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ARTIGO ARTICLE
A perspectiva dos profissionais de saúde
sobre a promoção do brincar em hospitais
Abstract This study examines and analyzes the Resumo O presente artigo busca investigar e
limits and possibilities of the promoting play in analisar quais os limites e possibilidades da pro-
hospitals. This investigation can contribute to the moção do brincar em hospitais, na perspectiva dos
collective health field, as discussions about the views profissionais envolvidos nestas ações. Esta inves-
of healthcare practitioners on promoting play in tigação poderá contribuir para o campo da saúde
hospitals may well influence the development of coletiva, uma vez que o debate sobre a perspecti-
new childcare models. This discussion is grounded va dos profissionais de saúde acerca da promoção
on a qualitative approach to the dynamics of rela- do brincar nos hospitais influencia a construção
tionships and the role of play in a hospital setting. de novos modelos de atenção à saúde da criança.
Drawn from interviews with 33 practitioners from A discussão se ancora numa perspectiva de pes-
three hospitals located in different parts of Brazil, quisa qualitativa acerca da dinâmica das rela-
the data analysis is based on linking up issues that ções que ocorrem no espaço hospitalar e sobre o
emerge from their comments, together with theo- papel do brincar no hospital. Foram realizadas
retical references. In terms of findings, the acknowl- 33 entrevistas com profissionais de três hospitais,
edgment of this type of intervention by the institu- localizados em diferentes regiões do Brasil, que
tion could facilitate or complicate these actions. The realizam algum tipo de atividade lúdica. A aná-
conclusions clearly indicate that assigning play pro- lise dos dados baseia-se na articulação de temá-
motion the status of a therapeutic tool within a ticas que emergem das falas dos sujeitos com o
healthcare environment may subvert the rules and referencial teórico. Como resultado, ressalta-se o
hierarchies of the institution. reconhecimento deste tipo de intervenção por
parte da instituição, podendo facilitar ou dificul-
Key words Play, Hospitalized children, Health-
tar estas ações. Nas conclusões, destaca-se que
care practitioner
conferir à promoção do brincar o status de ins-
trumento terapêutico, no espaço da hospitaliza-
ção infantil, pode subverter as regras e as hierar-
quias da instituição hospitalar.
1
Instituto Fernandes Palavras-chave Brincar, Criança hospitalizada,
Figueira, Fiocruz. Av. Rui Profissionais de saúde
Barbosa 716/5º andar,
Flamengo. 22.250-020 Rio
de Janeiro RJ.
rmitre@iff.fiocruz.br
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Mitre, R. M. A. & Gomes, R.
um trabalho que tem forte apelo em termos de sionais não médicos contaminasse o profissional
apresentação externa e serve como propaganda da médico. Essa foi a estratégia e aparentemente deu
instituição. Este aspecto foi mais destacado de for- certo. (H2/8)
ma geral pelos gestores. No entanto, o fato de ter este tipo de expe-
Ainda nesse sentido, um grupo de profissio- riência de promoção do brincar já sistematizada
nais de uma mesma instituição colocou como o não impediu os profissionais de fazerem uma lei-
fato de o serviço já estar sistematizado facilitava a tura crítica sobre suas práticas contemporâneas.
promoção do brincar. Apontaram a importância Gostaríamos de destacar também que alguns
de o hospital fornecer infra-estrutura para a rea- profissionais, que estavam vinculados há menos
lização dessas ações, como as condições de traba- tempo a estas atividades, não identificaram difi-
lho, material disponível, espaço físico e inclusive culdades para desenvolverem suas propostas de
a remuneração contribuíam para que pudessem promoção do brincar. Não estamos com isso que-
realizar o que consideravam um bom trabalho e rendo dizer que as dificuldades relatadas só eram
se sentirem recompensados. apontadas em termos de passado remoto, mas que
Essa percepção provavelmente está diretamen- provavelmente alguns entrevistados ainda não ti-
te relacionada à história diferenciada do surgimen- vessem realizado uma reflexão crítica sobre essas
to das atividades lúdicas nesse hospital. Porém, em ações.
