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EDUCAÇÃO E AUTONOMIA: ISSN 1982-8632

O LUGAR DO CORPO NA TRADIÇÃO JAPONESA


Revista
@mbienteeducação
V. 4, nº 1, jan/jun,
2011: 19-28

Profa. Dra. Chie Hirose1


chie.hirose@terra.com.br

Resumo
Este artigo examina e discute o confundente conceito de Mi na tradição japonesa e o modo
como a educação se apoia no corpo, exemplificando com a tradicional Cerimônia do Chá.
PALAVRAS-CHAVE: Educação • Antropologia e educação japonesa • Mi, corpo e moral • Unidade
do ser humano • Cerimônia do chá.

Abstract
This article examines and discusses the “confounding” concept of Mi in Japanese tradition. And 19
how education is founded on body, as it is shown, for example, in Tea Cerimony.
KEY WORDS: E
 ducation • Japanese Anthropology and Education • Mi, Body and Moral • Unity
of Man • Tea Cerimony.

Educação e
autonomia: o lugar
do corpo na tradição
japonesa
Hirose C
1
  Doutora em Educação pela Faculdade de Educação –FEUSP. Professora da Faculdade Campos Salles.
ISSN 1982-8632 PENSAMENTO CONFUNDENTE confundente.
Em suas obras, Jean Lauand tem Após exemplificar com os diver-
indicado importantes conexões do com- sos significados confundidos na pala-
Revista
@mbienteeducação plexo espírito-corpo que é o homem. A vra árabe Salam (hebraica Shalom),
V. 4, nº 1, jan/jun, percepção dessa realidade é facilitada Lauand dirige-se ao chinês e ao Brasil:
2011: 19-28 pela tradição japonesa que, na própria
língua (ou, como diz Lohmann, no sis- Quando a língua chinesa confun-
tema língua/pensamento) já assume de diversos significados em torno
esse fato. Ao final, exemplificaremos da palavra Tao (MAY, 1975), não
com a Cerimônia do Chá. se trata, evidentemente, de mera
equivocidade (como no caso de
Comecemos por apresentar em
nossa palavra “manga” – a fruta
suas grandes linhas o pensamento
e a parte da vestimenta que re-
confundente, tarefa na qual valer-
cobre o braço), mas de que a pró-
-me-ei de um estudo de Jean Lauand
pria visão de mundo, o próprio
(2006), recolhendo resumidamente os
pensamento está marcado pelo
principais pontos que possam ser úteis
confundente: governo, sabedoria
para este estudo:
e virtude (Tao) devem ser indisso-
Ao analisar cultura e mentalidade ciáveis. O português também tem
de um povo, a língua é um fator suas confundências. Sobretudo,
importante, na medida em que o português do Brasil, com nossa
condiciona o pensamento, a pos- propensão ao genérico, à indeter-
sibilidade de acesso à realidade. minação, ao neutro. No outro dia,
Uma dessas formas de acesso ao dirigindo-me a um colega, vizinho
real é o pensamento confundente, de prédio, a quem frequentemen-
que - numa primeira aproximação te dou carona, perguntei: “E aí,
20 você vai para a USP amanhã?”.
- concentra numa única palavra
realidades distintas, mas conexas. Sua resposta foi: “Devo ir”. O lei-
Se distinguir, dar nomes diferen- tor (e mesmo o interlocutor) não
tes para realidades diferentes, é tem a menor possibilidade de sa-
uma importante função da língua; ber o que significa esse “devo”, en-
“confundir” é - como já faziam tre nós, muito confundente. Como
notar Ortega y Gasset e Julián traduzi-lo, por exemplo, para o in-
Marías - igualmente importan- glês (should, have to, supposed to,
te, pois: “Não haveria como lidar must, ought...)? Pois, esse “devo”
intelectualmente com realidades pode ser interpretado desde a
complexas, em suas conexões, mais absoluta e imperativa deci-
nas quais interessa ver o que há são de ir (“eu devo ir, senão a USP
de comum e, portanto, o tipo de desmorona”) até a mais descom-
relações que há entre realidades prometida e frágil intenção (“eu
que, de resto, são muito diferen- não falei que iria, eu falei ‘devo ir’,
tes” (LAUAND, 2007). Em maior e aí apareceu um desenho anima-
ou menor grau, variando de acor- do legal na TV e eu não fui”). (...)
do com o setor da realidade a que
É importante para nós destacar
se aplicam, todas as línguas são
ainda outros aspectos do pensamento
“distinguentes” e todas as línguas
confundente, como revelador da cultu-
são confundentes. Grosso modo,
ra da comunidade do falante:
Educação e se as línguas ocidentais parecem
autonomia: o lugar tender mais para a distinção, as Não só o distinguir, dizíamos, mas
do corpo na tradição
japonesa línguas dos Orientes - considera- também o “confundir” são importan-
Hirose C
remos o caso da língua árabe -, tes missões da linguagem, que cria
parecem convidar ao pensamento palavras (e acumula sentidos nelas)
em função da percepção que temos da modo, sim o somos: o corpo não é mera- ISSN 1982-8632
realidade (e reciprocamente: percebe- mente “tido”, ninguém diz “meu corpo
mos a realidade pelo crivo das pala- está com gripe” ou “você chutou o pé
vras de que dispomos...). Os irmãos do meu corpo”; o que se diz é “Eu estou Revista
dos pais e seus filhos recebem os
com gripe”, “você me chutou”. @mbienteeducação
nomes especiais de “tios” e “primos” V. 4, nº 1, jan/jun,
por uma questão de necessidade, de O Ocidente, com seu afã de ideias 2011: 19-28
economia de linguagem e de pensa- claras e distintas, uma e outra vez,
mento, pois frequentemente nos refe-
propõe uma dualidade radical corpo /
rimos a eles. Já a “cunhada da sogra
da tia da vizinha” nunca receberá um
espírito, deixando por resolver os evi-
nome especial, pois ela não entra na dentes fatos de integração, como as
cena de nossa realidade quotidiana. doenças psicossomáticas e - podemos
Nesse sentido, há uma sugestiva fala acrescentar hoje – os fenômenos soma-
no filme Broken Arrow de John Woo: to-psíquicos. Não só um desgosto espi-
um civil é chamado para ajudar a re- ritual produz ácidos que podem causar
solver um problema de broken arrow uma úlcera material, mas também as
e, ao perguntar o que significa essa alterações do corpo afetam o espírito.
expressão, recebe a resposta de que é Que o diga o meu acupunturista, que
sumiço de arma atômica para o inimi-
com uma agulha é capaz de dissipar
go. Espantado, ele se interroga sobre
o que é pior: o roubo de arma atômica
temores ou rancores espirituais.
ou o fato de já haver um nome para O Oriente (MACMILLAN, 2000) ,
2

