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ARQUITECTURA E MEMÓRIA COMO FACTORES DE IDENTIDADE

CULTURAL

ARQUITECTURA Y MEMORIA COMO FACTORES DE IDENTIDAD CULTURAL

ARCHITECTURE AND MEMORY AS CULTURAL IDENTITY FACTORS

Eixo temático: A circulação de conceitos e teorias

Virgolino Ferreira Jorge


Doutor, Professor Associado com Agregação, Universidade de Évora – Portugal, vfjorge@gmail.com

Resumo
O objectivo da salvaguarda dos bens patrimoniais é a consolidação de traços identitários dos nossos
antepassados. O homem necessita de memória histórica, ou seja, de interiorização do passado; como ser
cultural, ele não poderá evoluir sem o sentimento das tradições. A evocação e a invocação da História, de
necessidade vital para o futuro do homem como essência histórica, não podem extinguir-se. É um facto
social incontestado que os cidadãos têm consciência do valor histórico e da riqueza etnográfica da sua
herança colectiva, espelho e vector da sua identidade, mobilizando-se com determinação assumida nas
tarefas urgentes da sua defesa. Com estes combates e manifestações de vigoroso dinamismo intenta-se
preservar, para as gerações vindouras, a precariedade dos vestígios materiais de milénios de história
humana e de entidade cultural. O conceito alargado de memória cultural relaciona-se com todas as áreas da
moderna percepção de defesa do património, desde a clássica área da conservação e restauro do
património arqueológico à conservação de um monumento técnico. Ele encerra a força e o valor da tradição
com o testemunho dos valores estéticos e éticos inerentes. Preservar e documentar o passado e a
identidade histórica significa declarar-se também partidário da coexistência qualificada do novo na História,
mercê de um diálogo articulado e mutuamente benéfico com a actualidade, com a „nova vida‟ e exigências
socioculturais e com as consequentes transformações da arquitectura, perante as oportunidades e
capacidades do desenvolvimento da ciência e das inovações tecnológicas. A salvaguarda do património
arquitectónico é considerada como um modo de defesa global do ambiente que não se preocupa só com a
protecção do espaço vital natural, mas também com a do espaço vital colectivo desenhado pelo homem no
decurso da sua existência. Não faltam, por isso, normas e directivas internacionais apelando todas para a
necessidade de salvaguarda integrada da herança comunitária.
Palavras chaves: Arquitectura e memória, Identidade cultural, Património histórico.

Resumen
El objetivo de salvaguardar el patrimonio histórico es consolidar los rasgos de identidad de nuestros
antepasados. El hombre necesita la memoria histórica, es decir, la interiorización del pasado; como un ser
cultural, no puede evolucionar sin el sentimiento de las tradiciones. La evocación de la historia, de
necesidad vital para el futuro del hombre como esencia histórica, no puede ser extinguida. Es un hecho
social indiscutible que los ciudadanos son conscientes del valor histórico y la riqueza etnográfica de su
patrimonio colectivo, reflejo de su identidad, movilizándose con determinación en las urgentes tareas de su
defensa. Con estas manifestaciones de vigoroso dinamismo procuramos preservar para las generaciones
venideras la precariedad de los vestigios materiales de milenios de la historia humana y de la entidad
cultural. El amplio concepto de memoria cultural se relaciona con todas las áreas de la percepción moderna
de la defensa del patrimonio, desde el área de conservación y restauración del patrimonio arqueológico
hasta la conservación de un monumento técnico. Cierra la fuerza y el valor de la tradición con el testimonio
de valores estéticos y éticos inherentes. Preservar el pasado y la identidad histórica significa declararse
también partidario de la coexistencia calificada de lo nuevo en la historia, a través de un diálogo articulado
con el presente, con la ‘nueva vida’ y las exigencias socioculturales y con las consecuentes
transformaciones de la arquitectura, dadas las oportunidades del desarrollo de la ciencia y las innovaciones
tecnológicas. La salvaguardia del patrimonio arquitectónico es considerada como una defensa global del
medio ambiente, que no sólo se refiere a la protección del espacio natural de vida, sino también al espacio
de vida colectivo diseñado por el hombre en el transcurso de su vida. Por eso no faltan normas
internacionales, todas apelando a la necesidad de salvaguardia integral del patrimonio comunitario.
Palabras-clave: Arquitectura y memoria, Identidad cultural, Patrimonio histórico.

