Você está na página 1de 14

d z

u G
E k
LDa HP w
iJh nzSxO T
Am cRbgn
F
v
Qc e
y
Contra o prescritivismo, a fluidez da língua
Beatriz Daruj Gil
Sc v
Q
T
zm
AxE
PR
hF u
H nJ D
resumo abstract

O prescritivismo nos discursos sobre a Prescriptivism in discourses about language


língua não é prática recente. A separação is not a recent practice. The separation
entre bons e maus usos linguísticos between good and bad linguistic uses has
sempre expôs atitudes discriminatórias always exposed discriminatory attitudes
em relação às diversas formas do dizer, towards different forms of saying, contrary
contrariando princípios da ciência to principles of linguistic science, through
linguística, por meio dos quais se sabe which it is known that language varies and
que a língua varia e muda. E que a changes. And that variation is an immanent
variação é propriedade imanente de property of any language, through which
qualquer língua, por meio da qual se the social and historical alterations of a
revelam as alterações sociais e históricas given community are revealed. Having
de determinada comunidade. Tendo as a parameter the fundamentals of
como parâmetros fundamentos da sociolinguistics, discourse analysis and
sociolinguística, análise do discurso e da lexicology, what is proposed to be analyzed
lexicologia, o que se propõe a analisar in this text is the prescriptivism exposed in
neste texto é o prescritivismo exposto some lexical choices made in the journalistic
em algumas escolhas lexicais feitas na article “Rede TV!: Lula uses outdated
matéria jornalística “Rede TV!: Lula usa language when citing ‘Indian’ and ‘sexual
linguagem ultrapassada ao citar ‘índio’ e option’”, published on the UOL portal, on
‘opção sexual’”, publicada no portal UOL, 02/03/2023.
em 3/2/2023.
Keywords: prescriptivism; language;
Palavras-chave: prescritivismo; língua; lexical choices.
escolhas lexicais.
D
A PALAVRA, O MUNDO, O OUTRO temia a palavra, evitando pronunciá-la,
porque tinha medo do conceito ou da rea-
lidade que ela simbolizava. Temos ainda
iz Eduardo Galeano uma memória desse nosso ancestral quando
(1994) que, no Haiti, evitamos pronunciar alguma palavra para
só se contam histórias não sentirmos próxima de nós a realidade
à noite, momento em que ela constrói ou representa.
que se vive o sagrado, Essa dificuldade em separar conceitos
e que quem sabe mesmo de palavras está também na aquisição da
contar sabe que “o língua. A criança aprende, inicialmente,
nome é a coisa que o a palavra em relação à coisa e, com o seu
nome chama” (Galeano,
1994, p. 21). A persona-
gem Magda Lemonnier,
Uma primeira versão deste texto foi publicada no Jornal
criada pelo autor, separa da USP, em 15 de maio de 2023, com o título “O prescri-
as palavras em furiosas, tivismo que quer nos interditar” (https://jornal.usp.br/
artigos/o-prescritivismo-que-quer-nos-interditar/).
amantes, neutras, tristes e mágicas. E, em
uma conversa, essas palavras contam a ela o
que está acontecendo e o que vai acontecer.
Em uma concepção primitiva de lingua-
gem, palavras e coisas se misturam. Atri- BEATRIZ DARUJ GIL é professora do
Departamento de Letras Clássicas
buía-se à palavra a mesma força mágica que e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
se atribuía às coisas, inclusive, o homem Letras e Ciências Humanas da USP.

Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023 15


dossiê linguística da vida contemporânea

desenvolvimento, vai percebendo que não gamento dessa diversidade tem levado o
há relação unívoca entre uma palavra e homem a se separar do outro e traçar um
um conceito, além de descobrir que são caminho de poucos e para poucos.
entidades diferentes: “A língua transmite-
-se, como o observou Meillet, de um modo
‘descontínuo’ de uma geração para outra: O PRESCRITIVISMO
cada ser jovem tem que a aprender de
novo” (Ullmann, 1964, p. 402). Em matéria publicada no portal UOL, em
Ao ver um objeto novo, a criança sente 3/2/2023, intitulada “Rede TV!: Lula usa
a necessidade de classificá-lo. Aciona as linguagem ultrapassada ao citar ‘índio’ e
categorias conhecidas, que, em geral, são ‘opção’ sexual’”, as autoras criticam certos
poucas, e escolhe uma delas na qual insere usos linguísticos do presidente Lula em uma
a novidade. Ela vai acertando a categoriza- entrevista concedida à Rede TV!. Iniciam o
ção à medida que, ao conhecer novos fenô- debate apontando o que Lula deveria usar
menos, fatos e objetos do mundo, aprende quando recorrem à locução prepositiva “em
também novas palavras que correspondem vez de”, como se observa no trecho inicial:
a toda essa novidade, o que faz com que “O presidente Lula usou os termos ‘índio’
vá ampliando seu sistema semântico. É a em referência a indígenas e ‘opção’ em vez
palavra que ajuda a delimitar, categorizar de orientação sexual...” (grifos meus). As
e captar o campo semântico de determi- enunciadoras trazem a público a ideia cor-
nado conceito. rente, em alguns discursos contemporâneos,
A visão primitiva por meio da qual de que não devemos usar algumas palavras
palavra e coisa estão associadas só se que seriam marcadas e de que devemos usar
alterou quando o homem se familiarizou outras, explicitando uma postura deôntica.
com outra língua e percebeu que outras Sociolinguistas e analistas do discurso,
denominações são possíveis para a reali- principalmente, têm mostrado, há décadas,
dade vivida. É a dimensão do outro, do que: 1) língua é uso; 2) língua varia no
diferente, que traz ao homem um certo tempo, no lugar, no grupo social e na situ-
alívio para dizer livremente, sem que a ação de comunicação associada ao gênero
coisa tão temida se aproxime dele. discursivo, como variam todos os objetos
A divisão das cores em matizes é sem- da cultura constituídos pela sociedade; 3)
pre um bom exemplo para que se perceba práticas prescritivistas, quando se trata do
que o sistema cromático se altera porque uso da língua, devem sempre ser revistas
há diferença na forma de olhar para a pelas razões apontadas em 1 e 2. É na
realidade das cores e não como resultado escolha de “em vez de”, retratada acima,
de uma mudança na realidade. que mora o perigo prescritivista. “Em vez
O reconhecimento da palavra do outro, de” significa no lugar de e sugere, na opção
diferente da palavra do eu, é o lugar do feita no texto jornalístico, que Lula esco-
respeito aos diversos modos de ver o lheu mal, separando assim os usos bons dos
mundo, igualmente possíveis e enrique- usos ruins, contrariando, portanto, o prin-
cedores para o avanço humano. O apa- cípio da variação linguística, fortalecendo

16 Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023


o prescritivismo, com uma autoridade (cuja de inclusão social que procura abolir dis-
origem é desconhecida) que parece permitir criminações de vários tipos.
que se pontifique o que deve ser seguido. Outra escolha linguística que merece aten-
Nenhuma língua é homogênea e inva- ção é “ultrapassada”, adjetivo que modifica
riável. A variação é uma propriedade ine- “linguagem”, no título da matéria: “Lula usa
rente aos sistemas linguísticos e ocorre linguagem ultrapassada ao dizer ‘índio’ e
sempre de forma regular e sistemática. ‘opção sexual’”. Dizer que determinado uso
Ela não está sujeita ao acaso, nem ao é algo que já passou, ficou pra trás, está fora
livre-arbítrio do falante, mas é determi- de moda e desatualizado é negar a língua
nada por motivações e restrições advin- como atividade humana e como organismo
das do sistema linguístico que os falantes vivo, ignorando seus constantes movimentos.
da língua seguem. A variação, portanto, Já há muito tempo, em 1904, Bréal (1992)
não faz da linguagem em uso um caos e mostrava que a linguagem não é retilínea
nem é resultado de práticas anárquicas e e que a causa de seu desenvolvimento é a
irregulares dos falantes (Camacho, 2005). vontade humana: “[...] fora do nosso espí-
No texto em questão, outras escolhas rito, a linguagem não tem vida, nem reali-
linguísticas denunciam o prescritivismo: dade” (Bréal, 1992, p. 181). As palavras se
“Não é a primeira vez que Lula erra ao movimentam permanentemente, ampliando
deixar de adotar a linguagem inclusiva ou restringindo seu sentido, morrendo e
– focada nos grupos minoritários”. Ao renascendo com sentidos renovados: “[...]
optar por “erra” e “deixa de adotar”, estão normalmente as mudanças de sentido das
dizendo, nas entrelinhas, que Lula tem palavras são obra do povo” (Bréal, 1992, p.
que usar a linguagem inclusiva. 181). Isso significa que não há linguagem que
A linguagem inclusiva consiste em um “ficou pra trás”: os usos variados e múlti-
conjunto de usos linguísticos que alguns plos coexistem no tempo, porque os grupos
grupos sociais têm defendido e adotado, em humanos são igualmente múltiplos. Os usu-
diferentes níveis da língua, com o objetivo ários realizam suas escolhas linguísticas na
de materializar linguisticamente a integra- diversidade de gêneros discursivos por meio
ção de grupos da sociedade, como afirma dos quais nos comunicamos diariamente e
Maria Helena Moura Neves, em entrevista que, por sua vez, também se modificam. O
concedida ao jornal Folha de S. Paulo pejorativismo contido em “linguagem ultra-
(Vicente, 2022): “[...] esse movimento visa passada” demonstra uma visão estática da
à inclusão social, sem discriminações, de língua. Ignora-se o conteúdo histórico do
todos os grupos da sociedade, tratando-se, uso e passa-se a proibi-lo.
pois, da proposta de uma ‘linguagem inclu- Sírio Possenti, em entrevista dada ao
siva’, ou ‘língua inclusiva’, o que é extre- programa “Direto na Fonte”, da TV Uni-
mamente louvável”. Parte do movimento camp (Franco & Casabblanca, 2020), lem-
reivindica, por exemplo, novas formas de bra que atos discriminatórios não se iniciam
utilização da língua que incorporem a diver- na língua, mas são nela refletidos por uma
sidade de identidades de gênero presente sociedade discriminadora, demonstrando um
na sociedade. É um meritório movimento processo de retroalimentação entre língua e

Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023 17


dossiê linguística da vida contemporânea

sociedade. Para o autor, a língua não fun- ciasse do padrão construído artificialmente
ciona no vácuo e problemas sociais termi- e que permanece, com o passar dos sécu-
nam por se manifestar em expressões lin- los, em formas variadas de discriminação
guísticas, o que justifica a necessidade de linguístico-cultural (Faraco, 2002).
que se observe a língua para além de uma Essa falsa crença de um bom e de um
abordagem estritamente científica e que se mau uso da língua, da forma como ainda
encare com seriedade os problemas sociais aparece na atualidade brasileira, parece ter
que aparecem no seu uso. sua gênese na codificação da gramática no
É verdade que parte da sociedade está Ocidente (Neves, 2014), em que se busca-
preocupada com a inclusão de todas as pes- ram modelos e se impuseram padrões de
soas e busca alterar a estrutura da língua uma variante que se considerava superior,
para que ela se torne, no entendimento desse mais regular, em geral utilizada por uma
grupo, mais ajustada a um mundo inclusivo. elite letrada de uma determinada sociedade.
E, nós, profissionais da linguagem, temos Parece que esse momento histórico
que encarar o tema com seriedade e atenção. funda os diversos discursos normativis-
É verdade também que a língua varia e que tas que se multiplicam de lá até os tem-
quem determina essa variação é o usuário, pos atuais e que podem ser ilustrados nas
sendo a vontade humana (e não a imposição escolhas lexicais “erra”, “deixa de adotar”
de um grupo sobre outro) que preside a lin- e “em vez de”, materializadas no discurso
guagem (Bréal, 1992). E também temos que jornalístico objeto desta análise.
ser sérios observadores desse movimento. Por trás do prescritivismo, está o
Mas dizer que Lula deveria adotar a lin- reducionismo da língua: a condenação
guagem inclusiva é prescritivismo. Não é a aos usos múltiplos e variados, ainda que
linguagem inclusiva que atesta o respeito que sejam amplamente utilizados; o erro em
Lula tem ou não aos grupos minoritários. tudo que é diverso do que foi eleito como
Dizer que Lula ou qualquer pessoa deveria melhor, mais adequado, ou falsamente mais
usar linguagem inclusiva é ser prescritivista. correto. E é bom lembrar que, como bem
E quando se fala em prescritivismo lin- diz Neves (2014, p. 75), “não há ‘pessoa
guístico, é sempre bom lembrar da ori- física’ investida de poder legitimado para
gem da construção do padrão da língua ser considerada fonte decisiva de autori-
portuguesa no Brasil. A elite letrada da dade, e o limite entre um ‘pode’ e um
segunda metade do século XIX tomou ‘não pode’ é necessariamente fluido, já
como referência um modelo lusitano de que isso é a língua, sempre em equilíbrio,
escrita de alguns escritores portugueses, mas, se viva, sempre dinâmica”.
o que revelava seus anseios por viver em
um país branco europeu e rechaçar a mes- A INTERDIÇÃO DE “ÍNDIO”
tiçagem do nosso país. Como esse padrão
se diferenciava, inclusive da norma culta Alega-se, na matéria em questão, que
brasileira, desenvolveu-se na sociedade uma “índio” era palavra usada pelos portugue-
constante atitude purista e normativista ses “para se referirem de forma genérica à
que condenava qualquer uso que se distan- população nativa do que é hoje o território

