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INTRODUÇÃO

“O Calvinismo foi uma força ativa e radical. Era uma fé que buscava não
somente purificar o indivíduo, mas ainda reconstruir a Igreja e o Estado e
renovar a sociedade, fazendo penetrar em cada setor da vida pública e
privada a influência da religião.”

R. H. Tawney

Com essa citação, BIÉLER inicia o preâmbulo de O Pensamento


Econômico e Social de Calvino.1 Pode-se dizer que todo o conteúdo da obra consistirá
no desenvolvimento desta citação.

A pesquisa que se segue visa, com bastante simplicidade, abordar a


relação entre fé e política e, para tanto, seguirá pelas mesmas trilhas do autor supra
citado, visto ser um dos referenciais teóricos em que a pesquisa se ancora.

Desse modo, num primeiro momento procurar-se-á fazer um levantamento


do contexto histórico e social de João Calvino, pois, para uma boa compreensão da
relação entre a fé e a política da maneira como ele a entendia, este contexto, bem
como sua formação humanista, vieram a ter grande influência sobre sua maneira de
vivenciar a fé cristã. Na busca dessa compreensão, a organização político-
administrativa da cidade de Genebra também será abordada.

A influência do contexto histórico e social, bem como da formação


humanista de Calvino, levaram-no a vivenciar a fé cristã de maneira que, sem romper
com as duas maiores instituições de seu tempo, a Igreja e o Estado, a sociedade
genebrina virá a ser o berço de uma das maiores reformas político-social-religiosa do
século XVI. E, na sua luta para fazer de Genebra o modelo de sociedade cristã e
reformada, cunhará seu “humanismo social”, isto é, sua doutrina teológica e política,
assunto da segunda parte desta pesquisa.
1
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 27.
Por fim, na terceira parte, far-se-á um levantamento das conseqüências
práticas da “doutrina social” de Calvino. A “doutrina social e teológica” de Calvino é ao
mesmo tempo fruto e motor da maneira como Calvino, e os reformados que o seguiam,
vivenciava a fé cristã e, a conseqüência imediata é a relação truncada, mas frutuosa,
entre a Igreja e o Estado em Genebra. Truncada, pois vivenciar a fé cristã nos moldes
reformados e “calvinista” denunciava, e muitas vezes resistia, a forma como os
magistrados organizavam a sociedade genebrina. Frutífera, tendo em vista que,
segundo Calvino, onde a Igreja não conseguia chegar, contava com o apoio do Estado,
e, quando este deixava de promover a justiça, era imediatamente denunciado e
ajustado por aquela.

Como corolário desta forma de compreender e vivenciar a fé cristã, os


cristãos reformados e “calvinistas” promoveram uma transformação da sociedade onde
estavam inseridos, visto que resistiam e denunciavam o Estado, quando este deixava
de cumprir seu papel, qual seja, salvaguardar a sociedade das injustiças. Assim, ainda
nesta última parte, procurar-se-á demonstrar que a prática da fé cristã hoje, como a
entendia Calvino, pode conclamar a Igreja ao cumprimento de sua missão profética,
através da fé cristã que se dá, além do âmbito eclesial, no âmbito social, objetivando a
transformação da sociedade; isto é, vivenciar a fé como uma práxis religiosa cristã.

1. O Contexto Histórico e Social de Calvino


O contexto histórico e social de Calvino é a Suíça e, de modo mais
específico, a cidade de Genebra. Segundo BIÉLER, os movimentos sociais e religiosos
na Suíça determinam, em larga medida, a história de Genebra e de Calvino.2 Desde o
século XI o comércio já estava estabelecido na Suíça, o que suscitava um forte
movimento de independência. Com a abertura do “Desfiladeiro de Gotardo”, no século
XII, os habitantes da região encontram no transporte de mercadorias uma fonte de
prosperidade, ao mesmo tempo em que se unem para defenderem seus interesses
comuns formando as chamadas “comunas juradas” , e mais tarde, uma Confederação
“jurada”.3 Do século XIII ao XV importantes mudanças vão agitar a Suíça. Forma-se, no
século XIII, uma cidade de burguesia em Lucerna; a facção popular derruba, no século
XIV, o governo aristocrático, e com o desenvolvimento e fortalecimento da população
operária, toma o poder em 1336; os burgueses derrubam os nobres e se unem aos
Confederados, em 1530; cidade e campo se unem e formam a Confederação dos Oito
Cantões, no século XV.4

Pode-se perceber facilmente que os acontecimentos históricos que


precedem a Reforma são responsáveis pela promulgação de ideais libertacionistas que
vão estar presentes de maneira muito forte na chamada reforma calvinista. Há, desde
muito, um clima de revolução na Suíça que será o berço de uma das maiores reformas
social, econômica e religiosa de todos os tempos.

Como não podia deixar de acontecer, todo esse clima de revolução, de


liberdade, atinge também a esfera religiosa. Na Suíça, o primeiro a dar impulso à
Reforma foi Ulrich Zwínglio, mais propriamente na cidade de Zurique, e mais tarde o
movimento chega a Genebra, por meio de Guillaume Farel no ano de 1532. Portanto,
embora Calvino seja reconhecido, e com muita propriedade, como o reformador de
Genebra, a reforma genebrina é anterior a ele. Alguns fatos históricos apontam nesta

2
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. p. 68.
3
Idem. Ibidem, p. 69.
4
Idem.
direção e demonstram que Genebra não fica imune ao vírus revolucionário que
desencadeia a reforma social, política e religiosa.