relação às condições para a utilização de ativida- Em relação às dificuldades apontadas pelos
des lúdicas, profissionais das outras instituições profissionais das três unidades para o desenvolvi-
citaram como facilidade a capacidade criativa para mento de suas ações, encontramos três núcleos de
driblarem a pouca verba disponível. Referiam-se sentido: (a) pouco reconhecimento e desvalori-
tanto à participação da comunidade, através de zação desse tipo de trabalho pelos outros profissi-
doações, trabalhos voluntários ou parcerias com onais; (b) necessidade de formação e permanên-
empresas e organizações não governamentais, cia da equipe; (c) antagonismo entre a esponta-
quanto à adaptação de materiais e situações. Des- neidade do brincar e o cuidado específico decor-
sa maneira, apesar das dificuldades, não achavam rente de certos quadros clínicos.
que a ausência de verba fosse um impeditivo para No primeiro núcleo de sentido, observamos
este tipo de ação. que a pouca cooperação por parte de alguns pro-
[...] a gente não vai esperar resolver todos os pro- fissionais em relação à promoção do brincar po-
blemas socioeconômicos e culturais do país para pen- deria denotar um não reconhecimento da tal ati-
sar que vai dar uma assistência mais humanizada. vidade como um instrumento terapêutico impor-
Isso também é uma forma de resistência, de colocar tante no cuidar da criança hospitalizada.
numa perspectiva de impossível. (H3/7) Parecia haver um sentimento de que a utiliza-
No entanto, o fato de alguns profissionais já ção do brincar fosse algo menos científico e exi-
participarem de outros projetos ou ações da ins- gisse menos conhecimento do que as outras téc-
tituição, que também utilizavam abordagens lú- nicas. Isso foi percebido na fala de diversos entre-
dicas, foi citado como um facilitador para o tra- vistados, como por exemplo:
balho. Nesse sentido, o Projeto Biblioteca Viva em [...] às vezes as outras pessoas olham pra gente e
Hospitais, do Ministério da Saúde, foi citado nas não sabem que na brincadeira a gente está embu-
três instituições como uma intervenção que sen- tindo uma idéia, uma técnica, um pensamento e um
sibilizava diferentes profissionais e marcava um objetivo. (H2/2)
diferencial no atendimento às crianças. Ou ainda, [a dificuldade] com os próprios pro-
Ficou bem delineado, através das entrevistas, fissionais de nível médio. Porque eles achavam: Ai!
como a evolução das ações no tempo permitia uma Para que brincar? – Ai! Para que tudo isso? – Ai!
mudança não só na percepção do profissional en- Que frescura! Mas, com o passar do tempo, eles fo-
volvido, com também da própria instituição. Os ram vendo que é importante. (H2/7)
profissionais vinculados a ações ou serviços im- Não podemos ignorar também que toda mu-
plantados há mais tempo relataram uma melho- dança gera resistências e, sem dúvida, a promo-
ria nas condições para a promoção do brincar. ção do brincar em ambientes hospitalares é uma
Creditaram essa mudança ao próprio desenvolvi- mudança. Ainda nesse sentido, nas falas transpa-
mento do trabalho. Porém, esse processo era, se- receu a dificuldade enfrentada por alguns profis-
gundo os entrevistados, lento e gradual. sionais devido à resistência de outros. Essas resis-
[...] primeiro envolver o profissional não médi- tências foram creditadas à dificuldade de aceita-
co que estava menos comprometido com a tecnolo- ção de novas propostas e maneiras de trabalhar.
gia e a seguir deixar que o envolvimento dos profis- Isso ocorria tanto pelo medo de alguns de perde-
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mente, como conseqüência o reconhecimento de atividades lúdicas variava de pessoa para pessoa,
tal ação como fundamental no processo de trata- dentro de cada hospital. Profissionais da mesma
mento no âmbito da hospitalização infantil. Isso instituição responderam por vezes de forma bas-
só ocorre se tal promoção for percebida instituci- tante diversa. O que alguns entrevistados consi-
onalmente e desenvolvida efetivamente como um deravam como facilidade outros apresentavam
recurso terapêutico. como dificuldade, mostrando a diversidade de
Um segundo núcleo de sentido encontrado percepções acerca da promoção do brincar. Ao
nos depoimentos foi a dificuldade de se traba- fazerem uma reflexão sobre o caminho percorri-
lhar em equipe, mesmo na promoção do brin- do por suas ações, os profissionais também indi-
car. Isso foi apontado em relação às diferenças de caram suas perspectivas para a utilização do lúdi-
opinião de cada profissional sobre o papel do co em hospitais.
brincar e as conseqüentes limitações de se traba-
lhar em grupo.
