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A falta da Lei Orçamentária Anual na perspectiva dos direitos de grupo: alguns

possíveis mecanismos de solução da anomia

Eduardo Cândia1

1. A problemática. 2. Sistema jurídico e anomia. 3.


Constatação da anomia orçamentária, hipóteses de
ocorrência e possíveis meios de sua integração ou
eliminação. 3.1. Não encaminhamento do projeto de
Lei pelo Poder Executivo. 3.2 Rejeição integral do
projeto de pelo Poder Legislativo. 3.3. Não devolução
do projeto de lei até o dia 22 de dezembro. 3.4. Veto
integral do projeto de lei. 4. Conclusões.

PALAVRAS-CHAVE: LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL. ANOMIA


ORÇAMENTÁRIA. DIREITOS DE GRUPO

1. A problemática
Na organização das finanças públicas, o Brasil adota três leis orçamentárias –
plano plurianual (PPA), lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e lei orçamentária anual
(LOA) – que se entrelaçam em convergência para uma finalidade maior: estabelecer uma
política de programação da atividade financeira do Estado, cumprindo com a técnica
denominada orçamento-programa, expressamente acolhida pela legislação brasileira
(art.1º da Lei n. 4.320/64 e art. 16 do Decreto-Lei n. 200/67).
Esta perspectiva representou uma mudança inequívoca da concepção clássica do
orçamento como mera peça contábil de previsão de receitas e fixação de despesas2.
O processo legislativo dessas leis orçamentárias não segue integralmente aquele
previsto para as demais leis ordinárias (art.166, §7º da CF-88).
Este aspecto procedimental, aliado à própria conteudística, constitucionalmente
pré-definida das leis orçamentárias, torna-as especial em relação a qualquer outra lei
ordinária.

1
Doutorando em Direito Financeiro pela USP. Doutorando em Direitos Difusos e Coletivos PUC-SP. Mestre
em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP. Ex-
procurador da Fazenda Nacional. Ex-procurador do INSS. Promotor de Justiça em Campo Grande (MS).
2
CONTI, José Maurício. A autonomia financeira do Poder Judiciário. São Paulo: MP Editora, 2006, p.57-
64.

1
Apenas para ficarmos com quatro exemplos, vejamos como esta especialidade se
revela: a) iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo para deflagrar o processo
legislativo (CF-88, art.165, caput), não podendo ser objeto de medida provisória, salvo no
caso de créditos extraordinários (CF-88, art.167, §3º)3; b) em se tratando de lei
orçamentária federal, as emendas aos projetos de lei deverão ser necessariamente
apresentadas junto a uma comissão mista de deputados e senadores que, sobre elas, emitirá
parecer, sendo posteriormente apreciadas pelo plenário das duas Casas do Congresso
Nacional (CF-88, art.166, §2º); c) as emendas ao projeto da Lei de Diretrizes Orçamentária
(LDO) só poderão ser aprovadas se estiverem em compatibilidade com o Plano Plurianual
(PPA), enquanto aquelas endereçadas ao projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA)
somente se atendidas às exigências expressas nos incisos I, II e III do §3º do art.166 da CF-
88; d) conteúdo já pré-estabelecido para o PPA(CF-88, art.165, §1º) , LDO (CF-88, art.99,
§1º, art.165, §2º e art. 169, § 1º, inciso II) e LOA (CF-88, art.165, §5º, 6º e 8º);
Podemos afirmar que temos a impossibilidade implícita (porque já há uma
delimitação de seu conteúdo) no que se refere ao PPA e à LDO, e explícita quanto à LOA
(CF-88, art.165, §8º), de serem incluídos nessas leis elementos estranhos ao que determina
a CF-88 e a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2.000), uma espécie
de “sobrelei” em relação às leis orçamentárias, justamente por apontar temas necessários
que tais leis devem disciplinar.
Em outras palavras: existe certa rigidez de conteúdo, posto que a CF-88
estabelece o que deve constar no PPA (CF-88, art.165, §1º) e na LDO (CF-88, art.165, §2º
)4 e, quanto à LOA, via de regra, só pode constar a previsão de receitas e fixação de
despesas (art.165, §8º da CF-88 - princípio da exclusividade).
Ressalte-se, outrossim, o importantíssimo conteúdo da LDO que vem prescrito no
art.99, §1º da CF-88, ou seja, estabelecimento pelos três Poderes da República Federativa
do Brasil (art.2º da CF-88), portanto, necessariamente em conjunto, de limites para as
respectivas propostas orçamentárias.

3
Registre-se que a iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo restringe-se ao PPA, LDO e LOA, não
abrangendo, por exemplo, leis que tratam de créditos adicionais, criam fundos, vinculem receitas ou veiculem
matéria tributária, ainda que importe em renúncia de receitas ou “gasto tributário”, pois a exceção (iniciativa
exclusiva) deve ser interpretada restritivamente. Nesse sentido: CONTI, José Maurício Conti. Iniciativa
legislativa em matéria financeira. In: CONTI, J. Mauricio; SCAFF, Fernando F. (coord.). Orçamentos
públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 294-307.
4
A Lei de Responsabilidade Fiscal complementa o art.165, §2º, da CF-88 e prescreve conteúdos
complementares à LDO.

2
A fixação de limites para as propostas orçamentárias de cada um dos poderes,
especialmente do Poder Judiciário5, é matéria que deve (ou deveria), obrigatoriamente,
estar presente na LDO, com participação conjunta e efetiva dos três Poderes na estipulação
desses referenciais, sob pena de haver inconstitucionalidade, malferindo a cláusula pétrea
da separação de poderes (CF-88, art.60, §4º, inciso III)6.
Não havendo esse parâmetro, definido conjuntamente, fica vedado ao Poder
Executivo, por exemplo, estabelecer unilateralmente esses limites e, consequentemente,
efetuar cortes na proposta orçamentária elaborada, por exemplo, pelo Poder Judiciário7.
Relembre-se que em razão de previsão contendo mecanismo semelhante na Lei
de Responsabilidade Fiscal (LRF), representando verdadeira sobreposição hierárquica do
Executivo sobre os demais Poderes da República – possibilidade de o Poder Executivo
limitar empenho dos demais poderes e do Ministério Público (o famigerado e quase sempre
mal utilizado contingenciamento) – o STF declarou inconstitucional o §3º do art. 9º da
LRF porque referido dispositivo retratava hipótese de interferência indevida do Poder
Executivo nos demais Poderes e no Ministério Púbico (ADIN n. 2238-5/DF).
Além dessas características das leis orçamentárias, enquanto não advier a lei
complementar a que se refere o art.165, §9º da CF-88, a própria Constituição Federal8
prevê prazos para a elaboração do PPA, da LDO e da LOA, o que nos leva à conclusão de
que tais leis devem, sob pena de atropelar a CF-88, ser elaboradas na periodicidade
estabelecida constitucionalmente, observando necessariamente os meses específicos para
deliberação do Poder Legislativo e sanção do Poder Executivo.
Há, pois, um verdadeiro dever de elaboração das leis orçamentárias nos prazos
fixados no art.35, §2º, incisos I, II e III do ADCT ou em outros prazos em se tratando de
Estados, Distrito Federal e municípios, caso estabelecido diversamente nas respectivas
Constituições ou Leis Orgânicas.
Por trás da determinação constitucional que impõe a elaboração das leis

