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Kucinski
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TESTEMUNHO
Como afirmado por Jeane Marie Gagnebin, em seu livro História e narração em
Walter Benjamim (2009) quando retoma ainda na introdução o conceito de História e o papel
legitimador da testemunha:
Percebe-se então que a narrativa não importa apenas para a constituição do sujeito,
mas do corpo social de forma geral. O que confere o papel importante ao outro, que muitas
vezes ouviu ou viu para testemunhar, já que para aqueles que vivem a experiência do trauma
de forma integral com todas as suas consequências não o podem fazê-lo, pois a estes não
restam nem mesmo a língua para comunicar a catástrofe.
Testemunhar, portanto, é produzir significado, como afirmado por Ana Costa em seu
livro Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão de experiência (2001). O que
está diretamente ligado ao papel do narrador e na constituição da experiência, que só pode se
concretizar a partir da linguagem, que tem como ponto de partida o resto, pois é a partir dele
que se origina a linguagem do trauma.
O RESTO
O resto, confere aquilo que após a experiência não pode ser concertado, remontado ou
reaproveitado de forma alguma. Pois, se considerarmos o conceito semântico de resto - aquilo
que permanece- e pensando na experiência traumática sofrida pelo sujeito, seja ela nos
campos de concentração nazistas, ou no período da ditadura militar brasileira, o que resta é
apenas a pulsão de narrar o que não pode ser significado. Giorgio Agamben em seu livro O
que resta de Auchwitz (2008) a respeito do resto, afirma que, a língua é constituída a partir do
resto em “oposição às classificações exaustivas de arquivo”.
Portanto o relato da experiência está além da verdade histórica dos fatos, pois não se
poderá a partir dela imitar a realidade dos fatos, mas sim construir uma possível narrativa do
trauma. O relato do trauma só pode ser elaborado a partir da rememoração e do testemunho
estabelecido entre um sujeito e o outro, que a partir da narrativa da experiência produziram.
Para Benjamin, o grande problema estava em identificar esse papel da história, mais do que
preservação de acontecimentos, mas uma prática narrativa que é capaz de transformar, não só
a escrita como o corpo.
EXPERIÊNCIA
Pois, assim como foi privado de sua biografia, o homem contemporâneo foi
expropriado de sua experiência: aliás, a incapacidade de fazer e transmitir
experiências talvez seja um dos poucos dados certos de que se disponha
sobre si mesmo. Benjamin, já que em 1933 havia diagnosticado com
precisão está << pobreza de experiência>> da época moderna, indicava sua
catástrofe da guerra mundial, de cujos campos de batalha << a gente voltava
emudecida ...não mais rica, porém mais pobre de experiências partilháveis...
(AGAMBEM, 2008, p.20)
Benjamin utiliza ainda como exemplo da escassez das narrativas a incapacidade de ex-
combatentes em produzirem relatos acerca do que viveram em guerra, nas trincheiras. No
Brasil não é diferente quando se diz respeito a Ditadura Militar. Pouco se explora, se fala, e se
testemunha ou rememora acerca deste assunto, o que está totalmente associado ao Estado
totalitário brasileiro.
K., o pai do romance K. relato de uma busca (2016), é um judeu, que se refugiou no
Brasil. Escritor da literatura iídiche e comerciante, ele conta então por meio de um narrador
em terceira pessoa a sua busca pela filha, Ana Rosa, professora do Instituto de Química da
USP, que desaparece juntamente com o até então desconhecido marido Wilson Silva, durante
os anos amargos do período da Ditadura Militar brasileira. Inicialmente, o narrador apresenta
a perplexidade e o sentimento de culpa de K. por desconhecer fatos relevantes sobre a vida da
filha, como por exemplo, seu casamento com um não judeu (gói), sua vida de militância e de
engajamentos, o seu lar, enfim, o pai se culpa e se questiona por desconhecer a vida paralela
levada pela filha.
O narrador da novela (termo utilizado pelo autor para se referir à própria obra) que na
maior parte do tempo está em terceira pessoa, relata a busca de K., o pai, nos remete
institivamente ao Josef. K, de O Processo (2005), de Kafka, ambos narradores relatam suas
buscas: o pai busca por respostas, pelo paradeiro e pelo corpo da filha, enquanto Josef. K,
busca por respostas e inocência de um crime que desconhece.
Portanto, nem K., de Kucinski, e nem mesmo Josef. K, de Kafka, conseguem romper e
penetrar o Sistema.
O Estado não tem rosto nem sentimentos, é opaco e perverso. Sua única
fresta é a corrupção. Mas às vezes até essa se fecha por razões superiores. E
então o Estado se torna maligno em dobro, pela crueldade e por ser
inatingível. Isso ele sabia muito bem. (KUCINSKI, 2016, p. 19)
Desta forma, a literatura tem um papel importante no que diz respeito aos
acontecimentos históricos, não que ela ou até mesmo a própria História tenham por obrigação
contar a história como foi, mas no que diz respeito a literatura é indispensável narrar as
catástrofes e acontecimentos, mesmo através da ficção, pois se conta aquilo que permanece e
não o que foi esquecido:
Portanto, por se tratar de uma obra de autoficção há um alto teor testemunhal, para
explicar o que vem a ser isso, vamos nos reportar ao conceito abordado por Márcio Seligmann
Silva, em História, memória, literatura (2003), que conceitua literatura de testemunho, o teor
testemunhal e o testimonio.
Leyla Perrone-Moisés (2016) conceitua a autoficção não como um novo gênero, mas
como uma versão moderna de um gênero antigo, como, por exemplo, o romance em terceira
pessoa. E ainda afirma acerca da autoficção que não se trata de uma literatura narcisista e
individualista, e que tem seu valor no âmbito literário. Complementa que em toda narrativa,
mesmo aquela se pretende manter-se fiel aos fatos, existe algo de ficcional, o que nos remete
à afirmação de Roland Barthes de que o real não pode ser representado, mas apenas
demonstrado.
Diante disso, Leyla Perrone-Moisés (2016) afirma que a autoficção envolve questões
éticas, já que é impossível narrar a própria vida sem incluir outras pessoas. Desta forma, a
autoficção de Bernardo Kucinski, aborda uma temática ignorada por muitos autores
brasileiros, e tratada por muitos como algo delicado, pois dar voz para os oprimidos é algo
que literatura, pode e deve fazer, “O real precisa ser ficcionado para ser pensado”, como
afirmado por Jacques Rancière (2005), e a Ditadura Militar brasileira é ficcionada por
Kucinski, através de um drama familiar, para romper então com a tirania do Estado de
exceção que utiliza imposição do silêncio como ferramenta de manutenção da ordem. Em
relação à literatura produzida no Brasil, o escritor Ricardo Lísias, em seu artigo Dez
fragmentos sobre a literatura contemporânea no Brasil e na Argentina ou de como os patetas
sempre adoram o discurso do poder (2005), afirma:
Sabemos que algumas obras rompem com esse silêncio, como, por exemplo, a obra
Zero (1980), de Ignácio de Loyola Brandão, que até em sua forma fragmentada representa o
caos e a repressão sofrido.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura Trad.Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COSTA, Ana. Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2001.
KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
KUCINSKI, Bernardo. K. relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. Uma batalha secular. In: _____. Os nomes da história: ensaio de
poética do saber. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p.1-14.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Introdução. In:_____(Org.) História, memória, literatura.
Campinas (SP): Editora da Unicamp,2003, p.7-44