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Texto I

O gênero da linguagem
Línguas mudam lentamente por aceitação popular; não é papel do Estado interferir
20.fev.2023 às 21h30
A chamada guerra cultural em torno de temas como aborto, drogas e sexualidade intensifica a polarização política
entre ditos progressistas e conservadores. O embate surgiu e é mais acirrado nos EUA, mas o Brasil incorpora suas
pautas.
Uma delas é a linguagem neutra, que propõe mudanças na língua para incluir pessoas não binárias, que não se identificam
com o gênero feminino ou masculino —e segundo estudo publicado na Nature, constituem cerca de 1,2% da população
no Brasil e de 2% no mundo.
Pelas alterações propostas, o pronome "todos" vira "todes", adjetivos como "bonito" e "bonita" viram "bonite" ou
"bonitx", e, além de "ele" e "ela", acrescenta-se o "elu".
No último dia 11, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional uma lei de Rondônia que proíbe o
uso dessa linguagem em instituições de ensino.
A Corte entendeu, corretamente, que a lei estadual viola competências da União. A Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, federal, estipula regras sobre currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino e atividade docente.
Além de seguir essa norma técnica, o STF acertou ao impedir que o governo interfira de modo censório no uso da língua.
Não é papel do Estado definir como as pessoas se comunicam no dia a dia, e tal restrição vale tanto para interditos quanto
para a promoção de novos estilos de linguagem.
A língua, como toda manifestação cultural, não é imutável. Rupturas de valores ao longo do tempo e contatos
entre os povos geram novidades cuja aceitação popular é paulatina. Apenas a partir do uso generalizado, palavras são
incorporadas aos dicionários.
Em relação à sintaxe (a concordância entre as palavras), mudanças são raras, pois afetam a estrutura da língua —
caso da linguagem neutra. Na frase "todas as vítimas morreram", a troca para "todes" exige a criação do artigo "es". Já o
termo "vítima" termina em "a", mas não se refere apenas a pessoas do gênero feminino; deveria ou não ser trocado por
"vítimes"?
Diferentes identidades sexuais e de gênero merecem respeito, e pessoas que as manifestam têm direitos que
devem ser garantidos como para qualquer cidadão. A diversidade é um valor democrático.
Mas pode-se questionar se, num país em que quase metade dos jovens tem dificuldade para interpretar textos,
mexer profundamente na língua seria estratégia de fato eficaz contra o preconceito.

TEXTO II
MANIFESTO ILE PARA UMA COMUNICAÇÃO RADICALMENTE INCLUSIVA
Muito tem se discutido sobre a necessidade de um pronome em português que não tenha gênero.
Ou melhor, que seja sem gênero, pra não ter que separar as pessoas por essa classificação.
Nossa língua não previu a mudança de paradigma que está acontecendo no nosso tempo.
Nossa língua não é flexível o suficiente pra designar alguém que não se sente nem homem, nem mulher.
Ou melhor, pra designar alguém que se sente ora um, ora outra.
Ou melhor, pra designar quem não se conforma com as normas de gênero.
Ou melhor, pra falar de quem vive seu gênero de uma forma que é fora da caixa.

A discussão de gênero e de sexualidade causa muito desconforto em vários círculos. Há quem não se sinta representade (a) (o)
pelas formas normalizantes de expressão: ele ou ela (como se só houvesse 2 possibilidades). Há quem fique desconfortável por
perceber que tem gente querendo ser algo que não estava previsto na ‘norma’. Essa divisão em dois, esse binarismo, deixa de
fora uma enorme variedade de possibilidades, que não são nem uma coisa, nem outra. E quem está nesse grupo, do nem uma
coisa nem outra, continua sendo gente, continua tendo direito de ser como é. Essa nova palavra, esse novo pronome de gênero
‘ile’, é uma tentativa de questionar a ‘norma’, a cis-heteronormatividade, aquele conceito que diz que ‘o certo é homem, macho
e masculino e mulher, fêmea e feminina’. Pode parecer estranho, já que o resto das palavras na língua portuguesa são femininas
ou masculinas. Fazer a concordância com ile pode ser difícil.
Ile é diretore*, diretor, ou diretora?
Ile é amigue*, amigo ou amiga?
Ile é aliade*, aliado ou aliada?
Cabe a cada ile nos dizer como se sente, como se reconhece.
Não importa como você escolheu apresentar seu eu não-binário, você é válido.
O próprio estranhamento que esta palavra causa nos ouvidos das pessoas já é parte da mudança.
Nos força a ter que lidar, lembrar e reconhecer que nossos padrões não são estáticos.
Que a vida não é estática, assim como nossa língua, que aceita os neologismos para poder retratar novas realidades.
Ile é um convite. Convida a diferença a coabitar. Convida nossa consciência a se expandir. Convida a suspender o pré-
conceito.  Aceita o convite?
*Usamos o ‘e’, e não ‘x’ ou ‘@’ por conta do leitor de palavras para deficientes visuais. Usamos o ‘e’ como tentativa de
inclusão do gênero não-binário na língua portuguesa e como alternativa para a usual generalização no masculino.

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