5
A situação do Ministério Público é um pouco diferente pois não há previsão constitucional para participar,
conjuntamente com os demais Poderes, na fixação dos limites de suas propostas orçamentárias, mas apenas
de elaborar sua proposta orçamentária de acordo com os limites fixados na LDO, conforme art.127, §3º da
CF-88.
6
Por todos: CONTI, José Maurício. A autonomia financeira do Poder Judiciário. São Paulo: MP Editora,
2006, p.85.
7
Nesse sentido: CONTI, José Maurício. A Lei de Diretrizes Orçamentárias e a autonomia financeira do
Poder Judiciário. Disponível em: http://www.epm.tjsp.jus.br/Internas/ArtigosView.aspx?ID=7765.
Consultado em: 21/05/2012.
8
Art.35, §2º, incisos I, II e III do ADCT.

3
orçamentárias está justamente o direito de toda uma comunidade ou, em determinadas
situações, de determinados grupos aos orçamentos públicos, mais especificamente, às
verbas públicas que devem estar alocadas na lei orçamentária.
Além disso, o descumprimento do dever legislativo de elaboração das leis
orçamentárias, tendo como consequência a falta do orçamento, inviabilizaria um efetivo
acompanhamento e fiscalização dos gastos públicos pela população, mediante o chamado
controle social, previsto em vários dispositivos constitucionais (v.g. art.5º, inciso LXXIII;
art. 31, §3º; art. 74, §2º da CF-88).
Pois bem. Como se sabe, um dos temas de grande repercussão teórica e prática no
direito financeiro é justamente a falta da lei orçamentária anual, que se verifica por uma
dessas quatro situações: a) omissão do Chefe do Poder Executivo (não envio da proposta
no prazo); b) ato comissivo do Chefe do Poder Executivo (veto integral do projeto de lei);
c) omissão do Poder Legislativo (não encaminhamento do projeto, no prazo legal, para
sanção); d) ato comissivo do Poder Legislativo (rejeição integral do projeto de lei).
Em todas essas circunstâncias haverá um hiato orçamentário, ainda que por vezes
pequeno, ou seja, um lapso de tempo sem que exista a lei orçamentária, muito embora já
tendo iniciado o exercício financeiro e despesas públicas sendo realizadas.
Este cenário faz surgir a indagação se o sistema do direito permitiria, de forma
automática e independentemente de qualquer decisão jurídica, arrecadar/recolher as
receitas e realizar as despesas sem a existência da lei orçamentária anual. Entendemos que
a resposta negativa se impõe.
A normalidade é justamente a existência das leis orçamentárias, sendo estas a
autorização dos representantes do povo para a realização das despesas e arrecadação das
receitas pelo Poder Executivo, contendo, ainda, todas as prioridades traçadas para a
sociedade a serem realizadas num determinado período9.
Isto nos conduz à inevitável conclusão de que a existência da lei orçamentária,
por si só, já representa um direito difuso, cuja titularidade pertence a uma comunidade,
nos exatos termos do art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do
Consumidor.
Em outras palavras: é direito de uma comunidade toda que exista, no prazo fixado

9
Nesse sentido: OLIVEIRA, Régis Fernandes de; HORVATH, Estevão. Manual de direito financeiro. 4ª
edição. São Paulo: RT, 2001, pg.90.

4
pela CF-88 e, portanto, antes do início do exercício financeiro, a lei orçamentária prevendo
todas as receitas e fixando as despesas a serem executadas em determinado período.
O titular deste direito pode ser desde uma pequena população municipal (LOA
municipal), de um Estado (LOA estadual) ou toda a população brasileira (LOA Federal).
Além disso, a falta da LOA pode significar também lesão ou ameaça de lesão a
direitos de determinadas coletividades (direito coletivo, nos termos do art.81, parágrafo
único, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor) que, por exemplo, tinham sido
contempladas com recursos orçamentários no projeto de lei, sendo que já vinham
recebendo tais recursos anteriormente, portanto, uma situação não de mera expectativa
mas de manutenção do direito que já estava sendo efetivado.
Realmente, o planejamento da ação governamental é instrumento fundamental
para realização dos objetivos fundamentais do Brasil (CF-88, art.3º da CF-88), sendo que é
concretizado justamente por meio das leis de natureza orçamentária que possibilitam a
edificação do sistema jurídico que arrima o planejamento da administração pública.10
Registre-se que não há propriamente hierarquia entre PPA, LDO e LOA, pois
todas elas se escoram na CF-88 e cada uma possui conteúdo próprio11.
Todavia, a ausência de hierarquia não dispensa a necessária harmonia e
compatibilidade que deve haver entre essas leis12, o que, aliás, está explícito na CF-88
(art.165, §7º, art.166, §3º, inciso I e §4º).
A coordenação (e não subordinação) que deve haver entre as leis orçamentárias
implica em que as previsões do plano plurianual condicionem a elaboração da lei de
diretrizes orçamentárias que, por sua vez, delimita os parâmetros a serem buscados pela lei
orçamentária anual13.

10
CONTI, José Maurício. Planejamento e responsabilidade fiscal. In: Lei de responsabilidade fiscal. 10 anos
de vigência – questões atuais. Coord. Fernando Facury Scaff; José Maurício Conti. Florianópolis: Conceito
Editorial, 2010, pgs.40-41.
11
Nesse sentido: FARIA, Rodrigo Oliveira de. PPA versus orçamento: uma leitura do escopo, extensão e
integração dos instrumentos constitucionais brasileiros de planejamento. In: CONTI, J. Mauricio; SCAFF,
Fernando F. (coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.
684-688.
12
CATAPANI, Márcio Ferro. A discricionariedade do Poder Executivo na elaboração do projeto de lei
orçamentária anual. In: CONTI, J. Mauricio; SCAFF, Fernando F. (coord.). Orçamentos públicos e direito
financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 249.
13
CONTI, José Maurício. Planejamento e responsabilidade fiscal. In: Lei de responsabilidade fiscal. 10 anos
de vigência – questões atuais. Coord. Fernando Facury Scaff; José Maurício Conti. Florianópolis: Conceito
Editorial, 2010, pg.51.

