política das mulheres; empoderamento econômico; fim da
violência contra mulheres e meninas; paz e segurança e emergências huma-
nitárias; governança e planejamento, e normas globais e regionais.

No âmbito dos estudos decoloniais, Ballestrin (2017) propõe um resgate


histórico sobre como a hegemonia dos EUA, tanto econômica quanto militar,
foi projetada mundialmente. Para Ballestrin, a construção da ONU (1945)
e a queda do muro de Berlim (1989) simbolizam essa projeção internacio-
nal. Com isso, o colonialismo europeu teria dado lugar ao imperialismo
estadunidense, o que causou uma ruptura no continente americano. Com
a ausência de colônias formalmente constituídas, “o imperialismo passou a
se movimentar de uma maneira mais informal e nebulosa” (Ballestrin 2017,
516), agora por força do capitalismo e seus tentáculos econômicos. A autora
também aponta que “à movimentação de estados individuais ou agrupados
soma-se uma miríade muito heterogênea de atores que conectam o local e
o global, transnacionalmente” (p. 526), inaugurando a agenda política da
governança global:

a imperialidade subjacente à governança global oferece um imenso universo de possibi-


lidades que atravessa as grandes agendas internacionais e sua instrumentalização para
fins imperiais –democracia, direitos humanos, segurança, desenvolvimento, meio am-
biente, cooperação, ajuda humanitária, combate ao terrorismo. Ou seja, muito mais que
ações imperiais evidentes, frequentemente lembradas pela sua semelhança com o velho
imperialismo, especialmente a partir do 11 de setembro de 2001 –invasão, intervenção,
transferências de armamentos, criação de zonas de conflito, exércitos mercenários, bases
militares (Iraque, Afeganistão, entre outros)–, a imperialidade pode ser manifestada em
agendas pacíficas e colaborativas. Nos casos acima, nota-se, a impunidade mediante
as violações do direito internacional, dos direitos humanos e das decisões da ONU é o
que permite o pensamento de países com configuração de Império e dos limites desse
próprio sistema de proteção (Ballestrin 2017, 528).

Esta reflexão ajuda a pensar sobre o papel estratégico de organismos inter-


nacionais, a exemplo da ONU, na dinâmica da geopolítica global.

Ainda no campo dos estudos decoloniais, o Grupo Modernidade/


Colonialidade (M/C), formado por intelectuais latino-americanos situados
em diversas universidades das Américas, foi um dos primeiros a inserir
a América Latina no debate pós-colonial, no final dos anos 1990. Como

5 As Nações Unidas no Brasil: https://brasil.un.org/pt-br/about/about-the-un. Acessado em 21/08/2021.


6 Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5. Acessado em 21/08/2021.
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herança deste movimento, temos os conceitos centrais de colonialidade do


poder, colonialidade do saber e colonialidade do ser, e noção de “giro deco-
lonial”. Desenvolvido primeiramente pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano,
o termo “colonialidade do poder” busca explicar como as relações entre
colônias e metrópoles não foram extintas com o fim das administrações por
meio do colonialismo.

Numa expansão do termo, o controle do gênero e da sexualidade é apontado


como fazendo parte destes entrelaçamentos estruturais de poder. Assim,
as classificações de raça, gênero e trabalho são basilares no processo de
constituição do capitalismo mundial colonial/moderno (Ballestrin 2013). Isso
significa que nossas experiências são generificadas, racializadas e situadas
também nas relações de classe e de trabalho. Para Ballestrin (2013), apesar
de a colonialidade aludir diversas formas de opressão:

nem todas as situações de opressão são consequências do colonialismo –veja-se a história


do patriarcado e da escravidão–, ainda que possam ser reforçadas ou ser indiretamente
reproduzidas por ele. Em suma, ainda que não haja colonialismo sem exploração ou
opressão, o inverso nem sempre é verdadeiro (Ballestrin 2014, 90).

Para a autora, estruturas de poder basilares como patriarcado e escravi-


dão não foram inauguradas com o processo de colonização, mas existiam
antes dele. Porém, ainda que diversas formas de escravidão existissem
ao longo da História, foi na modernidade europeia que se deu a invenção
sem precedentes de “um sistema mercantil em que seres humanos vira-
vam mercadoria e seu comércio resultava em vultosos lucros” (Schwarcz e
Starling 2015, 65). Também as opressões baseadas em gênero, ainda que
desgraçadamente presentes em muitos contextos espaço-temporais, encon-
trou na colonial-modernidade novas formas de expressão, em “exercícios
de poder concretos, intrincadamente relacionados, alguns corpo a corpo,
alguns legalistas, alguns dentro de uma sala onde as mulheres indígenas
fêmeas-bestiais-não-civilizadas são obrigadas a tecer dia e noite, outros no
confessionário” (Lugones 2014, 948).

Como lembram Feijó e Resende (2020), um marco de início da reflexão


centrada no gênero nos estudos decoloniais é o texto de Ochy Curiel publi-
cado em 2007. Curiel (2007, 93) sustenta crítica aos estudos decoloniais,
afirmando (sobre Mignolo, Quijano, Dussel) que “[e]mbora coloquem a
raça como critério para a classificação de populações que determinam
posições na divisão sexual do trabalho, apenas mencionam de passagem seu
relacionamento com sexo e sexualidade, além de não se referirem às con-
tribuições de muitas feministas na criação desse pensamento”. No mesmo
ano, María Lugones (2007) entrou em produtivo diálogo com as noções de
colonialidade do poder, de Quijano, de diferença colonial, de Mignolo, e
de colonialidade do ser, de Maldonado Torres, fundamentando seu próprio
conceito de colonialidade de gênero, depois ampliado na proposição de um
feminismo decolonial (Lugones 2014).