18 Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023


americano – mas, só no Brasil, há mais No trecho acima, extraído da canção
de 300 povos indígenas”. É verdade. A “Um índio”, de Caetano Veloso, composta
despeito de o colonizador português, que em 1976, um índio (um indígena?) descerá
usava a palavra “índio”, ter sido respon- de uma estrela e pousará no coração do
sável pela dizimação de grande parte dos Hemisfério Sul, na América, depois de as
povos indígenas, não se pode restringir o nações indígenas terem sido exterminadas.
uso dessa unidade lexical a esses que pare- Embora trate do aniquilamento dos povos
cem ser os primeiros registros, afinal já se indígenas, revelando uma “profecia utópica”,
passaram mais de 500 anos. Igualmente, conforme avaliação feita por Wisnik (2019),
é preciso entender o que significa dizer em sua coluna na Rádio USP, a canção
que “índio”, segundo as autoras, associa- constrói uma ideia positiva corporificada na
-se a uma “ideia depreciativa”. chegada de “um índio” que trará o “espírito
Emiri e Yanomami (2022) identificam dos pássaros das fontes de água límpida,
essa polêmica que envolve o uso de “índio”, mais avançado que a mais avançada das
na qual se considera a palavra pejorativa. mais avançadas das tecnologias”. Ao longo
E se perguntam: “Onde está a evidência da canção, o “índio” é elevado a uma con-
científica que ‘índio’ tem conotação pejo- dição magnífica, sendo comparado à impa-
rativa? Há alguma estatística comprovante videz de Muhammad Ali, à paixão de Peri,
que, majoritariamente, o termo é empre- à infalibilidade de Bruce Lee, além de ser
gado em tom depreciativo?” (Emiri & retratado em um contexto de força, luz,
Yanomami, 2022). espiritualidade, resplandecência. E, note-
Considerando o princípio básico de que -se, é chamado de “índio”.
língua é uso, verifiquemos então alguns Em outra canção, “Amor de índio”, com-
empregos da palavra “índio”, para além posta por Beto Guedes e Ronaldo Bastos,
dos portugueses colonizadores: em 1978, o uso de “índio”, como modifi-
cador do substantivo “amor”, compondo o
“Um índio descerá de uma estrela colorida, sintagma “amor de índio”, restrito ao título
[brilhante da canção, resume o que se desenvolve na
De uma estrela que virá numa velocidade letra da música em relação ao respeito ao
[estonteante ciclo da vida, à força e ao equilíbrio da
E pousará no coração do Hemisfério Sul, natureza, como se pode constatar no trecho:
[na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação “Tudo que move é sagrado
[indígena E remove as montanhas
E o espírito dos pássaros das fontes de água Com todo o cuidado
[límpida Meu amor [...]
Mais avançado que a mais avançada das
[mais avançadas das tecnologias Abelha fazendo o mel
Virá” Vale o tempo que não voou”

(Caetano Veloso, grifos meus). (Beto Guedes e Ronaldo Bastos).

Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023 19


dossiê linguística da vida contemporânea

De autoria de um conjunto de produto- ficados das palavras são formações dinâ-


ras e patrocinado pelo Fundo de Apoio à micas, e não estáticas” (Vygotsky, 1998, p.
Cultura da Secretaria de Cultura do Dis- 156). As palavras em si mesmas não são
trito Federal, Índio cidadão? (2014) é um portadoras de significado absoluto; não se
documentário que retrata a luta de grupos pode dizer que a uma palavra corresponde
indígenas pela manutenção de direitos con- um único significado. Assim como tam-
quistados na Constituição de 1988. A força bém não são apenas suportes para inúme-
da palavra “índio”, modificada por “cida- ros significados, caso em que as palavras
dão”, no título do documentário, nomeia mudariam seu significado a cada uso. O
um trabalho de luta das nações indígenas que ocorre é que a língua se desenvolve
e de enfrentamentos políticos pela garantia em equilíbrio. As palavras têm uma his-
dos direitos originários à terra. tória de contextos pelos quais passaram
Outro uso da palavra “índio” pode ser ao longo de sua existência. A cada uso,
encontrado em uma campanha pelo respeito em um determinado enunciado, atualiza-se
aos índios (indígenas?) intitulada “Menos um desses contextos presentes na memória
preconceito, mais índio”, desenvolvida, da palavra. E, naturalmente, um longo uso
entre 2017 e 2018, pelo Instituto Socio- novo vai preparando os usuários a incor-
ambiental (ISA, 2017), uma das principais porarem a novidade na história de uma
organizações ambientalistas e indigenistas determinada palavra: “[...] a palavra não é
do Brasil. Uma das peças da campanha é uma embalagem vazia de significado, total-
um vídeo filmado na comunidade Baniwa, mente subordinada às restrições do texto,
no Alto Rio Negro, no Amazonas. No final mas um feixe de possibilidades, oferecendo
do vídeo, um velho líder reivindica seguir ao texto inúmeras opções de significado,
sendo índio: “Somos os baniwas, vivemos embora impondo também suas normas e
no Alto Rio Negro, Amazônia. Andamos restrições de uso” (Leffa, 2000, p. 18).
pelados. Nosso único esporte é caçar. Não O questionamento sobre o uso de
temos pátria nem religião. Comemos com “índio”, na atualidade, feito inclusive
as mãos e cortamos o cabelo sempre igual. pelos povos originários, como uma pala-
Isso, pelo menos, em 1500. De lá para vra associada a um sentido único (aquele
cá, tudo mudou. E se, mesmo assim, você usado pelos portugueses em 1500), e que
continua a ser ‘homem branco’, por que por isso deveria ser substituída por “indí-
nós não podemos continuar a ser índio?”. gena”, que consideraria uma multiplici-
Esses exemplos da utilização de “índio” dade de povos com diferenças ricas em
transcendem aquele uso aparentemente vários níveis, pode fazer com que “índio”,
inaugurado no discurso do colonizador. naturalmente, ao longo do tempo, passe
Nos estudos etimológicos e semânticos de a ocupar menos contextos de uso. Mas
determinadas unidades lexicais, é possível isso depende dos usuários, da força real
verificar os inúmeros movimentos de uma do desejo dos usuários de que isso acon-
palavra no processo de fixação de seu sen- teça. E um novo uso da unidade lexical
tido, como a restrição e a ampliação de ou do sintagma pode se fixar em alguns
sentido e a polissemia. Também “os signi- contextos apenas, mais ou menos restri-

20 Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023


tos: “Se recuperarmos historicamente as cos, históricos que, no título, enaltecem a
alterações de sistemas linguísticos, até palavra ‘índio’” (Emiri & Yanomami, 2022).
com extinção de línguas e com criação de
novas línguas, veremos que as mudanças, Os autores acrescentam que a luta pela
em cada sistema, fizeram-se a partir do terra, construída por índios e indigenistas,
uso natural da língua por uma comuni- levou os constituintes de 1988 a escreve-
dade”, diz Maria Helena Moura Neves, rem a “nobre palavra ‘índio’” em nossa
em entrevista concedida ao jornal Folha Constituição Cidadã e que o “estrangula-
de S. Paulo (Vicente, 2022, grifos meus). mento do termo ‘índio’ é epistemicídio,
Sobre a alegação de que os povos indí- sendo que através dessa palavra passaram
genas não deveriam ser chamados generi- a história, a cultura, a luta, os saberes,
camente por “índios”, Emiri e Yanomami os direitos” (Emiri & Yanomami, 2022).
(2022) lembram: Não se faz futurologia quando se
estuda a língua; identificam-se, descre-
“Hoje em dia ninguém ignora que, no Bra- vem-se e analisam-se usos. E, nesse sen-
sil, há 305 etnias com suas diversidades tido, é preciso que se respeite toda a his-
sociais, culturais, linguísticas, cada uma tória de usos de “índio”, sem desprezá-la
com seu nome próprio. Quando se fala ou e restringi-la a um único contexto, para
se escreve a respeito de um determinado que não exterminemos um índio que da
povo, logicamente se utiliza seu nome estrela descerá, resplandecente.
específico; quando se fala ou se escreve
a respeito de indígenas em geral, chamá- “OPÇÃO SEXUAL”
-los de ‘índios’ não é diferente de apelidar
OU “ORIENTAÇÃO SEXUAL”?
de europeus tanto os portugueses quanto
os franceses e italianos”.
Em relação ao também criticado uso
O entendimento de alguns que “povos de “opção sexual”, vejamos. O uso da
originários” ou “povos indígenas” indica- expressão tem sido considerado inade-
riam com mais precisão e respeito o que quado: “[...] orientação sexual é o termo
se quer denominar não deve ser motivo correto, pois é como a sexualidade e o
para que outros usos, como o de “índio”, desejo sexual das pessoas são direciona-
sejam interditados. Como se viu, “índio” é dos internamente, sendo que as pessoas
palavra empregada em diferentes momentos não optam por qual gênero sentirão atra-
e contextos da história do país: ção afetiva e sexual” (UFMG, 2019). O
que se entende, nesse caso, é que o uso
“Em nível institucional, a palavra ‘índio’ de “opção sexual” indicaria, inadequa-
recorre desde a criação, em 1910, do SPI damente, que pessoas lésbicas ou gays,
– Serviço de Proteção aos Índios, que, em por exemplo, escolhem sua sexualidade.
1967, tornou-se Funai – Fundação Nacional O que se verifica é que, mesmo entre
do Índio. Em nível acadêmico, são os estu- especialistas no assunto, há discordância
dos antropológicos, linguísticos, sociológi- sobre o caráter biologizante ou libertário

Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023 21


dossiê linguística da vida contemporânea

da sexualidade, o que determinaria o uso dado fixo natural (inato ou adquirido) na


de “orientação sexual” ou “opção sexual”, realidade do indivíduo suposto ‘homosse-
respectivamente. Oliveira Jr. e Maio (2016) xual’. Embora a procura por explicar os
ouviram professores da escola básica e fenômenos humanos a partir de bases bioló-
compararam seus discursos sobre pessoas gicas não seja um fato atual na história da
LGBTQIA+ com o que alguns documentos ciência, a onda do determinismo biológico
governamentais apresentam sobre o tema. tem permitido retornar, com muita acei-
Os autores observam, em duas publicações tação e difusão pelas mídias, explicações
do governo federal, Brasil sem homofobia, biologizantes de realidades sociais e fenô-
de 2004, e Guia para adolescentes e pares: menos culturais. Temos sido bombardeados
para uma educação entre pares, de 2011, pela descrição de fenômenos tomados como
a crítica ao uso de “opção sexual”, com a desencadeados por ‘ações do cérebro’, à
justificativa de que a “orientação sexual” simples vista de fenômenos que são refle-
não é escolhida, nem aprendida. xos ou reações fisiológicas provocadas por
Questiona-se, por outro lado, a ideia situações emocionais, subjetivas, sociais”
construída no uso de “orientação sexual”, (Souza Filho, 2009, p. 62).
alegando-se, por exemplo, que o fato de a
pessoa não ser responsável pela determinação Como se pode ver, nessa breve reflexão
da sua sexualidade poderia gerar, em relação sobre o assunto, a escolha por “orientação
a essa pessoa, um sentimento de piedade. sexual” ou por “opção sexual” está asso-
Essa visão essencialista da homosse- ciada à visão que se tem da realidade e, no
xualidade (contida no uso de “orientação caso específico, ao entendimento sobre a
sexual”) revelaria a necessidade de autori- “genealogia da homossexualidade” (Oliveira
zação de uma determinada prática sexual e Jr. & Maio, 2016, p. 328). Para os autores,
de indulgência com as pessoas LGBTQIA+, a controvérsia entre a visão essencialista e
deixando de contribuir com o reconheci- a emancipatória só vai acabar quando “se
mento da legitimidade de um direito, o que desestabilizar a heterossexualidade como
estaria mais bem contemplado no uso da padrão normativo, de forma que toda e qual-
rejeitada “opção sexual”. quer manifestação da sexualidade não hete-
A escolha por “orientação sexual” parece ronormatizada deixe de ser caracterizada
exibir, nesse entendimento, a ânsia pela como desviante ou patológica” (Oliveira Jr.
explicação biológica de uma prática sexual, & Maio, 2016, p. 341).
compreendendo-a como algo inato do indi-
víduo, reafirmando uma antiga explicação PALAVRAS E SEUS USOS:
de fenômenos humanos com base no deter-
O DINAMISMO DA LÍNGUA
minismo biológico:

“No caso da homossexualidade, deixando Para fundamentar essa reflexão em


de ser entendida como uma prática sexual princípios teóricos da lexicologia, área da
(social), é recorrente a tentação pela ‘expli- ciência linguística que estuda o léxico da
cação biológica’: pretende-se que seja um língua, é preciso começar lembrando que

