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Oralidade, voz e memória nas

reminiscências de Um Rio Chamado


Tempo, Uma Casa Chamada Terra,
de Mia Couto
Orality, Voice, and Memory in the Reminiscences
of A River Called Time, A House Called Land,
By Mia Couto
Resumo Este ensaio pretende examinar a noção de experiência e a figu-
ra do narrador nas entrelinhas da obra Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra, de Mia Couto (2003). A partir do discurso memorial circuns-
crito pelo olhar de dentro (camponês) e pelo olhar de fora (marinheiro)
e, na contramão dos adventos que marcaram o apagamento do narrar,
busca-se, aqui, o retorno ao primado do discurso da oralidade, tanto na
perspectiva da voz social quanto na de registro conformado pela matriz
impressa. Ao acolher o texto oral, ambos os discursos deixam ver a voz
do narrador, sábio conselheiro capaz de assegurar o diálogo entre o novo
e o tradicional mediante troca de experiências transmitidas entre as ge- Dalva de Souza Lobo
rações. Para tanto, o ensaio fundamenta-se no conceito de experiência, Universidade Federal de
de Walter Benjamin, sobretudo em O narrador (BENJAMIN, 1987a), tendo Lavras (UFLA)
em vista os olhares acima mencionados. Os conceitos de voz, oralidade e dalva.lobo@ded.ufla.br
memória serão examinados à luz do pesquisador da voz e das poéticas do
Medievo, Paul Zumthor e de Roland Barthes, este último especificamente
para examinar a inscrição da voz como escritura e alteridade. Em Henri
Bergson será discutida a relação entre corpo, memória e experiência. Com
isso, busca-se estabelecer perspectivas outras sobre o que se pode com-
preender na atualidade como experiência, voz e memória na dimensão do
corpo, tanto no seu sentido físico quanto no social.
Palavras-chave: voz; memória; experiência; narrador