Lugones (2014) problematiza a inclusão do controle do gênero no concei-


to de colonialidade do poder e defende o uso do termo “colonialidade do
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gênero”. Para a autora, o gênero foi introduzido pelo elemento colonial.


De acordo com esse quadro pensado por Lugones, os homens europeus
brancos burgueses eram civilizados; portanto, plenamente humanos. Já
os colonizados eram não-humanos e, por isso, não tinham gênero, sendo
identificados como machos e fêmeas: “Machos tornaram-se não-humanos-
por-não-homens, e fêmeas colonizadas tornaram-se não-humanas- por-não-
mulheres” (Lugones 2014, 937). Lugones defende que, ao contrário da
colonização, a colonialidade do gênero está conosco e pode ser percebida
quando pensamos na “intersecção de gênero/classe/raça como construtos
centrais do sistema de poder capitalista mundial” (p. 939).

Este conceito de interseccionalidade ao qual Lugones faz referência, marco


do ativismo negro, é uma lente analítica sobre a interação estrutural e
suas consequências. “Nos mostra como e quando mulheres negras são
discriminadas e estão mais vezes posicionadas em avenidas identitárias,
que farão delas vulneráveis à colisão das estruturas e fluxos modernos”
(Akotirene 2019, 63).

O conceito de interseccionalidade foi sistematizado, inicialmente, por


Kimberlé Crenshaw (nos artigos “Demarginalizing the intersection of race
and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist
theory and antiracist politics”, de 1989, “Mapping the margins: intersectio-
nality, identity politics, and violence against women of color”, de 1990-91).
A incidência cruzada do racismo e do patriarcado nas práticas de violência
contra mulheres negras está na proposição analítica de interseccionalidade
estrutural apresentada por Crenshaw, em que a autora defende que políticas
públicas para mulheres em situação de violência doméstica levadas para
abrigos, por exemplo, precisam considerar raça, gênero e classe.

Na maioria dos casos, a agressão física que leva as mulheres a esses abrigos é apenas a
manifestação mais imediata da subordinação que elas experimentam. Muitas mulheres
que procuram proteção estão desempregadas ou subempregadas e um bom número
delas são pobres. Os abrigos que servem a essas mulheres não podem se dar ao luxo de
lidar apenas com a violência infligida pelo agressor; eles também devem confrontar as
outras formas de dominação multicamadas e rotineiras que muitas vezes convergem para
a vida dessas mulheres, dificultando sua capacidade de criar alternativas às relações abu-
sivas que as levaram a abrigos em primeiro lugar (Crenshaw 1991, 1245, tradução nossa).

Para Crenshaw, esse fardo carregado por mulheres pobres, negras e em


situação de violência interage com vulnerabilidades preexistentes para
criar mais uma dimensão de destituição de poder.

Já na categoria de interseccionalidade política, a autora discute a politi-


zação da violência doméstica, em que o cruzamento de elementos de raça
e cultura, mas também concepções de vida pública, vida privada e ética
comunitária, podem contribuir para a supressão da violência doméstica.
Haveria uma hesitação de mulheres não-brancas em chamar a polícia, devi-
do a uma falta de confiança para submeter sua vida privada ao escrutínio e
controle de uma força policial que é frequentemente hostil, o que também
é fato no contexto brasileiro.
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Ao falar sobre o racismo estrutural no âmbito do poder público, Akotirene


(2019) defende que as queixas das mulheres negras sofrem estigmatização
por morarem em espaços considerados perigosos, vendidos pela mídia tra-
dicional como pontos onde há criminalidade. “A polícia que mata os homens
no espaço público é a mesma que deixa as mulheres morrerem dentro de
suas casas – o desprestígio das lágrimas de mulheres negras invalida o
pedido de socorro político, epistemológico e policial” (Akotirene 2019, 69).

Outra questão levantada pela autora é sobre mulheres, muitas vezes, bus-
carem o fim do ciclo da violência doméstica, mas sem necessariamente
desejar a prisão de seus companheiros, “levando em conta a marca colonial
conter a privação de liberdade”. Isso mostra, segundo Akotirene, traços
de elitismo e racismo na própria Lei Maria da Penha (Lei N.°11.340, de 7
de agosto de 2006).

Para Carneiro (2011, 15), a ausência de políticas públicas direcionadas às


pessoas negras libertadas após séculos de escravidão fez perdurar uma
questão essencial acerca dos direitos humanos no Brasil: “a prevalência
da concepção de que certos humanos são mais ou menos humanos do que
outros, o que, consequentemente, leva à naturalização da desigualdade de
direitos”. A autora defende que tanto o mito da democracia racial (ao pregar
a miscigenação) quanto a perspectiva de lutas de classes (ao privilegiar
a perspectiva analítica das lutas de classes para a compreensão das des-
igualdades sociais) têm em comum “a invisibilidade da intersecção de raça
para as questões dos direitos humanos, da justiça social e da consolidação
democrática, elementos que dificultam a erradicação das desigualdades
raciais no Brasil” (Carneiro 2011, 19).

As autoras que convocamos nesta seção nos apontam a complexidade da


chave analítica de gênero, que ganha potência nos entrecruzamentos deco-
loniais e interseccionais. Na próxima seção, buscaremos explorar como
esta categoria pode ser produtivamente acionada nos estudos críticos do
discurso, e em especial na pesquisa de que aqui tratamos.

