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Resumo
Este artigo examina e discute o confundente conceito de Mi na tradição japonesa e o modo
como a educação se apoia no corpo, exemplificando com a tradicional Cerimônia do Chá.
PALAVRAS-CHAVE: Educação • Antropologia e educação japonesa • Mi, corpo e moral • Unidade
do ser humano • Cerimônia do chá.
Abstract
This article examines and discusses the “confounding” concept of Mi in Japanese tradition. And 19
how education is founded on body, as it is shown, for example, in Tea Cerimony.
KEY WORDS: E
ducation • Japanese Anthropology and Education • Mi, Body and Moral • Unity
of Man • Tea Cerimony.
Educação e
autonomia: o lugar
do corpo na tradição
japonesa
Hirose C
1
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação –FEUSP. Professora da Faculdade Campos Salles.
ISSN 1982-8632 PENSAMENTO CONFUNDENTE confundente.
Em suas obras, Jean Lauand tem Após exemplificar com os diver-
indicado importantes conexões do com- sos significados confundidos na pala-
Revista
@mbienteeducação plexo espírito-corpo que é o homem. A vra árabe Salam (hebraica Shalom),
V. 4, nº 1, jan/jun, percepção dessa realidade é facilitada Lauand dirige-se ao chinês e ao Brasil:
2011: 19-28 pela tradição japonesa que, na própria
língua (ou, como diz Lohmann, no sis- Quando a língua chinesa confun-
tema língua/pensamento) já assume de diversos significados em torno
esse fato. Ao final, exemplificaremos da palavra Tao (MAY, 1975), não
com a Cerimônia do Chá. se trata, evidentemente, de mera
equivocidade (como no caso de
Comecemos por apresentar em
nossa palavra “manga” – a fruta
suas grandes linhas o pensamento
e a parte da vestimenta que re-
confundente, tarefa na qual valer-
cobre o braço), mas de que a pró-
-me-ei de um estudo de Jean Lauand
pria visão de mundo, o próprio
(2006), recolhendo resumidamente os
pensamento está marcado pelo
principais pontos que possam ser úteis
confundente: governo, sabedoria
para este estudo:
e virtude (Tao) devem ser indisso-
Ao analisar cultura e mentalidade ciáveis. O português também tem
de um povo, a língua é um fator suas confundências. Sobretudo,
importante, na medida em que o português do Brasil, com nossa
condiciona o pensamento, a pos- propensão ao genérico, à indeter-
sibilidade de acesso à realidade. minação, ao neutro. No outro dia,
Uma dessas formas de acesso ao dirigindo-me a um colega, vizinho
real é o pensamento confundente, de prédio, a quem frequentemen-
que - numa primeira aproximação te dou carona, perguntei: “E aí,
20 você vai para a USP amanhã?”.
- concentra numa única palavra
realidades distintas, mas conexas. Sua resposta foi: “Devo ir”. O lei-
Se distinguir, dar nomes diferen- tor (e mesmo o interlocutor) não
tes para realidades diferentes, é tem a menor possibilidade de sa-
uma importante função da língua; ber o que significa esse “devo”, en-
“confundir” é - como já faziam tre nós, muito confundente. Como
notar Ortega y Gasset e Julián traduzi-lo, por exemplo, para o in-
Marías - igualmente importan- glês (should, have to, supposed to,
te, pois: “Não haveria como lidar must, ought...)? Pois, esse “devo”
intelectualmente com realidades pode ser interpretado desde a
complexas, em suas conexões, mais absoluta e imperativa deci-
nas quais interessa ver o que há são de ir (“eu devo ir, senão a USP
de comum e, portanto, o tipo de desmorona”) até a mais descom-
relações que há entre realidades prometida e frágil intenção (“eu
que, de resto, são muito diferen- não falei que iria, eu falei ‘devo ir’,
tes” (LAUAND, 2007). Em maior e aí apareceu um desenho anima-
ou menor grau, variando de acor- do legal na TV e eu não fui”). (...)