Abstract This paper intends to examine the notion of experience and


the figure of the narrator between the lines of A river called Time, a house
called Land, by Mia Couto. From the memorial speech circumscribed by
the peasant’s inside look and the sailor’s outside look and against the
advents that marked the narrator’s deletion, we seek to return to the
primacy of the oral discourse, either through the perspective of social
voice or through the resigned register of printed matrix. In welcoming
the oral text, both discourses allow the narrator’s voice to be heard – the
wise counselor who is able to ensure the dialogue between the new and
the traditional through the exchange of experiences passed on through
generations. Therefore this paper is based on Walter Benjamin’s concept
of experience in “The Narrator”. Voice, orality and memory will be exam-
ined in the light of the voice and poetry of the Middle Ages’ researcher
Paul Zumthor, Roland Barthes’ ideas about voice as scripture and other-
ness, and Henri Bergson’s reflections on body, memory and experience.
Thus we seek to establish other perspectives on experience, voice and
memory in the extent of the body, both the physical and the social one.
Keywords: voice; memory; experience; narrator.
Algumas considerações iniciais Na Grécia Antiga e no Medievo, por
exemplo, o papel de narrador coube aos
Experiência é matéria da tradição, rapsodos, poetas-intérpretes inspirados por
tanto na vida privada quanto na Mnemosyne, deusa grega da reminiscência,
pública. aos aedos, poetas-cantores e compositores,
Walter Benjamin e ao vates, poeta-profeta. Todos eles exerce-
ram uma função social importante para a co-
No dinâmico continuum entre a voz e munidade, já que suas palavras, transmitidas
a memória, as experiências vividas são per- oralmente de geração em geração, serviram
petuadas e atualizadas pelo contar que, ora para aplacar a angústia diante do efêmero da
recriando, ora mantendo o forte lastro com a existência humana.
tradição, tece o tempo mesmo. São as muitas Apesar de ser possível saber como al-
e diferentes camadas erigidas entre a voz e a guns povos antigos escreviam, a exemplo dos
memória, camadas estas que se inscrevem e se sumérios, não é possível, ao menos até o mo-
esvaem do corpo em forma de tremores, suo- mento, saber como falavam. Isso reitera dois
res, apupos e outros sentimentos e sensações, aspectos importantes para a história humana:
e para o qual retornam como novas vivências. a oralidade como forma de registro e a pre-
Esse acervo memorial é constituído na sença de seu porta-voz, o narrador.
urdidura das experiências do passado e do Outro ponto importante é o advento da
presente e, quando tem na figura do narrador imprensa, que modificou a forma de registro.
seu porta-voz, tais experiências assumem o Aos poucos, a hegemonia do registro escrito
caráter de aconselhamento e de pedagogia, acabou por empobrecer o intercâmbio oral;
pois as palavras enunciadas por ele, o narra- o individual sobrepôs-se ao coletivo, com-
dor, tratam, não apenas do relato alheio, mas prometendo o intercâmbio de experiências
também da incorporação dessa vivência junto que, se antes eram transmitidas de geração
às dele; daí que durante muito tempo esse ar- em geração, passaram a uma leitura e inter-
tífice da palavra foi considerado um sábio. pretação isoladas.
Além da imprensa, outro fator con-
O narrador retira da experiência o tribuiu para essa postura de isolamento: a
que ele conta: sua própria experi- guerra. Segundo o filósofo Walter Benjamin,
ência ou a relatada pelos outros. E “nunca houve experiências mais radicalmen-
incorpora as coisas narradas à ex- te desmoralizadas que a experiência estraté-
periência dos seus ouvintes. […]. gica pela guerra de trincheiras” (BENJAMIN,
O narrador figura entre os mestres 1987a, p. 198). Ela minou a possibilidade de
e os sábios. Ele sabe dar conselhos: intercambiar afetos, experiências e lembran-
não para alguns casos, como o ças. Homens mutilados, física, psicológica e
provérbio, mas para muitos casos, moralmente, com seus corpos frágeis, retor-
como o sábio. (BENJAMIN, 1987a, naram calados pelos sons dos estilhaços de
p. 201, 221). bombas. Esses mesmos homens, mais tarde,
foram calados também pelos registros im-
É por meio desse artesão que as palavras pressos em livros que apenas enunciavam de
presentificam e atualizam, em certa medida, longe o que fora a guerra e a experiência nos
os saberes, os costumes e as tradições que campos de batalha.
acabam por preservar e manter a coerência
social do grupo. Em algumas sociedades de No final da guerra, observou-se que
cultura predominantemente oral, a figura do os combatentes voltavam mudos
narrador tradicional assumiu um papel quase do campo de batalha não mais ri-
místico, tal seu poder diante da comunidade. cos, e sim mais pobres em experiên-