3. Estudos críticos do discurso e a análise discursiva crítica na


categoria de modalidade

Além do suporte teórico dos estudos decoloniais e dos estudos de gênero,


também utilizamos conceitos e ferramentas analíticas oferecidas nos estu-
dos críticos do discurso (ECD), para investigar, com base na análise situada
de textos, a ação discursiva na rede social Instagram da ONU Mulheres,
entidade ligada à Organização das Nações Unidas e que tem atuação no
Brasil, diante do crescimento da violência doméstica durante a pandemia
da Covid-19. Analisamos especificamente as modalizações nos textos dos
posts do órgão, buscando cruzar essa ferramenta analítica às noções de
colonialidade de gênero e interseccionalidade.

Em Discurso e mudança social (2001), Norman Fairclough concebe lin-


guagem como uma forma de prática social, sendo o discurso um modo de
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agir sobre o mundo e sobre os outros, implicando a seguinte relação entre


discurso e a estrutura social:

O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que,


direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções,
como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso
é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo,
constituindo e construindo o mundo em significado (Fairclough 2001, 91).

Na citação, estão presentes algumas das noções teóricas basilares nessa


perspectiva dos estudos críticos do discurso: estruturas, práticas e eventos.
Em um mapa ontológico do funcionamento social da linguagem que parte
dos modelos de pesquisa crítico-realista de Bhaskar (1998) e discursiva de
Chouliaraki e Fairclough (1999), Resende (2017) posiciona, no estrato do
potencial, estruturas e práticas sociais, e, no estrato do realizado, eventos
materializados num dado espaço-tempo, conforme a figura:

Figura 1. Resende (2017).

Os textos dos posts da ONU Mulheres, que estão no estrato realizado como
parte de eventos discursivos em suporte digital, serão analisados para
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buscar compreender as questões levantadas na introdução deste artigo. Por


meio dos textos e imagens dos posts, entendidos como eventos discursivos
ligados a práticas sociais, é possível acessar “traços da ação individual e
social que lhe deu origem e de que faz parte” (Vieira e Resende 2016, 22)
e, assim, compreender o funcionamento da prática analisada. Interessa-nos,
conforme já antecipado na seção anterior, observar como as estruturas de
classe-gênero-racialidade-sexualidade se entrecruzam em discursos-estilos
e gêneros-suportes, ensejando os textos que materializam também certas
ações-relações, representações-identificações.

Para isso, mostrou-se produtiva a aplicação da categoria modalidade.


Fairclough (2003, 166) entende que “aquilo com que você se compromete
é uma parte significativa do que você é —portanto, as opções de modali-
dade em textos podem ser vistas como parte do processo de texturizar a
autoidentidade”. O que a modalidade agrega de sentido a um discurso é
importante não somente para a função identificacional da linguagem, mas
também para a ação discursiva e a representação, pois gêneros-suportes e
discursos-estilos são interconectados, separados apenas para a construção
teórica e metodológica, mas nunca apartados na realidade.

Ao discorrer sobre esta categoria, Fairclough (2003) teve como base estudos
de Halliday, para quem, por meio da linguagem, interagimos com outras
pessoas no dia a dia para estabelecer e manter relações. Segundo Halliday
(2014), esta interação, ou troca, entre os participantes acontece por meio
de funções de fala. As duas principais —oferecer e solicitar— podem se rea-
lizar a partir da natureza do que está sendo trocado: informações ou bens
e serviços. Essas duas variáveis, quando tomadas em conjunto, definem as
quatro funções principais de fala: oferta, comando, declaração e pergun-
ta. Estas, por sua vez, são correspondidas por um conjunto de respostas
desejadas: aceitar (ou não) uma oferta, executar (ou não) um comando,
reconhecer (ou não) uma declaração e responder (ou não) a uma pergunta
(Halliday 2014, 135)7.

A modalidade denota significados relacionados ao julgamento, tomada de


posição e ponto de vista das pessoas quando agem discursivamente nesses
movimentos. Pode ser expressa nos seguintes graus: probabilidade, usabilida-
de, obrigação e inclinação. A modalidade epistêmica ocorre quando há troca
de conhecimento/informação, quando “as informações podem ser expressas
em graus de probabilidade ou usualidade” (Fuzer e Cabral 2014, 114).

Já a modalidade deôntica prevê ofertas ou comandos. “Em comandos, há


graus de obrigação (...) em ofertas, há graus de inclinação” (Fuzer e Cabral
2014, 115). Essa categoria também pode indicar graus de julgamento das
pessoas sobre o que dizem, que pode ser classificado como baixo, médio e
alto. De acordo com Silva (2010):

7 Os movimentos interativos da linguagem na Linguística Sistêmico-Funcional são realizados dentro do sis-


tema de MODO. As orações neste sistema podem se apresentar como sendo interrogativas, declarativas e
imperativas, e são constituídas de dois componentes: o modo e o resíduo. Neste primeiro componente, estão
o sujeito e o finito da oração. O sujeito é quem pratica uma ação e o finito é o componente que traz os sinali-
zadores de tempo, polaridades (positiva ou negativa) e modalidade (entre o sim e o não) dos falantes.
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ISSN 2314-2189
A escalada da violência doméstica contra mulher... doi: 10.34096/sys.n40.10492 131
Cintia de Freitas Rodrigues Loureiro, Viviane Resende Signo y Seña 40 (julio-diciembre, 2021): [121-143]

A modalidade envolve vários graus e escalas, dependendo do grau de certeza expresso


pelo falante sobre a validade de uma proposição ou o grau de pressão para que alguém
realize uma ordem. Também pode expressar o grau de comprometimento do falante em
relação à validade do que diz. Isso tem implicações importantes na análise de distintos
gêneros. As proposições podem indicar o grau de responsabilidade do falante que pode
expressar o seu ponto de vista de maneira subjetiva, ou pode expressá-lo de maneira
objetiva, para que pareça ser uma qualidade do próprio evento (Silva 2010, 72).