isso! (...)
tradicionalmente, ao contrário do Oci-
Confundir é conveniente. Não só dente, não tem a necessidade de teori-
quando se trata de realidades “conju- zar aquilo que pratica, sabe por expe-
gadas” como as que se designam por riência que as coisas funcionam assim
salam , mas também quando a lin- ou assado e isso basta. Já o viés oci-
guagem lida com distinções que não dental – sempre tipicamente falando 21
correspondem à realidade. Por exem- – só aceita, digamos, uma terapia, se
plo, houve épocas e sociedades que dispuser do modelo teórico adequado
trabalharam com a errônea distinção que a “fundamente”: quantos médicos
entre “estrela matutina” (ou “estrela ocidentais recusam, por exemplo, a
d´alva”) e “estrela vespertina”, que,
acupuntura, por acharem que noções
afinal, na realidade, são o mesmo e
único planeta Vênus. E, assim, do como a de Qi, energia, são vagas e in-
ponto de vista científico, o melhor é suficientes. Mesmo confrontados com
acabar com a distinção entre as “es- a comprovada eficácia do tratamento,
trelas” matutina e vespertina. não o prescreverão. O oriental, que
não prioriza o “sistema de pensamen-
Mi (身) - O Corpo no Pensa- to” acolhe a prática que se mostra efi-
mento Confundente caz. Assim, a tradição oriental pensa o
homem como um todo: corpo-espírito,
O parágrafo anterior parece-nos e integrado num todo maior: homem-
especialmente importante para nosso -natureza.
tema, pois permitir-nos-á sugerir que
talvez se perca algo de conhecimento Nosso olhar se dirigirá agora a
sobre o homem na visão distinguidora um conceito antropológico essencial na
do Ocidente em relação ao corpo. Algo tradição japonesa: o de Mi (身). Numa
que a antropologia pode recuperar a primeira aproximação: corpo, self, re-
partir das intuições da língua japone- alidade humana etc. – e a dificuldade
sa. de apreensão, de explicitação, parece Educação e
elevar-se ao infinito. Não que se tra- autonomia: o lugar
O corpo tem um caráter miste- te de um conceito bizarro, artificial ou do corpo na tradição
japonesa
rioso no “eu” de cada um: certamente, estranho, mas precisamente por sua
não somos nosso corpo, mas, de algum adequação e acerto torna-se tão ina- Hirose C
ISSN 1982-8632 preensível quanto o próprio homem. cidas dos japoneses.
Para o Mi, como para os grandes te-
mas antropológicos, sempre vige aque- O CONCEITO DE MI (身) NOS
Revista la famosa e felicíssima observação de PROVÉRBIOS
@mbienteeducação Agostinho, originalmente refletindo
V. 4, nº 1, jan/jun, Comecemos por observar que Mi
sobre o que é o tempo: se ninguém me
2011: 19-28 aparece numa palavra já bem conheci-
pergunta, eu bem sei o que ele é; se eu
da entre nós: Sashimi (刺身). Portan-
quiser explicar, não sei (Si nemo me
to, o leitor brasileiro está familiariza-
quaerit, scio...).
do com um primeiro significado de Mi
Uma dificuldade adicional provém (身) (se quisermos adaptar ao padrão
do fato de que temos - como costuma ocidental, que distingue em várias pa-
ocorrer no sistema língua/pensamento lavras o que o japonês confunde em
oriental – uma relativamente alta acu- (Mi), que enfatiza a carne; a carne que
mulação semântica em Mi, em compa- reveste o osso, como aparece no parti-