Desde o início do século XVI, duas facções se confrontavam em Genebra,


a saber, os mammelus5 e os Eidguenots6. Estes últimos desafiavam incessantemente a
autoridade do Duque de Savoy, Charles III, que, para dar um fim a este confronto,
invade Genebra em 1524 e impõe sua autoridade como Duque e a de seu Bispo sobre
a cidade, com o auxílio do conselho dos alabardeiros ou arqueiros.

Mas, a liderança política genebrina não aceitou o domínio imposto pelo


Duque de Savoy, e para refuta-lo, faz aliança com Berna e Friburgo optando assim,
pela Confederação Suíça. Esta opção dá a Genebra grande impulso no seu movimento
pela independência, atraindo para a cidade muitos reformados, entre eles, para citar
alguns dos que mais se destacaram, Claude Bernard, Étienne Dada, Pierre e Robert
Vandel, Ami Perrin.7 Os reformados celebram, então, numa Sexta-feira Santa, um culto,
em 1533, o que desencadeia a primeira revolta por causa da disseminação da fé
reformada em Genebra.

Pierre de La Baume, Bispo de Genebra, manda prender os líderes da


revolta, que são em seguida libertados pelo Magistrado, que era incumbido da defesa
da cidade, da guarda e execução dos prisioneiros, dispondo de direito de justiça
restrito8, sob a alegação de que a corte episcopal não tinha jurisdição em caso de
assassinato.9 O Bispo, que já não era bem visto pelos genebrinos, foi obrigado a deixar
a cidade. No ano seguinte, 1534, Farel e o dominicano Guy Furbity se entravam em
uma controvérsia pública, o que leva Friburgo, que era predominantemente católica, a

5
SILVESTRE, Armando Araújo. O direito de resistir ao Estado no pensamento de João Calvino. São
Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2001, – (Tese de Doutoramento), p. 12.
Referência negativa aos mamelucos orientais que preferiam ser escravos ou servos a viver em liberdade.
6
Idem, ibidem. Palavra alemã que significa “confederados”.
7
SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 13. Cf. nota de rodapé nº 7.
8
Idem. p. 15. Cf. nota de rodapé nº 13.
9
Idem. p. 14.
protestar contra a permanência do reformador em Genebra. Ao final das controvérsias,
Berna permanece como a única aliada da cidade.

O Bispo Pierre de La Baume faz aliança com Charles III, Duque de Savoy
e enviam tropas para atacar Genebra. Os magistrados denunciam o Bispo a Roma, que
ignora a denúncia. Em contrapartida, Genebra funda sua própria Casa da Moeda,
proclamando, assim, sua independência frente à hierarquia romana. 10 Como os ataques
anteriores a Genebra haviam fracassado, o Duque de Savoy novamente investe contra
a cidade, mas Berna vem-lhe em socorro e liberta Genebra em fevereiro de 1536. Farel
então tem liberdade para pregar, em 10 de março do mesmo ano, conclamando os
cidadãos genebrinos a viverem segundo os preceitos do Evangelho. 11

Embora, em Genebra, Igreja e Estado se confundiam, o que se percebe


do exposto até aqui, é que Genebra, através do seu magistrado, aniquilou o poder do
Bispo e do Duque sem a influência do clero, denunciando que, antes de ocorrer uma
reforma religiosa, houve uma reforma política ou civil. Nas palavras de William MARTIN,
a Reforma não foi engendrada pelos Reformadores; nasceu ela fora deles e se lhes
impôs.12

1.1. Genebra: organização político-administrativa

É de salutar importância, nesta pesquisa, a compreensão da organização


política e administrativa da cidade de Genebra, onde se daria a reforma calvinista, para
se obter com clareza um melhor entendimento da relação entre Estado e Igreja em
Calvino.

A população genebrina era formada por cidadãos, ou seja, pessoas


nascidas ou batizadas por pais nascidos em Genebra; burgueses, ou pessoas não
nascidas em Genebra mas que adquiriam esse título, que era pago, após longo período
10
SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 15.
11
Idem.
12
apud BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 16.
de residência na cidade; habitantes, isto é, estrangeiros que residiam em Genebra,
sujeitos às mesmas leis mas sem direito a voto e a participação em cargos públicos. 13
Essa estratificação social, que denuncia a existência de abastados e miseráveis, será
duramente criticada por Calvino.

A cidade de Genebra era administrada por quatro tipos de conselhos:


Pequeno Conselho, Conselho dos Sessenta, Conselho dos Duzentos e Conselho Geral,
sendo que o de maior importância era o Pequeno Conselho. Era formado pelos
magistrados ou ex-magistrados e, coletivamente, pelos Senhores de Genebra ou
Síndicos, título de honra conferido pelo Conselho dos Duzentos aos cidadãos.14

Cabia ao Pequeno Conselho julgar as causas criminais e civis, além da


eleição dos membros do Conselho dos Duzentos e nomeação dos Diáconos, que eram
responsáveis pelo funcionamento dos hospitais e pela assistência aos pobres. Seus
membros eram eleitos anualmente e não recebiam salários. O Conselho dos Sessenta
era uma relíquia do século XV e de caráter puramente diplomático. O Conselho dos
Duzentos existia em Genebra desde 1527 e cabia-lhe eleger os ex-magistrados como
membros do Pequeno Conselho, aprovar as propostas de mudanças na lei, servindo
como corte de apelação nas causas criminais. O Conselho Geral ou Assembléia Geral
era formada por todos os cidadãos de Genebra, com propriedade ou título de honra
conferido pelo Conselho dos 200, por alguma razão especial.15

Toda esta organização político-administrativa já existia antes da chegada


de Calvino a Genebra, evidenciando a íntima relação entre Estado e Igreja, relação esta
que Calvino irá combater durante sua vida, como cristão, humanista e pregador. Porém,
antes da análise da relação Igreja-Estado em Calvino, tem-se que, obrigatoriamente,
preceder a análise e compreensão da sua “Doutrina Social” ou “Humanismo Social”.