Para dar vazão a esta dimensão discursiva, Fairclough (2001, 200) aponta
que a modalidade pode se manifestar para além das palavras que funcionam
como operadores da modalização, como verbos modais, adjuntos modais,
grupos adverbiais e também algumas expressões que denotem noções de
probabilidade ou usualidade. Os tempos verbais e as indeterminações tam-
bém estão entre as possibilidades de operação dos mecanismos de moda-
lidade nos textos. O uso do presente do indicativo, por exemplo, pode ser
interpretado como uma modalidade categórica.

Com este entendimento sobre a categoria de modalidade, passamos na


próxima seção à análise dos dados.

4. Análises

Neste artigo —parte de um estudo mais amplo— o foco é a ação discur-


siva sobre a escalada da violência doméstica nos posts do Instagram
da ONU Mulheres. Analisamos, a seguir, como a modalidade nos tex-
tos está dialeticamente conectada com a ação discursiva da instituição,
constituindo-0se mutualmente. Para isso, organizamos a seção analítica
em duas subseções: análise estrutural e análise interacional. A primeira
etapa corresponde à uma macroanálise realizada a partir da primeira
aproximação com os textos e traz informações sobre a presença digi-
tal no Instagram do organismo internacional, assim como o conteúdo
veiculado e o esforço comunicacional da conta institucional. A segunda
concentra-se na análise textual.

4.1. Análise estrutural

A prática social em que se situa o recorte que compõe o corpus para este
artigo é a prática de produção de conteúdo digital, de perfil institucional
de organismo internacional, em rede social —neste caso, o perfil da ONU
Mulheres no Instagram. A análise das postagens identificou os objetivos
comunicacionais do organismo internacional como sendo a promoção de
ações institucionais do órgão e de seus parceiros; campanhas informativas
e serviços.

Os textos analisados são materializados no gênero-suporte (Resende 2017)


post de rede social, cujas possibilidades e limitações podem variar de uma
rede para outra, mas que também correspondem a um modo relativamente
estável de interação em práticas sociais. Há linguagem tanto verbal quanto
não-verbal nos posts coletados. As legendas são compostas por linguagem
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verbal e os banners que ilustram os posts são compostos por linguagens


visual e verbal. Há coesão e complementariedade de informação entre
os elementos constituintes para atingir os objetivos comunicacionais da
organização.

Como se trata de uma conta oficial de um organismo internacional em


rede social, os textos não são assinados, sendo a autoria atribuída à insti-
tuição. A produção desses conteúdos requer perfis profissionais específi-
cos, com capacidade técnica para executar a produção das peças visuais
e audiovisuais (banners e vídeos), assim como os textos das legendas dos
posts —trata-se, portanto, de uso profissional de tecnologias discursivas.
A análise das postagens aponta também que há um planejamento de con-
teúdo para o perfil, com objetivos comunicacionais específicos, delineados
para programação, produção e publicação dos conteúdos digitais. Para
a circulação do conteúdo digital, são necessários, em termos da ativi-
dade material: computador ou celular, acesso à internet e conta aberta
no Instagram. Além do texto para a legenda, também são produzidos na
atividade banners, textos para compor as imagens, vídeos, textos para
legendagem dos vídeos.

A audiência primária do conteúdo do perfil da ONU Mulheres no Instagram


são as/os 242 mil seguidoras/es do perfil (números de 30 de abril de 2021).
No entanto, usuárias e usuários do Instagram que busquem pelos termos
das hashtags (#VozesDasMulheresSobreCovid19 #RespostaCovid19 #coro-
navírus) também poderão encontrar os posts. O conteúdo pode, ainda, ser
compartilhado a partir do Instagram para outros suportes, como WhatsApp,
Facebook, Twitter, etc.

4.2. Análise interacional

Os 28 posts selecionados para análise neste artigo foram publicados no


perfil no Instagram da @onumulheresbr entre os dias 15 de março e 31
de julho de 2020. O Instagram é um aplicativo de rede social lançado
há 10 anos que se firmou pelo seu apelo ao conteúdo visual, com foco,
primeiramente, em fotos e, posteriormente, também em vídeos. Ao longo
dos anos e com ascendente popularidade, o app passou a disponibilizar
novas funcionalidades. Hoje, para publicar um post, é necessário fazer o
upload de um arquivo de imagem ou de vídeo, com a opção de inserir ou
não legendas. No caso do perfil analisado, tanto o conteúdo visual quanto
o textual são bem explorados. Contudo, para esta análise, o escopo será
o conteúdo textual da legenda e dos banners estáticos que trazem texto
em sua composição.

Numa macroanálise inicial dos textos coletados, com o objetivo de mapear


a ocorrência das principais palavras dentro do assunto levantado nos posts
(violência doméstica contra mulheres no contexto da pandemia da Covid-
19), a figura 2 foi elaborada com auxílio de um software online de produção
de nuvens de palavras:
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Figura 2. Nuvem de palavras: conteúdo verbal das publicações de @onumulheresbr (elaboração própria).