ração com as abordagens ocidentais: cular corte de peixe do Sashi-Mi. As-
Mi é o corpo e ao mesmo tempo o ho- sim, quando há uma situação em que
mem todo; Mi é o self, mi pode ser o eu está difícil distinguir as coisas, diz-se:
etc. Se bem que, na verdade, mesmo “É pele ou é Mi”.
as antropologias ocidentais acabam in-
Passando para um segundo signi-
cluindo - de modo mais ou menos cons-
ficado, muito próximo do anterior, te-
ciente e explícito - o corpo como, de al-
mos Mi no sentido do corpo físico.
gum modo, base para o homem todo,
sem que isso implique nenhum tipo de Hara-mo mi-no uti.
materialismo ou exclusão do espírito.
Nesse sentido, note-se de passagem as O estômago também faz parte do
formas inglesas, tão familiares que o Mi.
22 próprio falante do inglês talvez nem
repare mais em sua profundidade: Este provérbio trata do Mi corpo.
everybody, somebody, anybody, nobody Ele diz para não esquecer, quando nos
etc. alimentamos, de que o alimento e a be-
bida vão para o estômago, que não está
Outro fator complicador dessa fora do corpo; ou seja, um alerta contra
nossa reflexão sobre o Mi decorre do a gula.
fato de que o conceito de corpo, no caso,
vem embutido num sistema de articu- Também a sabedoria das expres-
lações semânticas distinto daqueles sões aconselha como medida de segu-
que são usados pelo leitor ocidental. rança: “Deixe o dinheiro pegado ao
Mi”, bem junto de si, como quando as
Com essas observações prévias, mulheres escondem cédulas entre os
podemos agora começar a aproximar- seios.
-nos do conceito Mi (e, para tanto, o
caminho dos provérbios e expressões Nessa mesma linha, encontramos
idiomáticas parece adequado). Natu- Mi no sentido de base para panelas,
ralmente, trata-se aqui somente de caixas, recipientes, que servem para
uma primeira e informal aproximação. conter (nesse caso, o contraponto é
dado por uma tampa), como no provér-
Os provérbios que apresentamos a bio:
seguir foram extraídos das coletâneas
Educação e que indicamos nas referências biblio- Mi mo futa mo nashi.
autonomia: o lugar
do corpo na tradição gráficas; projetos editoriais ousados
japonesa que buscaram recolher os provérbios e/ Sem Mi nem tampa.
Hirose C ou expressões idiomáticas mais conhe-
O sentido é o de que não tem graça cia...”, circuns-tância que inclui, sobre- ISSN 1982-8632
ir diretamente a um assunto, sem os tudo, outros Mi.
comentários adequados dos aspectos
contextuais. Nesse caso, a comunica- Kyou-wa hito-no Mi, ashita-wa Revista
ção é insossa: falta-lhe a carne do Mi. waga Mi. @mbienteeducação
V. 4, nº 1, jan/jun,
2011: 19-28
Do mesmo modo, o corpo, também Hoje, o Mi do outro; amanhã, meu
para nós, é estrutura básica, como Mi.
quando falamos em corpo docente,
corpo diplomático, corpo de baile, cor- Incluem-se aí, evidentemente, as
po da guarda, corporação, incorporar, incertezas da existência humana, ao
ganhar corpo etc., à margem de outras sabor do contingente. O que se reflete
dimensões: da alma, do espírito, do co- também em:
ração...
Hito-no ue-ni fuku kaze-wa waga
Mi, dimensão corporal, pode facil- Mi-ni ataru.
mente estender-se à totalidade: uma
vez que o corpo do ser vivo é precisa- O vento que sopra em cima do ou-
mente um corpo animado. Assim, tro, bate em meu Mi...