13
SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., pp. 30-31.
14
Idem. Ibidem. p. 20. Cf. Quadro da organização política de Genebra.
15
Id. Ibid.. As informações sobre os quatro Conselhos existentes em Genebra encontram-se nas páginas
17-21.
2. A “Doutrina Social” de Calvino

O que nesta pesquisa denomina-se “Doutrina Social” de Calvino, BIÉLER


chama de O Humanismo Social de Calvino.16 O mesmo autor diz que este humanismo
social pode ser entendido como um humanismo teológico que inclui a um tempo o
estudo do homem e da sociedade através do duplo conhecimento do homem pelo
homem, de um lado, e do homem por Deus, de outro.17

Porque se pode afirmar que Calvino era um humanista? E ainda mais: que
seu humanismo era social e teológico? Para responder as perguntas acima, faz-se
necessário uma rápida análise da formação recebida pelo reformador de Genebra.

João Calvino nasce a 10 de julho de 1509, em Noyon. Era um dos cinco


filhos de Gerard Cauvin, que se estabelece em Noyon no ano de 1481, ocupando,
nesta cidade, os cargos de escrivão do governo, (...) solicitador da corte eclesiástica,
agente fiscal da região, secretário do bispo e procurador do capítulo.18 Logo cedo,
Calvino é encaminhado pelo pai, secretário do bispo, para exercer o sacerdócio e, por
volta dos 12 anos começa a receber uma capelania19, o que irá garantir-lhe o sustento
dos estudos. Assim, aos 14 anos é enviado a Paris, em 1523, onde estuda durante
cinco anos no colégio de Montaigu, da Faculdade de Artes da Universidade de Paris,
recebendo uma excessiva educação ortodoxa católica. Em 1528 termina seus estudos
filosóficos e em 1529 é mestre em Artes.

Embora a Europa esteja impregnada das novas idéias advindas da


Reforma, Calvino está cada vez mais convicto das suas posições humanistas, um
16
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino. – Tradução de A. Sapsezian. – São Paulo: Edições
Oikoumene, 1970. Os capítulos I e IV serviram de referencial para a elaboração da segunda parte desta
pesquisa.
17
Idem. Ibidem, p. 13.
18
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 113.
19
Id. Ibid., p. 114. “Benefício ou rendimento de uma função eclesiástica”. Cf. nota 211.
legado de seus mestres de Montaigu e de seus amigos de Orléans. Em 1529 vai
estudar Direito na Universidade de Bourges, e é licenciado em leis em 1532. Publica
seu primeiro livro, um comentário à DE CLEMENTIA, de Sêneca, em 4 de abril de
1532.20 Esta obra, nas palavras de BIÉLER, de imediato granjeia a Calvino grande
autoridade no mundo humanista. Mostra-nos ela, (...) a que ponto o futuro reformador
está ainda fielmente ligado, nesta época, ao pensamento em honra entre os humanistas
católicos.21

Subitamente, após a publicação do comentário a DE CLEMENTIA, de


Sêneca, Calvino aparece preocupado com as novas doutrinas religiosas em Paris.
Suspeito de haver inspirado um discurso reformista realizado por seu amigo, Nicolas
Cop, reitor da Universidade de Paris, Calvino é perseguido, juntamente com os demais
envolvidos, mas escapa e vai se refugiar na casa de um amigo, em Augoulême, onde
começa a redigir sua grande obra, as Institutas, ou Instituição da Religião Cristã. Nesta
cidade, em 1534, decide romper com a Igreja Católica. 22 Nas palavras de BIÉLER,
Calvino, nesta época,

(...) não é mais o humanista conformista que teme os remoinhos da


política e recusa comprometer-se com aqueles que são qualificados como
revolucionários; bem pelo contrário, é o cristão que, sem fugir aos riscos,
intervém, com todas as suas forças, contra os grandes deste mundo para
restabelecer a justiça e a verdade.23

Após essa rápida divagação sobre a vida do reformador de Genebra,


podemos agora entender com mais propriedade a afirmação de BIÉLER sobre ser o
humanismo de Calvino tanto teológico como social. É social, pois relaciona o ser
humano ao seu semelhante no convívio da sociedade da qual participam. É teológico,

20
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, pp. 113 - 116.
21
Idem. Ibidem, p. 116.
22
Id. Ibid., pp. 121-122.
23
Id. Ibid., p. 124.
visto que, segundo nos afirma BIÉLER, para Calvino o homem é homem na medida em
que permanece sujeito a seu criador.24

Mas, esse humanismo teológico vai além. Calvino tem uma visão
pessimista do ser humano. Segundo ele, todo el hombre, de los pies a la cabeza, está
como anegado en un diluvio, de modo que no hay en él parte alguna exenta o libre de
pecado, y, por tanto, cuanto de él procede se le imputa como pecado... 25 Se intenção e
ação dos seres humanos são más, tem-se que as suas relações sociais são
corrompidas, ou seja, são relações egoísticas, desprovidas de solidariedade.

Porém, Calvino enxerga nos evangelhos uma saída, um caminho de


reconciliação para esse ser humano desnaturado: Dios (...) se hubiera hecho nuestro
Redentor em la persona de su Hijo unigênito... 26 Nesta redenção, o ser humano não tem
participação nenhuma, sendo que todo mérito repousa em Cristo Jesus, o Emanuel.
Para Calvino, todo este processo de justificação ocorre por conta da graça de Deus.
Segundo ele, no hay dificultad alguna en que la justificación de los hombres sea gratuita
por pura misericordia de Dios...27

Embora a graça redentora e justificadora de Deus não deixe espaço para


a participação humana, esta graça não quer manter o ser humano na passividade.
Segundo Calvino, todas as coisas concernentes à vida bem-aventurada, que estavam
mortas no ser humano, la gracia de la regeneración las vuelva a recobrar; a saber: la fé,
el amor de Dios, la caridad com el prójimo, el deseo de vivir santa y justamente.28 Assim
sendo, o ser humano que era incapaz de relações sociais solidárias, passa a viver uma
relação mais justa com o seu semelhante, relação baseada na fé e no amor, primeiro
com Deus, depois com o seu próximo.

