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RESUMO
Pensando que a narrativa é uma forma de prover e trocar experiência entre os
indivíduos, este trabalho busca refletir o pensamento de Walter Benjamin acerca do
narrador e de como as narrativas estão atreladas à experiência do narrador e como
proporcionarão outras experiências para os ouvintes e estabelecer um diálogo entre as
narrativas literárias com o cinema, através da obra do diretor Martin Scorsese, que não
só usa da experiência de vida para contar histórias, mas também, da experiência com a
adaptação literária.
Palavras-chave: Martin Scorsese. Experiência. Narrativa. Literatura. Cinema.
Introdução
Dentre os diversos hábitos intrínsecos dos indivíduos, um dos mais interessantes,
ao mesmo tempo em que também é um dos mais antigos, é o de contar histórias.
Independente de qual seja a cultura ou sociedade, a arte de contar histórias faz parte do
cotidiano dos indivíduos que está sempre narrando acontecimentos, sejam aqueles
vividos por ele, assistidos ou que lhe foram relatados. O ato de contar histórias é o que
dá origem à narrativa, que hoje, está presente na arte de diversos modos, seja na
literatura, na música, ou no cinema, por exemplo. Em cada uma dessas diferentes
expressões de arte estão presentes diferentes expressões da narrativa, do ato de contar
histórias.
As narrativas que cercam o cotidiano dos indivíduos, e que se manifestam
através de filmes, romances, contos, crônicas, ou simples relatos orais, surgem a partir
das experiências que já foram vivenciadas por esses indivíduos. Desse modo é
interessante pensar a voz que relata essas experiências, o narrador, a sua experiência que
se tornará uma história, e que, ao ser contada, alcançará outros indivíduos e promoverá
novas experiências, criando uma espécie de ciclo. Pensando que histórias a serem
contadas podem ser consequências e percepções da experiência de um indivíduo, torna-
se interessante pensar a figura do narrador em duas artes que funcionam como narrativa:
a literatura e o cinema.
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Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
fernandofranq@hotmail.com
Na literatura, um autor pode narras histórias que, de alguma forma, surgiram
através das experiências obtidas por ele, proporcionando uma nova experiência para
aqueles que terão acesso a essa narrativa. No cinema, muitos filmes são realizados a
partir de adaptações de histórias, primeiramente, contadas pela literatura, e que são
recriadas dentro da gramática cinematográfica através do olhar e experiência de um
diretor. Esse diretor de cinema, ao ter contato com essa literatura que se transformará
em material audiovisual, seguindo os caminhos advindos de sua visão, também será
guiado pelas suas experiências, inclusive com o material literário, para realizar sua obra.
Dentre centenas de diretores de cinema que experimentaram as adaptações literárias em
sua filmografia, é pertinente destacar o trabalho de Martin Scorsese, que servirá como
objeto deste trabalho para pensar como a experiência age no ato de recriar uma narrativa
verbal ou oral em um sistema audiovisual, tornando o diretor de cinema em uma espécie
de narrador, pois ele também é um contador de histórias.
Para adentrar neste universo das experiências que gerarão uma literatura, e em
seguida um filme, é preciso fazer uma breve contextualização a respeito do ato de
contar histórias e a sua relação com as experiências do indivíduo.
A narrativa e a experiência
O autor observa que o romance está atrelado ao livro, e não ao relato oral, e o
excesso de informação esmiuçada que ele traz para o leitor acaba por, de certa forma,
romper com a experiência.
A questão da informação como um empecilho para a experiência, também é explorada
pelo autor Jorge Larrosa Bondía no seu texto “Notas sobre a experiência e o saber da
experiência”. Para o autor, a experiência é aquele momento ou aspecto que toca um
indivíduo, contudo, atualmente, cada vez mais as experiências são escassas, pois com o
excesso de informação, dificilmente, algo fica no indivíduo, tudo passa.
Essa noção de informação como algo que chega “pronto” para o indivíduo, de
certa forma, recai sobre a gramática do cinema, que, diferente da literatura, trabalha
com um produto finalizado (o filme) sendo exibido para o consumo do espectador.
Enquanto a literatura trabalha com um estímulo direto da conotação, o cinema,
essencialmente, não opera nessa esfera, pois o espectador não precisa imaginar os
elementos que compõem a estrutura da narrativa que será contada ali (personagens,
espaços, vozes etc.). Ao mesmo tempo, o cinema é uma forma de narrativa que desde
sua origem, sempre se relacionou com a literatura, e quando um diretor decide contar
uma história, primeiramente narrada na literatura, ele está aproveitando sua experiência
com aquele material, para recontar sua história dentro do seu universo fílmico. O diretor
norte americano Martin Scorsese em vários momentos de sua filmografia, recriou
narrativas literárias em forma de filme, e, mesmo que usando dos artifícios da gramática
audiovisual, o diretor também é um contador de histórias, logo, pode ser lido como um
narrador.
