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A EXPERIÊNCIA NA NARRATIVA LITERÁRIA E NO CINEMA DO

DIRETOR/NARRADOR MARTIN SCORSESE

Fernando Franqueiro Gomes1

RESUMO
Pensando que a narrativa é uma forma de prover e trocar experiência entre os
indivíduos, este trabalho busca refletir o pensamento de Walter Benjamin acerca do
narrador e de como as narrativas estão atreladas à experiência do narrador e como
proporcionarão outras experiências para os ouvintes e estabelecer um diálogo entre as
narrativas literárias com o cinema, através da obra do diretor Martin Scorsese, que não
só usa da experiência de vida para contar histórias, mas também, da experiência com a
adaptação literária.
Palavras-chave: Martin Scorsese. Experiência. Narrativa. Literatura. Cinema.

Introdução
Dentre os diversos hábitos intrínsecos dos indivíduos, um dos mais interessantes,
ao mesmo tempo em que também é um dos mais antigos, é o de contar histórias.
Independente de qual seja a cultura ou sociedade, a arte de contar histórias faz parte do
cotidiano dos indivíduos que está sempre narrando acontecimentos, sejam aqueles
vividos por ele, assistidos ou que lhe foram relatados. O ato de contar histórias é o que
dá origem à narrativa, que hoje, está presente na arte de diversos modos, seja na
literatura, na música, ou no cinema, por exemplo. Em cada uma dessas diferentes
expressões de arte estão presentes diferentes expressões da narrativa, do ato de contar
histórias.
As narrativas que cercam o cotidiano dos indivíduos, e que se manifestam
através de filmes, romances, contos, crônicas, ou simples relatos orais, surgem a partir
das experiências que já foram vivenciadas por esses indivíduos. Desse modo é
interessante pensar a voz que relata essas experiências, o narrador, a sua experiência que
se tornará uma história, e que, ao ser contada, alcançará outros indivíduos e promoverá
novas experiências, criando uma espécie de ciclo. Pensando que histórias a serem
contadas podem ser consequências e percepções da experiência de um indivíduo, torna-
se interessante pensar a figura do narrador em duas artes que funcionam como narrativa:
a literatura e o cinema.

1
Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
fernandofranq@hotmail.com
Na literatura, um autor pode narras histórias que, de alguma forma, surgiram
através das experiências obtidas por ele, proporcionando uma nova experiência para
aqueles que terão acesso a essa narrativa. No cinema, muitos filmes são realizados a
partir de adaptações de histórias, primeiramente, contadas pela literatura, e que são
recriadas dentro da gramática cinematográfica através do olhar e experiência de um
diretor. Esse diretor de cinema, ao ter contato com essa literatura que se transformará
em material audiovisual, seguindo os caminhos advindos de sua visão, também será
guiado pelas suas experiências, inclusive com o material literário, para realizar sua obra.
Dentre centenas de diretores de cinema que experimentaram as adaptações literárias em
sua filmografia, é pertinente destacar o trabalho de Martin Scorsese, que servirá como
objeto deste trabalho para pensar como a experiência age no ato de recriar uma narrativa
verbal ou oral em um sistema audiovisual, tornando o diretor de cinema em uma espécie
de narrador, pois ele também é um contador de histórias.
Para adentrar neste universo das experiências que gerarão uma literatura, e em
seguida um filme, é preciso fazer uma breve contextualização a respeito do ato de
contar histórias e a sua relação com as experiências do indivíduo.

A narrativa e a experiência

Dentre os mais variados comentários sobre a relação entre experiência e o ato de


contar histórias, é notável o texto de Walter Benjamin intitulado O Narrador. O autor
toma como ponto de partida a obra do escritor Nikolai Leskov e promove uma grande
defesa da tradição oral de contar histórias, defendendo que é através dessa prática que
acontece uma troca de experiências de indivíduos, pois as próprias histórias que estão
sendo contadas, já surgiram a partir de uma experiência. Sobre isso, o autor comenta
que “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os
narradores.” (BENJAMIN, 1995, p. 198). No entanto, o autor percebe que a narrativa
oral está caindo em certo desuso, refletindo sobre o desaparecimento do narrador, pois
com o passar do tempo se torna cada vez mais raro pessoas que saibam narrar uma
história.
Escrito em 1936, Benjamin se aproveita do contexto histórico da época, em que
a sociedade passava por experiências de guerra, e toma os homens enviados em combate
como exemplo para ilustrar sua sensação de que os narradores estão sumindo. O autor
comenta que a esperança que emanava na sociedade daquele tempo se dissipava nos
campos de guerra, pois os soldados retornavam sem contar suas histórias, ou seja, as
experiências vividas durante a guerra por esses soldados ao invés de se tornarem
histórias relatadas para outras pessoas, se transformava em um silêncio. Segundo o
autor:

as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão


caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal
para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da
noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas
também a do mundo ético sofreram transformações que antes não
julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um
processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os
combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e
sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez
anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em
comum com uma experiência transmitida de boca em boca
(BENJAMIN, 1995, p. 198).

No texto de Benjamin, as melhores narrativas escritas são aquelas que se


aproximam ao máximo das histórias contadas na tradição oral e, os seus narradores
podem ser classificados em dois vieses diferentes: o da figura de um marinheiro
comerciante, que viaja para diferentes lugares, conhecendo novos mundos e
vivenciando as mais variadas experiências, e o da figura do camponês sedentário, que
nunca saiu de sua região, mas é um grande conhecedor daquele espaço em que vive, e
viveu suas experiências ali. O que fica evidente no pensamento de Benjamin é que a
experiência é a base sólida para contar histórias, e a tradição oral seria o jeito mais puro
de se contar uma narrativa, permitindo que houvesse uma troca entre o narrador e o
ouvinte, inclusive pelo fato do narrador ter um jeito natural de contar aquela história,
que, assim, se torna mais memorável e marcante para o ouvinte, que a guardará na
memória com maior facilidade. De certa forma, ao ouvir uma história, o ouvinte
imparcial passa por uma nova experiência, assimilando o que está sendo narrado,
memorizando o relato e, assim, podendo, posteriormente, recontar aquela história para
outros ouvintes dentro da sua maneira.
Contudo, Benjamin se preocupa com o fim da narrativa, pois observa que com o
surgimento de novas formas de narrativa, como o romance, afasta a tradição oral e,
consequentemente, não traz novas experiências para os leitores do mesmo jeito que a
narrativa oral fazia com os ouvintes.
O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa –
contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da
tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da
narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria
experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas
à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem
do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não
recebe conselhos nem sabe dá-los (BENJAMIN, 1995, p. 201).

O autor observa que o romance está atrelado ao livro, e não ao relato oral, e o
excesso de informação esmiuçada que ele traz para o leitor acaba por, de certa forma,
romper com a experiência.
A questão da informação como um empecilho para a experiência, também é explorada
pelo autor Jorge Larrosa Bondía no seu texto “Notas sobre a experiência e o saber da
experiência”. Para o autor, a experiência é aquele momento ou aspecto que toca um
indivíduo, contudo, atualmente, cada vez mais as experiências são escassas, pois com o
excesso de informação, dificilmente, algo fica no indivíduo, tudo passa.

Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais


rara. Em primeiro lugar pelo excesso de informação. A informação
não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a
experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma
antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em
estar informados, e toda a retórica destinada a constituirmos como
sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa
que cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da
informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação,
o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe
mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela
informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”,
mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe
aconteça. (BONDÍA, 2002, p. 22).

Essa noção de informação como algo que chega “pronto” para o indivíduo, de
certa forma, recai sobre a gramática do cinema, que, diferente da literatura, trabalha
com um produto finalizado (o filme) sendo exibido para o consumo do espectador.
Enquanto a literatura trabalha com um estímulo direto da conotação, o cinema,
essencialmente, não opera nessa esfera, pois o espectador não precisa imaginar os
elementos que compõem a estrutura da narrativa que será contada ali (personagens,
espaços, vozes etc.). Ao mesmo tempo, o cinema é uma forma de narrativa que desde
sua origem, sempre se relacionou com a literatura, e quando um diretor decide contar
uma história, primeiramente narrada na literatura, ele está aproveitando sua experiência
com aquele material, para recontar sua história dentro do seu universo fílmico. O diretor
norte americano Martin Scorsese em vários momentos de sua filmografia, recriou
narrativas literárias em forma de filme, e, mesmo que usando dos artifícios da gramática
audiovisual, o diretor também é um contador de histórias, logo, pode ser lido como um
narrador.
A obra de Martin Scorsese e sua experiência como contador de histórias

