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Bimensal | Sai ao 1º e ao 15º dia de cada mês

BradoLiterario

DESTAQUES
P6. GALERIA DO BRADO
Sanuel M

Jornal Literario Electronico (PDF) de Distribuiçao Gratuita


Ano III, Nº23 | Maputo, Quarta-feira 15.2.2022 | Director: Leonel Ivo
Sob Dispensa de Registo/GABINFO/2021

P7. AS DOZE VARAS


Harani Mahalambe Por ocasião do mês do amor mostramos
P11. VALENTINES
Bruxinha MMS

P13. QUANTAS CORES


TEM A PAZ? Yolanda

A história de Joana
Mate
P16. BRADO POÉTICO

P22. DIVULGAÇÃO E
EVENTOS A única mulher feita Papa
A história de Joana não é ensinada nas escolas, como Odisseia de Homero, Romeu e
Julieta de Shakespeare ou O Crime do Padre Amaro de Eça de Queirós, mas reveste
-se de todas aquelas excentricidades de um amor condenável pelos mais poderosos
da época. Por amor ao seu amado e pelo conhecimento das ciências, uma mulher
travestiu-se de homem para viver e estudar num convento de homens e perto do seu
namorado que também era seu colega de estudos. Joana viveu duas grandes
histórias de amor e se tornou papa, líder máximo da igreja católica, sem que
ninguém descobrisse que ela era mulher.
Durante muitos séculos, a história da pisa havia ilustrado o seu reinado com o
papisa Joana havia sido reputada pelo brilho das suas luzes e com a prática das
próprio clero como incontestável; mas, virtudes cristãs.
com o andar dos tempos, os ultramonta- A história de Joana é peculiar desde
nos, compreendendo o escândalo e o o seu nascimento. Com efeito, sucede
ridículo que o reinado de uma mulher que nos princípios do nono século, Karl,
devia lançar sobre a Igreja de Roma, o Grande, depois de ter subjugado os
trataram de fábula digna do desprezo saxões, tentou converte-los ao cristianis-
dos homens esclarecidos. Autores mais mo e para tal pediu à Inglaterra padres
justiceiros defenderam, pelo contrário, a eruditos que o pudessem auxiliar nos
reputação de Joana e provaram, com seus projectos. Neste grupo de professo-
testemunhos mais autênticos, que a pa- res que passariam à Alemanha, contava-

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15 de Fevereiro de 2022 A HISTÓRIA DE JOANA adaptado por Nito Ivo P. 2