24
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 15.
25
CALVINO, Juan. Institución de La Religión Cristiana. - Tradução de Eusebio Goicoechea. -, Libro II,
Capítulo I, p. 170.
26
Idem. Ibidem. Libro II, Capítulo VI, p. 239.
27
Id. Ibid., Libro II, Capítulo XVII, p. 393.
28
Id., Libro II, Capítulo II, p. 182.
Chega-se assim, ao ponto culminante do humanismo social de Calvino.
Para ele a nova vida proveniente da graça justificadora de Deus é essencialmente
comunitária. Com relação a isto, assim se expressa:

Porque, efectivamente, si en verdad están persuadidos de que Dios es el


Padre común de todos, y de que Cristo es su única Cabeza, se amarán los
unos a los otros como hermanos, comunicándose mutuamente lo que
poseen.29

Expressar o amor ao próximo através da comunicação mútua dos bens.


Esta é a compreensão que tem Calvino da Igreja. Mas, esta solidariedade deve ser
vivida somente na comunidade cristã? Segundo BIÉLER, interpretando Calvino,

A existência, no seio da sociedade humana, desse núcleo celular que é a


comunidade dos cristãos, por pequena que seja, constitui o estímulo para
a restauração social da humanidade, desde que, evidentemente, (...) seja
verdadeiramente cristã. A Igreja, com sua comunidade de homens e
mulheres reais que recuperam em Cristo sua humanidade, tornam-se o
embrião de um mundo inteiramente novo onde as relações sociais, outrora
pervertidas, reencontram sua natureza original.30

Para Calvino, a Igreja, comunidade de mulheres e homens regenerados


mediante a Jesus Cristo para viverem a prática do amor, isto é, viverem relações de
solidariedade e união, é o canal para que a graça justificadora de Deus alcance e
regenere toda a sociedade. Segundo ele,

Por eso Dios ha unido a su Iglesia con el vínculo que le pareció más
apropiado para mantener en ella la unión, confiando la salvación y la vida
eterna a hombres, a fin de que por su medio les fuese comunicada a los
demás.31

Ocorre, porém, que a Igreja sendo formada como é por mulheres e


homens, que apesar de justificados e perdoados, permanecem pecadores, está

29
CALVINO, Juan. Institución de La Religión Cristiana. Libro IV, Capítulo I, p. 805.
30
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 21.
31
CALVINO, Juan. Op. cit. Libro IV, Capítulo III, p. 837.
arriscada à corrupção. Calvino, em seus Comentários ao Novo Testamento, diz-nos
que

A Igreja não pode ser tão prontamente formada que não lhe reste alguma
coisa a corrigir; (...) Ademais, aprendemos que não há instituição de Deus,
por mais santa e louvável que seja ela, que não suceda que não a
corrompam os homens, ou a tornem menos útil por seu vício. (...) 32

Embora em Jesus Cristo as relações sociais harmoniosas, outrora


desmanteladas pelo pecado, foram restabelecidas, não podem ser plenamente
realizadas, tendo em vista que não é a totalidade da sociedade que vive segundo a fé
em Jesus Cristo e, também, porque os próprios fiéis continuam a ser pecadores,
podendo ser corrompidos.

Assim, segundo Calvino, Deus estabelece uma outra instituição que irá
servir como instrumento de Deus para balizar as relações sociais de homens e
mulheres ainda submetidos ao pecado, de maneira que consigam viver em
comunidade. Conforme nos diz BIÉLER, para evitar, pois, que todas as coisas
descambem para a desordem e o caos, Deus suscita, no quadro geral da sociedade,
uma ordem provisória a que Calvino dá o nome de ordem política.33 É a relação desta
com o que ele denomina de ordem da Igreja, que será analisada na terceira parte desta
pesquisa.

3. As Conseqüências Práticas da “Doutrina Social de Calvino”

32
Apud BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 367.
33
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 25. Grifo meu.
Feito o levantamento do contexto histórico e social onde viveu João
Calvino, bem como de sua “Doutrina Social”, quais seriam as conseqüências práticas
destes levantamentos, e, ainda, que lições a Igreja atual poderia aprender e colocar em
prática como instituição suscitada por Deus para a promoção do seu reino entre os
humanos?

Antes de tentarmos tirar algumas lições práticas para a Igreja hodierna,


tem-se que compreender a conseqüência prática imediata da “Doutrina Social” de
Calvino: As relações entre Igreja e Estado.

3.1. As relações entre a Igreja e o Estado em Genebra

Para Calvino, Igreja e Estado eram duas ordens que tinham a mesma
origem e objetivo: provinham de Deus e foram instituídas por ele para a promoção de
seu reino.34 Cabia ao Estado35, segundo Calvino,

(...) mantener y conservar el culto divino externo, la doctrina y religión en


su pureza, el estado de la Iglesia en su integridad, hacernos vivir con toda
justicia, (...) instruirnos en una justicia social, ponernos de acuerdo los
unos con los otros, mantener y conservar la paz y la tranquilidad
comunes.36

Na relação entre Estado e Igreja, aquele possuía autoridade para manter


a pureza da doutrina cristã e a integridade da Igreja, mas não se pode confundir esta
autoridade sobre os cidadãos, com o fim de mantê-los em certa ordem e obediência
com a autoridade que somente o Espírito Santo tem sobre a Igreja. Assim diz Calvino,
comentando João 18,23 em Comentários ao Novo Testamento, quando afirma que (...)