Abstract
The goal of safeguarding historical heritage is to consolidate the identity traits of our ancestors. Man needs
historical memory, that is, of interiorization of the past; as a cultural being, it can not evolve without the
feeling of traditions. The evocation of history, of vital necessity for the future of man as a historical essence,
can not be extinguished. It is an uncontested social fact that citizens are aware of the historical value and
ethnographic richness of their collective heritage, mirror of their identity, mobilizing with determination in the
urgent tasks of their defense. With these manifestations of vigorous dynamism we try to preserve for the
generations to come the precariousness of the material vestiges of millennia of human history and of cultural
entity. The broad concept of cultural memory is related to all areas of the modern perception of heritage
defense, from the area of conservation and restoration of the archaeological heritage to the conservation of a
technical monument. It closes the strength and value of tradition with the witness of inherent aesthetic and
ethical values. Preserving the past and the historical identity means to declare itself also a partisan of the
qualified coexistence of the new in history, through an articulated dialogue with the present, with the 'new
life' and sociocultural requirements and with the consequent transformations of architecture, given the
opportunities and capacities of the development of science and technological innovations. The safeguarding
of the architectural heritage is considered as a global defense of the environment which is not only
concerned with the protection of the natural living space but also with the collective life space designed by
man in the course of his life. That is why international norms are not lacking, all appealing to the need for an
integrated safeguard of the community heritage.
Keywords: Architecture and memory, Cultural identity, Historical heritage.
ARQUITECTURA E MEMÓRIA COMO FACTORES DE IDENTIDADE
CULTURAL
O objectivo essencial da salvaguarda dos bens patrimoniais é a consolidação de traços e imagens
identitários das gerações que nos precederam. Embora sejam testemunhos culturais do
desenvolvimento humano, nem todos merecem a distinção privilegiada de „património histórico‟,
não obstante a riqueza de informação potencial que despertam para o conhecimento,
interpretação e memorização do passado comunitário (evolução tecnológica, flutuações
económicas, influências culturais, organização política, sistema social, etc.)1. São destruídos, em
permanência, fragmentos utilitários da história una da humanidade; eles têm de ser apagados,
obviamente sob critérios selectivos de singularidade e não só de idade, pois a acção quotidiana do
homem seria impossível e paralisante sem extinguir ou modificar tal excesso de memórias
parcelares da nossa herança construída, acumuladas lenta e indefinidamente ao longo de
milénios2. Em contrapartida, olha-se o homem como um ente histórico, substancialmente na
relação dial e analógica do que ele expressa no seu património, de forma visível, condensada e
interactiva. O homem necessita de memória e de moldura histórica, ou seja, de interiorização do
passado; como ser cultural, ele não poderá evoluir sem o sentimento das tradições e dos
costumes, sem vivência anamnésica. Neste conceito de continuidade cultural consciente ou
sentido e segurança da tradição histórica estruturada, em que devemos apostar sem fanatismos
nem concessões políticas ou económicas e que não está representado somente nos monumentos
antigos, como artefactos culturais antropo-históricos, poderá ver-se algo como uma justificação
moral de defesa das peculiaridades da nossa identificação e da memória viva humana em geral.

A evocação e a invocação da História, de necessidade vital para o futuro do homem como


essência histórica, não podem extinguir-se. É um facto social incontestado que, cada vez mais, os
cidadãos têm consciência do valor e da riqueza etnográfica da sua herança colectiva, tanto
cultural como natural, espelho e vector da sua definição e identidade pátrias, mobilizando-se com
vontade e determinação assumidas no afã urgente e ingente da sua defesa. Com estes combates
e manifestações de vigoroso dinamismo intenta-se preservar, para as gerações vindouras, a
precariedade dos vestígios materiais de milénios de história humana e de entidade cultural.

