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A presença do soldado naquele banco cinzento da praça já havia se tornado algo

corriqueiro nas manhãs de domingo. Ao fim da missa, metade da igreja voltava para
casa e a outra metade ia para lá: a única pracinha do bairro. Não havia só devotos,
qualquer um que quisesse passear — seja com seus filhos ou cachorro — acabava
passando pelo simplório parque. Era um lugar arejado, verde e acolhedor, onde todos
eram bem-vindos. Porém, com uma única exceção: o soldado sentado no banco.
O hábito do homem fardado já irritava os visitantes do parque, e, apesar de todos
os cuspes, xingamentos e pisões, o soldado continuava ali. Agora já se datava meses
desde que ele começou a sentar e observar todos da praça, principalmente as crianças. O
fardado só ficava lá sentado, imóvel, vendo as crianças brincarem. E não foi diferente
nesse domingo.
"Qual é o problema dele? Além de ser um assassino, claro." Julia ouviu uma
mãe desocupada perguntar pela milésima vez. A mulher mal voltara da missa e já estava
reclamando.
"Ai, amiga, ele olha as crianças, assim, sem falar com ninguém… É um
pervertido, só pode!" outra mãe concordou.
"Sim, amiga! Eu tentei denunciar ele, sabe, falar com o marido da Monique, que
é policial, mas não deu em nada. Precisamos espantar ele!"
"Mas já tentamos de tudo! Os meninos já xingaram, cuspiram, nada funciona!"
Júlia continuou ouvindo a conversa, pouco surpresa por descobrir que foram as
mulheres que bolaram os ataques.
"Não tentamos tudo ainda." Ah, não. Ela se escondeu. Conhecia essas mães o
suficiente para saber o que faltava.
As mulheres viraram com seus sorrisos falsos e chegaram até Julia em segundos.
Ela se sentiu como um coelho ferido cercado por coiotes: não havia escapatória.
— Oi, Julia! Tudo bem com você? — uma delas disse, se aproximando e a
beijando.
— Tudo, sim, e com você? — ela tentou sorrir de volta.
— Tudo perfeito! É que, sabe, eu e minha amiga estávamos conversando e
tivemos uma grande ideia!
Ah, Deus.
— É mesmo? — perguntou.
— Mesmo! — a outra mãe respondeu. Lá vinha. — Assim, achamos que você e
o soldado ali se dariam bem. Ele é gatinho, porque você não chama ele para sair?
— Claro, claro! — A outra encorajou. — E, sabe, um encontro no domingo é
super romântico! Passear, tomar um vinho, tão íntimo, uhm! — Julia se encolheu ao
ouvir o gritinho de animação da mulher. Ela nem sabia que uma adulta conseguia emitir
tal som.
— Então, vai lá, fala com ele. — Julia foi agarrada pelos ombros e empurrada na
direção do soldado. — Vai, vai.
E ela foi.
"Só um esquisito para espantar outro esquisito." Ela ouviu uma delas
murmurando.
Honestamente, para Julia, conversar com um homem visivelmente perturbado
parecia mais interessante do que ouvir a conversa de duas mulheres infelizes. Ela
realmente não achava que existia algo pior do que mãeslogeiras — como ela chamava
as mães que tinham filhos para conseguir seguidores. Por favor! Elas traziam as
crianças para a missa e para a praça só para tirar fotos — e o único problema do homem
ali era atrapalhar o enquadramento.
Julia se sentou a alguns centímetros do soldado.