do com o setor da realidade a que
É importante para nós destacar
se aplicam, todas as línguas são
ainda outros aspectos do pensamento
“distinguentes” e todas as línguas
confundente, como revelador da cultu-
são confundentes. Grosso modo,
ra da comunidade do falante:
Educação e se as línguas ocidentais parecem
autonomia: o lugar tender mais para a distinção, as Não só o distinguir, dizíamos, mas
do corpo na tradição
japonesa línguas dos Orientes - considera- também o “confundir” são importan-
Hirose C
remos o caso da língua árabe -, tes missões da linguagem, que cria
parecem convidar ao pensamento palavras (e acumula sentidos nelas)
em função da percepção que temos da modo, sim o somos: o corpo não é mera- ISSN 1982-8632
realidade (e reciprocamente: percebe- mente “tido”, ninguém diz “meu corpo
mos a realidade pelo crivo das pala- está com gripe” ou “você chutou o pé
vras de que dispomos...). Os irmãos do meu corpo”; o que se diz é “Eu estou Revista
dos pais e seus filhos recebem os
com gripe”, “você me chutou”. @mbienteeducação
nomes especiais de “tios” e “primos” V. 4, nº 1, jan/jun,
por uma questão de necessidade, de O Ocidente, com seu afã de ideias 2011: 19-28
economia de linguagem e de pensa- claras e distintas, uma e outra vez,
mento, pois frequentemente nos refe-
propõe uma dualidade radical corpo /
rimos a eles. Já a “cunhada da sogra
da tia da vizinha” nunca receberá um
espírito, deixando por resolver os evi-
nome especial, pois ela não entra na dentes fatos de integração, como as
cena de nossa realidade quotidiana. doenças psicossomáticas e - podemos
Nesse sentido, há uma sugestiva fala acrescentar hoje – os fenômenos soma-
no filme Broken Arrow de John Woo: to-psíquicos. Não só um desgosto espi-
um civil é chamado para ajudar a re- ritual produz ácidos que podem causar
solver um problema de broken arrow uma úlcera material, mas também as
e, ao perguntar o que significa essa alterações do corpo afetam o espírito.
expressão, recebe a resposta de que é Que o diga o meu acupunturista, que
sumiço de arma atômica para o inimi-
com uma agulha é capaz de dissipar
go. Espantado, ele se interroga sobre
o que é pior: o roubo de arma atômica
temores ou rancores espirituais.
ou o fato de já haver um nome para O Oriente (MACMILLAN, 2000) ,
2
isso! (...)
tradicionalmente, ao contrário do Oci-
Confundir é conveniente. Não só dente, não tem a necessidade de teori-
quando se trata de realidades “conju- zar aquilo que pratica, sabe por expe-
gadas” como as que se designam por riência que as coisas funcionam assim
salam , mas também quando a lin- ou assado e isso basta. Já o viés oci-
guagem lida com distinções que não dental – sempre tipicamente falando 21
correspondem à realidade. Por exem- – só aceita, digamos, uma terapia, se
plo, houve épocas e sociedades que dispuser do modelo teórico adequado
trabalharam com a errônea distinção que a “fundamente”: quantos médicos
entre “estrela matutina” (ou “estrela ocidentais recusam, por exemplo, a
d´alva”) e “estrela vespertina”, que,
acupuntura, por acharem que noções
afinal, na realidade, são o mesmo e
único planeta Vênus. E, assim, do como a de Qi, energia, são vagas e in-
ponto de vista científico, o melhor é suficientes. Mesmo confrontados com
acabar com a distinção entre as “es- a comprovada eficácia do tratamento,
trelas” matutina e vespertina. não o prescreverão. O oriental, que
não prioriza o “sistema de pensamen-
Mi (身) - O Corpo no Pensa- to” acolhe a prática que se mostra efi-
mento Confundente caz. Assim, a tradição oriental pensa o
homem como um todo: corpo-espírito,
O parágrafo anterior parece-nos e integrado num todo maior: homem-
especialmente importante para nosso -natureza.
tema, pois permitir-nos-á sugerir que
talvez se perca algo de conhecimento Nosso olhar se dirigirá agora a
sobre o homem na visão distinguidora um conceito antropológico essencial na
do Ocidente em relação ao corpo. Algo tradição japonesa: o de Mi (身). Numa
que a antropologia pode recuperar a primeira aproximação: corpo, self, re-
partir das intuições da língua japone- alidade humana etc. – e a dificuldade
sa. de apreensão, de explicitação, parece Educação e
elevar-se ao infinito. Não que se tra- autonomia: o lugar
O corpo tem um caráter miste- te de um conceito bizarro, artificial ou do corpo na tradição
japonesa
rioso no “eu” de cada um: certamente, estranho, mas precisamente por sua
não somos nosso corpo, mas, de algum adequação e acerto torna-se tão ina- Hirose C
ISSN 1982-8632 preensível quanto o próprio homem. cidas dos japoneses.