Com a evolução dos conceitos de património e de monumento impõe-se, cada vez mais, a definição de categorias 
1

no quadro dos imóveis legalmente classificados , ordenadas de acordo com a substância original e o valor imaterial
dos monumentos. Esta diferenciação qualitativa dos objectos monumentais históricos, ou qualificação suplementar, que
exige critérios claros e de imanência objectiva, poderia servir de indicador para a atribuição hierarquizada de verbas
destinadas à sua salvaguarda e conservação.
2
Para uma reflexão sobre a ética da salvaguarda, consultar, entre outros, Michel Lacroix, O Princípio de Noé ou a ética
da salvaguarda. Lisboa: Instituto Piaget, s. d.
Figura 01: Frontaria do Mosteiro da Batalha, Portugal, séc. XV
Foto do autor, 2017

O conceito distendido de memória cultural relaciona-se com todas as áreas da moderna


percepção de defesa do património histórico, desde a clássica área da conservação e restauro
dos bens arqueológicos e artísticos à conservação de um monumento técnico ou industrial. Ela
encerra a força da tradição com o testemunho e a experiência dos valores estéticos e éticos
inerentes. Preservar e documentar o passado e a identidade histórica ou tradicional significa, de
resto, declarar-se também partidário da coexistência qualificada do novo na História, mercê de um
diálogo articulado e mutuamente benéfico com a actualidade, com a „nova vida‟ e exigências
socioambientais e com as consequentes transformações ou reusos da arquitectura, perante as
oportunidades e capacidades do desenvolvimento da ciência e das crescentes inovações
tecnológicas. Na noção de constância histórica da memória e da identidade comuns está implícita,
de modo particular, a decisiva função de orientação do património cultural no espaço pátrio, num
perfil activo e integrado entre passado, presente e futuro. O presente reflecte o passado e ordena
o futuro, numa instauração de valores recíproca. Pertencem também a estas funções de
orientação e de identificação dos bens culturais, ou seja, ao poder da sua mensagem ética, as
possibilidades de aferição com o urbanismo histórico. A este propósito, é com preocupação e
tristeza que lembramos aqui a gentrificação feroz em prol do sector terciário, o laxismo legal, as
vicissitudes da natureza adversa e marcadamente hostil de inomináveis e infindáveis subúrbios
contemporâneos, afogados pela indisciplina e sem dimensão estética nem qualidade de vida dos
residentes...3.

3
Perante a crise urbana actual, é urgente repensar a cidade como uma construção social e não como um território da
construção civil (paisagem humanizada versus paisagem betonizada). O direito urbanístico é facilmente contornável,
pelo que muitos edifícios são construídos e legalizados a posteriori, segundo a escapatória do facto consumado (as
excepções a esta derrogação confirmam a regra). Devido ao facilitismo institucional, o desvio às normas compensa...
Infelizmente, mantém-se actualizado o livro de Italo Calvino, A Especulação Imobiliária. Lisboa: Editorial Teorema, 2010.
(edição original: 1957)
Figura 02: Vista do Santuário Senhor Bom Jesus do Bonfim, Salvador, Brasil, séc. XVIII
Foto do autor, 2014

Como é sabido, entre os aspectos particulares de defesa e assunção histórica do nosso ambiente
cultural, apresenta-se a preservação do património arquitectónico como uma quota integrante e
significativa da melhoria da sua qualidade; logo, no âmbito de uma ética e política cultural. Uma
ética e política da cultura, com fundamentos indissolúveis muito diversos, que exigem do indivíduo
e da sociedade determinados virtuosismos técnicos e novas responsabilidades no relacionamento
dialéctico e conceptual com a defesa da qualidade da nossa paisagem histórica e da biosfera, no
seu propósito e missão comuns.