— Bom dia. — ela o cumprimentou.
O militar demorou alguns segundos para perceber que ela falara com ele.
— Bom dia, senhora. — respondeu com a voz grave e sintética.
Ela poderia dizer que ele era um robô se não fosse por suas mãos trêmulas.
Aquela parecia ser a única falha na aparência do homem. Entre a postura ereta, barba
feita, cabelo penteado e farda impecável: lá estavam as mãos tremendo.
— Você sabe que não é bem-vindo aqui, não é?
— Sim, senhora.
— E por que continua aqui?
— Eu sou militar, senhora. Não sou bem-vindo em lugar nenhum.
Julia pensou em seu país por um instante.
— É, tem razão. — ela disse, desistindo de fitá-lo ao perceber que sua atenção
não seria retribuída. Sendo assim, ela decidiu seguir o olhar dele: as crianças jogando
bola e correndo na quadra da pracinha. Elas pareciam genuinamente felizes. Bom,
alguém naquela praça precisava ser genuíno.
— Por que você está olhando para elas?
— Hm?
— As crianças, por que você não para de olhar para elas?
O homem fechou as mãos. Olha só, o robô reagia! Julia tentou manter-se
imparcial e voltou a encarar os pequenos.
— Eu gosto.
— Que legal! Estou sentada com um pedófilo. — disse, apenas para ver se
conseguia mais uma reação.
Ele não se mexeu.
— Não sou pedófilo, senhora.
— Por que você gosta, então?
Os punhos do homem estremeceram. Julia notou que ofensas não o afetavam,
perguntas sim. Ela decidiu continuar perguntando.
— Olha, moço, vou ter que falar com a polícia se voc...
— Elas lembram minha família. — ele interrompeu. A voz grave agora soara
fraca e ferida. Quem era o coelho ferido agora?
— Por quê? — ela questionou novamente. Os olhos do soldado caíram para o
chão.
— Não precisa fazer isso, pode deixar que eu vou embora.
— Não, não, não. — Julia o impediu, segurando sua mão. O homem congelou.
— Desculpe se passei a impressão errada, mas eu quero conversar, de verdade.
Ele a fitou, como se tentasse descobrir se ela mentia ou não.
— Por quê? — foi a vez dele perguntar.
— Porque estamos atrapalhando os posts delas. — Julia acenou para as mães
segurando seus celulares na beira da quadra. Elas fizeram uma careta, então sorriram e
acenaram de volta. Outro storie arruinado. — E porque você parece um indivíduo um
tanto quanto esquisito.
— Sinto muito.
— Foi um elogio. — Julia esclareceu. — Mas, por favor, me explique como um
monte de pirralhos lembra sua família. Você tem filhos?
Ele abriu a boca e hesitou.
— Mais ou menos.
— Como assim?
— Eu tinha irmãos. Irmãos bem pequenos e mais novos. — “tinha”. Julia
engoliu em seco, mas manteve sua postura:
— E eles gostavam de jogar bola?
— Sim. — ele murmurou. — Íamos na pracinha quase todo dia.
— O que aconteceu com eles?
Os punhos tremeram outra vez. Os olhos dele se ergueram um pouco.
— Você não tem muito tato, tem?
— Negativo, senhor! — Julia forçou uma voz grave, sorrindo quando o homem
se virou para ela. Ele não reagiu à brincadeira, apenas a encarou. — Se não quiser é só
não responder.
— Por que responderia? Para você e suas amigas debocharem da minha família?
— Uou, uou, ‘pera aí. — Julia riu alto. — Você acha que elas são minhas
amigas?
Ele hesitou por um instante.