Mi arite no houkou. Hito-no ue mite waga Mi-wo omoe.

Tendo Mi é que se tem serviço. Olhe o outro e pense no seu Mi.

Somente tendo um corpo saudável Como em muitos provérbios, a


é que se consegue trabalhar. Natural- mensagem é aberta, puxando para o
mente, subentende-se aqui o Mi com neutro. Admite, portanto, múltiplas
saúde. interpretações; no caso, digamos, pôr 23
a barba de molho, aprender (para o
Nessa identificação com o self, o bem e para o mal) com as experiências
Mi vale pelo todo da pessoa: dos outros, não dizer: desta água não
beberei etc.. Contingências e futuros
Mi wo sutete koso ukabu se mo incertos; mas também há futuros pre-
are. -visíveis (condicionados pelo passado)
e condicionados pelo acaso. De qual-
Existe o lugar que se abre porque quer modo:
se joga o Mi.
Mi areba mei ari.
Próximo ao nosso “Quem não ar-
risca, não petisca”, desde que se enten- Se houver Mi, haverá destino.
da o arriscar como radical: o próprio eu
é que entra em jogo. Seja como for, o principal fator em
nossa vida são nossas ações e escolhas.
A igualdade fundamental entre Por elas, em boa medida, somos mais
os homens tem sua base no Mi: o que ou menos felizes.
acontece para mim é paradigma do
que pode suceder ao semelhante. Nes- Mi-kara deta sabi.
se sentido, a tradição japonesa apro-
xima-se do famoso dito de Terêncio: A ferrugem sai do Mi.
“Homo sum et nihil humani alienum
a me puto”, sou homem e nada daquilo O lixo existencial decorre, em ge- Educação e
autonomia: o lugar
que é humano considero alheio a mim. ral, de nossa própria atitude diante da do corpo na tradição
Ou da, também célebre, sentença de vida. Devemos portanto cuidar a mo- japonesa

Ortega: “Yo soy yo y mi circunstan- ral, que garante a integridade do Mi. Hirose C
ISSN 1982-8632 Mi-de Mi-wo kuu. nidade do Mi. Mesmo as vicissitudes e
contingências da vida são (devem ser)
É o Mi que consome (come) o Mi. proporcionais ao Mi:
Revista
@mbienteeducação O provérbio lembra que a prin- Mi-ni sugita kahou-wa wazawai-
V. 4, nº 1, jan/jun, cipal destruição é a autodestruição. -no moto.
2011: 19-28
Também há a variante:
A sorte que ultrapassa o Mi será a
Mi-de Mi-wo tsumeru. base da desgraça.

É o Mi que espreme o Mi. Aqui, a tradição japonesa aproxi-


ma-se da sabedoria cristã que vê o mal
Akuji Mi-ni kaeru. como uma desordem (e não como uma
entidade positiva).
Ato mau volta-se contra o Mi.
Com a encantadora forma nos-
Todos esses cuidados são acon- sa, “Parabéns!”, estamos expressando
selhados pelos provérbios porque sa- precisamente isto: que o bem conquis-
bemos que o ser humano vive para si tado, que a meta atingida seja usada
mesmo, e só ele é o sujeito da sua vida. “para bens”. Pois, qualquer bem obtido
(o dom da vida, dinheiro ou a conquista
Mi-ni masaru takara(mono) de um diploma) pode, como todo mun-
nashi. do sabe, ser empregado para o bem ou
para o mal. (LAUAND, 2007 pg.47)
Não há tesouro que supere o Mi.