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cia comunicável. E o que se difundiu reflexão, tendo em vista o diálogo entre o
dez anos depois, na enxurrada de novo e os fatos da tradição de cultura oral que
livros sobre a guerra, nada tinha norteiam a narrativa enunciada pelo persona-
em comum com uma experiência gem Marianinho, estudante universitário que,
transmitida de boca em boca. (BEN- após anos de ausência, retorna à ilha de Luar-
JAMIN, 1987a, p. 198). -do-Chão para enterrar o avô Dito Mariano.
Sua ausência e retorno mesclam-se, contem-
Some-se à guerra a crescente crise eco- plando o olhar do marinheiro e o do campo-
nômica e o resultado será o apagamento do nês, mencionados por Walter Benjamin como
desejo de contar e de intercambiar experiên- estilos de narrar.
cias, que dependem de um tempo que não Para examinar o entrelaçamento entre
pertence mais ao sujeito, mas, sim, à dinâmica passado e presente e sua relação com a me-
social submetida ao progresso econômico ca- mória, a qual se constitui como experiência
pitalizado pelo poder de uma indústria bélica e saber na voz do narrador, alguns fragmen-
e cultural. tos da obra de Mia Couto serão analisados à
Adventos como esses marcaram o dis- luz do conceito de experiência apresentado
tanciamento da figura tradicional do narra- em O narrador, de Walter Benjamin (1987a).
dor e a troca de experiências constitutivas do Já as categorias de voz, oralidade e memória
acervo memorial que foi cedendo espaço ao serão examinadas à luz dos estudos de Paul
imediato, reduzindo “a comunicabilidade da Zumthor, pesquisador da voz e das poéticas
experiência à medida que a arte de narrar se do Medievo, e do filósofo Henri Bergson, es-
extinguia” (BENJAMIN, 1987a, p. 207). É nes- pecificamente sobre a memória. Com esse
se contexto que se pretende examinar a força exercício, busca-se formular algumas hipóte-
da experiência narrativa e a figura do narrador ses para estabelecer um diálogo produtivo
e busca, na inquietação causada pelo apaga- que aponte novos olhares sobre experiência,
mento desse último no decorrer da história, voz e memória na dimensão do corpo, tanto
formular algumas hipóteses visando refletir no seu sentido físico quanto no social.
sobre como tal apagamento relaciona-se com
o esfacelamento da experiência e, nesse viés, Memória: reminiscências entre um
propõe-se, ainda, a reflexão acerca da possi- rio de tempos e uma casa de palavras
bilidade de retomar a oralidade como forma
de registro pleno das experiências que cons- A terra tem suas páginas:
tituem a memória e que têm no narrador sua os caminhos.
figura maior. Vô Dito Mariano
Assim, considerando que a tecnologia,
a guerra e as forças produtivas levaram ao Uma breve história
apagamento do narrador tradicional, quer-se, O romance Um rio chamado tempo, uma
aqui, na contramão desses fenômenos, exami- casa chamada terra (COUTO, 2003) metafori-
nar como a matriz impressa, ao conformar o za o embate entre tradição e modernidade
texto oral, deixa ver a voz do narrador emer- mediante a narrativa do personagem Mariani-
gindo das entrelinhas e do entrelaçado dos nho, que retorna à terra natal, Luar-do-Chão,
olhares do marinheiro (olhar de fora) e do cam- para cuidar da cerimônia de sepultamento do
ponês (olhar de dentro), ambos fundamentais avô, Dito Mariano. O trajeto de volta à ilha,
na construção das memórias a partir das quais de onde se afastara há muito para estudar,
é possível compreender a sociedade. é marcado pelo discurso memorial, persona-
Nessa perspectiva, o romance Um rio gem que, ao receber visitas e cartas do supos-
chamado tempo, uma casa chamada terra, de to “além”, vai reconstruindo sua história e,
Mia Couto (2003), mostra-se profícuo para consequentemente, sua identidade, já diluída