A nuvem aponta que as palavras mais frequentes nos posts analisados


foram: mulheres (100), violência (59), contra (24), doméstica (20), pan-
demia (18), gênero (15) e coronavírus (14). Essas primeiras palavras são
analiticamente pouco significativas, já que sua alta frequência decorre da
própria decisão metodológica do estudo, na delimitação do corpus por cri-
tério temático. Além delas, também estão entre os léxicos mais utilizados as
palavras negras (14), situação (14), resposta (9), social (9) e apoio (8), mais
significativas porque permitem desenhar sentidos específicos que aqueles
temas (violência, mulheres, covid) ganham nas publicações estudadas. A
partir deste levantamento, iniciamos de forma mais atenta a microanálise
dos posts, sempre com atenção ao contexto em que as palavras mais fre-
quentes apareciam nas frases.

A legenda do post a seguir, publicado em 24 de março de 2020, é iniciada


por uma pergunta que traz dados de fonte não identificada seguida de
oração com modalidade epistêmica de probabilidade (destaque nosso):
“Medidas de isolamento devido ao #Covid19 podem aumentar os riscos
de violência doméstica”. A presença de modalidade na oração projeta o
que pode acontecer de negativo com as mulheres em isolamento devido à
emergência mundial de saúde. A organização se coloca, dessa forma, na
posição de conhecimento, e, portanto, de capacidade de previsão do futuro,
de alerta social.

O que na postagem anterior se projeta a partir de conhecimento de fonte


não explicitada, e tomado então como conhecimento legítimo ou universal,
é amplificado no post a seguir, em que a emergência da violência contra
mulheres e meninas já não é uma projeção de futuro, mas uma demanda
(“indispensável”) de prevenção:
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Figura 3. Banner em publicação de @onumulheresbr de 24/03/2020 (conta de @onumulheresbr no


Instagram).

No texto do banner, a modalidade é deôntica de obrigação: “É indispensável


oferecer serviços de atenção a mulheres vítimas/sobreviventes de violência
durante a pandemia e desenvolver modalidades que facilitem o acesso delas
aos serviços” (destaques nossos). A oração apresenta alto valor de julga-
mento ao utilizar modalidade categórica do presente do indicativo (“é”) e
ao apontar a necessidade (“indispensável”) de continuar oferecendo rede de
apoio a vítimas de violência de gênero. Essa necessidade encontra suporte
no comentário de @onumulheres (na imagem, na lateral esquerda) sobre a
experiência de violência das mulheres latinas e caribenhas. O comentário se
inicia com “Você sabia que”, o que aponta uma autoidentificação baseada
em conhecimento por parte da organização, é uma modalidade epistêmica
(socialmente apreciada) de oferta de informação. No entanto, tanto a forma
de se referir às mulheres em situação de violência quanto aos serviços que
elas devem procurar são muito vagas. Não há um direcionamento concreto
para qual serviço procurar e a reflexão sobre a possibilidade de acesso a
esse serviço por parte de todas as mulheres. Essa superficialidade é um
padrão encontrado em nossa análise que vamos discutir ao longo desta
seção.

No que se refere às modalizações presentes no corpus estudado aqui, foram


mapeadas instâncias modais não polares em 28 posts, sendo: 18 do tipo
epistêmica de probabilidade; 11 deôntica de obrigação; e uma ocorrência
de modalidade epistêmica de usualidade. Este levantamento apontou os
primeiros indícios de comprometimento com as informações repassadas
pela ONU Mulheres nas publicações no Instagram e que o reforço discursivo
também inclui indicações de necessidades e obrigações.

O quadro a seguir organiza excertos do mapeamento de modalidades epis-


têmicas em nossa análise. Adiante também são organizados fragmentos de
textos em que mapeamos modalidades deônticas.
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Medidas de isolamento devido ao #COVID-19 podem aumentar os riscos de violência


A
doméstica.

O impacto econômico da pandemia Covid-19 pode dificultar que uma mulher deixe o
B
parceiro violento, assim como pode aumentar o risco de exploração sexual.

Elas estão mais expostas à violência de gênero e ao tráfico. Estes riscos podem aumentar
C devido às restrições de mobilidades internas e externas e à falta de documentação, o que
torna mais difícil o acesso delas a serviços de saúde e medicamentos.

Neste momento de necessária reclusão, as mulheres podem estar sujeitas à violência de


D
maridos, companheiros.

O risco de violência contra as mulheres tende a aumentar quando famílias em contextos de


E violência domésticas são colocadas sob tensão, isolamento e quarentena.

F O distanciamento social não pode significar isolamento nem abandono das mulheres.

O confinamento pode fazer com que situações de violência doméstica ou exploração sexual
G
contra as mulheres apareçam ou piorem.

Essas maravilhosas aqui em cima, são algumas das integrantes do Comitê de Mulheres
Negras rumo ao planeta 50-50 em 2030. Este projeto, que é parceiro da @onumulheresbr,
H vem pensando em sustentabilidade no mais amplo sentido da palavra e priorizando a vida
das mulheres negras, que é comprovadamente o grupo que vem sendo mais afetado diante
da pandemia por Covid-19.
Quadro 1. Mapeamento de modalidades epistêmicas de probabilidade no corpus (destaques nossos; elaboração
própria).

No quadro 1, organizamos oito das orações em que há modalidade epistê-


mica de probabilidade, apontando comprometimento com a verdade sobre
o que é discutido em relação ao problema social da violência doméstica. A
definição de modalidade epistêmica como “comprometimento com a verda-
de” deve ser entendida com ressalvas: a perspectiva de verdade ou falsidade
de uma afirmação factual é sempre posicionada. Portanto, quando usamos
este termo, estamos identificando a estratégia discursiva de modalidade
utilizada para que informações sejam representadas como (mais ou menos)
verdadeiras.