5
Há, poderíamos dizer, um entrelaçamento horizontalizado entre PPA, LDO e
LOA. Nesse sentido, o PPA estabelece o planejamento estratégico de médio prazo da
Administração Pública, a LOA disciplina o planejamento operacional a ser executado e a
LDO um planejamento de curto prazo ou tático14, servindo, também, como um elo ou
conexão necessário entre o PPA e a LOA15.
De todo o modo, o fato é que temos convivido nos últimos anos com a ausência
de lei orçamentária, especialmente da LOA, ainda que esta ausência se dê por um pequeno
lapso temporal.
A dinâmica no âmbito federal é mais ou menos assim: inicia-se um exercício
financeiro sem a lei orçamentária anual que, por vezes, tarda alguns dias ou meses para vir
à baila, ocasionando um vácuo legislativo e que, na prática, tem sido resolvido,
indevidamente, ao nosso sentir, por previsões existentes na LDO.
Expliquemos: a LDO não tem por conteúdo estabelecer como deverão ser
realizadas as despesas em caso de inexistência da LOA16.
Este tipo de previsão na LDO nada tem a ver com “orientar a elaboração da lei
orçamentária” (CF-88, art.165, §2º), uma vez que não há nisto qualquer tipo de orientação
quanto à elaboração da LOA, mas um verdadeiro disciplinamento da execução das
despesas, o que é inerente à própria LOA.
Assim, se admitíssemos que a LDO tivesse este objeto, estaríamos aceitando que
esta lei pudesse fazer as vezes da LOA, o que subverteria todo o sistema de planejamento
orçamentário, tornando completamente sem sentido a tripartição constitucional das leis
orçamentárias.
Com razão, RODRIGO OLIVEIRA DE FARIA assevera que “existem diferentes lógicas
a presidirem a elaboração dos instrumentos constitucionais brasileiros de planejamento e
orçamento. A Constituição Federal de 1988 previu, para cada um desses instrumentos, a
necessidade de edição de lei específica, atribuindo-lhes, também matérias próprias e

14
SILVA, Moacir Marques da. A lógica do planejamento público à luz da lei de responsabilidade fiscal. In:
CONTI, J. Mauricio; SCAFF, Fernando F. (coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 756.
15
PALUDO, Augustinho. Orçamento público, administração financeira e orçamentária, e lei de
responsabilidade fiscal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pg.69; PASCOAL, Valdecir. Direito financeiro e
controle externo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, pgs.37-44; JUND, Sérgio. Direito financeiro e orçamento
público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, pgs.67-74.
16
Nesse sentido foi o voto do Min. Celso de Melo na MC na ADIn 612-6/RJ.

6
distintos campos de competência”17.
Por isto, entendemos ser inconstitucional dispositivo da LDO que, prevendo
eventual anomia orçamentária (falta da elaboração da LOA até o final da sessão
legislativa), disciplina a própria execução “orçamentária”, substituindo, ainda que em
breve espaço temporal, a LOA.
Este nosso argumento é reforçado quando constatamos as razões de veto do
art.129 da LDO de 2011 (Lei n. 12.465 de 12 de agosto de 2011).
Ali ficou consignado que “as leis orçamentárias possuem rito legislativo próprio,
cuja tramitação ocorre, exclusivamente, pela comissão mista a que se refere o § 1o do art.
166 da Constituição, motivo pelo qual a matéria objeto dessas leis não poderá transcender
as orientações constitucionais ou da LRF, em especial quanto ao seu conteúdo”.
Correto o veto, ao nosso sentir.
Se assim é, ou seja, se a LDO não pode ter como objeto o disciplinamento, ainda
que em caráter provisório, da execução “orçamentária” – até mesmo porque orçamento
não existirá, pelo menos não no sentido de fixação de despesas e previsão de receitas –
precisamos resolver o problema da inexistência da LOA.
A ausência de LOA no prazo legal acarreta uma verdadeira quebra do ciclo
orçamentário que tem início com a elaboração do orçamento, passando pela sua aprovação,
execução e, finalmente, fiscalização (controle).
A questão da falta da lei orçamentária, também denominada “anomia
orçamentária”18, pressupõe obrigatoriamente uma tomada de posição sobre o sistema
jurídico orçamentário.

2. Sistema Jurídico e anomia


Adotar uma concepção de sistema em detrimento de outra acarreta conseqüências
relevantes de ordem teórica e prática. Claro que, aqui, estamos observando internamente o
sistema do direito, numa visão normativista.
Com efeito, simplesmente não existiria o problema da anomia orçamentária se
considerássemos o sistema jurídico como tipo fechado, por exemplo, de acordo com o
positivismo normativista kelseniano, que estuda o direito exclusivamente sob o prisma

17
Op. Cit. p.688.
18
CONTI, José Maurício. Orçamentos públicos. A lei 4.320/1964 comentada. Coordenação José Maurício
Conti. 2ª edição. São Paulo: RT,2010, pg.122.

7
normativo e não analisa comportamentos ou vontades19, mas tão somente regras de
competência e, além disso, concebe o sistema como completo, do tipo “tudo o que não está
juridicamente proibido está permitido”, seguindo-se o postulado da plenitude hermética do
direito20.
Eis a prova maior de que o sistema de referência que o jurista adota é condição do
conhecimento21: em Kelsen, por exemplo, com uma visão hermeticamente fechada do
sistema jurídico, sequer haveria o problema da falta da lei orçamentária, pois o sistema
seria completo, desconhecendo problemas de incompletude, ou seja, de lacunas ou
anomias.
Por outro lado, se adotarmos um sistema jurídico aberto será inevitável a situação
de incompletude22.
Admitindo a existência de lacunas no sistema jurídico, caberá ao intérprete
examinar duas outras questões fundamentais que são correlatas, quer seja, a constatação
(ou identificação) da lacuna e, posteriormente, sua colmatação.
Numa linha tridimensional, por exemplo, admitindo que o repertório do sistema
jurídico se compõe de fatos, valores e normas, poderemos ter, respectivamente, lacunas
ontológicas, axiológicas e “normativas”, no caso de quebra de isomorfia entre eles23.
Teríamos lacuna ontológica quando a lei existe mas ela não corresponde aos fatos
sociais. No direito financeiro isto ocorreria, por exemplo, quando se utilizam os
mecanismos dos créditos adicionais, concretizando-se a aplicação do princípio
orçamentário da flexibilidade24.
Em verdade, as leis orçamentárias já nascem prevendo a possibilidade de lacunas
ontológicas, eis outra evidente particularidade dessas leis.
Esta especialidade da lei orçamentária é explícita pois, na maioria das vezes, a
própria LOA já contém dispositivo autorizando a abertura de créditos suplementares (v.g.
art.4º da Lei n. 12.952 de 20 de janeiro de 2014), em um reconhecimento explícito de
eventual lacuna ontológica quando da execução orçamentária.