Mi hodo kawaii mono nai.


OUTROS PROVÉRBIOS:
Mi atataka nareba suimin mashi,
24 Nada é tão encantador como o Mi yasun zureba ketai okoru.
(bom) Mi.
Se esquentarmos o Mi, ajuda no
Sendo o centro mesmo da pessoa, sono; se acabar a insegurança, surge o
não se pode abdicar do próprio Mi: Mi preguiçoso.

Ko-wo suteru yabu-wa aru-ga, Ou seja, o ser humano pode se de-


Mi-wo suteru yabu-wa nai. gradar quando permanece numa situ-
ação muito confortável.
Até pode haver matagal para des-
fazer-se de um filho, mas não para ar- Mi-no uchi-no takara-wa kutsuru
remessar o próprio Mi. koto nashi.

O Mi não é somente a base meta- O tesouro que está dentro do Mi


física do ser humano; ele informa tam- nunca estraga.
bém dimensões como a psicológica, a
social etc. Assim, de acordo com o Mi, O conhecimento e a habilidade
excluem-se certas atitudes, incompatí- aprendidos com muito esforço ajuda-
veis com a dignidade do sujeito: rão por toda a vida. Como em Mt 6,22:
“A lâmpada do corpo é o olho; se teu
Mi shirazu-no kuti tataki. olho for simples…”

Educação e Tagarela que não conhece (não Mi-no tomoshibi-wa me nari.


autonomia: o lugar respeita) o Mi.
do corpo na tradição
japonesa A luz que ilumina o Mi são os
Pois certos assuntos - ou mesmo o olhos.
Hirose C
muito falar - não condizem com a dig-
Mi-no hodo-wo shire. Quer levantar o seu Mi, então co- ISSN 1982-8632
mece levantando o outro.
Saiba o limite do Mi.
Hito-wo uramu yori Mi-wo urame. Revista
Não se deve desejar mais do que @mbienteeducação
se pode. Analise as coisas lembrando Se é para ficar ressentido com ou- V. 4, nº 1, jan/jun,
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de sua posição e de sua capacidade. tro, melhor ressentir com Mi.
(Há também: Mibun souou-ni kura-
se./ Viva uma vida que corresponde às Antes de ficar odiando o outro,
suas condições.) veja se há algo para reavaliar em suas
atitudes.
Waga Mi-ni itsuwari arumono-wa
hito-no makoto-wo utagau. Wagami-wo tsunette hito-no ita-
sa-wo shire.
Quem tem em seu Mi falsidade,
duvida da verdade do outro. Beliscar o seu Mi para saber a dor
do outro.
Quem tem peso na consciência,
vê o outro com sua medida, duvida do A dor que se sente quando se be-
outro, como no célebre provérbio espa- lisca o próprio corpo será a mesma que
nhol: “Cree el ladrón que todos son de o outro sente. Assim, devemos nos co-
su condición”. locar no lugar do próximo e ter com-
paixão.
Waga Mi-no kusasa ware shirazu.
Ada mo nasake mo wagami yori
O próprio não percebe o odor de- deru.
sagradável do seu Mi.
Tanto o zombar quanto a compai- 25
Seus pontos negativos são difíceis xão sai do seu Mi.
de serem percebidos pela própria pes-
soa: Odiar ou amar alguém, depende
de como nos relacionamos com ele.
Waga Mi-no kotowa hito ni toe.
IkiMi-wa shiniMi.
Sobre o seu Mi, pergunte aos ou-
tros. O Mi vivo é o Mi morto.

Muitas coisas sobre nós mesmos Fatalmente, todos os que hoje es-
não podemos perceber sozinhos. O me- tão vivendo, um dia morrerão.
lhor é perguntar aos outros para se au-
toconhecer. E ouvir com humildade as Shoubu goto-no suki-na mono-wa
opiniões alheias. Mi-ga motenu.

