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às 15h32

‘The Social Dilemma’


alerta: redes sociais
podem levar à guerra
civil

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André Ferraz

No ano passado, eu e minha esposa, dois


cientistas da computação, começamos a chorar
depois de sair de um restaurante.

Havíamos passado o almoço sentados em frente


a duas mesas: numa estava um grupo de idosos,
na outra, um casal jovem com dois filhos
pequenos. Na mesa dos idosos, não havia
celulares à vista: todos conversavam e riam,
aproveitando a vida entre amigos e
efetivamente presentes no momento. Na mesa
da família, as duas crianças estavam
mergulhadas em seus jogos, e os pais não
desgrudavam dos celulares. Só ouvíamos a voz
do casal quando eles se dirigiam ao garçom. Foi
impossível acompanhar a cena — tão comum
hoje em dia — e não refletir sobre a promessa de
liberdade e a realidade de escravidão trazidas
pela tecnologia.

Agora, a Netflix traz um documentário que


ataca o problema de frente, sem meias palavras.
“The Social Dilemma” é narrado por Tristan
Harris, um ex-designer do Google.

O filme defende a tese de que as redes sociais —


originalmente criadas para nos deixar mais
informados, unidos e felizes — estão criando
uma sociedade desinformada, mais intolerante,
mais violenta, mais polarizada e mais triste.

Algumas das pessoas mais brilhantes do mundo


continuam trabalhando nesses projetos,
anestesiadas pelos salários e benefícios
exorbitantes oferecidos pelas empresas mais
lucrativas da história. Mas aos poucos, alguns
vem acordando, como os participantes do
documentário, que inclui investidores e ex-
executivos das maiores empresas de internet do
mundo, como Google e Facebook.

Todos preocupados com o futuro das máquinas


que ajudaram a criar.

De maneira lúdica, o documentário mostra


como as redes sociais e ferramentas de busca
criam modelos de aprendizagem de máquina
que analisam toda e qualquer informação sobre
seu comportamento online e offline para, dessa
forma, persuadir o usuário com o conteúdo que
mais vai engajá-lo e reter sua atenção. Tudo isso
para que você veja mais anúncios direcionados
e, consequentemente, essas empresas lucrem
mais. Somos meros produtos para os
verdadeiros clientes: os anunciantes.

Em “The Social Dilemma”, fica fácil entender


como nos tornamos escravos de uma
inteligência artificial que se alimenta dos dados
que nós, inocentemente, entregamos de peito
aberto, como a trilogia "The Matrix" previu 21
anos atrás.

As redes sociais detém nossas conversas


privadas, nosso histórico completo de
localização, trechos de áudio capturados pelo
microfone, histórico de buscas e de ligações
telefônicas, além de nosso nome, email e
telefone. Muitas dessas informações não são
necessárias para entregar o serviço proposto,
mas possuem extremo valor para a entrega de
publicidade individualmente segmentada, a
verdadeira causa que mantêm essas empresas
operando.

Os dados coletados não se restringem apenas ao


que acontece dentro dos sites e aplicativos
dessas empresas. Dada a hegemonia dos tags de
rastreamento, as Big Tech recebem dados de
navegação dos usuários de praticamente todos
os aplicativo e sites do mundo.

Para crescer a receita de publicidade, técnicas


de psicologia e neurociência são aplicadas para
utilizar esses dados de forma a nos prender o
maior tempo possível, vendo mais anúncios. A
princípio, nada foi construído com outro
interesse que não seja o de nos mostrar mais
publicidade.

Mas os mesmos algoritmos que criaram essas


máquinas de dinheiro geraram efeitos
colaterais. No Twitter, por exemplo, conteúdos
falsos engajam 6 vezes mais que conteúdos
verdadeiros, aumentando a receita de
publicidade junto com a recomendação de
notícias falsas. Conteúdos polêmicos e
extremistas engajam mais que visões de mundo
moderadas, aumentando a polarização e a
intolerância na sociedade.

Por trabalhar na indústria e conhecer a besta


por dentro, sinto dizer que o documentário
mostra apenas a ponta do iceberg.

Saúde mental

A ansiedade e a depressão são exacerbadas


pelas mídias digitais. As pessoas só mostram a
parte boa de suas vidas, como se ninguém
passasse por dificuldade ou tivesse um dia ruim.
Em muitos casos, até mesmo aquele momento
feliz é totalmente artificial e criado para engajar
seguidores. Além disso, fotos de pessoas que
atendem aos padrões estabelecidos de beleza
geram mais engajamento. As pessoas passam a
achar isso comum e aumentam o nível de
autocobrança pela busca da felicidade infinita e
de um padrão de beleza inatingível.

No âmbito dos negócios, profissionais bem


sucedidos expõem suas vidas de luxo, sem
mostrar o estresse e o esforço envolvidos em
suas profissões, fazendo as pessoas acreditarem
que tudo aquilo é fácil e levando seus
seguidores a quadros de ansiedade e depressão
em relação ao seu status na sociedade.

Todos nós, eu e você, famosos ou anônimos,


estamos viciados e deixando de viver nossas
próprias vidas para vivermos por aqueles que
nos assistem. Ainda assim, as gigantes da
internet se vangloriam por "melhorar a vida das
pessoas" quando estão, em grande medida,
esvaziando-as.