se um padre inglês acompanhado de uma ça, onde Joana, debaixo sempre do hábi-
menina que roubara à sua família para to monacal, disputou com os doutores
ocultar o seu estado de gravidez. Os dois franceses e excitou a admiração dos per-
amantes foram obrigados a interromper a sonagens célebres da época, a famosa
sua viagem e a parar em Mayence onde, duquesa Setimânia, Santo Anscário, o
em breve, a jovem inglesa deu à luz uma frade Bertran e o abade Lopo de Ferrié-
filha; essa criança era Joana. re. Depois dessa primeira viagem, os
Joana tornara-se formosa logo na ado- dois amantes atravessaram as Gálias e
lescência; e o seu espírito, cultivado pe- embarcaram em Marselha num navio
los cuidados de um pai muito instruído, que os conduziu à capital dos helenos,
tomara um desenvolvimento tal, que fa- que era o centro das ciências e das belas-
zia admirar, pelas suas respostas, todos letras, possuindo, ainda, escolas e acade-
os doutores que se aproximavam dela. A mias, admirada em todo o universo pela
admiração que ela inspirava aumentou eloquência dos seus professores e pelo
ainda o seu ardor pela ciência, e aos 12 profundo saber dos seus astrónomos e
anos a sua instrução igualava-se a dos dos seus físicos.
homens mais distintos do palatinado. Quando Joana chegou a Grécia tinha
Todavia, quando o fogo da paixão lhe 20 anos e achava-se em todo esplendor
começou a queimar o coração, a ciência da sua beleza; mas o hábito monástico
foi insuficiente para apagar os desejos ocultava o seu sexo a todos os olhares, e
daquela imaginação ardente, e o amor o seu rosto, empalidecido pelas vigílias e
mudou os destinos de Joana. pelo trabalho, dava-lhe mais ares de um
formoso adolescente do que de uma mu-
O primeiro amor de Joana lher.
Ele era um jovem estudante de famí- Durante dez anos, os dois ingleses
lia inglesa e frade da abadia de Fulde, foi viveram sob o formoso céu da Grécia,
seduzido pela beleza dela e apaixonou-se cercados de todas as ilustrações científi-
loucamente. Se ele a amou com extremo, cas e prosseguindo os seus estudos em
Joana, pelo seu lado, consentiu em fugir filosofia, teologia, letras divinas e huma-
da casa paterna com o seu amante; dei- nas, artes e histórias sagradas e profana.
xou o seu nome verdadeiro, vestiu-se de Joana aprofundara, compreendera e ex-
homem e seguiu o jovem abade para a plicara tudo; e juntando a conhecimentos
abadia de Fulda. O superior, enganado universais uma eloquência prodigiosa,
com aquele disfarce, recebeu Joana no enchia de espanto aqueles que eram ad-
seu mosteiro. mitidos a ouvi-la.
Algum tempo depois, o constrangi- No meio dos seus triunfos, Joana foi
mento em que se achavam os dois aman- ferida por um golpe terrível; o compa-
tes fez-lhes tomar a determinação de saí- nheiro dos seus trabalhos, o seu amante
rem da abadia e irem para a Inglaterra infalível, aquele que havia muitos anos
continuar os seus estudos. Em breve, tor- não se separara dela, foi atacado por uma
naram-se os maiores eruditos da Grã- enfermidade súbita e morreu em poucas
Bretanha, e em seguida resolveram visi- horas, deixando-a desditosa só e abando-
tar novos países, a fim de observarem os nada na Terra.
costumes dos diferentes povos e estudar-
lhes as línguas. Joana se torna papa
Em primeiro lugar, visitaram a Fran- Joana tirou do seu próprio desespero
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uma nova coragem; venceu a sua aflição serem seus discípulos. O procedimento
e resolveu sair da Grécia. Além disso, da Joana era tão recomendável como os
era-lhe impossível ocultar por mais tem- seus talentos; a modéstia dos seus dis-
po o seu sexo num país onde os homens cursos e das suas maneiras, a regularida-
usavam as barbas crescidas, e escolheu de dos seus costumes, a sua piedade, bri-
Roma para lugar do seu retiro, porque o lhavam como uma luz aos olhos dos ho-
costume era os homens raparem a barba. mens.
Logo que chegou a Roma, Joana fez- Depois da morte do papa Leão IV, em
se admitir na academia à que chamavam 853, os cardeais, os diáconos, o clero e o
a escola dos gregos, para ensinar as sete povo elegeram-na por unanimidade para
artes liberais e, particularmente, a retóri- governar a Igreja de Roma. Joana foi
ca. Santo Agostinho tornara já muito ordenada na presença dos comissários do
ilustre aquela escola; Joana aumentou- imperador, na basílica de São Pedro; em
lhe a reputação. Não somente continuou seguida, tendo revestido as vestes ponti-
os seus cursos ordinários, como também ficais, dirigiu-se acompanhada de um
introduziu cursos de ciências abstractas imenso cortejo ao palácio patriarcal e
que duravam três anos, e nos quais um assentou-se na suprema cadeira apostóli-
imenso auditório admirava o seu prodigi- ca.
oso saber. As suas lições, os seus discur- E o que mais admira ainda o espírito
sos e mesmo os seus improvisos eram não é o ter podido uma mulher elevar-se
feitos com uma eloquência tão arrebata- pelos seus talentos acima de todos os
dora, que Joana era citada como “o jo- homens do seu século, pois que houve
vem professor mais belo e génio do sé- heroínas que comandaram exércitos, go-
culo”, e que, na sua admiração, os roma- vernaram impérios, encheram o mundo
nos lhe conferiram o título de príncipe com a fama da sua glória, da sua sabedo-
dos sábios. ria e das suas virtudes; mas que Joana,
Os senhores, os padres, os monges e, sem exércitos, sem tesouros, não tendo
sobretudo, os doutores honravam-se de outro apoio senão a sua inteligência, fos-
se assaz hábil para enganar o clero roma-
no e fazer com que lhe beijassem os pés
os orgulhosos cardeais da cidade santa; é
isso que a coloca superior a todas as he-
roínas, porque nenhuma delas se aproxi-
ma do que há de maravilhoso numa mu-
lher feita papa.
Joana, elevada à suprema dignidade
da Igreja, exerceu a autoridade infalível
de vigário de Jesus Cristo com tão gran-
de sabedoria que se tornava a admiração
de toda a cristandade. Conferiu ordens
sagradas aos prelados, aos padres e aos
diáconos; consagrou altares e basílicas;
administrou os sacramentos aos fiéis,
deu os pés a beijar aos arcebispos, aos
abades e aos príncipes; finalmente, de-
sempenhou com honra todos os deveres
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dos pontífices; dirigiu com grande habi- mavam Ambarralia e que era celebrada
lidade os negócios políticos da corte de com uma procissão solene, a papisa, se-
Roma. gundo o uso estabelecido, montou a ca-
valo e dirigiu-se à igreja de São Pedro,
O segundo amor de Joana revestida com os ornamentos pontificais,
Contudo, essa mulher que inspirava precedida pela cruz e pelas bandeiras
tão grande respeito aos soberanos da sagradas, acompanhada dos metropolita-
Terra, que subjugava os povos às suas nos, dos bispos, dos cardeais, dos padres,
leis, que atraíra a veneração do universo dos diáconos, dos senhores, dos magis-
inteiro pela superioridade das suas luzes trados e de uma grande multidão de po-
e pela pureza da sua vida, essa mulher vo; em seguida, saiu da catedral com
vai em breve quebrar o pedestal da sua aquele séquito pomposo para se dirigir à
grandeza e espantar Roma com o espec- basílica de São João de Latrão; mas, ten-
táculo de uma queda terrível! do chegado a uma praça pública, entre a
Joana, entregue a estudos sérios, con- basílica de São Clemente e o anfiteatro
servara um comportamento exemplar de Domiciano, chamado Coliseu, assal-
depois da morte do seu amante. No prin- taram-na as dores do parto com tal vio-
cípio do seu pontificado, praticou as vir- lência, que caiu do cavalo. A infeliz con-
tudes que lhe haviam merecido o respei- torcia-se pelo chão com gemidos horrí-
to e a afeição de todos os romanos; mas veis, até que, conseguindo rasgar os or-
depois, ela entregou-se aos gozos do po- namentos sagrados que a cobriam, a pa-
der soberano e quis partilhá-los com um pisa Joana, no meio de convulsões tre-
homem digno do seu amor. Escolheu um mendas e na presença de uma grande
amante, assegurou-se da sua discrição, multidão, deu à luz uma criança! A con-
encheu-lhe de honras e de riquezas e fusão e a desordem que essa aventura
guardou tão bem o segredo das suas rela- escandalosa causou entre o povo exaspe-
ções, que só por conjecturas se pôde des- rou a tal ponto os padres que estes impe-
cobrir o favorito da papisa. O maior nú- diram que a socorressem, e, sem consi-
mero afirma que era cardeal de uma igre- deração pelos sofrimentos atrozes que a
ja de Roma. Todavia, o mistério dos seus torturavam, cercaram-na como que para
amores permaneceria coberto por um a ocultar a todos os olhares e ameaçaram
véu impenetrável, sem a catástrofe terrí- -na com a sua vingança.
vel que pôs termo às suas noites de vo- Joana não pôde suportar o excesso da
luptuosidade. A natureza zombava de sua humilhação e a vergonha de ter sido
todas as previsões dos dois amantes: Joa- vista por todo o povo numa situação tão
na estava grávida! terrível; fez um esforço supremo para
dizer o último adeus ao cardeal, que a
O fim da papisa Joana amparava nos braços, e a sua alma voou
Na época das rogações, que corres- para o céu. Assim morreu a papisa Joa-
ponde à festa anual que os romanos cha- na, no dia das rogações, em 855, depois
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de ter governado a Igreja de Roma mais dignitários da Igreja davam a mão ao