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nos costumes da cidade grande, separada da na memória coletiva, e pelo diálogo entre o
Ilha pelo rio Madzimi. atual e o novo, por meio do qual a experiên-
Tempo e espaço também são funda- cia torna-se, além de intercâmbio de saberes,
mentais para compreender a relação entre uma estética do viver e do contar.
presente e passado – olhar de entro e de fora Na tessitura de Um rio chamado tempo,
–, configurados nos diálogos entre o narra- uma casa chamada terra, a retomada da expe-
dor-personagem, Marianinho, os vivos e os riência e a preservação da memória ocorrem
mortos, estes últimos por meio das cartas-fala quando Marianinho, estudante de medicina
e da voz do pseudomorto avô, Dito Mariano. que vive na “cidade grande”, retorna à Nyum-
O tempo, configurado pela confirmação, ba-Kaya, seu lar na ilha de Luar-do-Chão, para
ou não, da morte do avô clinicamente morto, o enterro do avô Dito Mariano.
porém não de fato, soma-se aos espaços, so- O nome Nyumba-Kaya configura o diá-
bretudo à ilha, Luar-do-Chão, e a casa na qual logo entre vida e morte, passado e presente
será realizado o funeral. Aos poucos, tempo e memória e intercâmbio de experiências,
e espaço articulam-se por meio dos breves posto que Nyumba significa casa no norte e
bilhetes que se transformam nas cartas re- Kaya, casa no sul da ilha. A união entre as duas
cebidas do “além”. Dessa forma, erige-se o palavras aponta para a morada absoluta dos
aspecto místico e mítico da narrativa, sobre vivos e dos antepassados, e perdê-la é per-
a qual se assenta a reconfiguração identitá- der memória e experiência, tal qual ocorreu
ria do personagem-narrador, cujas memórias com o pós-guerra no cenário histórico. Daí a
apontam para a relevância do intercâmbio de importância do retorno de Marianinho e das
experiências até então adormecidas. cartas-falas que receberá no tempo em que
Resgatadas, ora pelos diálogos com a nela habitar.
personagem Miserinha no barco que o leva Ao jovem caberá o cerimonial de en-
de volta a Luar-do-Chão, ora com os tios e terro do avô e, nesse contexto, o retorno às
ora com os mortos e com o avô, por meio das origens das quais parecia ter se afastado. No
cartas, tais experiências vão reconstruindo a entanto, no hiato entre a vida e a morte de
história do próprio Marianinho. Assim, entre- Dito Mariano, Marianinho passa a receber visi-
laçando presente e passado e confirmando-se tas e cartas de antepassados, inclusive as dita-
a morte do avô e o cumprimento do ritual fu- das pelo avô pseudomorto, mediante as quais
neral, o personagem compreende, finalmen- acaba por retomar à própria história.
te, quão importante é manter a tradição do As cartas pareceriam bizarras, não fosse
narrar como meio de preservação da história o fato de que em Luar-do-Chão convivem o
de si mesmo e de sua terra. místico e a tradição; assim, a visita dos espí-
ritos é tão comum quanto a dos vivos, tendo
A arte de narrar em vista que “encheram a terra de frontei-
Segundo Walter Benjamin, narrar é per- ras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só
mitir ao outro completar o que ouviu, pois, há duas nações – a dos vivos e a dos mortos”
dessa forma, perpetuam-se, por meio da co- (COUTO, 2003, p. 13), ou seja, a vida e a morte
municação oral, as memórias dos antepas- não são tratadas de forma dicotômica, pois,
sados, cujas palavras e experiências tecem a para os viventes da ilha: “A morte é como o
vida mesma. Além disso, ao completar o que umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a
ouviu, o ouvinte torna-se, também ele, um lembrança de uma anterior existência” (COU-
narrador, e assim mantém-se o lastro me- TO, 2003, p. 15). Essa convivência mítica com
morial entre as gerações. Todavia, o acervo a morte chega à personificação, como aponta
memorial faz-se também pelo esquecimento, Marianinho durante o trajeto de volta à ilha
uma estratégia da memória que permite res- – “Não é senão a morte que me vai ditando
significar e preservar as experiências vividas suas ordens” (COUTO, 2003, p. 15).