19
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Conceito de sistema no direito. São Paulo: RT,1976, pg. 130-131.
20
DINIZ, Maria Helena. Op. cit. pg.440.
21
TELLES JR., Gofredo da Silva. O direito quântico. São Paulo: Max Limonad, 1974, p. 73.
22
DINIZ, Maria Helena. Op. cit. pg.449.
23
DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. São Paulo: Saraiva, 1989, pg.97.
24
SILVA, José Afonso da. Orçamento-programa no Brasil. São Paulo: RT, 1972, pg.112-113.

8
Aliás, esta possibilidade tem respaldo expresso na CF-88 e configura uma exceção
ao princípio da exclusividade (art.165, §8º).
Nessa toada, só faz sentido a abertura de créditos suplementares porque a receita
inicialmente prevista foi insuficiente e, de acordo com os fatos atuais, exige reforço.
Da mesma forma, só é cabível abertura de créditos especiais em razão do
surgimento de fatos novos que a lei orçamentária não foi capaz de prever.
Os créditos extraordinários, igualmente, pressupõem uma necessidade fática,
urgente e imprevisível, que não estava prevista inicialmente na LOA.
Situações de superestimação de receitas fatalmente ensejarão lacunas ontológicas
no futuro, o que necessitará uma readequação da lei orçamentária aos fatos sociais por
meio de contingenciamentos (limitação de empenho). Aqui, temos uma peculiaridade
bastante interessante: simplesmente não há intervenção do Poder Legislativo25 para
eliminação da lacuna, de sorte que cabe ao Poder Executivo, por determinação legal, a
tarefa de promover a limitação de empenho.
Recordemos o que prescreve a LRF: se ao final de um bimestre for verificado que
a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado
primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério
Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias
subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira.
Esta previsão contida no art.9º, caput, da LRF consiste em um verdadeiro atestado
legal da existência de lacunas ontológicas no sistema jurídico financeiro.
Em todos esses casos, a LOA existe, mas não corresponde integralmente à
realidade social, o que torna necessária a flexibilização do orçamento.
Por outro lado, teríamos lacunas axiológicas quando a lei existe mas, se for
aplicada, sua solução será injusta ou insatisfatória26, posto que na contramão de
determinações valorativas previstas na CF-88.
Não se fala, aqui, em discricionariedades, mas uma conferência da lei existente
com valores agasalhados pela Constituição Federal, o que, ao nosso sentir, deve levar
necessariamente em conta avaliações sociológicas qualitativas.

25
BARROS, Maurício. Orçamento e discricionariedade. In: CONTI, J. Mauricio; SCAFF, Fernando F.
(coord.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1002.
26
DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. São Paulo: Saraiva, 1989, pg.97.

9
Esta hipótese de lacuna também é facilmente observada no direito financeiro
quando, por exemplo, são feitas alocações de recursos para realização de despesas que, de
acordo com as determinações constitucionais, poderiam ser postergadas ou, ainda, evitadas
completamente.
Problema tão sério quanto às anomias orçamentárias, talvez seja exatamente o
referente às lacunas axiológicas no sistema orçamentário que, no caso, podem ser
perfeitamente traduzidas na questão da qualidade do gasto público ou, ainda, no cotejo
entre a despesa pública e os valores objetivados pela CF-88.
Por fim, existem as lacunas “normativas” ou, mais especificamente, lacunas
legais, pois desde a superação do positivismo exegético lei não é sinônimo de norma.
Tais lacunas se verificam exatamente quando houver ausência de lei sobre
determinada situação. Este é o caso propriamente das chamadas anomias orçamentárias.
Não cuidaremos, aqui, das questões acerca da constatação e do preenchimento ou
eliminação de lacunas ontológicas e de lacunas axiológicas.
Passemos, então, a examinar as hipóteses que ensejam a anomia orçamentária
para, logo em seguida, apontarmos seus possíveis meios de colmatação ou sua eliminação.

3. Constatação da anomia orçamentária, hipóteses de ocorrência e possíveis meios de sua


integração ou eliminação.
Muito embora quando se fala em anomia orçamentária a doutrina normalmente
examina apenas a falta da lei orçamentária anual e seus efeitos, é preciso esclarecer um
ponto importante sobre tema: é perfeitamente possível a existência no direito orçamentário
de lacunas normativas ou anomias também em relação ao PPA e à LDO.
Conquanto não haja uma regra semelhante àquela prevista no §8º do art.166 da
CF-88 em relação ao PPA e à LDO, de modo a permitir expressamente a rejeição e o veto
desses projetos de leis, e a despeito de o art. 35, §2º, incisos I e II do ADCT prescrever que
os projetos do PPA e da LDO serão encaminhados e devolvidos para sanção, nada obsta
que, na prática, ocorra a anomia, verificável não com o veto do projeto de lei, mas com o
descumprimento dos prazos para encaminhamento, devolução e sanção do projeto de lei,
repercutindo no início de vigência dessas leis.
Em relação ao PPA e à LDO, parece-nos que não há a possibilidade jurídica de
haver, validamente, o veto, haja vista que o §8º do art.166 da CF-88, autorizando o veto e a

10
rejeição, tem aplicação restrita ao projeto da lei orçamentária anual.
Ora, se há prescrição expressa de possibilidade de veto apenas para o projeto da
LOA, excepcionando a regra do art. 35, §2º, inciso III do ADCT, esta exceção deve ser
interpretada restritivamente para que, em relação ao projeto de PPA e LDO, prevaleça a
regra geral do art. 35, §2º, incisos I e II do ADCT que estabelece uma via de mão única
para o Chefe do Poder Executivo, no caso, a sanção.
Assim, haverá falta de PPA ou LDO na hipótese de ser desrespeitado o art. 35,
§2º, incisos I e II do ADCT, por exemplo, não sendo devolvido para sanção no prazo
previsto.
Em situações, portanto, de não encaminhamento do projeto de lei ou do seu veto,
o problema poderia ser resolvido judicialmente através da impetração de mandado de
segurança coletivo ou, talvez mais ajustado, de ação civil pública visando à integração da
anomia mediante a invocação dos dispositivos legais para preenchimento da lacuna (art.4º
e 5º da LINDB).
Entendemos que em relação ao não encaminhamento do PPA e da LDO não deve
ser aplicado diretamente o art. 32 da Lei 4.320/64, pois este dispositivo é voltado para a
LOA, até porque PPA27 e LDO sequer existiam ao tempo da referida lei.
Assim, resolveríamos a anomia do PPA e da LDO por via judicial, através da
jurisdição coletiva, invocando-se a analogia ao art.32 da Lei n. 4.320/64 para
preenchimento da lacuna normativa.
Por exemplo: a Lei n. 12.593, de 18 de janeiro de 2012, estabelecendo o plano
plurianual da União para o período de 2012-2015, foi publicada no Diário Oficial da União
no dia 19 de janeiro, portanto, houve anomia do PPA por 18 dias.
Por outro lado, até 07 de outubro de 2013 o Projeto de Lei de Diretrizes
Orçamentária de 2013 ainda não tinha sido devolvido para sanção, tendo passado, há
muito, o primeiro período da sessão legislativa (art. 35, §2º, inciso II do ADCT c.c art.57,
caput, da CF-88), ocasionando evidente anomia orçamentária face à inexistência da LDO.
Portanto, que fique aqui o registro: é perfeitamente possível que haja a ausência
temporária do PPA e da LDO, acarretando a anomia orçamentária.