Ainda dentro desse núcleo de sentido, desta- Discussão
cou-se a dificuldade causada pela rotatividade dos
profissionais nas ações. Falaram do tempo que A promoção do brincar não ocorria de uma úni-
leva para sensibilizar e capacitar um profissional ca maneira nas instituições pesquisadas. É um erro
para utilizar o brincar como instrumento tera- querermos pensar num modelo único de utiliza-
pêutico. Apontaram que a falta de um conheci- ção de um elemento tão diversificado como a ati-
mento mais aprofundado, por parte do profissi- vidade lúdica, pois se corre o risco de perder toda
onal, sobre este tipo de intervenção pode com- a riqueza e complexidade que envolve as diferen-
prometer o trabalho. tes iniciativas e ações.
A necessidade de se ter uma equipe qualifica- Apesar de os hospitais da pesquisa serem con-
da para a promoção do brincar nos faz pensar que temporâneos e terem algumas características se-
tal promoção, embora vise o lúdico, não é uma melhantes, cada um apresentava uma história bas-
atividade simples. Como o brincar é universal e tante peculiar sobre o surgimento das atividades
faz parte do repertório do senso comum, muitas lúdicas em seus espaços. Essa história, além de re-
vezes as pessoas parecem achar que qualquer um, fletir o que cada instituição priorizava e valoriza-
com boa vontade e disposição, pode realizar essa va, não apenas no sentido do discurso, mas no re-
atividade. conhecimento objetivo através de investimentos
No entanto, os entrevistados mostraram que concretos, repercutia também na sistematização
utilizar o lúdico como recurso de intervenção re- das atividades lúdicas, tal qual pudemos observar.
quer uma formação específica, para que se possa, Uma constatação que particularmente nos
através da promoção do brincar, criar um espaço surpreendeu foi perceber a variedade de categori-
de desenvolvimento de vivências e mediação de as envolvidas com as atividades lúdicas, mostran-
situações desconhecidas através de elementos que do que a promoção do brincar no espaço da hos-
sejam do domínio da criança. pitalização de crianças envolvia profissionais vin-
Por fim, no terceiro núcleo de sentido, foi culados à área da saúde e das ciências humanas.
apontada uma questão bastante específica do uni- Essa pluralidade reforça a característica do lúdico
verso hospitalar. O cuidado constante que se deve como instrumento terapêutico interdisciplinar de
ter com a transmissão de determinadas doenças, intervenção na infância.
principalmente em relação a crianças com a imu- No entanto, nos hospitais brasileiros, de modo
nidade diminuída por conta da quimioterapia e geral, ainda é comum encontrarmos as atividades
como é duro para os profissionais terem que se- lúdicas sendo promovidas apenas por voluntári-
parar as crianças por isto. Essa situação gera para os, sem uma maior orientação ou formação, ou
os profissionais, por vezes, um conflito. Como o mesmo sem maiores vínculos com a instituição.
brincar é um espaço livre, voluntário, que permi- Não podemos ignorar que, se quisermos pro-
te a realização de escolhas e a interação com ou- duzir um impacto real, através da promoção do
tras crianças, contrapõem-se ao isolamento neces- brincar no espaço da hospitalização, essa ação tem
sário em alguns quadros clínicos. que ser estruturada e desenvolvida por profissio-
Em síntese, percebemos que surgiram, ainda nais inseridos nas equipes de saúde das institui-
que de forma diluída nos relatos, mais dificulda- ções. Toda a instituição deve estar envolvida nes-
des do que facilidades. Por outro lado, pelas falas se processo, do gestor ao auxiliar de enfermagem,
dos entrevistados, observamos que a percepção do para que se construa gradativamente um modelo
que tinha dificultado ou facilitado a promoção das de atendimento que cada vez mais contemple a
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Colaboradores
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Artigo apresentado em 16/02/2006
Aprovado em 07/07/2006
Versão final apresentada em 30/08/2006