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Assim, as cartas enviadas pelo avô pseu- história. Além disso, a miséria e decadência de
domorto afiguram-se como expressão de au- Luar-do-Chão e a ameaça de perder Nyumba-
toridade máxima por parte daquele cuja vida -Kaya apontam para o medo de que a memó-
está se esvaindo e que, por isso mesmo, deve ria e a tradição se percam; daí que receber as
perpetuar sua memória para que se preserve cartas-narrativas ou cartas-falas do avô e dos
sua história e a cultura de Luar-do-Chão. Es- antepassados reafirma a importância de inter-
crever cartas às portas da morte remete ao câmbio de experiências.
que Walter Benjamin considera o modo mais A partir do entrelaçamento do olhar de
efetivo de transmitir saberes a outrem, pois dentro (Marianinho mesmo, o avô e os ante-
“a morte é a sanção de tudo o que o narrador passados) e o olhar de fora (Marianinho quan-
pode contar. É da morte que ele deriva sua do na cidade) confirma-se, também, por meio
autoridade” (BENJAMIN, 1987a, p. 201), tal das memórias, a voz, tanto no sentido sonoro
qual ocorre com as cartas enviadas pelo avô quanto no social.
ao neto.
O diálogo via cartas em Nyumba-Kaya é A bordo do barco que me leva à
fundamental para a preservação da tradição ilha de Luar-do-Chão. Por motivo de
e do intercâmbio de experiências, pois “a ex- falecimento, abandono a cidade e
periência que passa de pessoa a pessoa é a faço a viagem […]. Cruzo o rio, é já
fonte a que recorreram todos os narradores” quase noite. Vejo esse poente como
(BENJAMIN, 1987a, p. 200), daí a importância o desbotar do último sol. A voz an-
das memórias, sem as quais o ato de narrar tiga do Avô parece dizer-me: depois
poderia se esvaziar, na medida em que não deste poente não haverá mais dia.
transmitisse um saber. E o gesto de Mariano se aponta no
Se, para Benjamin, a memória é involun- horizonte. (COUTO, 2003, p. 15).
tária e ligada à experiência, sendo, portanto,
uma forma de registro por meio do ato de nar- Voltar a Luar-do-Chão representa um
rar, para o filósofo Henri Bergson, a memória rito de passagem, de retorno à memória dos
parece, em um primeiro momento, estar mais espíritos que lá povoam e à própria história do
ligada ao intelecto e, portanto, à vivência. Tal personagem, tecida na vida do outro e, nessa
fato poderia parecer uma contradição entre perspectiva, implica o redimensionamento
ambos os pensadores, todavia, para Bergson, da voz, na perspectiva de Paul Zumthor, se-
ao ser trazida à luz da consciência, essa mes- gundo o qual “voz é palavra sem palavras, de-
ma vivência soma-se ao corpo, tornando-se purada, fio vocal que fragilmente nos liga ao
percepção e sensação, e, dessa forma, em vez Único” (ZUMTHOR, 2010, p. 12). E, em relação
de automatismo, torna-se experiência, à me- à memória, cabe dizer que “na voz, a palavra
dida que vem carregada dos sentidos que lhe enuncia-se como lembrança, memória-em-ato
são atribuídos e que se somam às experiências de um contato inicial, na aurora de toda vida.
passadas. “De fato, não há percepção que não […] A memória dissimula as marcas do que se
esteja impregnada de lembranças. Aos dados perdeu e que afeta irremediavelmente a lin-
imediatos e presentes de nossos sentidos mis- guagem e o tempo” (ZUMTHOR, 2010, p. 13).
turamos milhares de detalhes de nossa experi- É nesse sentido que Marianinho apropria-
ência passada” (BERGSON, 2006, p. 86). -se da voz. À medida que ouve a história do
Ao expressar que “morto amado nun- outro à qual se tece a sua, ele se torna a voz
ca mais para de morrer” (COUTO, 2003, p. narradora que deve preservar a tradição, re-
15), Marianinho revela o quanto ele é atingi- presentada pela voz do coletivo, pois “quando
do pela experiência da morte/vida e, nesse a voz é instrumento da tradição, o que nela do-
aspecto, a situação moribunda do avô repre- mina é variação, nunca um produto plenamen-
senta a (re)organização e perpetuação de sua te constituído e acabado” (ZUMTHOR, 2010, p.

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15), exatamente como acontece quando Ma- preencher com suas caligrafias.
rianinho “ouve” as cartas às quais deve com- Como se diz aqui: feridas da boca se
pletar por não estarem ainda acabadas. curam com a própria saliva. Esse é
Nota-se, assim, que a vivência na cidade o serviço que vamos cumprir você e
é suplantada pela potência soberana da tradi- eu, de um e outro lado das palavras.
ção resgatada (oralidade) pela voz da comuni- Eu dou as vozes, você dá a escritu-
dade (ligação ao único), retomando o caráter ra. Para salvarmos Luar-do-Chão, o
reflexivo e coletivo da experiência por meio lugar onde ainda vamos nascendo.
do ato de narrar, em cujas palavras reside a E salvarmos nossa família, que é o
experiência a ser transmitida ou, como apon- lugar onde somos eternos. (COU-
ta Benjamin, a sabedoria, já que “o conselho TO, 2003, p. 64-65).
tecido na substância viva da existência tem
um nome: sabedoria […] e incorpora as coi- O diálogo entre avô e neto contempla o
sas narradas à experiência dos seus ouvintes” entrelaçamento do presente com o passado
(BENJAMIN,1987a, p. 213). É nessa perspec- e o renascer da experiência transmitida como
tiva que se constroem as cartas que levarão conselho do sábio, corroborando a figura do
Marianinho a desvelar sua história e levar narrador em Benjamin.
adiante a tradição de seu povo.
O narrador é um homem que sabe
O que dizem as cartas dar conselhos. […] O narrador reti-
Chama atenção, em um primeiro mo- ra da experiência o que ele conta. O
mento, as marcas de oralidade nas cartas re- conselho tecido na substância viva
cebidas por Marianinho, as quais expressam da existência tem um nome: sabe-
um diálogo que ultrapassa o registro escrito, doria. […] e incorpora as coisas nar-
tornando-se uma escritura movente, ou seja, radas à experiência dos seus ouvin-
uma fala na qual estão inscritos, além do cor- tes. (BENJAMIN, 1987a, p. 213).
po e da voz, os códigos sociais e culturais, ou,
como aponta o filósofo Roland Barthes, uma Não apenas o conselheiro, mas o sábio,
escritura, pois “a escritura é, com efeito, em também avulta na figura do avô Dito Mariano,
todos os níveis, a fala de um outro” (BARTHES, ao pedir a Marianinho que ensine o pai “Fula-
2007, p. 19), e, nesse sentido, a voz, como es- no Malta” a ser pai. Vê-se, então, retomando
critura na qual se inscreve a alteridade, inde- Benjamin, a autoridade máxima que deriva da
pende de uma única forma de registro; daí os morte e sanciona tudo o que o narrador tem
escritos configurarem-se como fala. para contar.