de dois anos. papa e conduziam-no à capela de São
A criança foi Imediatamente sufocada Silvestre, onde se achava uma cadeira
pelos padres que cercavam a mãe; contu- furada no fundo, na qual faziam assentar
do, os romanos, em memória do respeito o pontífice com as pernas separadas e os
e da dedicação que durante tanto tempo testículos no buraco da cadeira. Final-
haviam consagrado a Joana, consentiram mente, aproximavam-se dele dois diáco-
em prestar-lhe os últimos deveres, mas nos, asseguravam-se pelo tacto que os
sem pompa, e colocaram o cadáver da olhos não eram iludidos por aparência
criança no mesmo túmulo. Joana foi en- enganadora e davam disso testemunho
terrada não no recinto de uma basílica, aos assistentes gritando em voz alta:
mas no mesmo lugar onde sucedera “temos um papa!” A assembleia respon-
aquele acontecimento trágico. dia: “Deo gratias” em sinal de reconheci-
Ali edificou-se uma capela, ornada mento e de alegria.
com uma estátua de mármore represen- Depois de Leão, a prática da cadeira
tando a papisa vestida com os hábitos furada foi abandonada, ou porque os pa-
sacerdotais; com a tiara na cabeça e ten- dres compreenderam o ridículo de um
do nos braços uma criança. O pontífice uso tão inconveniente, ou porque as lu-
Bento III mandou quebrar essa estátua zes do século não permitiam mais um
nos fins do seu reinado, mas as ruínas da espectáculo que ofendia a moral pública.
capela viam-se ainda em Roma no déci-
mo quinto século. Controvérsia a respeito da história
O clero de Roma, ferido na sua digni- da papisa Joana
dade e cheio de vergonha por aquele Diante do descredito a que o fanático
acontecimento singular, publicou um Barônio e o supersticioso Florimundo
decreto proibindo aos pontífices atraves- Raxmond atiraram à história de Joana, a
sarem a praça pública, onde tivera lugar papisa foi vitoriosamente defendida por
o escândalo; por isso, depois dessa épo- um historiador inglês chamado Alexan-
ca, no dia das rogações, a procissão, que dre Cook; a sua memória foi vingada por
devia partir da basílica de São Pedro pa- ele das calúnias dos seus dois adversá-
ra se dirigir à igreja de São João de La- rios, e o pontificado de Joana retomou o
trão, evitava aquele lugar abominável, seu lugar na ordem cronológica da histó-
situado no meio do seu caminho, e fazi- ria dos papas, e somos obrigados a entrar
am um longo rodeio. em todos os detalhes de uma existência
Essas precauções eram suficientes tão extraordinária.
para manchar a memória da papisa; mas Um dos inimigos da papisa, o jesuíta
o clero, querendo impedir que um seme- Labbé, enviava o seu cartel de desafio
lhante escândalo pudesse jamais se reno- aos cristãos reformados: “dou o mais
var, imaginou, para entronização dos pa- formal desmentido a todos os heréticos
pas, um uso singular e maravilhosamente da França, da Inglaterra, da Holanda,
apropriado à circunstância, o qual teve o da Alemanha, da Suíça e de todos os pa-
nome da cadeira furada. íses da Terra, para que possam respon-
O sucessor de Joana foi o primeiro der com a mais leve aparência de verda-
que se submeteu a essa prova, na qual se de a demonstração cronológica que pu-
empregava o seguinte cerimonial: Logo bliquei contra a fábula que os heterodo-
que era eleito o pontífice, os grandes xos narraram sobre a papisa Joana, fá-
15 de Fevereiro de 2022 GALERIA DO BRADO Samuel M P. 6

bula ímpia cujas bases destruí de um Santa Sé, e fazem suceder a Leão IV o
modo invencível”... Os protestantes, lon- papa Bento III, sobre o pretexto de que
ge de ficarem intimidados com a impu- uma mulher não pode desempenhar as
dência do jesuíta, refutaram vitoriosa- funções sacerdotais, administrar os sa-
mente todas as alegações, demonstraram cramentos nem conferir ordens sagradas.
a falsidade das suas citações, destruíram A história, cujas vistas morais se ele-
todo o edifício das suas astúcias e das vam acima dos interesses das seitas reli-
suas mentiras, e, apesar dos anátemas do giosas, deve, pois, ocupar-se em fazer
padre Labbé, fizeram sair Joana dos es- triunfar a verdade sem se inquietar com
paços imaginários em que o fanatismo a as cóleras sacerdotais; e, além disso, a
tinha envolvido. existência dessa mulher célebre não deve
Os ultramontanos, confundidos pelos ferir, de modo algum, a dignidade da
documentos autênticos da história e não Santa Sé, porque Joana, no decurso do
podendo negar a existência da papisa seu reinado, não imitou as astúcias, as
Joana, consideraram toda a duração do traições a as crueldades dos pontífices de
seu pontificado como uma vagatura da Roma até então.

GALERIA DO BRADO
Artista: SAMUEL M
Título: cidade adormecida
Tecnica: colagem S/papel
15 de Fevereiro de 2022 AS DOZE VARAS Harani Mahalambe P. 7

AS DOZE VARAS
Por: Harani Mahalambe

Falemos da arte como lugar de (re) superfície tais indigestos;


encontro d’uma colectividade; como E, em segundo lugar, foi acusado de
expressão d’uma interioridade trans- estar a desvalorizar o trabalho d’uma
individual. Aquele lugar onde o pulmão geração, pois não possui um teor de
cultural ganha fôlego. Pulsa com a acarinhamento de novos talentos que
força d’um condor bravo ou d’um começam a publicar a partir do segundo
tornado. Aquele lugar onde cada um de milénio, para além de carregar uma
nós se encontra representado; aquele saudade de teorias e estéticas alheias do
lugar que por metáfora é o porto de tempo e do espaço.
todos os navios. Falemos dela como Eles não precisam de acarinhamento,
património da humanidade que lega até porque ninguém os pede para
gerações. E se a consideramos como escrever, pois a escrita é um exercício
tal, então que a abordemos com maior de consciência, de mentalidade e de
sensibilidade e sinceridade, i.e., sem sensibilidade. A escrita trivial deve ser
ares de nepotismos, de deixa andar e combatida aos extremos, pois atenta a
etc. indústria da arte e por metonímia
A casa da arte está sob assalto; está banaliza-nos perante o mundo. E os
em chamas. críticos, enquanto guardiões da arte,
É nesta maneira de conceber a arte devem fazê-lo com imparcialidade,
que gostaria de recordar e defender “O honestidade e destemidamente.
Excedente Estético: a Readymadezação Longe de banalizar uma geração, O
da «Nova Arte»” das críticas que sofreu Excedente Estético é uma denúncia da
daqueles que foram assolados por um qual cada um de nós, no momento mais
estado de susto-reactivo: silencioso da sua madrugada deveria
Primeiro, acusaram-no de possuir reflectir e tomar um posicionamento
um espírito de polemização e redução comprometido com a arte e permitir-se
do labor de escritores cujos nomes e a uma resposta mais sincera e destituída
trabalhos foram galardoados e da ambição de ser escritor, à pergunta
cimeirizados (logo, talvez, intocáveis e de Rainer Maria Rilke segundo a qual
irrepreensíveis), para além de não “preciso escrever?”. E neste «ciclo de
possuir indicadores de possíveis vícios diadema trivial», apoderando-me do
que desqualifiquem as suas obras – eis conceito mais acertado de Jeremias
que me dou o prazer de trazer à Jeremias, os editores têm a maior
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parcela de culpa. pode ler «malditos crocodilos/que