34
CALVINO, Juan. Institución de La Religión Cristiana. Libro IV, Capítulo XX, pp. 1167-1170.
35
Calvino usava as expressões príncipes, magistrados, ordem civil e ordem política, no lugar do termo
“Estado”. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. O direito de resistir ao Estado no pensamento de João
Calvino, p. 153.
36
CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, Capítulo XX, p. 1169.
uma vez que o reino de Cristo é espiritual, também de mister se faz que seja ele
fundado na doutrina e na virtude do Espírito Santo.37

Para Calvino, a ordem política tem limites bem definidos: está a serviço de
Deus e do povo.38 Sendo a ordem política instituída por Deus, tanto quanto a Igreja,
este serviço prestado ao povo implica, em contra partida, obediência e submissão por
parte deste. Esta obediência e submissão visam, ao mesmo tempo, a manutenção da
fé e da ordem social, que teimam em ser desmanteladas tanto pela insubmissão quanto
pelo conformismo à ordem civil. Segundo Calvino,

(...) en el día de hoy existen hombres tan desatinados y bárbaros, que


hacen cuanto pueden para destruir esta ordenación [gobierno] que Dios
ha establecido; y, por su parte, los aduladores de los príncipes, al
engrandecer sin límite ni medida su poder, no dudan en ponerlos casi en
competencia con Dios. Y así, si no se pone remedio a tiempo a lo uno y a
lo otro, decaerá la pureza de la fe.39

Mas esta obediência e submissão também são limitadas pela obediência e


submissão a Deus. Ainda nas Institutas, Calvino deixa isso bem claro ao dizer que,

Mas, en la obediencia que hemos enseñado se debe a los hombres, hay


que hacer siempre una excepción; o por mejor decir, una regla que ante
todo se debe guardar; y es, que tal obediencia no nos aparte de la
obediencia de Aquel bajo cuya voluntad es razonable que se contengan
todas las disposiciones de los reyes, y que todos sus mandatos y
constituciones cedan ante las órdenes de Dios, y que toda su alteza se
humille e abata ante Su majestad.40

Para Calvino, as pessoas devem submeter-se primeiramente a Deus, o


que não abole sua tese de que devem submeter-se também às autoridades, visto
serem estas instituídas por Deus para a manutenção da ordem social. Porém, esta
submissão primeira a Deus vai evoluir para uma teoria da resistência, visto que o
37
apud SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 154.
38
apud BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 370. Cf. Comentário de Rm
13,4 – Comentários ao Novo Testamento.
39
CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, Capítulo XX, p. 1168.
40
Idem. Ibidem, p. 1193-1194.
próprio Calvino vai concluir, dando continuidade à sua teoria da submissão a Deus e às
autoridades, que después de Él hemos de someternos a los hombres que tienen
preeminencia sobre nosotros; (...) Si ellos mandan alguna cosa contra lo que Él ha
ordenado no debemos hacer ningún caso de ella, sea quien fuere el que lo mande. 41

Se cabe à ordem civil, entre outras coisas, hacernos vivir con toda justicia,
(...) instruirnos en una justicia social, ponernos de acuerdo los unos con los otros,
mantener y conservar la paz y la tranquilidad comunes 42, toda ordem dada que venha a
ferir os principios evangélicos da justiça, da solidariedade, da paz entre os seres
humanos deve ser rechaçada, ou melhor, resistida como prova de obediencia a Deus.
Calvino termina as Institutas afirmando que (...) verdaderamente daremos a Dios la
obediencia que nos pide, cuando antes consentimos en sufrir cualquier cosa que
desviarnos de su santa Palabra.43

Já foi visto que para Calvino a Igreja é um meio pelo qual a graça
justificadora de Deus visa alcanças os seres humanos e melhorar suas relações
sociais. Mas a Igreja, formada por uma parcela da sociedade, continua com resquícios
do pecado, não podendo, por isso, restaurar completamente esta sociedade. Assim,
segundo Calvino, Deus suscita uma outra ordem para que tal objetivo seja alcançado,
que ele denomina de ordem política. Comentando Mc 10,21, em seus Comentários ao
Novo Testamento, ele diz que Deus ama as virtudes políticas, (...) porque servem a um
fim que Ele aprova.44

Calvino algumas vezes teve que combater a indiferença política dos


cristãos, que muitas vezes queriam reduzir a vida à esfera espiritual. Embora para ele,
o reino espiritual de Cristo e o poder civil sejam coisas muito diferentes entre si 45, esta
distinción no sirve para que tengamos el orden social como cosa inmunda y que no

41
CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, Capítulo XX, p. 1194.
42
Idem, Ibidem, p. 1169.
43
Idem.
44
apud BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 340.
45
CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, Capítulo XX, p. 1168.
conviene a cristianos.46 Muito pelo contrário, ele entende que a Igreja tem uma missão
política a desenvolver na sociedade.

Esta missão política da Igreja pode ser dividida em quatro momentos ou


tópicos, segundo BIÉLER. São eles: orar pelas autoridades, advertir as autoridades,
tomar a defesa dos pobres e dos fracos contra os ricos e poderosos, recorrer à
autoridade política na aplicação das sanções disciplinares.47 Esta pesquisa privilegiará o
segundo e o terceiro tópico, onde parece estar contida a missão profética da Igreja.