Essas cartas Mariano não são escri- Comece em seu pai, Fulano Malta.
tos. São falas. […] Você não veio à Você nunca lhe ensinou modos de
ilha para comparecer perante um ele ser pai. Entre no seu coração.
funeral. Você cruzou essas águas Entenda aquela rezinguice dele,
por motivo de um nascimento. Para amoleça os medos dele. […] Você
colocar o nosso mundo no devido despontou-se, saiu da ilha, atraves-
lugar. Não veio salvar o morto. Veio sou a fronteira do mundo. […] An-
salvar a vida, a nossa vida. Todos tes seu pai estava bem consigo mes-
aqui estão morrendo não por do- mo, aceitava o tamanho que você
ença, mas por desmérito do viver. lhe dava. Desde a sua partida ele se
É por isso que visitará estas cartas tornou um estranho, alheio e distan-
e encontrará não a folha escrita, te. Você agora deve ensinar seu pai.
mas um vazio que você mesmo irá Lhe mostre agora que você ainda é

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filho. Para que ele não tenha medo são de saberes e das palavras do sábio sobre
de ser pai. Para que ele perca um o qual nos fala Benjamin, pois à instância da
medo maior ainda: o de deixar de morte, Dito Mariano revela ao neto seu ver-
ser seu pai. (COUTO, 2003, p. 66-67). dadeiro grau de parentesco, pedindo o com-
prometimento deste último para com o povo
Dentre as cartas recebidas, destaca-se a por meio das cartas que devem ser escritas
última, na qual avô Dito Mariano revela ser o por ele, Marianinho, a quem caberá restituir
pai de Marianinho. Nesse momento, passado e preservar a tradição e a voz dos habitantes
e presente entrelaçam-se, levando o jovem de Nyumba-Kaya e, nesse contexto, a própria
às origens e, mais do que isso, à responsabi- ilha de Luar-do-Chão.
lidade de preservar sua história, bem como a
da terra, da casa e das pessoas, tanto as vivas Alguma consideração final
quanto as mortas. Retomando nossa inquietação inicial
Ao deixar de sentir-se estranho em sua sobre a potência da oralidade como força de
própria terra, como ocorrera no início da via- expressão narrativa, e, nesse contexto, a hi-
gem para Luar-do-Chão, Marianinho efetiva pótese sobre o quanto a matriz impressa, ao
o diálogo entre o novo/moderno e a tradição conformar o registro oral, deixa ver a voz do
por meio do intercâmbio de experiências que narrador e a construção de um memorial de
envolvem os vivos e os antepassados, cujas experiências intercambiáveis, notamos que
memórias são continuamente retomadas e re- em Um rio chamado tempo, uma casa cha-
afirmadas, como aponta o fragmento abaixo. mada terra esses elementos apresentam-se
no diálogo entre o novo e o tradicional. Por
Desculpe sua tia. Mas eu careço de meio das experiências trocadas entre Maria-
lhe fazer uma revelação. Pedi a Ma- ninho, os antepassados e, sobretudo, o avô,
ravilhosa que se fingisse de grávida. soma-se o encontro entre o olhar de dentro
Seu pai sorria todo saciado, e até e o de fora.
ela acreditava estar dando guarida Em princípio, Marianinho representa,
a um novo rebento. Quando nasceu à luz de Benjamin, o olhar de fora, daquele
trouxemos o bebê para Nyumba- que retorna do estrangeiro. No entanto, ao
-Kaya. […] Com o tempo o menino conviver com o avô pseudomorto e com ou-
cresceu, foi ganhando feições. Ad- tros, tanto os vivos quanto os mortos, ele
mirança pediu que eu deixasse esse vai, paulatinamente, se apropriando da pró-
seu filho sair da Ilha. Esse menino pria história e, dessa forma, o olhar vai sendo
foi mandado para a cidade. Lá se fez substituído pelo olhar de dentro (não no sen-
homem. Esse menino é você, Ma- tido daquele que nunca saiu, mas no sentido
riano. Admirança é sua mãe.[…]. daquele que volta à própria origem). Quanto
Quase nem me resta coragem para ao avô, ele representa o olhar de dentro, da-
confessar. Mas sei que devo fazer, quele que, sem jamais ter saído, traçou um
colocar tudo isso em letra que seja percurso capaz de atingir a todos e, por meio
sua. Só assim lavarei sombras da das experiências, retomar os laços familiares
minha existência. E prossigo na or- com os vivos e com os mortos, laços esses ex-
dem dos tempos. (COUTO, 2003, p tremamente caros ao povo de Luar-do-Chão,
.234-236). pois, para eles, “a terra tem suas páginas, os
caminhos” (COUTO, 2003, p. 20). Nota-se, en-
O diálogo e o intercâmbio de experiência tão, o quanto as reminiscências da memória
configura a retomada efetiva das origens por fundam a cadeia da tradição, como aponta
parte de Marianinho, que assumirá o legado Benjamin, entrelaçando as gerações por meio
deixado pelo “avô-pai”. Trata-se da transmis- dos saberes transmitidos.