27
José Maurício Conti esclarece que “o quadro de Recursos e de Aplicação de Capital, previsto no art.23 da
Lei 4.320/64, foi substituído pelos novos mecanismos criados pela Constituição de 1988, especialmente o
plano plurianual”. In: Orçamentos públicos. A lei 4.320/1964 comentada. Coordenação José Maurício Conti.
2ª edição. São Paulo: RT,2010, pg.99.

11
De qualquer forma, o nosso foco neste breve trabalho será a análise tão somente
da ausência da lei orçamentária anual.
Pois bem. De acordo com o art.35, §2º, inciso III, do ADCT, o projeto de lei
orçamentária da União será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do
exercício financeiro (até 31 de agosto) e devolvido para sanção até o encerramento da
sessão legislativa (até 22 de dezembro28).
Referido dispositivo tem aplicação à União (enquanto não editada a lei
complementar a que se refere o art.165, §9º, inciso I da CF-88) e às demais pessoas
políticas, caso não disponham diferentemente nas Constituições Estaduais e Leis
Orgânicas29.
Assim, o Poder Executivo deve encaminhar ao Poder Legislativo o projeto da
LOA até o dia 31 de agosto (quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro),
sendo que o Poder Legislativo deve devolver para sanção até o dia 22 de dezembro
(encerramento da sessão legislativa).
Isto tudo tem uma razão de razão de ser: iniciar o exercício financeiro com a nova
com a nova lei orçamentária!
A regulação procedimental prevista na CF-88 torna a questão da constatação da
anomia orçamentária extremamente fácil (diferentemente do que ocorre em outros ramos
do direito), posto que a simples verificação de que não houve a publicação da LOA no
diário oficial até o dia 31 de dezembro será suficiente para que seja constatada a lacuna
normativa.
A causa desta falta de publicação decorre, normalmente, do descumprimento do
dever que cabe aos Poderes Executivo e Legislativo de elaboração da LOA, com
obediência rigorosa dos prazos estabelecidos na CF-88.
Basta um passar de olhos pela realidade brasileira e veremos que, apenas nos
últimos sete anos, com exceção do exercício financeiro de 2009, em todos eles ocorreu o
fenômeno da anomia orçamentária em relação à LOA da União, conforme se pode
visualizar no quadro abaixo:

28
Art.57, caput, da CF-88.
29
Nesse sentido: JUND, Sérgio. Direito financeiro e orçamento público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008,
pg.76; PASCOAL, Valdecir. Direito financeiro e controle externo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, pgs.37-40.

12
L L L L L L L
ei n. ei n. ei n. ei n. ei n. ei n. ei n.
12.952 12.798 12.595 12.381 12.214 11.897 11.647
(LOA (LOA (LOA (LOA (LOA (LOA para (LOA para
para o para o para o para o para o o ano de o ano de
ano de ano de ano de ano de ano de 2009) 2008)
2014) 2013) 2012) 2011) 2010)
D
ata da 2 0 31 24
2 1 2
publicação 1/01/2014 /12/2008 /03/2008
5/04/2013 0/01/2012 0/02/2011 7/01/2010
no Diário
Oficial da
União.
T 2 9 1 4 2 N 83
empo de 0 dias 3 dias 9 dias 0 dias 6 dias ão houve dias
anomia anomia

Nota-se, assim, que o problema da falta da LOA federal tem sido muito mais
frequente do que se imagina e vem sendo, na prática, resolvido por prescrições espúrias
contidas na LDO.
Como já mencionamos, esta disciplina da falta de LOA pela LDO é
escandalosamente inconstitucional por subverter, de forma tacanha, o sistema tripartite
básico de planejamento orçamentário previsto no art.165 da CF-88.
Mas, se por um lado, a constatação desta anomia não apresenta dificuldades, haja
vista o marco temporal objetivo do início do exercício financeiro, não podemos dizer o
mesmo quanto à colmatação, como veremos.
De qualquer modo, antes de pensar no preenchimento dessas lacunas, forçoso
investigar as hipóteses de ocorrência da falta da LOA.
Noutro português: quais as situações que poderiam dar azo à ausência da LOA?
Para nós, esta espécie de lacuna pode ser verificada em razão de quatro causas
imediatas:
a) Não encaminhamento do projeto de lei pelo
Poder Executivo;

13
b) Rejeição integral do projeto de lei pelo Poder
Legislativo;
c) Não devolução do projeto de lei, para sanção,
até o dia 22 de dezembro;
d) Veto integral do projeto de lei.
As hipóteses descritas nas letras “a” e “d” são ocasionadas pelo Poder Executivo,
respectivamente, por omissão e comissão; aquelas previstas nas letras “b” e “c” ocorrem
em razão, respectivamente, de comissão e omissão do Poder Legislativo.
Vejamos, sucintamente, uma a uma.
3.1. Não encaminhamento do projeto de lei pelo Poder Executivo.
Caso o Chefe do Poder Executivo não encaminhe o projeto de LOA para
apreciação do Poder Legislativo, certamente haverá anomia orçamentária, pois nenhuma
outra pessoa tem a iniciativa para deflagrar o processo legislativo desta lei (CF-88, art.165,
caput).
O não encaminhamento do projeto ao Poder Legislativo seria uma conduta
respaldada por nosso ordenamento jurídico? A resposta negativa se impõe.
Com efeito, o Chefe do Poder Executivo tem o dever de encaminhar o projeto de
LOA.
O art.35, §2º, III, do ADCT da CF-88 prescreve, de forma cristalina, que o
referido projeto será encaminhado. Camuflado por uma linguagem supostamente
apofântica30, o modal deôntico, no caso, é nitidamente o obrigatório.
A hipótese de não encaminhamento do projeto de lei é completamente diferente,
por exemplo, do veto integral ao projeto da LOA, cuja conduta está autorizada pelo
art.166, §8º da CF-88.
Portanto, não havendo o encaminhamento do projeto, o Chefe do Poder Executivo
terá descumprido a determinação do art.35, §2º, III, do ADCT da CF-88, o que implica na
ocorrência, em tese, de crime de responsabilidade (CF-88, art.85, caput e inciso VI; art.4º,
inciso VI c.c art.10, item 1, c.c art.74 da Lei n. 1.079/50) ou, em se tratando de prefeitos,
infração político-administrativa (art.4º, inciso V do Decreto-Lei n.201/67)31.