A salvaguarda do património arquitectónico é considerada, cada vez mais, como um modo de


defesa global do ambiente que não se ocupa só com a protecção do espaço vital natural mas
também com a do espaço vital colectivo, desenhado pelo homem no decurso da sua existência.
Não faltam, por isso, normas e directivas internacionais, elaboradas ou referendadas por
organismos vocacionados para a preservação da memória e da identidade histórico-cultural,
apelando todas para a necessidade de salvaguarda integrada da herança comunitária. Para
sublinhar a actualidade e o interesse desta temática sensível e complexa, não é necessário
invocar discussões públicas conhecidas acerca da qualidade do ambiente ou da crise ecológica.
Bastam-nos as tarefas quotidianas de protecção dos elementos culturais, aparentemente
inofensivas e sem fundo político, como a cor num edifício classificado, as quais têm galvanizado a
opinião pública e suscitado debates acesos. Constituem problemas normais de política autárquica
local e inquietam todos os munícipes conscientes, por dever de memória e espírito de cidadania,
mesmo aqueles a quem uma visita a um museu ou uma ida ao teatro aparentemente pouco
significam.

O apreço pela cultura e produção patrimonial assenta em razões históricas. Basta lembrar que a
génese de muitos monumentos, desde a pirâmide faraónica de Quéops, por exemplo, traduz, de
certo modo, o projecto político-cultural emblemático de uma época e um país. No antecedente, a
defesa, a conservação e o restauro do património histórico confinaram-se, quase em exclusivo,
aos “padrões imorredouros das glórias pátrias”4. Hoje em dia, esse cuidado de salvaguarda, que
antes se limitava a obras-primas de natureza estética e histórica de uma cultura de elite, alarga-se
aos valores e às expressões culturais dos patrimónios relativos à compreensão histórica de uma
sociedade pluralista, quer se trate de uma modesta casa rural, de uma fábrica da Era Industrial, de
uma paisagem singular ou de uma prática reconhecida por colectividades humanas concretas.

Figura 03: Vista panorâmica de Machu Picchu, Peru


Foto do autor, 2015

Actualmente, a demolição total de um edifício de significado histórico-cultural é quase uma


excepção, graças à vigilância atenta e sensível da opinião pública. Os verdadeiros problemas
consistem na integração dessas construções no seu espaço histórico peculiar, à escala
topológica, entendidos como testemunhos materiais do passado, ricos de informação potencial,
que devem manter a sua substância e espessura de antiguidade. Estes não devem ser

4
Cf. "Monumentos Nacionais. Orientação técnica a seguir no seu restauro", Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais, nº 1, setembro de 1935, p. 18.
reconstruídos, exactamente com o mesmo grau de beleza, ou renovados na totalidade, segundo
estereótipos e operações de cosmética moderna, embebidos de um materialismo penetrante,
mesquinho e ignaro, de lógica meramente perniciosa5.

Custa a afirmar que, diante das perspectivas animadoras aqui esboçadas do enorme efeito
político-cultural da salvaguarda dos bens históricos edificados, na manutenção e reforço da nossa
cidadania e vínculo identitário, sejam cronicamente escassas as verbas que lhe têm sido
consignadas no orçamento estatal. Ainda que possa ser problemático avaliar o alcance da política
cultural tão-só em termos meramente numéricos, sobretudo em números financeiros, esses
montantes, além de simbólicos e obrigatoriamente muito bem justificados, são desencorajadores e
quase intoleráveis. Relativamente às despesas públicas com outras áreas sectoriais, aparece-nos
o domínio da protecção do património histórico edificado como uma flor inocente e sequiosa,
depreciada no ramalhete da política cultural, a reclamar investimentos mais adequados e,
sobretudo, equitativamente justos e melhor distribuídos. O Governo, na tentação do imediatismo e
da rendibilidade, não pode inverter nem confundir performance cultural com performance
económica eximindo-se da obrigação, embora não exclusiva, e da responsabilidade constitucional
explícita de defender, salvaguardar e requalificar o nosso património cultural e natural que se
legitima, em definitivo, pela sua inserção na estrutura socioeconómica do País, da qual é
fortemente tributária. Há legislação acerca do mecenato cultural, mas os seus objectivos práticos
nunca conseguirão incentivar nem promover, de modo satisfatório, o apoio financeiro e o lobbying
das pessoas e das instituições a favor da salvaguarda empenhada do património histórico
nacional, enquanto a cultura, como suporte de identidade e desenvolvimento, não se afirmar como
uma das prioridades do tecido empresarial6. A que se devem, afinal, esta inércia mecenática e
este estranho alheamento cívico? Que agente mortal asfixiou as perspectivas de adesão e as
potencialidades de actuação e de intervenção sociocultural legítima, eficaz e benévola das
centenas de associações oficializadas de defesa do património? Nesta época de aceleradas e
complexas mudanças, com perdas e ganhos culturais associados, os esforços financeiros
públicos destinados à promoção e à preservação sustentada e íntegra dos bens históricos pátrios
não são fundos perdidos nem gastos sumptuários, mas um investimento e uma oportunidade de
alcance determinante para o bem-estar social e futuro comum do património7. Só uma
manutenção eficaz e exemplar do nosso legado histórico poderá garantir uma continuidade
cultural, consciente e reforçada, da união da memória e da identidade nacional, uma vez que a
sua discussão ético-social manterá, a longo termo, as imprescindíveis tradições e libertará forças
criadoras. Portanto, o presente (como obrigação) e o futuro (como responsabilidade) exigem o
nosso compromisso solidário com o „planeamento‟ do passado. No seu sentido e riqueza
testemunhal radicam a força e o efeito do futuro. Daí, a importância de tornarmos a nossa história
mais viva e compreensível!