A Igreja tem uma missão profética, porque é ininterruptamente


conclamada a denunciar as injustiças sociais, ao apregoar o Evangelho de Jesus
Cristo, que embora seja um Evangelho de reconciliação, muitas vezes provoca a
discórdia entre seus ouvintes. Também aqueles incumbidos de anunciá-lo, por vezes
são suspeitos de desordem social e política. 48

Isto ocorre porque a ordem estabelecida e defendida pelos magistrados,


pela ordem civil, está longe de ser uma ordem segundo os preceitos do Evangelho,
uma ordem com relações sociais justas e solidárias. Ao anunciar a verdadeira ordem
que o Evangelho quer estabelecer, a Igreja denuncia a ordem vigente e a seus
mantenedores. Para Calvino, aqueles que consideram os cristãos fiéis como suspeitos
de propagar a desordem, são os verdadeiros responsáveis por esta. Ao comentar At
17,6 em seus Comentários ao Novo Testamento, diz que

Tal é a condição do Evangelho, que os tumultos que Satanás suscita para


combate-lo lhe são imputados. Eis também qual a maldade orgulhosa dos
inimigos de Jesus Cristo, que lançam a culpa das perturbações sobre os
santos (...), e são eles que hão suscitado as perturbações.49

46
Idem.
47
Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, pp. 382-389.
48
Al cristianisimo Rey de Francia. In: CALVINO, Juan. Op. Cit., p. XXVIII.
49
apud BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 390.
A Igreja, através da denúncia e da resistência à ordem estabelecida,
acaba por contribuir com a restauração da sociedade. Pode contribuir se permanecer
fiel ao Evangelho, ou seja, seguir firme na sua missão de denunciar as injustiças,
muitas vezes promulgadas pela própria ordem civil, e colocando-se ao lado dos pobres
e dos fracos, defendendo-os dos abusos dos ricos e poderosos.

Segundo a “Doutrina Social” de Calvino, uma das maneiras que o cristão


consciente da responsabilidade que deriva de sua fé encontra para participar
ativamente da vida política da sociedade, salienta BIÉLER, é (...) participando
pessoalmente na ação política para aperfeiçoar cada vez mais a vida da sociedade
pelos meios legais e institucionais.50

Para Calvino, fé e política estão à serviço da instauração de uma nova


sociedade, baseada na justiça e na eqüidade. A fé cristã exige a participação ativa na
vida política como meio de se engajar na construção desta sociedade, visto que,
segundo CALVINO, Deus ama as virtudes políticas, (...) porque servem a um fim que
Ele aprova.51

Até aqui a pesquisa tem demonstrado que a fé e a política, segundo


Calvino, devem se complementar na missão outorgada por Deus à Igreja, isto é,
promover a transformação da sociedade injusta, visto que homens e mulheres que a
formam são pecadores, numa sociedade justa e solidária por meio da pregação e da
prática do Evangelho. No tópico que se segue, tentar-se-á demonstrar que fé e política
constituem os dois lados de uma mesma moeda, ou seja, consistem na prática religiosa
cristã que, fiel aos princípios do Evangelho, que tem por objetivo a construção de um
mundo mais humano.
3.2. Fé e Política em Calvino: a práxis religiosa como práxis política

50
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 28.
51
Cf. nota nº 43 deste trabalho.
Para Calvino, as virtudes políticas têm um fim aprovado por Deus, visto
que contribuem, em parceria com a Igreja, para a manutenção da justiça social. Sendo
que a fé cristã deve ser vivenciada em comunidade, as virtudes políticas são
desenvolvidas quando a fé cristã é praticada pela e na comunidade dos fiéis.

HELLER; FEHÉR afirmam que as virtudes são traços de caráter tidos


como exemplares por uma comunidade de pessoas, [e que] esses traços são
adquiridos pela prática.52 Na prática quotidiana da fé, os cristãos são convocados a
exercerem suas virtudes políticas, como qualquer cidadão, com o fim de promover a
construção ou a transformação da sociedade de acordo aos princípios do Evangelho.

Na prática da justiça, que contribui na construção ou transformação da


atual sociedade, os cristãos adquirem virtudes cívicas, pois, segundo HELLER; FEHÉR,
as virtudes cívicas estão relacionadas à esfera política, mas não são praticadas
exclusivamente nessa esfera.53 Na prática da fé cristã, os crentes também podem
desenvolver as virtudes cívicas necessárias à melhoria do todo social.

Pode-se perceber com muita clareza que fé e política não se excluem,


muito pelo contrário, complementam-se na prática cristã e cidadã que visa o
aperfeiçoamento da sociedade. Na prática da fé que não exclui a ação política, a
sociedade toda deve ser aperfeiçoada, não somente alguns grupos. HELLER; FEHÉR
enumeram as principais virtudes cívicas que podem colaborar para se alcançar esse
objetivo, a saber, tolerância radical, coragem cívica, solidariedade, justiça, disposição
para a comunicação racional e phronesis ou prudência.54 Segundo esses autores,
quaisquer outras virtudes que homens e mulheres desenvolvam além dessas virtudes
cívicas contribuem para a boa vida deles próprios. As virtudes cívicas contribuem para
a boa vida de todos.55

52
HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. – Tradução de Marcos Santarrita.
– 2ª edição, p. 117.
53
Idem. Ibidem, p. 127.
54
Cf. HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. Op. Cit., pp. 122 à 129.
55
HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. Op. Cit., p. 129.
Quando toda e qualquer prática objetiva a transformação da sociedade,
passa a ser práxis. FLORISTAN vai desenvolver o conceito de práxis como: 1. acción
creadora y no meramente reiterativa (...) 2. acción reflexiva y no exclusivamente
espontánea (...) 3. acción liberadora y de ningún modo alienante (...) 4. acción radical y
no meramente reformista56. A praxis é, segundo VÁZQUEZ, atividade material do
homem que transforma o mundo natural e social para fazer dêle um mundo humano. 57