Ryouhou tatereba Mi-ga tatanu. Quem gosta de jogo, o Mi não se-


gurará.
Se levantar os dois o Mi não le-
vanta. Quem gosta de jogos de aposta,
sucumbirá a eles de corpo e alma.
Considerando as razões dos dois
lados, você pode ficar sem a sua razão. O próprio ideograma traz sugesti-
vas indicações. Se no chinês moderno Educação e
Wagami-wo taten to seba, mazu o ideograma shen(身) corresponde me- autonomia: o lugar
do corpo na tradição
hito-wo tateyo. lhor à palavra karada (体), mais pró- japonesa
xima da nossa “corpo”; em Mi (身), o
Hirose C
ISSN 1982-8632 sentido do corpo recebe vários aspectos dade de formas de realizar a chanoyu,
adicionais não abrangidos por karada mas a carga antropológica por detrás
(体) ou jiko, jibun, honnin (自己,自分, dos diversos elementos, que permane-
Revista 本人), etc. Daí a prevalência do uso de ce relativamente constante nas diver-
@mbienteeducação Mi; pelo menos nos provérbios e nas sas variantes de estilo, normais numa
V. 4, nº 1, jan/jun,
2011: 19-28 expressões idiomáticas. Mi pode ser tradição secular. A constante é a pro-
usado para vestir (revestir-se), adqui- dução, por meio de ritos materiais, de
rir etc. Assim, diz-se: “Coloquei o aven- um efeito espiritual: a cortesia, a con-
tal no corpo.” (fixar o avental ao Mi) sideração pelo outro, a reverência pelo
do mesmo modo que também é usado convidado.
para dizer “Adquirir conhecimento.”
(Fixar o conhecimento ao Mi). Tive, em meus tenros anos, no Ja-
pão, o privilégio de aprender com uma
Trazendo como exemplo a nossa criteriosa mestre tradicional, minha
própria experiência pedagógica Hirose avó Shizue Hirose, os diversos elemen-
et al. (2007), quando elaboramos pro- tos da chanoyu. A cerimônia completa
jetos procurando ou não um enfoque pode durar até 4 horas; em sua forma
ao vínculo, ao corpo e aos sentimentos simplificada - só a parte final -, cerca
das crianças, conscientemente ou não, de uma hora.
cada educador estará baseado na for-
ma como concebe o ser humano. Por Se possível, a cerimônia se realiza
exemplo: “que somos seres que senti- numa casa anexa, especialmente re-
mos, pensamos e agimos numa totali- servada para ela, à qual se chega por
dade que integra o corpo, o coração e um jardim, e dispõe de uma sala pre-
a mente”. Ao lembrarmos dos vários paratória e uma sala de espera.
significados do Mi verificaremos que
está muito próximo do que tentamos A chaleira, as xícaras, a colher de
26 expressar na sentença anterior. bambu para servir e o misturador de
bambu costumam ser objetos traba-
Se lembrarmos da expressão “Fi- lhados com requinte. Os convidados
xar o conhecimento no Mi” percebemos trajam quimonos de cores discretas,
a proximidade de pensamento que ve- meias brancas e portam um leque e
mos nesta sentença: “O conhecimento pequenos guardanapos.
deve ser feito pela totalidade do indiví-
duo, e não apenas pela razão. E é essa Os convidados entram curvados,
totalidade que modela as imagens em sinal de humildade. O anfitrião
às quais o mundo se adapta.” (MAY, leva-os pelo jardim até a sala da ce-
1975) Quando falamos de sentimento rimônia. Na beira do caminho há um
não significa apenas afeto. Significa, recepiente de pedra com água para
segundo interpretação de May a ca- os convidados lavarem as mãos e a
pacidade total do organismo humano boca. A entrada da sala de cerimônias
para sentir o seu mundo. “Fixar o co- é baixa, de tal modo que para entrar
nhecimento no Mi” consegue conter é preciso abaixar-se: é evidente que
esta concepção de aprendizagem. neste ponto, como em tantos outros, a
Cerimônia - pelo corpo, pelo material
A partir dessa complexidade do - quer induzir às atitudes espirituais
Mi podemos compreender o alcance apropriadas.
pedagó-gico e antropológico de diver-
Cada convidado se ajoelha diante
sas práticas da tradição japonesa, par-
Educação e de uma espécie de retábulo, a tokono-
ticularmente a Cerimônia do Chá.
autonomia: o lugar ma, e faz uma profunda reverência e,
do corpo na tradição
japonesa CERIMÔNIA DO CHÁ com o leque diante de si, admira a ima-