5
Na área da salvaguarda do património arquitectónico, a linguagem inequívoca dos “R” (restauro, renovação,
reabilitação, reconstrução, revitalização, etc.) exige uma precaução deontológica acrescida. Nesse sentido, o ponto nº 6
da Carta de Amesterdão (1975) adverte que “a tecnologia contemporânea, mal aplicada, danifica as estruturas antigas”.
6
A propósito da relação entre cultura e economia, vejam-se Xavier Greffe, La valeur économique du patrimoine. Paris:
Anthropos, 1990, e Brian Graham, Greg Ashworth e John Tunbridge, A Geography of Heritage: Power, Culture and
Economy. Londres/Nova Iorque: Hodder Arnold Publication, 2000.
7
Quando o Estado entender os custos da salvaguarda do património cultural como um investimento público de elevado
valor humano e social, poderemos falar de fusão − e não de confusão − entre as políticas cultural e económica.
Figura 04: Vista parcial do promontório monástico de Meteora, Grécia
Foto do autor, 2013

Nalguns aspectos, a salvaguarda do património histórico-arquitectónico produz um valor cognitivo


elevado, ao preocupar-se com a defesa e não com a agressão do ambiente e da qualidade de
vida dos cidadãos e ao exercitar olhares e sensibilidades para a fruição e leitura hermenêutica
desses valores estéticos e funcionais. É uma espécie de „escola‟ activa de ensino e de fomento
cooperativo da opinião pública contra todas as atitudes de incompreensão, de esquecimento e de
ignorância pela presença e autoridade do passado. Aí se educam, cultivam e desenvolvem
saberes múltiplos e convicções fortes indispensáveis a esse discernimento retrospectivo e se
produz um espaço mental e de pensamento dinâmico de conhecimento e entendimento dialógico
para a causa e o zelo do património edificado. Esta tarefa cívica é geradora de sinergias e de
consciência colectiva, com desafios exaltantes e consequências revivificadoras para o quotidiano
da nossa personalidade e cultura global.
Não cabem aqui, naturalmente, considerações específicas sobre os efeitos político-culturais da
relação instrutiva e enriquecedora entre a salvaguarda do património arquitectónico herdado e a
sua integração fecunda e inovadora na arquitectura contemporânea, através de uma receptividade
de usos respeitosa e interessante, como bem comum do futuro, portador de memória social, que o
complementa e perpetuará a nossa cultura coeva. Verificam-se alterações favoráveis, quanto ao
sentido, necessidade e importância da salvaguarda das nossas raízes culturais, decorrentes da
„revolução‟ do património histórico e de uma nova atitude quanto ao passado, ocorridas em finais
do século XX8. E se se continuam a averiguar danos ambientais graves, resultantes da pressão
urbana caótica e desregulada, a ameaça por demolição total de edifícios „ultrapassados‟ e o
saneamento especulativo de tecidos urbanos „expirados‟ foram, pelo menos e no essencial,
bastante reprimidos.