Há que distribuir os males pelos atacam outros crocodilos, irmãos!/
bairros: Massinhane edições, Kulera, quando tentam fugir do rio, sem deixar
Zambeze editores, Alcance editores e rastos, (p.32)»; Elísio Miambo
recentemente a editora Fundza (com as em Retroalimentações do Ego «ontem,
chamadas literárias), são algumas homens colectivamente inconformados/
amostras de editoras que destituídas de devastaram matas, arriscando o que não
critérios sérios e severos de selecção de tinham/em seus cérebros, nem peitos
obras que mereçam ser publicadas, doloridos/para trazer um 25 de Junho
proliferam lixo literário, movidas, que tanto desejaram, (p.27)»; Lino
quiçá, pelo espírito capitalista e pela Eustáquio em Poeta Ambulante «oiço
vontade de realizar sonhos. Não se ao longe delírios e clamor de gente
sonha ser escritor. Ou se é artista ou padecendo de fome/os lares são
não se é. É tudo uma questão de autênticos hospícios/morre-se de fome
sensibilidade. Não de sonho. ao invés da Covid-19, (p.17) denotam
Permitam-me retomar as três isso tudo de estético e sensibilidade
perguntas de reflexão que constituíram com maior carência.
andaimes para a edificação d’O Chamo isso de «poesia de
Excedente Estético: (i) é possível uma decalque». Aquela que se move pelo
arte que inspirada nas correntes dado imediato da vida; aquela que não
literárias do passado encontre um novo recria; que não abstrai; sem a mínima
desdobramento em função do nosso obsessão de novidade; aquela nua de
contexto social e temporal?; (ii) uma sensibilidade só porque o poeta no
arte que não só nos conecte ao mistério momento mais solitário dos seus dias
profundo da existência, mas também se desenvolve mais o intelecto e atrofia a
interrogue sobre o presente histórico intuição, sendo a última – na
subsequente sem com isso quebrar a perspectiva dos 3Is de Osho (Instinto,
categoria do belo poético?; e (iii) uma Intelecto, Intuição) – uma categoria
arte de uma articulação coerente e essencial para a criação artística. São
completa da “visão do mundo”, logo trabalhos crus, arcaicos e prematuros
como criação das estruturas trans- que nem se aproximam da receita
individuais? dadaísta no poema de T. Tzara.
A poesia está febril! Salvo alguns «A forma custa caro, diria Valéry»
casos bem achados. É difícil escrever numa tentativa de acautelar ao escritor
poesia num país como o nosso de de não ter a pressa de publicar, pois
grandes poetas como Rui de Noronha, antes tinha que se dar ao cuidado de
J. Craveirinha, E. White, L.C. economizar a palavra; de ser zeloso
Patraquim, V. de Lemos, Heliodor com o verbo; de assumir a
Baptista, Rui Knofle, Rui Nogar, entre responsabilidade de uma civilização
outros – figuras que ao lê-las se pode literária. Ou seja, «ir longe sem
achar um discernimento e sacerdócio percorrer o distante» disse D. Bahule. E
sobre a criação poética; sobre como é a isto que R. Barthes nos arremessa
escrever um poema que valha a pena em O Grau Zero da Escrita. O escritor
publicá-lo. tem que passar a ser um artesão das
Poetas como: Deusa d’África em A Letras «que se encerra num lugar
Voz das Minhas Entranhas, como se lendário, como um operário que
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trabalha em casa, e desbasta, talha, dá africana e sempre assumiu, para além


polimento e incrusta a sua forma, de um valor moralizante e didáctico
exactamente como um lapidário extrai a social, também um sentido comunitário.
arte da matéria, passando nesse trabalho O sentido comunitário que a literatura
horas regulares de solidão e de africana denota responde àquilo que
esforço»; um escultor que retira a alguém como Kwame Anthony Appiah
matéria do tronco num canto solitário procura despertar sobre o que vale para
para achar o cerne e dar-lhe a forma um escritor africano entre a sinceridade
adequada (trabalhar uma matéria é, em e a autenticidade; ou seja, entre o
geral, cortar a parte dela) – é a isso que problema individual e o colectivo.
Barthes chama de «economia da Obviamente, aqui, a colectividade
palavra». Isto dói. Mas estaria eu a ganha peso. Alberto Mathe diria «o
pedir muito? É com dolo que raros centro dos acontecimentos não é o
poetas da nossa geração conseguem ser individuo, mas a comunidade no seu
«escritor-artesão»: Sangar Okapi, M.P. todo». E os textos d’O ardina de
Bonde, Jaime Munguambe, Hirondina sapatos gastosao dar costas a estes
Joshua,Taruma, Jeconias Mocumbe, e elementos essenciais apresentam-se não
Jeremias Jeremias (ainda que este como uma nova tendência literária que
último os seus textos se encontrem oscila entre o conto e a crónica, como
dispersos em revistas) – são alguns impiedosamente os críticos aludidos
casos achados de poetas que não nos tenderam fazer crer, mas como uma
padecem de ejaculação precoce. anarquia infundada que não só destrói a
E não deixaria de citar alguns natureza do texto literário africano,
indigestos que assolam a prosa (Conto e como também viola as estruturas
Romance). Volvidos longos anos em linguísticas basilares ao apresentar um
que o romance e o conto moçambicanos desvio morfossintáctico descuidado.
mostravam uma evolução invejável no Tanto o conto assim como a crónica
mundo literário, estes, nas mãos dos devem conseguir suscitar com mínimo
novos escritores ganham apanágios de de meios o máximo de efeito possível
uma parábola virada para baixo. no universo do leitor – e a reflexão é
Colocam-nos em choque – ainda que um dos efeitos.O ardina de sapatos
ninguém o diga. gastos não se trata de um exercício
Mas incomoda-me a parcialidade de artístico, mas sim de apontamentos ou
críticos como José dos Remédios e tomada de notas, com única pretensão
Eduardo Quiv, que após terem lido os de brincar com as palavras e com o
escritos de Alerto Bia em O ardina de tempo para espantar a ociosidade
sapatos gastos, apelidaram de «novo imposta pela pandemia. Tratou-se duma
estilo ou nova tendência literária», burla aos leitores.
talvez movidos pelo espírito de Aos autores e editores d’O poeta
amizade ou do tal dito acarinhamento ambulante e d’O ardina de sapatos
dos novos jovens escritores (como gastos é favor que recolham todos os
sublinha Elísio Miambo). Isto equivale exemplares vendidos e restituir-se os
a aplaudir um tolo que assegura um valores aos leitores e restando um
revólver na mão. pouco de consideração suspender-se a
O conto africano moderno é herança respectiva venda.
de uma tradição literária e cultural É urgente que o autor d’O ardina de
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sapatos gastos, aproprie-se da teoria do nos apareçam com um teor de castração