Esta seleção acima foi feita para agrupar os fragmentos em que o prin-
cipal foco da ação discursiva é alertar para os efeitos da pandemia da
Covid-19 na vida de mulheres. Entre as possíveis consequências, algumas
já registradas oficialmente por órgãos públicos, estão: aumentar riscos de
violência doméstica (A); aumentar o risco do parceiro se tornar violento
e de exploração sexual (B); maior exposição à violência de gênero e ao
tráfico (C); aumento do risco de violência por parte de maridos e compan-
heiros (D); aumento do risco de violência contra mulheres (E); aumento de
abandono de mulheres (F); surgimento ou agravamento de situações de
violência doméstica e exploração sexual (G); atentado à vida de mulheres
negras, o grupo mais afetado na pandemia (H). A modalização epistêmica
de probabilidade mais frequente nesses casos é com “poder” (ou “tender”),
vinculado a “aumentar”, “dificultar”, “estar sujeita” e o léxico do risco. Há
também modalidade categórica em C, com o uso do presente do indicativo
(“estão” e “torna”). Assim, o que essas modalizações realizam é ênfase
sobre situações de violência já postas, em termos de tendência diante das
limitações impostas pela pandemia, seja pelo necessário isolamento, seja
pela precariedade anterior e agora agravada.
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Os principais fatores, de acordo com os textos, para a escalada de violência


contra mulheres são identificados como: medidas de isolamento; impacto
econômico; restrições de mobilidade; reclusão; contextos de tensão, iso-
lamento e quarentena; distanciamento social e confinamento. Os textos
da ONU Mulheres atribuem relação de causalidade entre o contexto de
isolamento e o aumento da violência doméstica, sem um aprofundamento
maior sobre a raiz do problema social da violência de gênero. Em apenas
um dos casos destacados acima (excerto H) há reconhecimento da violência
interseccional.

Numa escala de força argumentativa com modalidade epistêmica, pode-


mos apontar como maior comprometimento com a verdade justamente
o trecho em H, com o advérbio “comprovadamente” sendo um operador
modal enfático. A instituição defende que a vida de mulheres negras deve
ser priorizada, por ser o grupo mais afetado pelos efeitos da pandemia.
Neste excerto, o reconhecimento da interseccionalidade, ou seja, do atra-
vessamento de estruturas de poder em mulheres negras, é o que respalda
a força argumentativa na ONU Mulheres.

Já o trecho em que há menos força na modalidade epistêmica seria E, pois


o verbo “tender” sugere menor probabilidade do que “poder”, empregado
nos outros casos. O verbo modal “poder” foi empregado seis vezes com
força argumentativa de consternação e preocupação. Apesar dessa força
argumentativa de consternação, o elemento modalizador mitiga o fato já
então presente do aumento da violência, que é expresso não como fato
já concretizado, mas como probabilidade. As exceções são os trechos em
F e em H. No primeiro caso, a modalização aqui é articulada à negação
(“não pode significar”), o que funciona como uma chamada à intervenção
social; no segundo caso, já vimos, a modalidade epistêmica é de reforço da
realidade narrada sobre a violência que se reconhece como “afetando” as
mulheres negras especialmente.

Nestes exemplos analisados de modalidades de probabilidade, a fonte das


informações é a ONU Mulheres. Como organismo internacional ativo do
campo dos direitos humanos das mulheres, que reúne especialistas no tema,
esta autoria nos textos traz o peso da autoridade da própria instituição.

No quadro a seguir, estão reunidos trechos em que há ocorrência de moda-


lidade epistêmica retirados de posts que divulgam canais de denúncias
contra violência doméstica e conscientizam sobre o apoio às mulheres em
situação de violência.
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Ah, você pode me acionar também no Google Assistente. Basta dizer: Ok, Google, falar
I
com Robô ISA.

Bate-papo será sobre violência doméstica e familiar em tempos de pandemia #Covid19 e


sobre a ISA.bot, robô que pode ser acessada no Messenger da Página IsaBot no Facebook,
J
e ativada, por escrito ou verbalmente, por “OK Google, falar com Robô Isa” no Google
Assistente.

Então, se você conhece alguém ou você mesma está passando por alguma situação de
K
violência e não sabe o que fazer ou a quem recorrer, eu posso te orientar.

L Somos todas e todos responsáveis e podemos apoiá-las e oferecer ajuda.

Em tempos de distanciamento social, você pode fazer a diferença positiva em acolher e


M
apoiar as vítimas da violência doméstica e familiar.
Quadro 2. Mapeamento de modalidades epistêmicas no corpus (destaques nossos; elaboração própria).

Os trechos I, J, K, L, M também apresentam modalidade epistêmica de


probabilidade a partir do uso do verbo “poder”, mas o emprego desta força
argumentativa direciona não só para conscientizar e contextualizar a atual
situação no contexto social no momento de emergência mundial de saúde,
mas também corresponde a um chamado para agência individual e coletiva.

I, J e K são textos extraídos de posts cuja ação discursiva principal é de


divulgação da ferramenta online ISA.bot, que recebe denúncias de vio-
lência doméstica contra mulheres. Em I e K, é a voz do robô que apela à
audiência em primeira pessoa (“me”, “eu”), apresentando-se e explicando
o funcionamento da ferramenta, além de instigar a audiência a denunciar
casos suspeitos de violência contra mulheres. Os fragmentos L e M tam-
bém agem discursivamente no sentido de conscientizar sobre o contexto
de pandemia e a importância de apoiar, oferecer ajuda e acolher vítimas da
violência doméstica. De acordo com L, “somos todos e todas responsáveis”,
uma modalidade categórica, portanto devemos agir. Nesses dois excertos,
trata-se então de convocar à ação, o que faz com que a modalidade epistê-
mica esteja de fato realizando uma força deôntica.