Para qualquer país é, evidentemente, uma honra e um compromisso muito sério possuir diversos
bens de cultura material e intangível, com reconhecido valor universal, inscritos na Lista do
Património Mundial da UNESCO. Bastaria somente este motivo, para que os políticos da cultura e
do ambiente, com visão lúcida e filosofia social correcta, reflectissem com mais pragmatismo e
melhor solicitude, sem miopia ou niilismo cultural, no futuro inquietante da identidade pátria.
Enquanto a política cultural exterior se confinar demasiado, ou quase só, à planificação
privilegiada de assuntos de ornamento, como o arranjo de digressões artísticas, e a política
interna de salvaguarda do património histórico edificado agonizar a passos cada vez mais lentos,
tudo será uma utopia sentimental que parece não ter qualquer sucesso ou oportunidade de êxito
na política real dos nossos dias. Tudo por deficiente reconhecimento da sua inerente dimensão
ética e do seu enquadramento político, social e técnico... Em suma, trata-se de assegurar a
perenidade da nossa memória colectiva, como „direito de reserva‟ para o futuro e imperativo
categórico de consciência comum e mensagem personalizada, segundo consta em tantas
convenções e acordos supranacionais, aceites e ratificados9.

Independentemente dos interesses políticos infligirem, amiúde, os predicados da salvaguarda do


nosso maltratado património cultural e da nossa personalidade nacional notamos, com surpresa e
satisfação, que, de um tema à margem deste, resultou um processo social e ideológico benévolo e
rápido, sobretudo após as últimas décadas da centúria anterior, como foi dito acima, o qual atraiu
a simpatia e a adesão generalizadas do público. O espírito do tempo alterou-se, de maneira
exemplar. Hoje, falamos de defesa e de recuperação dinâmica do património não como uma
simples exigência intelectual contra a instabilidade da memória ou uma excitação nostálgica pelo
passado, ambas de temporalidade efémera. Falamos e sentimos com um irrefutável espírito ético
e de identidade pátria que urge abonar e disseminar, com convicção actuante, pelos cenários e
práticas quotidianos da política cultural, como agentes potenciais de moralidade pública. Quase
em acto de auto-reconhecimento pelo culto e cultura dos objectos civilizacionais, perante um
sofisticado (civilizado...) „progresso‟ tecnocientífico falacioso e insano em muitos aspectos do seu
crescimento paradoxal, incoerente e desumanizador10.

8
Certamente, influenciadas pelos movimentos do Ano Europeu do Património, celebrado em 1975.
9
Não basta subscrever convenções; é necessário, depois, aplicá-las!
10
A canonização da técnica conduziu a uma penalizadora mudança de mentalidades, que se transformou em ameaça
social, por denunciar o triunfo do homo faber sobre o homo sapiens. A este propósito, leia-se Hans Jonas, Le principe
responsabilité. Paris: Les Éditions du Cerf, 1995.
REFERÊNCIAS:

Ashworth, Greg. Cf. Graham, Brian.

Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, nº 1, Lisboa, setembro de 1935.

Calvino, Ítalo. A Especulação Imobiliária. Lisboa: Editorial Teorema, 2010 (edição original: 1957).

Graham, Brian; Ashworth, Greg; Tunbridge, John. A Geography of Heritage: Power, Culture and Economy.
Londres/Nova Iorque: Hodder Arnold Publication, 2000.

Greffe, Xavier. La valeur économique du patrimoine. Paris: Anthropos, 1990.

Jonas, Hans. Le principe responsabilité. Paris: Les Éditions du Cerf, 1995.

Lacroix, Michel. O Princípio de Noé ou a ética da salvaguarda. Lisboa: Instituto Piaget, s. d.

Tunbridge, John. Cf. Graham, Brian.

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