30
VILANOVA, Lourival. As estruturas..., pg.67-69.
31
Nesse sentido: CONTI, José Maurício. Orçamentos públicos. A lei 4.320/1964 comentada. Coordenação
José Maurício Conti. 2ª edição. São Paulo: RT,2010, pg.124.

14
Frise-se que esta responsabilidade tem incidência mesmo que o Chefe do Poder
Executivo apresente efetivamente o projeto de lei, mas fora do prazo legal que é, em regra,
até o dia 31 de agosto.
Além disso, parece-nos fora de qualquer dúvida que o agente político também seja
responsabilizado nos termos da Lei n. 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa).
No caso, poderemos ter infringência ao art.11 ou, ainda, ao art.10, inciso IX, da
referida lei, pois não poderá haver qualquer ordenação ou permissão para realização de
despesas à vista da falta da autorização em lei. Afinal, aquilo que não existe não tem o
condão de autorizar.
Todavia, o fato de o Chefe do Poder Executivo ter responsabilidades pela falta de
encaminhamento do projeto de lei não resolve o problema da anomia orçamentária.
Este foi o único caso de anomia da LOA para o qual houve solução expressa ao
problema (art.32 da Lei n. 4.320/64), determinando-se que o Poder Legislativo considere
como proposta a lei de orçamento vigente.
Trata-se de uma situação em que poderá ocorrer verdadeira eliminação (e não
apenas integração) da anomia, pois o Poder Legislativo considerará como projeto a lei de
orçamento vigente e, com base nisto, encaminhará para sanção o projeto de lei
orçamentária.
Caso seja promulgada a lei (com ou sem sanção, à vista da possibilidade de o
Legislativo derrubar eventual veto), a lacuna normativa terá sido eliminada em definitivo
do sistema.

3.2. Rejeição integral do projeto de lei do Poder Legislativo


A hipótese de rejeição do projeto da LOA nos revela uma antinomia entre o
art.35, §2º, III, do ADCT da CF-88 e o art.166, §8º, da CF-88.
Com efeito, o dispositivo do ADCT determina que o projeto de lei será devolvido
para sanção, dando a entender que não haveria como ser rejeitado ou vetado.
Esta antinomia é aparente32 e deve ser resolvida pela prevalência do art.166, §8º,
em razão de sua especialidade ao caso, pois trata, especificamente, da questão da rejeição e
do veto da LOA, portanto, infirmando a obrigatoriedade contida no art.35, §2º, III, do
ADCT da CF-88.

32
DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. São Paulo: Saraiva, 2005, pg. 25.

15
Entendemos que a possibilidade de o Poder Legislativo rejeitar o projeto de lei
orçamentária anual está expressamente estampada no art.166, §8º, da CF-8833, in verbis:
“Art.166 – (...)
§8º. Os recursos que, em decorrência de veto, emenda ou
rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas
correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante
créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica
autorização legislativa.” (destacamos)

Não concordamos, com todo o respeito, com entendimento que apregoa a


impossibilidade de rejeição integral da LOA em razão, por exemplo, da determinação
constitucional de que devem estar incluídas no orçamento as verbas necessárias para
pagamento de precatórios apresentados até 1º de julho (CF-88, art.100, §1º)34.
Com efeito, a rejeição ao projeto da LOA pode ser tanto parcial (no caso,
aprovação parcial) como integral, haja vista que o dispositivo não faz esta distinção.
Além disso, o comando jurídico que permite a rejeição integral do projeto de LOA
não se confunde com aquele que determina a obrigação de inclusão no orçamento das
verbas necessárias ao pagamento dos precatórios, claramente endereçada ao Poder
Executivo, portanto, para cumprimento por ocasião da elaboração do orçamento, fase
específica do ciclo orçamentária que, evidentemente, antecede à fase de
emenda/aprovação/rejeição exercida pelo Legislativo.35
Por outro lado, o art.166, §8º, da CF-88, determina a utilização de créditos
especiais ou suplementares no caso de rejeição do projeto de LOA. Todavia, devemos dar

33
Nesse sentido: RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Curso de direito financeiro. São Paulo:
Saraiva, 2012, pg.286.
34
Nesse sentido: DALLARI, Adilson Abreu. Lei orçamentária- Processo legislativo: Peculiaridades e
decorrências. In: Revista de Informação Legislativa.Brasília. 33 n. 129 jan/março 1996, pgs.157 e ss;
DEIAB, Felipe Rocha. Anomia orçamentária. Revista da Procuradoria-Geral do Tribunal de Contas do
Estado do Rio de Janeiro n.1 (Nov. 2005). Rio de Janeiro : O Tribunal, pgs.292-293.
35
Admitindo também a possibilidade de rejeição da proposta orçamentária: OLIVEIRA, Rogério Sandoli de.
In: Orçamentos públicos – a lei 4.320/1964 comentada. Coord. José Maurício Conti. 2ª edição. São Paulo:
RT, 2010, pg.165.

16
uma interpretação restritiva para entender que tais créditos adicionais só se aplicariam no
caso de aprovação (ou rejeição) parcial do projeto de lei.36
Como cediço, se a rejeição for total, portanto, havendo anomia orçamentária, não
existirá a LOA e, evidentemente, não haverá o que reforçar (suplementar).
Por outro lado, não seria possível, para justificar a abertura de créditos especiais,
alegar um fato não previsto em uma lei que sequer chegou a prever alguma coisa37.
A eliminação desta lacuna normativa, ao nosso sentir, ficaria comprometida pois
não seria possível elaborar novo orçamento para o mesmo exercício financeiro 38, já que
seriam atropelados os prazos do ADCT, além de corromper toda a concepção de
previsibilidade e planejamento operacional de gastos e receitas, cerne contido na ideia
moderna de orçamento público39.
Contudo, enquanto durasse a anomia orçamentária as despesas poderiam sendo
executadas via créditos extraordinários (evidentemente, respeitadas as condições
constitucionais para sua abertura).
Paralelamente, poderia ser tentado o preenchimento (e não eliminação) da lacuna
pela via integrativa, com respaldo em decisão judicial obtida em uma ação coletiva (v.g.
ação civil pública ou mandado de injunção coletivo) movida pela pessoa política
interessada (ou qualquer outro legitimado ativo, nos termos do art.5º da Lei de Ação Civil
Pública ou de cada um dos microssistemas de processo coletivo atualmente existentes em
nosso sistema processual coletivo40).
Ressalte-se: a legitimidade ativa para o ajuizamento da ação coletiva, como
cediço, é concorrente e disjuntiva, portanto, outros colegitimados podem ajuizar a ação