conto – e A Religiosidade no Conto do Outro. Tem que entender também
Moçambicano: Teoria, História e que o Outro é aquele que confere a
Crítica de Aberto José Mathe, é uma certeza da nossa existência – existo
leitura obrigatória. A leitura de porque o Outro existe. E é na relação
Suleiman Cassamo com o seu O com o Outro onde se tece a ética (a
regresso do morto; de João Albazini minha espontaneidade é impugnada pela
com O livro da dor; dos contos de Mia presença do Outro) – Emmanuel
Couto e de outros mais contistas, são Lévinas é uma escola para todos.
obras que possam ilustrar com maior A Âncora no Ventre do Tempode
rigor a maneira de trabalhar com o além de apresentar construções
conto. elementares e discursos imediatos,
Mas aqui se coloca outro problema distingue-se pela sua índole castradora;
graúdo – o da leitura. Diferentemente do de rejeição do Outro; de não se
que o autor d’O ardina de sapatos identificar com a dor do Outro, como se
gastos em suas palestras e conversas pode ler no seguinte excerto:
literárias tem defendido, para o qual o Na manhã de hoje, Baskeni flagrou-
«exercício de leitura é análogo a um os temperando-se os traseiros. Sim, a se
conjunto de meninotes famintos que comerem os cus! Que nojo!! Quem lhes
comem na mesma gamela» inferindo, disse que cu é para sexo? Qual é o mel
com efeito, que ela deve ser feita com que tem lá entre as nádegas? A pétala do
maior pressa possível, a leitura é um prazer, o homem só pode achar na ogiva
exercício solitário – é comer sozinho – perfeita da mulher. Não no nyonpfi de
para garantir a degustação; a exploração um outro homem (…). Estes têm boas
de cada tom do sabor do prato. Dar-se a metralhadoras, canhões que toda mulher
saber de cada ingrediente que participou procura para se deliciar, mas eles
da confecção do prato; mapear a preferem-se um ao outro. Sobem-se
possível receita que conferiu a perfeição profanando a virilidade masculina, (p.
do mesmo; comparar os sabores com as 32).
experiências anteriores: eis a Numa época em que os génios não
modalidade de como um escritor e/ou nascem, é urgente que os jovens
leitor deve encarar a leitura. escritores leiam os clássicos, não
Sobre a Âncora no Ventre do naquela perspectiva alertobiana, mas na
Tempo de Fernando Absalão Chaúque: perspectiva contrária. O autor d’Âncora
qual é o lugar do Outro numa obra de no Ventre do Tempo precisa voltar para
arte? Que valor uma obra de arte pode casa e beber da teoria do romance. Uma
lograr quando ela se nos apresenta como leitura d’Estética da Criação Verbal de
um “manual de preconceitos”? A Mikhail Bakhtin e As Estruturas
catalogação de uma realidade Narrativas de TzvetanTodorov pode
existencial como única possibilidade de reduzir alguns vícios superficialmente
existir é por si só uma negação do notórios. Mas antes, precisa mesmo é de
Outro; a não assunção da alteridade; é se perguntar se precisa mesmo continuar
olhar para o mundo numa única a escrever e se morreria caso fosse
perspectiva. O artista deve entender que privado de tal desventura.
num mundo da diversidade não é destro
que os seus actos artístico-discursivos Fonte: mbenga.co.mz
15 de Fevereiro de 2022 UMA CARTA: “Valentines” Bruxinha MMS P. 11

Valentines Por: Bruxinha MMS

Olá! surpreende o assunto nele debatido. Você é


É hoje, não é? 14 de Fevereiro! você, me impressiona, como tudo que apare-
Eu sei que já não se escrevem mais cartas ce teu nome, ou tudo que tem a ver contigo….
de amor, menos ainda do próprio punho; Talvez esteja a beira da loucura, o que não
não se escrevem mais sentimentos profun- me assusta pois acreditam vocês que já o se-
dos… não nos abrimos mais, não mais ex- ja.
pressamos sinceramente o bom, o mau, a E aí? O que de novo trago? Fora as balelas
indecisão e o medo que nos consome. de todos os dias?
Eu sei que nos perdemos nesses descami- Nada! São essas balelas que fazem de mim
nhos e precipícios, e o nosso maior esforço é este ser surpreendente, maluca eu sei... ain-
de não nos reencontramos nas coordenadas da assim extraordinariamente necessário,
do amor, como sucede neste 14 de Fevereiro…. mas vamos concordar que acrescentei novas
Por alguma razão custa-me escrever “Dia dos palavras e sentimento. E é por isso, que escre-
Namorados” do meu próprio punho, não vo essas constatações deturpadas dessa mi-
porque as letras pareceriam marcas deixadas nha cabeça perturbada.
por formigas num baile louco , também não Em datas especiais, e não sei se esta ainda
porque duvido que consigas perceber a mi- o é, enchemos a boca para dizer coisas lin-
nha caligrafia, apesar do tempo que passa- das, outras copiadas da internet, deixando
mos juntos, mas porque dia dos namorados, de lado o que realmente nos enche o peito, e
dito dessa forma só existe se nós existirmos o que a consciência cobra…
juntos apaixonados como outrora… de outra Não consigo fazer isso, não hoje… não com
forma é uma data de calendário, 14 de Feve- o que me consome impiedosamente, me de-
reiro, igual 15, 16 ou 17 de Fevereiro ou de sestabiliza, me definha o coração.
Março, etc. Que amo você de montão tu sabes, que
Deveria eu surpreender-me pelos monólo- acho você uma baleia preguiça sexy, também
gos, mas infelizmente não o faço pois faz sabes, que você é o príncipe que tanto rezei
parte de mim desde que me conheço… me para ter e que foste a coisa mais linda que
15 de Fevereiro de 2022 UMA CARTA: “Valentines” Bruxinha MMS P. 12