— Elas são da igreja. Vocês não são todos amigos?

— Não é bem assim que funciona.

O olhar do soldado mudou, finalmente expressando algo que Julia pudesse


compreender. Ele não era um coelho ferido, era um homem perdido.

— É por isso que você está aqui. — ela pensou alto. — Não é pelas crianças, é
pela igreja.

Não fora uma pergunta, mas o homem a respondeu mesmo assim:

— Sim. —disse timidamente.

— Mas se é pela igreja, por que você fica sentado aqui?

— Porque eu—
— Amiga! — uma voz estridente fez os dois pularem no banco. — Como os
pombinhos ‘tão indo?’ Não me diga que ele falou “não” para você!

— O quê? — o homem questionou. Julia levantou e abriu um sorriso imenso


para a dupla de mães que se aproximava, tentando escondê-las do soldado.

— Não, não é isso, meninas. Eu não vou chamar ele—

— O quê? Por quê? — uma delas interrompeu.

— Jesus, Maria e José. — outra suspirou. — Ele é pedófilo mesmo, não é?

Julia sacudiu a cabeça desesperadamente, sentindo a cor esvair de seu rosto


quando as feições das mulheres se transformaram.

— Eu sabia, seu— a mãe saltou sobre ele no banco, pegando a gola de sua
jaqueta e cuspindo em sua face: — Assassino fascista de merda, fica longe dos meus
filhos!

Julia observou o ataque da mulher enquanto segurava a outra mãe: seus olhos se
arregalaram e sua boca despencou em uma feição de desespero. Olhar a mãelogeira
agarrando o soldado foi como observar uma barragem quebrar — tudo o que viesse
adiante estava condenado à destruição. Em poucos segundos os homens da praça
cercaram o banco e partiram para cima do fardado. Ele sequer teve a chance de falar: os
xingamentos e empurrões eram tantos que ele mal conseguira levantar do banco.

E o pior — as pessoas que o molestavam eram as mesmas que, a menos de uma


hora atrás, pediam perdão ao Pai Nosso — e Julia, a única que realmente conversara
com o soldado, não era forte o suficiente para parar os “irmãos”. No entanto, isso não a
impedia de ajudar. Ela estava prestes a alcançar o braço do militar e puxá-lo para fora
de todo aquele furdunço quando todos se calaram.

De um minuto para outro, as acusações, dedadas e puxões cessaram. À distância,


de roupa preta, colar de ouro e retângulo branco na gola, o padre se aproximava.

— Paz do Senhor, meus queridos. — ele cumprimentou e sorriu de maneira


doce. — Podem me dizer o que está acontecendo?
Gradualmente, o círculo de pessoas se abriu até o centro, deixando o sacerdote
de frente para o soldado e para Julia, que segurava sua mão.

— Tudo bem, minha jovem? — ele perguntou à Julia, que soltou a mão do
fardado e o fitou. A aflição dela era evidente ao padre, mas aquela era uma pergunta que
apenas o soldado devia responder. Mesmo sendo observado por, pelo o que parecia ser,
sua única colega, ele permaneceu em silêncio.

A experiência o ensinara a não reagir em situações assim. Ainda que muitos


compatriotas seus discordassem, manter-se impassível era a forma mais fácil de dissipar
todo aquele ambiente de raiva. O padre, porém, pareceu não entender, passando então a
olhar seus fiéis, que desapareceram pouco a pouco.

No final, nem mesmo as mães ficaram — apenas Julia permaneceu.

— Vamos conversar um pouco, sim? — o padre o chamou para sentar-se


novamente no banco da praça. Ele aceitou, mas Julia continuou de pé. Por um instante,
eles não pareceram perceber e continuaram: — Desculpe por isso, meu filho. Você sabe
como as pessoas são hoje em dia, e, infelizmente, algumas de nós ainda têm dificuldade
em não julgar.

— Tudo bem, senhor. — o soldado enfim respondeu, voltando a sua postura de


antes: ereta, fria e voltada para as crianças. O padre continuou o encarando, esperando
que falasse mais alguma coisa.

— Ele quer conversar, senhor. — Julia disparou, surpresa pelo mover da própria
boca. O soldado virou-se subitamente para ela e o padre sorriu.

— Parece que vocês se dão bem. — ele comentou quando ela retribuiu o olhar
feio do homem com uma careta. — Pelo menos uma deu bom exemplo, eu espero.

— Sim, senhor. — o soldado afirmou e Julia sorriu, triunfante. Ele a fitou de


soslaio e acrescentou: — À sua própria maneira.

O sorriso dela murchou.


— Sabe, padre, é por isso que ele está aqui: ele quer conversar. — ela aproveitou
a ligeira receptividade do militar para tentar ajudá-lo. — O que acha de irmos para o seu
gabinete?

— Acho uma boa ideia, minha querida, mas vamos ficar aqui um pouco. — ele
se ajeitou ao lado do soldado e Julia, obedecendo ao padre, os acompanhou. À princípio,
o fardado não gostou de continuar ali, sob tantos olhares acusadores. Afinal, depois do
constrangimento que passara, ele só queria fugir. Porém, uma voz dentro de si o fizera
ficar, e as seguintes palavras do padre reacenderam sua esperança:

— Meus irmãos e irmãs precisam aprender que você é tão digno de amor quanto
nós.

Naquele momento, Julia pôde jurar: uma lágrima escorreu pelo rosto do homem.
E ele, finalmente, começou a falar…

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