22 Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023


é no âmbito do vocabulário, subsistema Com o desenvolvimento e proliferação dos
mais epidérmico da língua, que aparecem, livros didáticos, a partir da segunda metade
com mais nitidez, os usos prestigiados e do século XX, época em que a carreira
desprestigiados. do magistério começa a ser desvalorizada,
Antunes (2012) ressalta que atualizações tendo o professor que assumir carga horá-
lexicais que “destoam daquilo que seria um ria de aulas muito grande, o livro didático
‘léxico’ mais formal ou mais elaborado são passa a ser o apoio para esse profissional
logo percebidas como ‘evidências’ de uma sobrecarregado. E, em suas páginas, o que
competência linguística muito limitada”. se encontrava nas seções destinadas ao
Neves (2014, p. 35) acrescenta que “o povo vocabulário eram, principalmente, glossá-
tem fascínio pela ‘boa linguagem’, sempre rios ao final do texto-base que costumava
que um pouco de contato com padrões cul- iniciar cada capítulo. O autor escolhia, de
tos lhe tenha sido permitido”. Os usos lexi- seu entendimento, palavras que imaginava
cais que se afastam do que parece ser um que seriam difíceis para o estudante e,
vocabulário atualizado, segundo as fiscais- abaixo do texto, inseria-as em uma lista,
-autoras da matéria jornalística em questão, cada uma seguida de um significado em
são percebidos por elas como marcas de forma de sinônimo. Observe-se: para a
uma insuficiente e ultrapassada competência palavra difícil aparecia um sinônimo asso-
lexical do presidente Lula. ciado. E isso era quase tudo que se fazia
É necessário lembrar também daquilo no trabalho com o léxico da língua.
que tratamos de significado básico ou pri- São essas insuficiência e restrição do
mitivo de uma palavra. Nos contextos de trabalho com o léxico que marcaram gera-
ensino-aprendizagem de língua portuguesa, ções de estudantes. A palavra não era vista
tem-se chamado bastante atenção para o em sua relação com outras, com o con-
tema: “Essa perspectiva de reduzir a palavra texto, com o mundo. Ela era associada
a uma única significação se ajusta muito a um único significado (que figurava na
bem aos costumeiros exercícios em torno forma de um sinônimo).
de palavras isoladas ou de frases descon- Para além de seu significado básico
textualizadas” (Antunes, 2012, p. 23). (aquele que, em geral, é usado em um
Antunes (2012) está fazendo referência maior número de contextos em que uma
à tradição do ensino de vocabulário nas palavra ocorre), as palavras vão recebendo
aulas de língua portuguesa. E talvez aí ressignificações construídas nos inúmeros
se encontre a origem da prática prescri- enunciados produzidos pelos usuários da
tivista que subjaz à matéria jornalística língua. Seja nos usos literários, em que
em análise. Em toda a história do ensino se explora intensamente a virtualidade da
da língua portuguesa no Brasil, desde a língua, seja no uso da língua comum, no
colonização, e mesmo antes de a disciplina nosso simples e saboroso cotidiano linguís-
ser assim denominada, o que predominou tico, a palavra vai se ajustando às neces-
nas atividades relativas ao significado de sidades de seus enunciadores nas cenas
palavras foi o exercício da sinonímia e, da enunciação. Até o isolamento do signo
em número menor de vezes, da antonímia. linguístico, utilizado como método para

Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023 23


dossiê linguística da vida contemporânea

estudá-lo como unidade virtual do sistema ao desuso, ao desaparecimento ou mesmo


da língua, não pode prescindir da realiza- ao contrário: palavras podem voltar à circu-
ção discursiva (Biderman, 2001). lação, muitas vezes com novas conotações,
A postura prescritivista, vista em usos sempre para o enriquecimento do léxico da
como “Lula erra”, “usa linguagem ultra- língua (Biderman, 1978).
passada”, “usou os termos ‘índio’ em refe- É estreito esse olhar para as palavras
rência a indígenas e ‘opção’ em vez de como se elas fossem portadoras de signi-
orientação sexual”, revela o entendimento ficado absoluto, fazendo-se pouco caso do
de língua como algo estático, desconsi- seu enlace com o usuário, com a situação
derando-se o movimento das palavras e, de enunciação, com o discurso e com o
principalmente, o fato de que o sentido gênero discursivo: “[...] o indivíduo gera
delas também se constitui no discurso. O a semântica de sua língua, [...] o uni-
prescritivismo ganha espaço no falso lugar verso semântico se estrutura em torno
de uma sociedade estática, com nenhuma de dois polos opostos: o indivíduo e a
mobilidade. E a redução da palavra a uma sociedade” (Biderman, 1978, p. 139). E
única significação é um entendimento res- é essa estreiteza que sedimenta o fiscal
trito das noções que o léxico de uma língua da língua, levando-o a permanecer alerta,
encobre. Como nos lembra Antunes (2012, em estado de correção.
p. 23), a redução da palavra a uma única Resta uma pergunta: de onde vem a
significação parece “etiquetas em pedra”. autoridade para se dizer o que é um bom
Os sistemas léxicos das línguas retra- uso linguístico? Essa língua desejável a
tam a experiência humana acumulada e o que almejam as enunciadoras do discurso
acervo cultural das sociedades. Os indiví- prescritivista sobre o uso de Lula está a
duos atuam na perpetuação e reelabora- serviço da discriminação social e não da
ção contínua desses sistemas, que poderão interação sociocomunicativa, função pre-
se expandir, se alterar ou se contrair, em cípua da língua.
razão de mudanças sociais e culturais que Ultrapassada não é a linguagem que
levam seções do léxico à marginalização, Lula usa. Ultrapassado é o prescritivismo.