Descendente de sicilianos, o diretor Martin Scorsese nasceu em Nova Iorque, em


1943, na vizinhança do Queens, se mudando ainda criança para o bairro de ítalo-
americanos, Little Italy. O é considerado um dos grandes e mais visionários diretores da
história do cinema. Com sua filmografia, o diretor não só conseguiu alcançar fama
internacional, mas também aclamação tanto pela crítica especializada quanto pelo
público, sendo considerado junto a outros nomes como os de Brian DePalma, Francis
Ford Coppola, Steven Spielberg e George Lucas, um dos diretores da geração sexo,
drogas e rock and roll que foram responsáveis por reinventar o modo de se fazer
cinema em Hollywood, a partir do fim da década de 1960 (BISKIND, 2009). Ao longo
de sua carreira, o diretor também recebeu diversos prêmios importantes da indústria
cinematográfica pela sua obra, vencendo o Oscar de Melhor Diretor em 2007 por Os
Infiltrados, e tendo outras 13 indicações, sendo as últimas duas em 2020, como Melhor
Diretor e Melhor Filme, por O Irlandês.
O diretor tem uma vasta filmografia que explora diferentes gêneros como
suspense, drama, ação, romance, musical, aventura, comédia e terror. Apesar de ter
ganhado fama dirigindo diversos roteiros originais, Martin Scorsese trouxe às telas do
cinema, diversas recriações de histórias da literatura como Touro Indomável (1980), A
Última Tentação de Cristo (1988), Os Bons Companheiros (1990), A Época da
Inocência (1993), Cassino (1995), A Invenção de Hugo Cabret (2012), Silêncio (2015)
e o mais recente, O Irlandês (2019). A partir disso, é interessante pensar a experiência
do cineasta com a literatura e também, como as suas experiências dialogam com a sua
maneira de contar histórias.

As experiências de Martin Scorsese


Martin Scorsese cresceu na vizinhança de Little Italy, em Nova Iorque, tendo
contato com um ambiente cercado de violência, machismo e as disputas entre gangues
que dominavam o bairro. Sua família era toda descendente de sicilianos, de formação
católica, e isso são dois aspectos que marcaram demais a vivência de Scorsese: sua
relação com os descendentes de italiano e a religião, inclusive, quando criança, antes de
mergulhar no universo da narrativa cinematográfica, o diretor tinha o desejo de se tornar
padre. Quando criança, o cinema despertou fascínio de Scorsese quando ele passava
horas em frente à TV de sua casa, assistindo filmes clássicos e filmes europeus.
A experiência de Scorsese, essa sua vivência, será uma marca bastante presente
nas suas narrativas fílmicas, pois o diretor irá explorar todos esses elementos que
cercaram sua criação nas histórias que irá contar. Logo no primeiro filme de grande
repercussão do diretor, Caminhos Perigosos (1971), é contada a história de um
criminoso que, junto com o seu grupo de amigos golpistas, decidem derrubar o chefe
para quem trabalha e assumir os negócios ilegais que circulam na vizinhança de Little
Italy. Essa narrativa é advinda da própria experiência de Martin Scorsese, que foi criado
em meio a esse ambiente, vendo diariamente essas histórias acontecerem. Além disso, o
filme também inclui conflitos religiosos, que dialogam diretamente com a experiência
de Scorsese de afastamento da crença católica, a partir de sua adolescência.
Na filmografia do diretor, filmes que influenciaram seu trabalho, seja pela
questão estética (o noir, por exemplo, ou o neorrealismo italiano) ou pela pura
admiração do diretor por aquela obra, também manifestam a experiência que ele teve
com esses materiais que continham aspectos que o marcaram e deixaram algo em sua
memória, o tocando a ponto de buscar recriar aquilo e transpor essa experiência para os
espectadores. A experiência de Martin Scorsese não se manifesta apenas nas histórias
que ele conta em roteiros originais, mas todas as escolhas do diretor de adaptações
literárias dialogam, de alguma forma, com os aspectos da sua vida, que estão sempre à
mostra em seus filmes, seja religião a violência urbana nos bairros de Nova Iorque, a
sua relação com a história do cinema, entre outros aspectos. A recriação dessas histórias
literárias é consequência da experiência do diretor com aquele material, e como aquelas
histórias dialogam com a sua própria vida.
Retomando o comentário que Walter Benjamin (xxxx) faz a respeito dos tipos de
narrador, é interessante observar que ele percebe Nicolai Leskov como uma figura que
se encaixa nas duas definições de narrador, pois ele tinha vasto conhecimento do espaço
onde passou sua vida, ao mesmo tempo em que, tinha grande conhecimento de outras
culturas, locais, e acontecimentos, pois, sendo um funcionário russo de uma empresa
inglesa, isso permitia que ele viajasse para outros territórios de domínio czarista, e
adquirisse diversas e enriquecedoras experiências. Da mesma forma, o diretor Martin
Scorsese, também pode ser lido como esse narrador que se encaixa nas duas definições.
Ao mesmo tempo, em que o diretor possui conhecimento e experiência, por exemplo,
com o catolicismo, ou com o ambiente violento das gangues de Nova Iorque, onde ele
viveu toda a infância e adolescência, o diretor também teve a oportunidade de conhecer
vários países, e culturas, através da sua experiência como cineasta, que o proporcionou
visitar diferentes países.
Essa experiência do diretor é explorada no seu documentário pessoal My Voyage
to Italy, lançado em 1999, onde ele faz um percurso pelos filmes do neorrealismo
italiano que tanto o influenciaram em sua filmografia, estabelecendo um diálogo com a
sua própria história de vida, já que seus avós vieram da Sicília para os Estados Unidos, e
levaram muito da cultura italiana para o convívio do diretor. No documentário, Scorsese
conta para o espectador a história de sua família, costurando essa narrativa com a forma
pela qual isso se manifesta em seus filmes.