aconteceu nestes tempos conturbados, tam- ainda que me destrua, farei o esforço de
bém o sabes. compreender, mas acima de tudo irei respei-
O que não sabes é que, aos poucos nos tar e dar todo o meu suporte.
afastamos, o silêncio tornou-se rotina, o que Esta sou eu e os meus textos longos, a mi-
outrora fazíamos com facilidade tornou-se nha língua solta, e esta imensidão de insani-
pesado, e sinto que estamos nos perdendo dade, que tenho quase a certeza de que não
um do outro. No meio desse vácuo me questi- atingiu seu limite. Eu assim desse jeito de-
ono se ainda te lembras das promessas fei- sastrado e louco, meio retardado e obstinado;
tas? Seja lá o que for que te consome, que sou eu, como você pensa e sabe, essa que te
nos consome desse jeito mortal, não deveria ama desse teu jeito torto, esquisito e chato.
afastar-nos tanto assim. Sou eu que a meio a esses defeitos ou quali-
Queria eu poder resumir tudo isso, mas dades tuas acha, melhor dizendo tem a cer-
julguei certo apresentá-las assim… teza de que você é a perfeição que o Divino
A certeza de que o mais fácil é permanecer criou.
na zona de conforto, refugiarmo-nos em ter- Que seu dia dos namorados seja lindo,
ritório conhecido, e abrir mão do que real- pois o meu será passado no grude das lem-
mente nos ilumina e desejamos… é a escolha branças daqueles dias áureos, pois todos os
feita por muitos. Mas lembra que o facto de dias em que estivemos realmente juntos fo-
nada escolher, e deixar as coisas por si toma- ram vividos como dia dos namorados, bodas
rem rumo, é uma escolha. de casamento, foram encantadoramente,
Porque desejamos nós passar a vida la- extraordinariamente mais felizes de todos os
mentando pela perca de oportunidades, por tempos.
termos deixado passar o ensejo de ser feliz, E por fim, porque até eu me cansei, por
que permanecemos inertes e por isso somos você, lutaria, faria coisas impensáveis, en-
infelizes, amargos e ainda assim sabendo frentaria tudo e todos. Só não deixaria de ser
que sempre podemos mudar, deixamos o a louca que sou.
medo inundar e tomar conta das nossas es-
colhas, mais uma vez. Beijos
Não sei o que se passa, nem saberei se não
me disseres… mas saiba que o que decidires,
15 de Fevereiro de 2022 QUANTAS CORES TEM A PAZ? Yolanda Mate P. 13

QUANTAS CORES TEM A PAZ?


Por: Yolanda Mate | Matola

Estamos com os corações ávidos por Mwaimo se deixou intimidar pelo


um fragmento de amor e paz num mundo silêncio um tanto assustador do seu pai,
cheio de caos. Desde que as armas se então adulou suas calças para chamar
calaram, o céu ganhou uma coloração atenção e, ousada conseguiu devolvê-lo
diferente. Enquanto uns olham-no à razão:
esperançosos, outros olham-no como o — Filha! Se a paz tem alguma cor eu
fim dos tempos. não sei. Apenas sei que a desesperança
— O modo com que o céu nos mira tem a cor que os homens criaram: a cor
parece que um dia irá nos sorver: num do sangue da violência contra a mulher,
dia sorri, e noutro só há tristeza. — a cor do sangue nas estradas causado por
Divagou Murime com os botões da sua acidentes, o sangue da guerra, essa todos
camisa carcomida, empapada de suor nós conhecemo-la bem. — Enquanto
logo pela matina. Mwaimo ainda mastigava aquela retórica
Em Xitema, havia uma suposta paz Murime adiantou. — Agora eu te
para dar e vender, os homens haviam pergunto: Tu já viste a cor da paz e da
assinado os acordos de paz, as armas há reconciliação? Isso é ilusão dos homens
muito que haviam perdido a voz. Mas o para enganar os tolos!
silêncio que acometia aquela aldeia, — É que a professora nos mandou
incomodava mais do que o barulho das desenhar uma pomba e sol no dia da
armas aos ouvidos do velho Murime. paz? Não entendo, pai!
Com os cabelos alvos e o corpo já — Nada disso, filha. Alguns preferem
cansado de vivenciar quase tudo nessa acreditar em coisas que nunca viram e
vida, todas as manhãs Murime com os que jamais verão. Já te disse uma vez, no
olhos fitos no horizonte e no vazio da mundo não há espaço para paz e tão
solidão, buscava resquícios do passado pouco para a reconciliação.
junto da sua esposa e da filha cujas vidas — Entendo a tua tristeza, pai. Depois
haviam sido arrebatadas pela guerra, e de tantos anos ainda sentes falta da
com uma ínfima esperança de um futuro mamã? Sinto-me culpada por isso!
que não o esperava, o corpo pedia a — Não te sintas mal, filha! Deus
solenitude do fim de todas as coisas, a escreve certo em linhas certas. Naquele
morte. tempo, meu coração transbordava de
— Quantas cores tem a paz, pai? — alegria e a lembrança dessa alegria é o
Questionou Mwaimo com um sorriso meu consolo e a levarei para o resto dos
estridente. Murime respondeu-a com meus dias.
silêncio, pois continuou com seus — Se eu pudesse fazer algo para
pensamentos embalados nas suas devolver-te a alegria de viver, fá-lo-ia
reminiscências, mas nem por isso sem hesitar. Parte-me o coração ver teu
15 de Fevereiro de 2022 QUANTAS CORES TEM A PAZ? Yolanda Mate P. 14

olhar sem vida. — Sim, e até pior. Lembro-me que


— Um dia a vida fará as pazes conheci outros companheiros que
comigo; no tempo de guerra, quando perderam uma parte das suas famílias
tivéssemos uma missão por cumprir, como eu, e olha que alguns não tinham
imaginávamos coisas que ainda não quem mais os esperasse. A guerra havia-
tínhamos vivenciado; imaginávamos lhes tirado tudo, só não lhes tirou a vida
como seria bom retornar à casa e ver a por mero acaso do destino; naquele
alegria estampada no olhar dos nossos período conheci um jovem menino
filhos, das conquistas que viriam após a chamado Maose, era órfão de pai,
guerra. Isso dava-nos forças para lutar ofereceu-se ao comando das forças para
contra o inimigo, apesar de que, na lutar contra o inimigo. Maose sonhava
maioria das vezes, o nosso maior alto, tinha punho de guerreiro e sangue
inimigo era o medo. Os camaradas se de um grande homem que lhe corria
esquivavam da má sorte de serem pelas veias.
escalados para guarnecer às aldeias Certa noite, Maose preparou uma
circunvizinhas à margem do rio emboscada contra o inimigo na aldeia de
Lilángua, pois é lá onde o inimigo tinha Kensemulo, enquanto os guerrilheiros
facilidade para se introduzir no nosso mais velhos se distraíam jogando cartas,
país. outros se lamentado das mazelas da vida
— Quanta vezes lutou contra o e outros enamorando as senhoritas que
inimigo, pai? confeccionavam as refeições. Maose não
— Várias vezes que até perdi a conta dormia no alojamento junto com os
e, hoje, ainda luto com ele nos meus outros companheiros, dormia em cima
pensamentos. O inimigo, sempre da árvore com os seus binóculos e
aparecia de madrugada na nossa aldeia estilingue.
para nos apanhar de surpresa e levar as Na madrugada dessas madrugadas, o
mulheres e usarem-nas como suas inimigo estava pronto para atacar o
esposas e as crianças como escravas. Tua comando das forças de segurança, mas
mãe, infelizmente, preferiu a morte a ser foram vistos com antecedência pelo
levada como escrava. Ela foi uma grande Maose através de binóculos.
heroína! Lembro-me deste episódio Imbuído de coragem, Maose, preparou
como hoje. Mas depois, fui escalado uma emboscada contra eles, colocou
para fazer parte do comando das forças uma bomba no exterior dos aposentos do
de segurança de estado, por isso deixei- general Muadine e o nosso alojamento.
te aos cuidados da tua avó Merina por O exército inimigo perdeu grande parte
muito tempo. O dever patriótico falou dos seus homens, e o barulho dos
mais alto que o meu amor de pai. Para estilhaços da bomba, chamou atenção
mim, a minha maior demonstração de dos nossos companheiros que se
amor e cuidado por ti era defender a apressaram para defender o comando
nação. Queria que te orgulhasses de geral. Uma nobre acção havia feito o
mim. jovem Maose, com a sua bravura
— E conseguiste pai. Sinto-me defendeu o comando e colocou o resto
orgulhosa por ser sua filha. — Alentou o dos soldados em debandada.
pai e acoplou uma questão de imediato. Na manhã seguinte, o general
— No comando havia homens na mesma Muadine, apinhado de satisfação e
situação que a sua? gratidão nomeou o Jovem Maose como
15 de Fevereiro de 2022 QUANTAS CORES TEM A PAZ? Yolanda Mate P. 15