Hirose C
gem ou o quadro pendurado na parede
Não nos interessa aqui a varie- da tokonoma. O quadro é especialmen-
te escolhido pelo anfitrião para esta re- se sabe não merecedor). Sorve ligei- ISSN 1982-8632
cepção. Repetem-se essas ações diante ramente o chá, elogia seu sabor, dá
do braseiro do chá e, em seguida, todos outros dois goles e limpa a parte que
se sentam: os convidados principais foi tocada pelos lábios com um kaishi Revista
mais próximos do anfitrião. Após a (guardanapo retirado sutilmente do @mbienteeducação
V. 4, nº 1, jan/jun,
troca de reverências e cortesias, é ser- quimono). Passa a chávena a outro 2011: 19-28
vida a kaiseki, uma pequena refeição, convidado, que repete a operação; e
seguida de alguns doces tradicionais. outro…, até o último. Este então passa
a chávena ao convidado principal, que
A um sinal do mestre, os convida- a devolve ao mestre.
dos vão para um jardim interno que
enlaça a casa do chá. O soar de um Claro que indicamos apenas al-
gongo – cinco ou sete toques – indica guns de um sem-número de detalhes
que vai começar a parte principal da e rigorosas prescrições materiais e cor-
cerimônia. Repetem-se as abluções e porais, que se articulam com quatro
todos voltam para a sala. Um ajudante valores da tradição japonesa são: wa,
retira as persianas de junco das jane- kei, sei, jaku.
las para que a sala se encha de luz (que
representa a luminosa presença das Wa, a paz e a harmonia, são reali-
visitas…). Nesse meio tempo, o qua- zadas entre anfitrião e convidado, en-
dro da tokonoma foi retirado e em seu tre os convidados, entre o que é servido
lugar instala-se um ikebana, arranjo e os utensílios etc.
floral artístico (que alude ao aroma e à
beleza que os convidados trouxeram à Kei é o respeito e a reverência, li-
casa). As cerâmicas para o chá e para gados à gratidão que se dirige às pes-
a água já estão em seu lugar e o anfi- soas e se estende até aos objetos da
trião entra com a chaleira (com o mis- Cerimônia. Cada gesto é uma manifes-
turador de bambu) e em cima a colher tação de delicadeza e atenção, que – se 27
de bambu. tudo correr bem – acaba por se incor-
porar às vidas dos convivas.
Os convidados admiram o arranjo
floral e a chaleira e o mestre vai bus- Sei é a pureza material e espiritu-
car um vaso para a água que sobrar, al. Purificar os utensílios do chá é, ao
a colher e o suporte para a chaleira. A mesmo tempo, purificar-se.
seguir, limpa o recepiente do chá e a
Jaku é a tranquilidade, que pre-
colher de mexer com um pano especial
para para acolher imperturbavelmen-
e enxágua a colher de mexer na chá-
te as vicissitudes que o futuro possa
vena, após verter nela água quente
trazer.
da chaleira.
Valores mais vivenciados a partir
O anfitrião levanta a colher e o
de uma tradição na qual o Mi já é mui-
recepiente do chá e serve o matcha (a
to mais do que o corpo na dicotômica
erva do chá) e o mexe com o bambu até
concepção ocidental…
que a mistura adquira uma consistên-
cia grossa de espuma e deixa perto do
braseiro. O convidado principal vai de
joelhos apanhar seu chá, faz uma re-
NOTAS EXPLICATIVAS
verência aos outros convidados e põe 1
  Naturalmente, quando falamos aqui de “Oriente”
e “Ocidente” são tipificações genéricas, que, num
sua cuia na palma da mão esquerda,
estudo mais acurado, requeririam mil detalha-
amparando-a com a direita (indican- mentos concretos; como, por exemplo, os recentes
Educação e
autonomia: o lugar
do o reverente cuidado com que aceita mimetismos do modo ocidental em alguns países do corpo na tradição
a generosidade da acolhida, da qual do Oriente... japonesa
Hirose C
ISSN 1982-8632 REFERÊNCIAS
HIROSE, C., LIMA, Florice S., AVAN- MAY, Rollo. A coragem de criar,
ZI, Mara. Projeto: sentindo, pensando 14ªimpr., Rio de Janeiro: Nova Fron-
Revista
@mbienteeducação
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Recebido para publicação em 16.11.2010

28 Aceito em 05.12.2010.

Educação e
autonomia: o lugar
do corpo na tradição
japonesa
Hirose C

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