24 Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023


REFERÊNCIAS

ALEIXO, I.; SÁ, C. “Rede TV!: Lula usa linguagem ultrapassada ao citar ‘índio’ e ‘opção
sexual’”. Portal UOL. São Paulo, 3/fev./2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/
politica/ultimas-noticias/2023/02/03/redetv-lula-usa-linguagem-ultrapassada-ao-citar-
indio-e-opcao-sexual.htm. Acesso em: 15/ago./2023.
ANTUNES, I. Território de palavras: estudo do léxico em sala de aula. São Paulo, Parábola
Editorial, 2012.
BIDERMAN, M. T. C. Teoria linguística: linguística quantitativa e computacional. Rio de
Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, 1978.
BRÉAL, M. Ensaio de semântica. São Paulo/Campinas, Pontes/Educ, 1992.
CAMACHO, R. “Sociolinguística”, in F. Mussalim; A. C. Bentes (orgs.). Introdução à
linguística, v. 1. São Paulo, Cortez, 2005.
EMIRI, L.; YANOMAMI, G. “Vida longa ao termo ‘índio’”. Disponível em: https://
lorettaemiriegliyanomami.wordpress.com/2022/11/24/vida-longa-ao-termo-indio/.
Acesso em: 1º/ago./2023.
FARACO, C. A. “Norma padrão brasileira: desembaraçando alguns nós”, in M. Bagno
(org.). Linguística da norma. São Paulo, Loyola, 2002, pp. 37-61.
FRANCO, J.; CASABBLANCA, K. “Linguagem neutra: debate deve ser levado a sério,
defende linguista”. Direto na Fonte. Campinas, Unicamp TV, 26/nov./2020.
GALEANO, E. As palavras andantes. Porto Alegre, LP&M, 1994.
GUEDES, B.; BASTOS, R. “Amor de índio”. Disponível em: https://www.letras.mus.br/beto-
guedes/44530/. Acesso em: 15/ago./2023.
ISA. Menos preconceito, mais índio. 2017. Disponível em: https://campanhas.
socioambiental.org/maisindio/. Acesso em: 15/ago./2023.
KAIOWÁ. R. Índio cidadão? Documentário produzido pelo Fundo de Apoio à Cultura da
Secretaria de Cultura do Distrito Federal, 2014. Disponível em: https://www.camara.
leg.br/tv/432678-indio-cidadao/. Acesso em: 1º/ago./2023.
LEFFA, V. J. (org.). As palavras e sua companhia: o léxico na aprendizagem das línguas.
Pelotas, Educat, 2000.
NEVES, M. H. M. Que gramática estudar na escola? Norma e uso na língua portuguesa.
São Paulo, Contexto, 2014.
OLIVEIRA JR, I.; MAIO, E. R. “Opção ou orientação sexual? (Des)controvérsias na (des)
contextualização da homossexualidade”. Ensino em Revista, v. 23, n. 2. Uberlândia,
jul./dez. 2016, pp. 324-44.
SOUZA FILHO, A. de. “A política do conceito: subversiva ou conservadora? – crítica à
essencialização do conceito de orientação sexual”. Bagoas, n. 4, 2009, pp. 59-77.
UFMG. “Orientação sexual não é uma escolha, afirma pesquisador da UFMG”. Disponível
em: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/orientacao-sexual-nao-e-uma-escolha-
afirma-pesquisador-da-ufmg. Acesso em: 1º/ago./2023.
ULLMANN, S. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1964.
VELOSO, C. “Um índio”. Disponível em: https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/
discografia/bicho-1977/. Acesso em: 15/ago./2023.

Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023 25


dossiê linguística da vida contemporânea

VICENTE, E. “Professora e linguista com 70 anos no serviço público vê equívoco em


termo ‘linguagem neutra’”. Folha de S. Paulo, 31/mar./2022. Disponível em: https://
www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/03/professora-e-linguista-com-70-anos-no-
servico-publico-ve-equivoco-em-termo-linguagem-neutra.shtml Acesso em
28/jul./2023.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
WISNIK, G. “Espaço em obra”. Jornal da USP, 5/set./2019. Disponível em: https://jornal.usp.
br/atualidades/colunista-utiliza-a-cancao-um-indio-para-prever-risco-de-destruicao-
das-nacoes-indigenas/. Acesso em: 29/jul./2023.

26 Revista USP • São Paulo • n. 138 • p. 13-26 • julho/agosto/setembro 2023

Você também pode gostar