VÁZQUEZ subdivide a práxis em quatro formas 58, a saber, práxis


produtiva, produção ou criação de obras de arte, atividade científica, sendo que estas
três primeiras são, nas palavras do mesmo autor, formas fundamentais (...) da praxis
quando a ação do homem se exerce mais ou menos imediatamente sôbre uma matéria
natural...59 A quarta e última forma é a práxis política, que se distingue das anteriores
pelo fato de ser o tipo de práxis em que o homem é sujeito e objeto dela; ou seja, praxis
na qual ele atua sôbre si mesmo.60

Os mesmos níveis onde pode se dar a práxis são propostos por


FLORISTAN, mas com tipologia diferente e com o acréscimo do que ele denomina
práxis simbólica ou de transformação dos símbolos.61

Para HELLER; FEHÉR a prática das virtudes cívicas propiciam uma


sociedade melhor para todos os seus membros. Essas virtudes pertencem à esfera do
político, o que significa dizer que a prática das virtudes cívicas se dá no âmbito social,
sendo então, na compreensão de FLORISTAN, práxis política. Segundo ele,
El propósito de toda recta práctica política (...) es conquistar o devolver a
las relaciones e instituciones sociales su plena humanidad o, lo que es

56
FLORISTAN, Casiano. Teologia Practica: teoria y práxis de la acción pastoral, pp. 179-180.
57
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Praxis, p. 3.
58
Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Op. Cit. , pp. 194-202.
59
Idem. Ibidem, p. 200.
60
Idem.
61
Cf. FLORISTAN, Casiano. Op. cit., pp. 181-182.
igual, su adecuación a las demandas no de un pequeño grupo, sino de la
totalidad de los hombres.62

O que é afirmado por FLORISTAN com relação à práxis política, pode ser
encontrado em Calvino com relação à resistência da Igreja à ordem estabelecida, ao
status quo. Segundo BIÉLER, em permanecendo fiel ao Evangelho e em se tornando,
por vezes, por este fato e sem o querer, um elemento de perturbação no mundo, não
cessa a Igreja de exercer seu ministério de regeneração da sociedade.63

Toda práxis é uma atividade ou ação humana. 64 Sendo a religião um


fenômeno humano, práxis religiosa cristã é, em última instância, ação humana
transformadora que se dá conforme a perspectiva cristã. Se se pode considerar, de
acordo com FLORISTAN, la tradición cristiana como transmisión de unas prácticas o
acciones65, praxis religiosa cristã se configura como ação, de mulheres e homens, que
tem como referência la memória cristiana (...) de unos hechos prototípicos,
simbolizados sacramentalmente, que se expresan históricamente. 66

Para BOFF, (...) a prática da fé e a prática política se realizam no mesmo


sujeito e nele se dão como um abraço estreito.67 Ao se engajar na transformação da
sociedade de acordo a perspectiva cristã, os cristãos desenvolvem sua fé política,
embora (...) a fé vive de sua verdade teológica (transcendente) e não de sua utilidade
política, por mais revolucionária que se queira.68

Ainda que a fé não se reduza à política, a política como exigência ética


decorre da fé de maneira absolutamente necessária.69 Para que a fé cristã seja vivida
na sua plenitude, se faz necessário o envolvimento do crente na esfera política, onde

62
apud FLORISTAN, Casiano. Op. Cit., p. 182.
63
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 393.
64
FLORISTAN, Casiano. Op. Cit., p. 179.
65
Id. Ibid., p. 182.
66
Idem.
67
BOFF, Clodovis. Fé e Política: Alguns Ajustes. In: Fé e política: fundamentos, p. 46.
68
Idem. Ibidem, p. 43.
69
BOFF, Clodovis. Op. cit., p. 48.
pode, ao mesmo tempo, desenvolver as virtudes cívicas e praticá-las, objetivando uma
sociedade mais justa e solidária.

Para Calvino, a fé cristã deve ser vivida comunitariamente. 70 Mas a


comunidade cristã, a Igreja, encontra-se inserida na sociedade humana, o que induz os
cristãos a vivenciarem a fé que professam no espaço público. CASTRO afirma que o
cristão também é um cidadão quando incorpora, em seu cotidiano, quer na esfera
privada, quer na pluralidade do espaço público, a vivência da fé cidadã.71

A vivência da fé cidadã ou fé política se dá quando os cristãos, fiéis aos


princípios do Evangelho, instauram a utopia 72 de uma sociedade mais justa, mais
fraterna, mais humana, através de uma práxis religiosa cristã que acontece no âmbito
social. Segundo CASTRO,

Repensar a cidade, como local prioritário da missão e da vivência de uma


fé cidadã, é um dos objetos (...) dos cristãos preocupados com a (re)
construção de cidades mais justas, solidárias, onde não haja seres
sobrantes, onde todos possam viver em condições mínimas de bem-estar-
social...73

Assim sendo, do exposto até aqui, pode-se depreender que a prática, a


vivência da fé cristã tem implicações políticas muito claras e evidentes. Os cristãos
estão engajados politicamente na construção de uma sociedade mais justa e humana
desde quando vivenciam sua fé de acordo aos princípios do Evangelho. No
desenvolvimento de sua missão profética, a Igreja leva seus partícipes ao
desenvolvimento de uma práxis religiosa cristã, onde fé e política complementam-se na
implantação do reino de Deus.