A obra de Martin Scorsese e sua experiência como contador de histórias
É dito por Walter Benjamin, que o romance, de certa forma é o responsável pelo
desaparecimento da experiência da narrativa, no entanto, o romance também
proporciona novas experiências, assim como a tradição oral. Um leitor, ao ter contato
com o romance, terá que explorar sua imaginação para dar vida àquela história que está
sendo contada pelo autor, através da figura de um narrador. Se Benjamin considerou
que o romance trazia informação demais, limitando a assimilação do leitor, essa noção
pode ser observada por outro ângulo, já que um autor, ao escrever um romance, pode
usar de diversos recursos linguísticos, como figuras de linguagem, para criar metáforas
e analogias ao leitor que exigiram uma absorção mais perspicaz por parte do leitor,
permitindo que cada um tenha uma interpretação diferente. E é nesse momento que
surge uma nova experiência para o leitor, pois essa interpretação é individual e a própria
experiência da leitura causará um impacto diferente em cada leitor.
Cabe aqui, inclusive, mencionar o autor Roland Barthes, que comentará a
respeito do efeito do texto no leitor, que pode ser interpretado como a própria
experiência causada por aquela leitura no indivíduo que a esta consumindo. Para
Barthes (1999) o leitor é convidado a penetrar no texto e consumi-lo como uma forma
de escapismo e que promoverá além de uma compreensão daquilo que está sendo
narrado, mas também, uma identificação, atribuindo sentido ao que está sendo lido, e
dessa forma, pode-se dizer que, a cada contato de um leitor com a leitura, surge uma
nova experiência, que poderá trazer nossas assimilações e novos significados.
O mesmo pode ser dito do cinema, apesar de ser considerado por alguns
pensadores como uma arte que não estimula o espectador a pensar e atribuir diferentes
significados ao que está sendo exibido em cena. Quando Martin Scorsese adapta uma
obra literária para o cinema, diferente do livro, não será permitido que o espectador
tenha sua própria concepção da aparência dos personagens, ou dos espaços onde a
história que está sendo contada se passa, pois existe um corpo de atores que darão vida
àqueles personagens, cenários e locações que irão ambientar a trama, e, na maioria dos
casos, esses elementos são selecionados pelo diretor.
Ao mesmo tempo, Scorsese poderá trabalhar com elementos semióticos que
atribuirão diferentes interpretações entre os espectadores, e também, recontar uma
história, de modo subjetivo, usando de recursos específicos do cinema (como a edição,
montagem, iluminação, efeitos sonoros, e até mesmo o próprio texto) para estimular o
espectador a interpretar aqueles elementos à sua maneira, estabelecendo uma
experiência individual em cada espectador. O pesquisador Fernando Franqueiro Gomes
(2018) evoca Serguei Eisenstein e defende a ideia de que o cinema tem recursos
próprios que contribuem para essa experiência narrativa:
Conclusão
A prática de contar histórias, na tradição oral, serviu sempre como uma forma de
trocar experiências entre narrador e ouvinte, até pelo fato do narrador se aproveitar de
suas experiências e vivência para narrar suas histórias. No entanto, não só na tradição
oral é permitida essa troca de experiências. O romance, também, promove no leitor a
experiência da leitura, de saborear o texto e atrelar àquilo que está lendo, diversos
sentidos e assimilações, que de certa forma, constituirão em uma experiência. O mesmo
acontece com o cinema, ao assistir um filme, o espectador está conhecendo a história
que o diretor decidiu contar e recriar dentro daquela gramática audiovisual, para que ele
também tenha essa experiência e possa assimilar aquilo que está sendo narrado.
Assim como o narrador da tradição oral, ou do escritor, Martin Scorsese, como
diretor de cinema e contador de histórias, faz uso de suas experiências de vida, de
elementos que o marcaram,e também de sua própria experiência como cineasta, para
contar histórias aos espectadores, promovendo novas experiências ao seu público.
Grande parte da filmografia do diretor vem da adaptação de narrativas literárias, dessa
forma, pode-se considerar que os próprios filmes são consequências da experiência do
diretor com a literatura.
Walter Benjamin e Jorge Larrosa Bondía apontam que, com o passar do tempo,
com o desenvolvimento das sociedades, e com a informação e o conhecimento ficando
cada vez mais difundidos, a experiência através da narrativa pode desaparecer, mas o
que fica evidente é que, por mais que os meios mudem, a experiência permanece e é
parte de um ciclo que, mesmo com novos avanços, continua, na sua maneira, existindo.
Referências
BARTHES, Roland. A Câmara clara. Nova Iorque: Hill & Wang, 1980.
BISKIND, Peter. Como a geração sexo, drogas e rock n’ roll salvou Hollywood.
Tradução de Ana Maria Bahiana. Rio de Janeiro:Intrínseca, 2009.