comandante geral das forças. Alguns cores têm a paz!


camaradas não foram a favor da sua — E se eu te disser que cores têm,
nomeação. Acharam um absurdo serem achas que serão as certas? Cada um pinta
dirigidos por um jovem e inexperiente a bandeira da paz e da reconciliação
como ele e uniram suas forças para fazer conforme a sua escolha... A paz vai
uma rebelião contestando a nomeação de muito além do silêncio das armas e a
Maose, mas em vão. A população o liberdade do ir e vir. Enquanto a
apoiava, zelava pelo seu bem-estar. incompreensão e a falta de amor ao
Tempo depois a população o nomeou rei próximo reinar, não haverá paz. No dia
mesmo não tendo sangue real. em que os homens fizerem as pazes com
— E por que os homens não queriam a eles mesmos, aí sim haverá a verdadeira
paz, pai? paz.
— E se eles quisessem a paz, a vida — E você pai, quando terá paz em teu
não teria sentido, filha. Os homens coração?
precisam que a vida perca o verdadeiro — A vida deu-me muitos dissabores,
sentido para prosseguirem com os seus mas tu, filha, me devolveste um palmo
objectivos. Um dia entenderás o que de paz. Porém a plenitude da paz reinará
digo. em mim quando me reencontrar com a
— Pai, ainda não me disseste quantas tua mãe.

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15 de Fevereiro de 2022 O CHITIQUE DOS LIKES Luís Madaba P. 16

O CHITIQUE DOS LIKES


Por: Luís Madaba |Lichinga

Outrora
Reagi com cepticismo
A primeira vez que me falaram das redes sociais
Não tenho finanças
Justifiquei e continuei com a minha bombinha
O tempo passou, e me puxou a um andróide
Me familiarizei
Ao postar a primeira foto, viralizei e me viciei

E agora!
Agora, meu mundo virou ao avesso
Não me vejo fora das redes
Meu aparelho móvel é meu espelho
É lá onde exalto minha beleza e escondo minha po-
breza
Brado Poético

Consigo likes por nova roupa e lugares de luxo


Nova roupa e lugar de luxo igual a nova foto

Nas redes os likes são como “chitique”


Sem rodeio nem chiliques
Se não me dá like, não recebe o meu
Nas redes todo mundo é lindo
Assim vai meu mundo

Viajo sem sair de casa


Não vejo a hora de intervalo quando vejo novela
E o telejornal
As filas do hospital
As salas de espera já não são chatas
A minha vez chega enquanto me divirto nas redes,
curtindo memes

Custa rever ou estudar a matéria da escola


Ler um meme tornou-se prazeroso
No concurso para uma vaga de trabalho
Reprova-se por não ter padrinhos, mas nunca por
culpa dos memes

Cadê meu celular?! Cadê meu celular?!


Entro em pânico assim que ele sai do meu alcance

Para acalentar meu coração


15 de Fevereiro de 2022 O DROGADO Dalton Alfândega P. 17

O pequeno objecto é minha atenção, ostentação


Este pequeno aparelho
Me tornou escravo e dependente
Me fez esquecer das pessoas ao redor, amigos de
verdade
Em troca de seguidores ausentes

Não ter megas?! Nem pensar!


Me causa mal-estar
Como ser o primeiro a partilhar memes sem me-
gas?

Os acontecimentos do momento presente, os vejo


nas redes sociais
Quando estou com a malta, cada um curte sua cena
no seu aparelho
Ninguém bate-papo com ninguém!
Estamos juntos viajando para destinos diferentes
Brado Poético

Em casa a cena é a mesma


Cada um no seu objecto electrónico
Até virou acompanhante ou aperitivo das refeições
Uma mordida de pão, uma olhada no aparelho
Uma colher de arroz, um like ou comentário no
novo poste

Até quando este vício?


Será que vale apena?
Quando haverá um papo olho no olho?
Da família e dos amigos desfrutar?
Da comida degustar?
Sem estes aparelhos a interferir?

O DROGADO
Por: Dalton Alfandega | Moatize (Tete)
Seguro a caneta como a droga de um cigarro
Vou inalando com o mesmo prazer de um viciado
em nicotina
Semeio-a entre os dedos como única forma de so-
nhar
O meu corpo está debilitado, quase defunto
Subtraindo-me aos poucos escrevendo

facebook.com/BradoLiterario
15 de Fevereiro de 2022 AS UTOPIAS DA LIBERDADE Emêncio Chiposse P. 18

Este mundo cansou-me de viver


É a hora de morar em pensamentos alheios

Enquanto uma parte de mim vai colando no papel


Vou bebendo ficando muito grosso
Assim me inocento de tudo por trás dessa bebida

Sou um alcoólatra
Dividido não sou nada, vivo nessa sinfonia
Assim enquanto me drogo vou morrendo
Me enterrando nesses papéis

AS UTOPIAS DA LIBERDADE
Adaptado por: Emencio Chiposse
I
Estaremos livre, quando podermos aquecer o nosso
Brado Poético

próprio sol
Estaremos livre, se o Zumbo e o Indico forem
compassivos
Quando o amor ágape for o nosso maior triunfo e
sol

II
Estaremos livre, se o conceito de regionalismo for
roubado dos nossos corações e alma
Quando o sucesso do nosso próximo, do irmão do
Zumbo, for alegria
Quando podermos definir os nossos destinos e esti-
los de aprendizagem

III
Sim, quando podermos comer o feijão buere com
magagada como opção e não privação do ventre
Estaremos livre, se os nossos dependentes conhe-
cerem a verdadeira história do homo sapiens
Quando podermos construir e reconstruir as nossas
próprias histórias

IV
Quando podermos construir o nosso próprio livro,
escrito com tinta do Zumbo ao Indico
Sim, estaremos livre
Quando a competência for amigo do sucesso e a
incompetência inimigo do sucesso
15 de Fevereiro de 2022 ADEGA MÓVEL Luís Madaba P. 19

Quando os que têm o prazer de pensar, pensarem e


repensarem livremente, sem represálias e infelici-
dade.
Sim, estaremos livre!