Que privacidade?

O cerne de todos os problemas expostos está na


falta de controle sobre a nossa privacidade
online. Hoje, para se conseguir um mínimo de
privacidade na internet, é necessário ter o
mesmo nível de conhecimento e paciência que
um hacker tem para invadir contas e cometer
fraudes online. Já para criar uma máquina de
vigilância em massa, basta saber um pouco de
programação.

Aos 19 anos, eu e meus colegas de faculdade


criamos uma tecnologia para coletar dados de
sensores de localização de mais de 60 milhões
de smartphones só no Brasil. Hoje, essa
tecnologia é usada principalmente para
aumentar a segurança das pessoas em
aplicativos financeiros, e os dados coletados são
anonimizados e encriptados para proteção de
seus donos, e não podem ser usados para
identificar diretamente uma pessoa, que
permanece anônima. No entanto, essa
tecnologia poderia facilmente ser usada para
vários outros fins questionáveis.

Eu e meus sócios já rejeitamos inúmeras ofertas


para vender os dados para diversas finalidades:
campanha política, uso militar, cobrança de
dívidas, entre outros. E por um motivo simples:
a privacidade das pessoas.

A maior parte desses negócios, apesar de


eticamente questionáveis, teriam operado
dentro da lei. Fornecedores têm até uma tabela:
por 40 centavos de dólar é possível comprar o
histórico de geolocalização do smartphone de
um indivíduo nos EUA. Optamos por não
operar nesse modelo por vontade própria, e não
por ter algum regulador nos obrigando a isso.

Esse fato mostra o quanto a sociedade está


vulnerável em relação à privacidade de seus
dados: dependemos dos valores éticos e morais
dos donos das empresas de tecnologia, locais ou
globais. Os dados das pessoas serão a nova
moeda dos próximos anos. Cabe a nós utilizá-
los para fins que preservem a identidade dos
donos de qualquer dispositivo, seja ele móvel
ou não.

Hoje, os CEOs das maiores empresas de


tecnologia do mundo são indiscutivelmente
mais poderosos do que qualquer chefe de
estado, mas sempre que podem se esquivam de
tal responsabilidade. Atualmente, as empresas
que mais investem em lobby no mundo não são
mais as do setor energético ou financeiro, e sim
as de tecnologia que tem o propósito de fazer
do mundo "um lugar melhor". Por que então
essas empresas benevolentes precisam investir
tanto em lobby?

As novas regulações de proteção de dados


ajudam, mas estão muito longe de resolver a
questão. As gigantes da internet, ironicamente,
foram algumas das maiores beneficiadas pelas
novas regulações como LGPD, GDPR e CCPA.
Além de nossa saúde mental, a liberdade
individual, a democracia e o mundo civilizado
como o conhecemos hoje estão em jogo.

Para onde vamos?

Em The Social Dilemma, fica claro que não há


nenhum incentivo econômico para as empresas
resolverem os problemas que estão ajudando a
criar, tais como as fake news, aumento das taxas
de depressão, ansiedade e suicídio, a
polarização, a interferência nas eleições...

No fim das contas, essas empresas não parecem


estar preocupadas em entregar informação de
melhor qualidade ou em fazer o mundo mais
aberto e conectado. O objetivo é apenas manter
você cada vez mais conectado ao conteúdo
publicitário que sutilmente aparece enquanto
uma tela substitui as verdadeiras conexões
sociais, que se perdem rapidamente.

As mídias digitais consomem o nosso cérebro.


Vivemos o apocalipse zumbi sem ao menos
perceber. Essas plataformas estão gerando cada
vez mais consequências no mundo real. A
mensagem final do documentário é clara: se
nada for feito, podemos viver uma guerra civil e
presenciar o fim da democracia por conta da
centralização de poder sobre os dados.

O futuro é ainda mais assustador. Ferramentas


mais imersivas, como os gadgets de realidade
virtual que prendem uma tela em frente aos
olhos, prometem nos isolar completamente do
mundo real. Tornamo-nos escravos desse caça-
níquel de atenção, enquanto a falsa sensação de
estarmos consumindo informação relevante
nos prende num mundo paralelo que aliena e
desumaniza. A mente humana não é capaz de
processar e guardar tanta informação, e essa
avalanche, trazida pelas plataformas está nos
impedindo de ter tempo para executar a mais
humana das ações: PENSAR!

O que nos resta, por hora, é o autocontrole.


Ainda dá tempo de mudar nossa relação com as
redes e recuperar a atenção e o tempo perdidos.
Parece irônico, mas utilizar apps que limitam o
tempo de uso pode ajudar, além de manter
dispositivos eletrônicos fora do quarto ao
dormir, mudar a rotina ao acordar e desativar
todas as notificações são algumas das
recomendações dadas pelos criadores das
ferramentas mais utilizadas atualmente.
Enquanto as regulações necessárias não nos
protegem das máquinas e as Big Tech focam
suas ações em monetização a qualquer custo, o
bom senso é uma qualidade necessária. Use-o
sem moderação.

André Ferraz é co-fundador da Incognia,


empresa que criou o conceito de biometria
comportamental de geolocalização, uma nova
forma de identidade digital que aumenta a
segurança, privacidade e conveniência para
usuários de aplicativos mobile.

Tags
Tags: Tecnologia & Internet, Filme

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