A experiência na literatura e no cinema

É dito por Walter Benjamin, que o romance, de certa forma é o responsável pelo
desaparecimento da experiência da narrativa, no entanto, o romance também
proporciona novas experiências, assim como a tradição oral. Um leitor, ao ter contato
com o romance, terá que explorar sua imaginação para dar vida àquela história que está
sendo contada pelo autor, através da figura de um narrador. Se Benjamin considerou
que o romance trazia informação demais, limitando a assimilação do leitor, essa noção
pode ser observada por outro ângulo, já que um autor, ao escrever um romance, pode
usar de diversos recursos linguísticos, como figuras de linguagem, para criar metáforas
e analogias ao leitor que exigiram uma absorção mais perspicaz por parte do leitor,
permitindo que cada um tenha uma interpretação diferente. E é nesse momento que
surge uma nova experiência para o leitor, pois essa interpretação é individual e a própria
experiência da leitura causará um impacto diferente em cada leitor.
Cabe aqui, inclusive, mencionar o autor Roland Barthes, que comentará a
respeito do efeito do texto no leitor, que pode ser interpretado como a própria
experiência causada por aquela leitura no indivíduo que a esta consumindo. Para
Barthes (1999) o leitor é convidado a penetrar no texto e consumi-lo como uma forma
de escapismo e que promoverá além de uma compreensão daquilo que está sendo
narrado, mas também, uma identificação, atribuindo sentido ao que está sendo lido, e
dessa forma, pode-se dizer que, a cada contato de um leitor com a leitura, surge uma
nova experiência, que poderá trazer nossas assimilações e novos significados.
O mesmo pode ser dito do cinema, apesar de ser considerado por alguns
pensadores como uma arte que não estimula o espectador a pensar e atribuir diferentes
significados ao que está sendo exibido em cena. Quando Martin Scorsese adapta uma
obra literária para o cinema, diferente do livro, não será permitido que o espectador
tenha sua própria concepção da aparência dos personagens, ou dos espaços onde a
história que está sendo contada se passa, pois existe um corpo de atores que darão vida
àqueles personagens, cenários e locações que irão ambientar a trama, e, na maioria dos
casos, esses elementos são selecionados pelo diretor.
Ao mesmo tempo, Scorsese poderá trabalhar com elementos semióticos que
atribuirão diferentes interpretações entre os espectadores, e também, recontar uma
história, de modo subjetivo, usando de recursos específicos do cinema (como a edição,
montagem, iluminação, efeitos sonoros, e até mesmo o próprio texto) para estimular o
espectador a interpretar aqueles elementos à sua maneira, estabelecendo uma
experiência individual em cada espectador. O pesquisador Fernando Franqueiro Gomes
(2018) evoca Serguei Eisenstein e defende a ideia de que o cinema tem recursos
próprios que contribuem para essa experiência narrativa:

Do lado do cinema, alguns “realizadores-críticos”, como Serguei


Eisenstein, por exemplo, defendem sua própria autonomia, já que ele
possui recursos que vão além de uma única linguagem, fazendo uso de
sons e imagens para construir a narrativa. Eisenstein considera que os
recursos visuais e sonoros próprios do cinema, são os únicos capazes
de representar os conflitos e o monólogo interno de uma personagem,
algo que existe com maior dificuldade na literatura. [...] O cinema
possui uma linguagem própria, a narrativa é desenvolvida a partir de
técnicas próprias desse tipo de arte, usando artifícios como cortes,
edições, enquadramentos, mudanças de plano, entre outros aspectos.
Em vez de usar palavras, a narração no cinema acontece por meio de
imagens que são mostradas em cena, às vezes fazendo uso de uma
narração verbal complementar (GOMES, 2018, p. 23).

Além da experiência individual de ler um livro, ou assistir um filme, quando


Martin Scorsese, leva para as telas do cinema uma narrativa literária, ele abre espaço
para que o espectador tenha uma nova experiência, só que, dessa vez, literária. Quando
um filme é lançado, e sua história original já fora contada e forma de literatura, é
comum que gere no público leitor daquele material o interesse de ter a experiência
cinematográfica de ter contato com aquela história, já conhecida, dentro de outra
linguagem. Contudo, é pertinente notar, que o filme, essencialmente, neste caso, será
direcionado para um público geral, incluindo os indivíduos que não leram aquela
narrativa literária, mas que, agora, tendo a experiência de conhecer aquela história em
forma de filme, busque por conhecê-la em forma de literatura, promovendo no
espectador a experiência de ler aquela história, e assim, atribuir a ela novos significados
e assimilações, ou seja, terá uma nova experiência.
Quando Larrosa Bondía (2010) reflete que a experiência está atrelada àquilo que
marca um indivíduo, nota-se que é isso que a experiência cinematográfica propõe, assim
como a literatura, permitindo que a noção de Roland Barthes (1980) para punctum seja
considerada. Em A Câmara Clara, Barthes comenta sobre o punctum, que é o elemento
de uma imagem que chama a atenção do espectador, aquilo que pulsará nele de maneira
individual, e o mesmo acontece com a leitura de um romance ou ao assistir um filme, o
receptor terá elementos que lhe tocarão de diferentes maneiras, estabelecendo uma
experiência diferente em cada um.
De certo modo, então, a experiência ainda pode acontecer nos indivíduos através
de uma história contada em um romance, ou em um filme, contudo, o excesso de
informação pode dificultar, em alguns aspectos, essa experiência. Larrosa comenta que
o excesso de informação permite que o indivíduo tenha conhecimento demais, no
entanto, sobre aquilo que ele não experimentou, abrindo espaço para que ele tenha
opiniões sobre algo que sequer conhece, de fato, ou seja, saber sobre uma experiência,
não é a mesma coisa que passar por ela. O autor comenta que:

a experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito


moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que
tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente própria e, às
vezes, supostamente crítica sobre tudo o que se passa, sobre tudo
aquilo de que tem informação. Para nós, a opinião, como a
informação, converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogância,
passamos a vida opinando sobre qualquer coisa sobre que nos
sentimos informados. E se alguém não tem opinião, se não tem uma
posição própria sobre o que se passa, se não tem um julgamento
preparado sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em
falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que tem de ter uma
opinião. Depois da informação, vem a opinião. No entanto, a obsessão
pela opinião também anula nossas possibilidades de experiência,
também faz com que nada nos aconteça. (BONDÍA, 2010, p.23).