ADEGA MÓVEL
Por: Luís Madaba | Lichinga
Era apenas uma brincadeira
Naquela sombra da mangueira
Animado e divertido
Um gole não faz mal
Que isso me levaria à cegueira… impensável

Era apenas uma brincadeira


A curiosidade cega levou-me ao primeiro gole
Parecia mole
Logo estava no terceiro, quarto gole
Brado Poético

No quinto dia perdi a conta


Dependente dos goles para ser independente
Mas não sabia que era dependente dos goles

Era apenas uma brincadeira


Naquela sombra da mangueira
Tudo parecia normal, a ninguém dava ouvidos
Os sábios conselhos dos meus pais eram ruído
Afinal, era apenas uma brincadeira

A vida corria seu rumo


Eu trocava meus sonhos
Não por um gole, mas por muitos litros
Mas continuava apenas uma brincadeira

Tal como uma brincadeira tentei separar-me dos


goles
Provar aos que me chamavam de viciado que era
apenas uma brincadeira
Mas, como me separar de um companheiro que ca-
minhou comigo de mãos dadas por muitos anos?

Nem parece que tinha começado como uma brinca-


deira
Porque o meu corpo já tinha processado mais goles
que alambique
15 de Fevereiro de 2022 PERGUNTE A DEUS! Octaviano Joba P. 20

Que vergonha de o descrever


Cheirava a uma destilaria

Percebi que não era uma brincadeira


Gole não é um bom companheiro
Rouba meus sonhos
Mas como livrar-me dos goles se ainda os amo?

Isto não é uma brincadeira


Vou buscar ajuda
Matar meus sonhos não é brincadeira
Mas com quem posso contar
Só me restam amigos daquela sombra da manguei-
ra
Os que me deram o primeiro gole
E outros que chameia para juntos brincarmos à so-
bra da mangueira

Já não era uma brincadeira


Brado Poético

Quero livrar-me deste ladrão de sonhos


Como, se a cada dia quero ainda mais goles

PERGUNTE A DEUS!
Por: Octaviano Joba | Nicoadala (Zambezia)
Se eu era o seu mundo como disseste outrora,
O sol luzindo, banhando o seu corpo lindo;
A lua florindo fosforescente, sempre luzindo...
Onde foi que eu parei neste momento, agora?

De repente o mundo explodiu, desfez-se em pó?


O sol decompôs-se em fragmentos, e sumiu?
A lua? Onde foi que se escondeu? Alguém viu?
E já agora: Eu existo? Ou sou apenas pó (...)?

Sendo pó, quem sou diante dos seus pés?


Às cinzas da chama da minha paixão?
Ou limalha do seu coração em consternação?
Poderei um dia ser o seu mundo, outra vez?

Amo-te francamente (sem nenhum engano)


Porém, se os meus beijos não perduraram nos teus,
Pergunte aos seus Anjos, pergunte ao divino Deus:
− Há no mundo amor maior que do Octaviano?
15 de Fevereiro de 2022 PINCELADAS NO MEU CORAÇÃO Francisco Rage P. 21

Pinceladas no meu coração


Por: Francisco Rage | Moatize (Tete)
Flores e cores
Em decoração de amores
Há uma tinta apropriada
Sobre uma alma apaixonada
Brado Poético

Flores e cores
No desenho de uma alma serenada
Que sossego!
Entre beleza e imagens cintilantes

Pinceladas no meu coração


Aceito!
Aceito o vermelho, aceito o rosa
Até o azul e o verde, nem fazem diferença.

Flores e amores
Que venham de todas as cores
Menos preto
Pois doce é o amor e ácido o luto!

Atrista: Lauro Munguambe


Título: Meu Lar
dimensões: 43x55cm
Tipo: Arte digital
15 de Fevereiro de 2022 DIVULGAÇÃO E EVENTOS P. 22

DIVULGAÇÃO E EVENTOS
15 de Fevereiro de 2022 DIVULGAÇÃO E EVENTOS P. 23

LIZETTE
CONTINUA
A NOSSA ESPERA

O Franco-Moçambicano acolheu no dia 19 de Novembro de 2022


uma feira de angariação de fundos em solidariedade à artista
moçambicana Lizette Chirrime.
Lizette fora submetida a uma cirurgia na anca em Setembro de
2020. Em 2022, após extensas visitas e opiniões médicas, pois
queixava-se de dores na região onde sofrera a intervenção, foi
confirmada uma infecção no osso da anca, e que uma cirurgia de
substituição é necessária. O Hospital Yasheda, na Índia, é o prestador
de serviços médicos mais rentável e respeitável disposto a realizar esta
cirurgia, cujas despesas de tratamento estão orçadas em 25 000 USD.
Infelizmente até ao momento, Fevereiro de 2023, não foi possível
reunir o valor necessário para a referida intervenção cirúrgica.
A Lizette continua num estado de constante dor que afecta
negativamente a sua mobilidade, qualidade de vida e capacidade de
fazer o trabalho artístico que tanto adora.
A incapacidade financeira que a fez lançar a campanha de
angariação de fundos ainda subsiste. Neste sentido vem solicitar o seu
apoio!
Cada doação, por menor que seja, conta!

Somos todos Lizette!

Meios de doação:
Titular: Lizette Chirrime
E-mola e conta móvel: 87 48 28 441
BCI: 0008 0000 18277258101 13
IBAN: MZ59 008 0000 18277258101 13
Paypal: l27chirrime@gmail.com
15 de Fevereiro de 2022 DIVULGAÇÃO E EVENTOS P. 24
15 de Fevereiro de 2022 DIVULGAÇÃO E EVENTOS P. 25
15 de Fevereiro de 2022 DIVULGAÇÃO E EVENTOS P. 26
15 de Fevereiro de 2022 P. 27

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