36
Em sentido semelhante: CASTRO, José Nilo de. Responsabilidade fiscal nos municípios. Belo Horizonte:
Del Rey, 2001, pgs.36-37. Em sentido contrário: OLIVEIRA, Rogério Sandoli de. In: Orçamentos públicos
– a lei 4.320/1964 comentada. Coord. José Maurício Conti. 2ª edição. São Paulo: RT, 2010, pg.168.
37
Em argumentação semelhante, no sentido de que os créditos adicionais têm natureza orçamentária e,
portanto, não poderiam subsistir no caso de anomia, mas apenas quando existisse o orçamento, ver:
DALLARI, Adilson Abreu. Lei orçamentária- Processo legislativo: Peculiaridades e decorrências. In:
Revista de Informação Legislativa.Brasília. 33 n. 129 jan/março 1996.
38
Nesse sentido: DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 17ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2000, pg. 722; RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Curso de direito financeiro. São
Paulo: Saraiva, 2012, pg.287.
39
CONTI. José Maurício. A autonomia financeira..., p.58.
40
CÂNDIA, Eduardo. Legitimidade ativa na ação civil pública. Salvador: Juspodivm, 2013.

17
para colmatar a lacuna orçamentária naquilo que lhe disser respeito, portanto, caso a caso
deverá ser aferida a necessidade de se exigir a pertinência temática41.
Vejamos o seguinte exemplo: a Defensoria Pública poderia perfeitamente ajuizar
uma ação coletiva visando à efetiva implementação de programas que estavam previstos na
proposta da LOA e que eram destinados à população economicamente necessitada.
Numa outra situação, ainda mais visível, o Instituto Nacional do Seguro Social
(autarquia federal) poderia ajuizar ação coletiva pleiteando a efetiva e contínua execução
do orçamento da seguridade social contido na proposta da LOA rejeitada pelo Poder
Legislativo.
A partir do momento que há decisão judicial reconhecendo a inércia legislativa e
autorizando o início do programa ou a realização de despesas não há falar em infringência,
respectivamente, aos incisos I e II do art. 167 da CF-88, que vedam o início de programas
ou projetos não incluídos na LOA e a realização de despesas que excedam os créditos
orçamentários, até mesmo porque a LOA não existirá.
A decisão judicial emanada na seara da jurisdição coletiva, neste caso, supriria a
necessidade legislativa, até mesmo porque pensar o contrário o Estado simplesmente
ficaria de mãos atadas, impossibilitado de realizar qualquer despesa, inclusive aquelas
obrigatórias como pagamento de seus servidores e aposentados, incidindo em evidente
afronta à observância da Constituição Federal no que tange aos seus deveres de efetivação
de direitos individuais e coletivos.
Ademais, não podemos olvidar do princípio constitucional da inafastabilidade do
Poder Judiciário que, no caso, poderia ser perfeitamente invocado para suprir a omissão
legislativa. É uma situação excepcional? Não há dúvida que sim, mas não podemos alijar o
Poder Judiciário quando há omissões inconstitucionais por parte dos demais Poderes.
A situação nada mais retrata do que o sistema jurídico exercendo sua função
específica de garantir as expectativas normativas quando o sistema político falha no
desempenho de sua função de tomar as decisões que vinculam a coletividade.42
Nesses casos, bem se vê, a anomia orçamentária não é eliminada, o que só
ocorreria com a promulgação da LOA e, em sendo assim, cabería-nos socorrer
exclusivamente da invocação dos meios integrativos ou supletivos da lacuna,

41
Especificamente sobre a necessidade de se exigir dos colegitimados a pertinência temática: CÂNDIA,
Eduardo. Legitimidade ativa na ação civil pública. Salvador: Juspodivm, 2013, pgs. 242-273.
42
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Saraiva, 2011, ps.77-79.

18
expressamente previstos no ordenamento jurídico brasileiro nos arts. 4º e 5º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Temos, pois, uma solução prática para o grave problema da falta da lei
orçamentária anual, ainda que esta solução possa ser eventualmente fragmentada à vista de
quem que ajuíza a ação coletiva, posto que, por vezes, não será viável o manejo desta ação
para suprir integralmente a LOA, ou seja, envolvendo todas as alocações de receitas
previstas e despesas fixadas, como é o caso, por exemplo, da Defensoria Pública e das
autarquias.
No contexto desta fragmentação da LOA, é fundamental se atentar para as
peculiares funções que os atuais microssistemas de processo coletivo (v.g. Estatuto da
Criança e do Adolescente, Código do Consumidor, Estatuto do Idoso, Estatuto da
Igualdade Racial etc.) desempenham ao sistema do direito como um todo, o que impõe
uma necessária e rigorosa observância dos colegitimados ativos à ação coletiva previstos
nesses microssistemas, de acordo com o direito material que se pretenderá dar efetividade,
nos termos da situação legitimante descrita na petição inicial da ação coletiva.
Além disso, agora numa visão mais ampla e partindo-se da ideia de que a
existência da lei orçamentária, com toda sua conteudística imprescindível à vida do Estado
e impactante no dia a dia de todos, representa um autêntico direito difuso, seria
perfeitamente possível o ajuizamento de uma ação coletiva pleiteando-se a aplicação dos
meios supletivos de lacuna, tudo com a finalidade de dar respaldo jurídico para a
realização das despesas e arrecadação das receitas.
Assim, se o ajuizamento da ação acontecesse por iniciativa da própria pessoa
política ou do Ministério Público não precisaria haver, necessariamente, fragmentação do
orçamento para atendimento deste ou daquele específico programa, ou deste ou daquele
grupo, pois a demonstração da pertinência temática para tais colegitimados ativos se
apresenta de forma objetiva à vista da imprescindibilidade da LOA para as finanças
públicas e bem estar de toda coletividade, além de encontrarem diretamente na própria CF-
88 o fundamento de validade da legitimidade coletiva ativa43.
Por fim, vale tocar num ponto específico.