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Nesse contexto, a força do artífice das nosso corpo nas experiências, possibilitando
palavras, o narrador, no romance de Mia Cou- novas percepções sobre o que vimos com-
to, aponta para a retomada da experiência a preendendo por história e sobre a maneira
partir do intercâmbio das memórias presentes como vimos completando-a (e/ou queremos
nas cartas, ou melhor, nas cartas-falas envia- completá-la).
das a Marianinho, as quais corroboram a orali- Sempre pode haver, no espaço do ime-
dade na matriz impressa e, nesse contexto, a diato da informação, aquilo em que em nos-
voz como signo em torno do qual os habitan- sas memórias soma-se para além de simples
tes de Nyumba-Kaya e, consequentemente, enunciados, deixando ver que, mesmo em
os de Luar-do-Chão redimensionam seus laços tempos de saturação tecnológica, podemos
culturais, sociais e familiares, possibilitando a escapar ao pragmatismo e ao racionalismo
sedimentação dos laços entre o novo/moder- redutor e ter experiências capazes de trans-
no e o tradicional, confirmando “a voz sem formar nossos conhecimentos em saberes
palavras que nega toda redundância na busca que o narrar presentifica mediante a voz e a
das origens” (ZUMTHOR, 2010, p. 15). memória. Entrelaçando presente e passado,
Isso mostra que o retorno às narrativas podemos, então, amenizar a angústia diante
de tradição oral é uma forma de reinscrever da finitude da existência.

Referências

BARTHES, R. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. Tradução de Mario La-
ranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção Roland Barthes).
BARTHES, R. Crítica e Verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva,
2007. (Coleção Debates).
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BERGSON, H. Memória e vida. Textos escolhidos por Gilles Deleuze. Tradução de Claudia Berli-
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COUTO, M. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Le-
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ZUMTHOR, P. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lucia Diniz
Pochat e Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

Dados autorais:

Dalva de Souza Lobo


Professora Adjunta na Universidade Federal de Lavras (UFLA) Depto. de Educação
Mestrado em Letras-Literatura (2006) pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM). Doutorado em Letras-Literatura (2012) pela Universidade Presbiteria-
na Mackenzie (UPM). Pós-doutorado em Letras-Literatura (2013)
pela universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Recebido: 05/01/2015
Aprovado: 19/05/2015

Impulso, Piracicaba • 25(62), 89-96, jan.-abr. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
96
DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n62p89-96

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