No quadro seguinte, estão organizados alguns trechos em que há modali-


dade deôntica de obrigação, que aponta o grau de necessidade de ações
preventivas e enérgicas:
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É indispensável oferecer serviços de atenção a mulheres vítimas/sobreviventes de violência


N
durante a pandemia e desenvolver modalidades que facilitem o acesso delas aos serviços.

Trabalhadoras do setor de saúde, trabalhadoras domésticas, mulheres na economia informal,


migrantes, refugiadas e mulheres em situação de violência são algumas das mulheres mais
O
expostas ao COVID-19 e precisam ser envolvidas em todas as fases da resposta e nas
tomadas de decisão nacionais e locais.

O que governos, empresas, meios de comunicação e sociedade civil devem fazer para
P
responder à crise?

Que ações devem tomar governos, empresas, sociedade civil e meios de comunicação na
Q resposta ao aumento da violência contra as mulheres, resultado do distanciamento social?

R Todas e todos temos de agir para proteger as mulheres em situação de violência.

Priorizar medidas de prevenção à violência contra mulheres e meninas e fornecer


S
assistência a elas, deve ser parte central das ações de resposta à pandemia da #COVID19.

Responder às necessidades das mulheres em situação de violência deve ser prioridade de


T
todas as pessoas.

#FicaEmCasa é uma recomendação que todes devemos seguir, mas sabemos que a casa
U
também é um lugar perigoso para muitas mulheres.

Devemos enfrentar o racismo denunciando o tratamento desigual por parte de órgãos ou


V pessoas que prestam serviços de saúde e de proteção social, pois no polo inferior estão as
mulheres negras.
Quadro 3. Mapeamento de modalidades deônticas de obrigação no corpus (destaques nossos; elaboração própria).

De acordo com os fragmentos acima, a ação discursiva evidencia o posicio-


namento da ONU Mulheres de que providências (com uso do léxico “res-
posta”) devem ser tomadas por parte de: serviços de atenção a mulheres
vítimas/sobreviventes de violência; autoridades nacionais e locais; governos,
empresas, meios de comunicação e sociedade civil. Há diversas instâncias,
contudo, em que o ator da ação demandada não é estabelecido ou é um
ator geral (todes), inespecífico. Há demanda de ação, mas ela não se dirige
a uma responsabilidade que possa ser reconhecida, na maioria dos casos.

Nos excertos O e S, há nova ocorrência de reconhecimentos à violência


interseccional pelos modos de referência às mulheres. Como ações a serem
priorizadas estão: oferecer serviços de atenção a mulheres vítimas/sobre-
viventes de violência durante a pandemia e desenvolver modalidades que
facilitem o acesso delas aos serviços; envolver trabalhadoras do setor de
saúde, trabalhadoras domésticas, mulheres na economia informal, migrantes,
refugiadas e mulheres em situação de violência são algumas das mulheres
mais expostas ao COVID-19 em todas as fases da resposta; priorizar medidas
de prevenção à violência contra mulheres e meninas e fornecer assistência
a elas; responder às necessidades das mulheres em situação de violência;
denunciar o tratamento desigual por parte de órgãos ou pessoas que pres-
tam serviços de saúde e de proteção social às mulheres negras. Há também
os casos em modo interrogativo, nos quais as ações demandadas não são
esclarecidas, ficando claro apenas que alguma ação deve ser tomada.

A partir do uso dos verbos “dever”, “precisar” e “ter de”, o organismo apon-
ta para a responsabilização de instituições e atores sociais, com alto grau
de obrigatoriedade para as ações a serem tomadas sugeridas pela ONU
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Mulheres, como “temos de agir para proteger as mulheres em situação


de violência”. Esses processos pedem por medidas para que os efeitos
da pandemia parem de recair sobre as mulheres. Como as atribuições
de responsabilidade são muito genéricas (todes, nós ou enumerações que
abarcam um conjunto bastante amplo de atores), o que se estabelece é
uma responsabilidade geral, ampla, e por isso pouco apelativa a setores
ou autoridades mais específicas.

Ainda assim, em colocações como “devemos enfrentar o racismo”, o verbo


“dever” potencializa o verbo “enfrentar”, denotando também uma alta carga
de obrigatoriedade no posicionamento institucional nos textos. Outras for-
mações verbais encontradas no Quadro 3 vão nesta mesma direção: “pre-
cisam ser”, “devem fazer”, “devem tomar”, “temos de agir”, “devemos
seguir”. Os casos elencados no quadro apontam o aparente paradoxo entre
expressões de alta modalidade e ações/atores genéricos, o que mitiga o
efeito apelativo dessas modalidades.

5. Reflexões finais

Retomamos agora o objetivo principal que ensejou o artigo, que é investi-


gar o grau de comprometimento do discurso da ONU Mulheres nos textos
analisados. A presença de modalidade no corpus analisado (28 posts) neste
artigo registra maior realização do tipo epistêmica de probabilidade (18),
seguida do tipo deôntica de obrigação (11) e uma ocorrência de modalidade
epistêmica de usualidade.

A elevada ocorrência de modalização epistêmica e deôntica aponta alto


grau de comprometimento com as informações e posicionamentos comu-
nicados e com a necessidade de que as recomendações apresentadas pela
instituição sejam seguidas, auxiliando a consolidar o discurso institucional
que permeia de modo transversal as publicações.