43
CÂNDIA, Eduardo. Legitimidade ativa na ação civil pública. Salvador: Juspodivm, 2013.

19
Parte de nossa doutrina propugna que no caso de rejeição da LOA deve ser
procedida a prorrogação do orçamento referente ao exercício imediatamente anterior44.
Esta ideia é bastante prática mas deve ser analisada com cautela.
Pela via integrativa poderia até ser cogitada a aplicação, por analogia, do art. 32
da Lei 4.320/64, prorrogando-se o orçamento do exercício financeiro recém encerrado.
Esta prorrogação permitiria a abertura de créditos especiais ou suplementares pois aí, bem
ou mal, teríamos um orçamento a ser flexibilizado.
Mas que fique bem gizado: a prorrogação do orçamento anterior no caso de
rejeição da LOA jamais poderá ocorrer de forma automática, como disciplinado
expressamente no caso de não encaminhamento do projeto de lei. Aqui, torna-se
indispensável a provocação do Poder Judiciário, via jurisdição coletiva, para que seja
possível a colmatação da lacuna pela integração e, se for o caso, aplicação da analogia.

3.3. Não devolução do projeto de lei até o dia 22 de dezembro.


Os prazos fixados no art.35, §2º, III, do ADCT da CF-88 são peremptórios e
ensejam responsabilidade (criminal, civil e administrativa) por parte de quem deu azo ao
descumprimento.
Portanto, conforme se depreende do referido dispositivo, o Poder Legislativo tem
até o dia 22 de dezembro, data de encerramento da sessão legislativa, para devolver o
projeto de lei para que o Chefe do Poder Executivo possa sancioná-lo.
Trata-se de um dever constitucional imposto ao Poder Legislativo e, caso seja
desrespeitado, ensejará omissão inconstitucional, sanável unicamente pela via judicial,
através da jurisdição coletiva, tudo porque o direito a ser tutelado não será exclusivo do
autor da ação, mas interessará a toda uma determinada comunidade, de forma difusa, ou a
grupos específicos de pessoas que haviam sido contemplados em programas no projeto de
lei que não fora devolvido tempestivamente.
Da mesma forma que no caso de rejeição da LOA, entendemos que a hipótese de
não devolução do projeto pelo Poder Legislativo não pode ensejar a prorrogação

44
Nesse sentido: DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 17ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2000, pg. 721; RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Curso de direito financeiro. São
Paulo: Saraiva, 2012, pg.287.

20
automática do orçamento referente ao exercício que se findou ou, ainda, a promulgação,
pelo Poder Executivo, do projeto de lei encaminhado ao Legislativo45.
O sistema não aponta expressamente este caminho para a solução da anomia, de
sorte que a provocação do Poder Judiciário é imprescindível para respaldar a conduta do
Chefe do Poder Executivo.
Pleiteando, via Poder Judiciário, em legitimidade autônoma para a condução do
processo e em benefício direto de um direito cuja titularidade pertence a determinado
grupo, estaremos no campo próprio da jurisdição coletiva.46

3.4. Veto integral do projeto de lei


Nada obsta a que o Poder Executivo vete integralmente o projeto de lei
orçamentária anual devolvido, em tempo, pelo Poder Legislativo.
Com todo o respeito a entendimentos em sentido contrário, não vemos qualquer
contra-senso nesta conduta47, a menos, evidentemente, que não haja qualquer alteração
significativa e estrutural ao projeto inicialmente elaborado pelo Poder Executivo.
O art.166, §8º, da CF-88 autoriza esta conduta por parte do Chefe do Poder
Executivo.
Neste caso, portanto, diferentemente de o Poder Executivo não encaminhar a
proposta da LOA ao Poder Legislativo, não há qualquer consequência jurídica em termos
de responsabilidade penal, civil ou administrativa do Chefe do Poder Executivo ao se vetar
integralmente o projeto de lei. Trata-se de exercício regular de um direito constitucional.
Em havendo o veto integral, e se este não for derrubado pelo Legislativo, a
consequência certamente será a lacuna normativa em relação à lei orçamentária anual.
À semelhança do que ocorre na rejeição integral ao projeto de lei pelo Poder
Legislativo, enquanto perdure a anomia, a Administração poderá se valer dos créditos
extraordinários para realização das despesas públicas necessárias.

45
Nesse sentido: HARADA, Kiyoshi. Orçamento anual – processo legislativo. Brasília: Consulex n. 118,
2001, pg.26; IVO, Gabriel. Lei orçamentária anual; não remessa para sanção, no prazo constitucional, do
projeto de lei. In: MOREIRA FILHO, Aristóteles. LÔBO, Marcelo Jatobá (Coords.). Questões
controvertidas em matéria tributária: uma homenagem ao professor Paulo de Barros Carvalho. Belo
Horizonte: Fórum, 2004, pg.296.
46
CÂNDIA, Eduardo. Op. Cit., pgs. 81-101.
47
Em sentido contrário: HARADA, Kiyoshi. Projeto de lei orçamentária anual. Emenda pela Câmara
municipal para reduzir a dotação do Executivo e aumentar a do Legislativo. Inconstitucionalidade.
Disponível em: http://www.haradaadvogados.com.br/getArq.asp?OperId=309. Consultado em: 19/04/2012.

21
Não nos parece adequado se valer de créditos suplementares ou especiais, posto
que especificamente estes tipos de créditos adicionais pressupõem, por suas próprias
definições (art.40 e 41 da Lei n. 4.320/66), a existência de um orçamento.
Assim, deve ser dada interpretação adequada ao art.166, §8º da CF-88 para
admitir os créditos suplementares ou especiais tão somente nos casos de rejeição (ou
aprovação) parcial do projeto de lei orçamentária.
Não sendo caso de utilização dos créditos extraordinários, poderia ser
perfeitamente buscada a colmatação da lacuna com respaldo em decisão judicial obtida em
uma ação coletiva movida por qualquer legitimado ativo previsto no art.5º da Lei de Ação
Civil Pública, pleiteando, inclusive, a aplicação da analogia ao art.32 da Lei n. 4.320/64,
como uma das formas de integração da lacuna (LINDB, arts. 3º e 4º).

4. Conclusões
Após estas breves reflexões, podemos dizer que a falta da lei orçamentária anual
na esfera federal tem sido uma constante nos últimos anos. Muito embora não tenhamos
estatísticas precisas no âmbito dos Estados, Distrito Federal, bem como dos mais de cinco
mil e quinhentos municípios brasileiros, o quadro provavelmente não deve ser muito
diferente.
Como visto, a solução para o problema da falta da lei orçamentária passa,
necessariamente, pela concepção do sistema jurídico e, portanto, exige uma tomada de
posição por parte do jurista.
A falta da lei orçamentária anual configura uma espécie de lacuna normativa que
pode, em certas hipóteses, ser eliminada do sistema. Não havendo possibilidade de
eliminação da lacuna, deve ser encontrado um meio de preenchê-la através de técnicas
integrativas realizadas exclusivamente pelo Poder Judiciário por via da jurisdição coletiva.

22

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