70
CALVINO, Juan. Institución de la Religión Cristiana. Libro IV, Capítulo XV, pp. 1035-1036.
71
CASTRO, Clovis Pinto de. Por uma Fé Cidadã: A dimensão pública da Igreja – fundamentos para uma
pastoral da cidadania, p. 114.
72
Utopia é aqui entendida como um “modelo de perfeição que nos permite ver o que está errado agora,
no presente.” (anotação de definição de Utopia dada pelo Prof. Dr. Jung Mo SUNG em sala de aula, em
12/08/2004).
73
CASTRO, Clovis Pinto de. Op. Cit., p. 119.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa, que se dá por hora encerrada, objetivou fazer um
levantamento, não extenuante, de como Calvino compreendia a relação entre fé e a
política no desenvolvimento de seu ministério pastoral na Genebra do século XVI.

Embora Calvino seja reconhecido como o “reformador de Genebra”,


muitas das transformações sociais, políticas e religiosas já estavam em andamento na
sociedade genebrina, como resultado de todo um contexto histórico e social que havia,
já a tempo, na Suíça, cunhado a personalidade revolucionária de seus habitantes.
Calvino, fruto que era deste contexto, bem como de sua formação humanista católica,
não escapou a esta personalidade revolucionária, e, após sua ruptura com a Igreja
católica romana, e conversão ao protestantismo reformado, passa a vivenciar a fé cristã
como resultado de seu humanismo amalgamado às exigências do Evangelho.

A vivência da fé cristã e reformada vai levar Calvino a desenvolver uma


doutrina ao mesmo tempo teológica e social, que vai fincar as bases de todo o seu
entendimento sobre a relação do ser humano com Deus e com seus semelhantes. Por
esta relação acontecer em sociedade, a Igreja e o Estado são, na compreensão de
Calvino, ferramentas instituídas por Deus para a promoção da justiça social. Nesta
relação entre a Igreja e o Estado, a primeira tem proeminência, visto ter uma missão
profética de denunciar o Estado quando este deixa de zelar pela justiça social, e resisti-
lo, quando estabelecer ou manter uma situação vigente que rompa com os ideais de
uma sociedade justa e fraterna, presentes no Evangelho.

Como cristão reformado, Calvino vai vivenciar a fé cristã como práxis. Dito
de outra maneira, a fé cristã, segundo a compreendia Calvino, deve ser vivida na
sociedade, nas relações entre os cidadãos. Estas relações, mediadas pelo Estado e
apregoadas e praticadas pela Igreja, devem conduzir à transformação da sociedade
toda vez que esta promover relações sociais injustas e iníquas. Desse modo, na
compreensão de Calvino, a fé cristã deve ser uma “fé política”, fé vivida e praticada no
âmbito social e para a transformação do mesmo quando se desviar das exigências do
Evangelho.
Conforme nos aponta a pesquisa que ora termina, a Igreja hodierna pode
ser interpelada pelas exigências da “Reforma Calvinista” no que diz respeito ao
cumprimento de sua missão profética. Uma má compreensão da relação entre a fé e a
política, tem levado a Igreja, através dos tempos, a trancafiar-se entre quatro paredes, a
esquecer-se de que, além de estar inserida em uma determinada sociedade, é formada
por parte de seus cidadãos. Entendida nos moldes da Reforma Calvinista, fé e política
estão entrelaçadas na missão profética da Igreja, visto que não poderia ser de outra
maneira, quando as exigências do Evangelho levam, forçosamente, os cristãos a
vivenciarem sua fé no espaço público. Assim, a prática da “fé política”, conforme o
“calvinismo”, é uma práxis religiosa cristã.

Referências Bibliográficas
BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino. – Tradução de A. Sapsezian. – São Paulo:
Edições Oikoumene, 1970, Capítulos I e IV.
___________. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. – Tradução de Waldyr Carvalho
Luz. – São Paulo: Casa Editora Presbiteriana S/C, 1990, pp. 221-236; 361-394.
BOFF, Clodovis. Fé e Política: Alguns Ajustes. In: Fé e política: fundamentos. Pedro A Ribeiro
de Oliveira, (Organizador). – Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004, pp. 29-65.
CALVINO, Juan. Institución de la Religión Cristiana. – Tradução de Buenos Aires: Nueva
Creación, 1988, Capítulos II e IV.
CASTRO, Clovis Pinto de . Por uma Fé Cidadã: A dimensão pública da Igreja – fundamentos
para uma pastoral da cidadania. São Bernardo do Campo: UMESP; São Paulo: Edições
Loyola, 2000, Capítulo 5.
HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. – Tradução de Marcos
Santarrita. – 2ª edição. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, Capítulo 6.
SILVESTRE, Armando Araújo. O direito de resistir ao Estado no pensamento de João Calvino.
São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2001, – (Tese de
Doutoramento), Capítulos 1, 3 e 4.

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................01

1. O Contexto Histórico e Social de Calvino....................................................................03


1.1. Genebra: organização político-administrativa..........................................................05

2. A “Doutrina Social” de Calvino....................................................................................07

3. As Conseqüências Práticas do “Humanismo Social” de Calvino................................12


3.1. As relações entre a Igreja e o Estado......................................................................12
3.2. Fé e política em Calvino: a práxis religiosa como práxis política.............................17

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................22

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................24

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
ABILIO TADEU ARRUDA

FÉ E POLÍTICA EM CALVINO: PRÁXIS RELIGIOSA CRISTÃ COMO


PRÁXIS POLÍTICA

São Bernardo do Campo - 2005


ABILIO TADEU ARRUDA

FÉ E POLÍTICA EM CALVINO: PRÁXIS RELIGIOSA CRISTÃ COMO


PRÁXIS POLÍTICA

Trabalho apresentado ao Prof. Dr. Ronaldo


Sathler-Rosa como cumprimento parcial das
exigências acadêmicas da disciplina
“Pastoral e Filosofia Política”.

São Bernardo do Campo - 2005

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