Nessa perspectiva, com a facilidade de difusão de uma informação hoje em dia,


através de redes sociais e os mais variados meios de comunicação e tecnologia, a
experiência pode se limitar. Em 2019, Martin Scorsese lançou seu mais novo filme, O
Irlandês, uma adaptação do livro de Charles Brandt, I Heard You Paint Houses, que traz
elementos que fizeram parte do cotidiano de Martin Scorsese e suas experiências de
vida, como os negócios ilegais da máfia de Nova Iorque, e também, dialoga com a
própria experiência do diretor com adaptações de narrativas de máfia, visto que o diretor
trouxe às telas do cinema as histórias de Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995)
e Os Infiltrados (2006). Contudo, o filme foi disponibilizado ao mesmo tempo para
milhares de espectadores ao redor do mundo, pois ao invés de ser lançado
convencionalmente, nas salas de cinema, o filme foi disponibilizado na plataforma on
demand, Netflix.
Desse modo, a própria experiência de assistir ao filme no espaço físico do
cinema já não é mais possível, e o acesso rápido ao filme, disponibiliza para o grande
público memes, cenas soltas, que circulam em diferentes sites de vídeo, além da própria
forma de assistir ao filme se tornar diferente. Pode-se dizer que isso permite com que
muitas pessoas se informem sobre aspectos da história que o diretor quis contar, criem
suas opiniões e evitem a experiência de assistir àquela narrativa. No entanto, a
experiência não deixou de existir, ela apenas acontece de outra maneira. Se antes, o
indivíduo precisava se deslocar ao cinema, para ver aquela história (ou ter um novo
contato com ela, já que O Irlandês se trata de uma adaptação do livro). É semelhante ao
que acontece com o romance, que, antes era lido em um livro físico, mas que hoje pode
ser lido em um tablet, em um smartphone, ou em leitores específicos para livros em
versão digital como o kindle.

Conclusão
A prática de contar histórias, na tradição oral, serviu sempre como uma forma de
trocar experiências entre narrador e ouvinte, até pelo fato do narrador se aproveitar de
suas experiências e vivência para narrar suas histórias. No entanto, não só na tradição
oral é permitida essa troca de experiências. O romance, também, promove no leitor a
experiência da leitura, de saborear o texto e atrelar àquilo que está lendo, diversos
sentidos e assimilações, que de certa forma, constituirão em uma experiência. O mesmo
acontece com o cinema, ao assistir um filme, o espectador está conhecendo a história
que o diretor decidiu contar e recriar dentro daquela gramática audiovisual, para que ele
também tenha essa experiência e possa assimilar aquilo que está sendo narrado.
Assim como o narrador da tradição oral, ou do escritor, Martin Scorsese, como
diretor de cinema e contador de histórias, faz uso de suas experiências de vida, de
elementos que o marcaram,e também de sua própria experiência como cineasta, para
contar histórias aos espectadores, promovendo novas experiências ao seu público.
Grande parte da filmografia do diretor vem da adaptação de narrativas literárias, dessa
forma, pode-se considerar que os próprios filmes são consequências da experiência do
diretor com a literatura.
Walter Benjamin e Jorge Larrosa Bondía apontam que, com o passar do tempo,
com o desenvolvimento das sociedades, e com a informação e o conhecimento ficando
cada vez mais difundidos, a experiência através da narrativa pode desaparecer, mas o
que fica evidente é que, por mais que os meios mudem, a experiência permanece e é
parte de um ciclo que, mesmo com novos avanços, continua, na sua maneira, existindo.

Referências

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1999.

BARTHES, Roland. A Câmara clara. Nova Iorque: Hill & Wang, 1980.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e


técnica, arte e política. Brasília: Editora Brasiliense, 1995. 198-221p.

BISKIND, Peter. Como a geração sexo, drogas e rock n’ roll salvou Hollywood.
Tradução de Ana Maria Bahiana. Rio de Janeiro:Intrínseca, 2009.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista


Brasileira de Educação. n. 19, 2002.

GOMES, Fernando Franqueiro Gomes. Dennis Lehane e Martin Scorsese: dois


olhares sobre a construção da personagem Edward Teddy Daniels, de Ilha do Medo.
2018. 131 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Instituto de Letras e
Linguística, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia. 2018.

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