Quanto à modalidade epistêmica, é possível observar uma relação de causa-


lidade entre o contexto de isolamento e o aumento da violência doméstica
atribuída no discurso da ONU Mulheres, mas sem um aprofundamento
maior sobre a raiz do problema social da violência de gênero e com poucas
alusões à violência interseccional.

Já na análise de orações com modalidade deôntica, o uso dos verbos “dever”,


“precisar” e “ter de” auxilia o organismo a apontar para a responsabilização
de instituições e atores sociais, com alto grau de obrigatoriedade para as
ações sugeridas pela ONU Mulheres. Esses processos pedem por medidas
para que os efeitos da pandemia parem de recair sobre as mulheres. No
entanto, há recorrência de ações e atores genéricos, o que tem um efeito
mitigador da apelação.

Como organismo internacional de grande poder simbólico, político e econô-


mico, a ONU Mulheres tem o potencial de ser um importante ator social
para o combate à violência de gênero no mundo, embora ainda simbolize
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a forte influência dos Estados Unidos na geopolítica internacional. Por


isso, sua ação não pode se limitar a manter discursos já conhecidos, muito
menos figurar como obstáculo para superar a violência de gênero. Nossa
investigação aponta ausências importantes na ação discursiva da instituição
no Instagram na busca dessa agenda colaborativa e vamos debatê-las tam-
bém reconhecendo nosso papel de colaboração para que a prática social
analisada (produção de conteúdo digital no Instagram de um organismo
internacional) seja um meio de superar o problema da violência de gênero.

Sabemos que a escalada de violência doméstica durante a pandemia é um


problema global, mas acreditamos que sua abordagem deve ser conectada
à realidade local para que a ação discursiva seja menos limitada. Como já
foi apontado, os aspectos da violência doméstica foram discutidos pela ONU
Mulheres, na maioria das vezes, de forma genérica, sem aprofundamento
sobre suas causas, e isso indica, entre outros fatores, a baixa recorrência
de reflexões sobre a violência interseccional registrada no Brasil neste
contexto de pandemia.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 apontam que a


violência de gênero no Brasil é interseccional: mulheres negras represen-
tam 61,8% das vítimas de feminicídio em 2020; 36,5% de vítimas fatais são
brancas; 0,9%, amarelas; e 0,9%, indígenas. Do total de vítimas, 74,7% têm
entre 18 e 44 anos. As mulheres jovens, pardas e pretas também foram as
que mais registraram ocorrência de casos de violência doméstica recebidos
pelos canais de denúncia do governo federal em 2020 (Ligue 180 e Disque
100)8. É preciso que estes dados sobre violência interseccional fiquem em
primeiro plano, não sejam esquecidos, nem normalizados. A experiência
das mulheres brasileiras deve ser o fio condutor para propor essa dis-
cussão. Não podem ser ignoradas também a história do Brasil, colonial e
escravocrata por séculos, e a necessidade de reparação da injustiça social
consequência deste modelo de exploração. Este entendimento sobre as
raízes do problema social estudado a partir do contexto brasileiro poderia
potencializar a ação discursiva da ONU Mulheres, aprofundando o engaja-
mento e comprometimento.

Isso implica basear o planejamento de comunicação da prática analisada em


dados locais, perfis de pessoas em situação de violência brasileiras, vozes
localizadas, contexto local, manifestação da violência interseccional local,
etc. Esta preocupação deve ser uma constante em todas as publicações.

Este obstáculo se relaciona com outro: o paradoxo entre expressões de


alta modalidade e ações/atores genéricos, o que mitiga o efeito apelativo
na ação discursiva. Em várias publicações analisadas, a voz institucional
da ONU Mulheres se impõe com bastante afinco para chamar atenção
para a violência doméstica contra mulheres, mas constatamos que a falta
de endereçamento de ações e nomeação de atores sociais atenua a força
argumentativa, restringindo seus potenciais efeitos. Ao colocar pressão

8 Acesse em https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/vitimas-de-violacoes-de-direitos/publica-
coes/painel-de-dados-da-ouvidoria-nacional-de-direitos-humanos.
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para que alguém faça algo, é necessário elucubrar sobre quem deve fazer
o quê. É de nosso conhecimento que as postagens têm objetivos diversos
e não devem se limitar à cobrança de ações. Porém, nas publicações em
que o foco é chamar atenção para a necessidade de tomadas de decisão
ou mudança de direcionamento de ações, é necessária a preocupação em
como atribuir responsabilidades no lugar da escolha pela responsabilização
não específica.

Isso nos leva a outro ponto de reflexão: as possibilidades e limites do gênero-


suporte analisado (postagens na rede social Instagram). Avaliamos que a
presença digital da ONU Mulheres é sólida e foi construída a partir de uma
ação comunicacional profissional, como discorremos em nossa análise estru-
tural, mesmo o Instagram impondo possibilidades finitas e com limitação
de espaço para a publicação de textos verbais e visuais. Esses limites são
sublimados a cada dia pela criatividade dos produtores de conteúdo desta
rede social. Portanto, também é importante ficarmos atentas a este outro
contexto (o digital) para possibilitar o uso de todos os recursos semióticos
no Instagram.

Com estas reflexões, feitas a partir da análise apresentada e discutida,


buscamos contribuir para a melhor compreensão da prática de produção
de conteúdo digital no Instagram sobre problemas sociais no contexto
brasileiro.
DOSSIER
ISSN 2314-2189
A escalada da violência doméstica contra mulher... doi: 10.34096/sys.n40.10492 142
Cintia de Freitas Rodrigues Loureiro, Viviane Resende Signo y Seña 40 (julio-diciembre, 2021): [121-143]

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