Para o Mi, como para os grandes te-
mas antropológicos, sempre vige aque- O CONCEITO DE MI (身) NOS
Revista la famosa e felicíssima observação de PROVÉRBIOS
@mbienteeducação Agostinho, originalmente refletindo
V. 4, nº 1, jan/jun, Comecemos por observar que Mi
sobre o que é o tempo: se ninguém me
2011: 19-28 aparece numa palavra já bem conheci-
pergunta, eu bem sei o que ele é; se eu
da entre nós: Sashimi (刺身). Portan-
quiser explicar, não sei (Si nemo me
to, o leitor brasileiro está familiariza-
quaerit, scio...).
do com um primeiro significado de Mi
Uma dificuldade adicional provém (身) (se quisermos adaptar ao padrão
do fato de que temos - como costuma ocidental, que distingue em várias pa-
ocorrer no sistema língua/pensamento lavras o que o japonês confunde em
oriental – uma relativamente alta acu- (Mi), que enfatiza a carne; a carne que
mulação semântica em Mi, em compa- reveste o osso, como aparece no parti-
ração com as abordagens ocidentais: cular corte de peixe do Sashi-Mi. As-
Mi é o corpo e ao mesmo tempo o ho- sim, quando há uma situação em que
mem todo; Mi é o self, mi pode ser o eu está difícil distinguir as coisas, diz-se:
etc. Se bem que, na verdade, mesmo “É pele ou é Mi”.
as antropologias ocidentais acabam in-
Passando para um segundo signi-
cluindo - de modo mais ou menos cons-
ficado, muito próximo do anterior, te-
ciente e explícito - o corpo como, de al-
mos Mi no sentido do corpo físico.
gum modo, base para o homem todo,
sem que isso implique nenhum tipo de Hara-mo mi-no uti.
materialismo ou exclusão do espírito.
Nesse sentido, note-se de passagem as O estômago também faz parte do
formas inglesas, tão familiares que o Mi.
22 próprio falante do inglês talvez nem
repare mais em sua profundidade: Este provérbio trata do Mi corpo.
everybody, somebody, anybody, nobody Ele diz para não esquecer, quando nos
etc. alimentamos, de que o alimento e a be-
bida vão para o estômago, que não está
Outro fator complicador dessa fora do corpo; ou seja, um alerta contra
nossa reflexão sobre o Mi decorre do a gula.
fato de que o conceito de corpo, no caso,
vem embutido num sistema de articu- Também a sabedoria das expres-
lações semânticas distinto daqueles sões aconselha como medida de segu-
que são usados pelo leitor ocidental. rança: “Deixe o dinheiro pegado ao
Mi”, bem junto de si, como quando as
Com essas observações prévias, mulheres escondem cédulas entre os
podemos agora começar a aproximar- seios.
-nos do conceito Mi (e, para tanto, o
caminho dos provérbios e expressões Nessa mesma linha, encontramos
idiomáticas parece adequado). Natu- Mi no sentido de base para panelas,
ralmente, trata-se aqui somente de caixas, recipientes, que servem para
uma primeira e informal aproximação. conter (nesse caso, o contraponto é
dado por uma tampa), como no provér-
Os provérbios que apresentamos a bio:
seguir foram extraídos das coletâneas
Educação e que indicamos nas referências biblio- Mi mo futa mo nashi.
autonomia: o lugar
do corpo na tradição gráficas; projetos editoriais ousados
japonesa que buscaram recolher os provérbios e/ Sem Mi nem tampa.
Hirose C ou expressões idiomáticas mais conhe-
O sentido é o de que não tem graça cia...”, circuns-tância que inclui, sobre- ISSN 1982-8632
ir diretamente a um assunto, sem os tudo, outros Mi.
comentários adequados dos aspectos
contextuais. Nesse caso, a comunica- Kyou-wa hito-no Mi, ashita-wa Revista
ção é insossa: falta-lhe a carne do Mi. waga Mi. @mbienteeducação
V. 4, nº 1, jan/jun,
2011: 19-28
Do mesmo modo, o corpo, também Hoje, o Mi do outro; amanhã, meu
para nós, é estrutura básica, como Mi.
quando falamos em corpo docente,
corpo diplomático, corpo de baile, cor- Incluem-se aí, evidentemente, as
po da guarda, corporação, incorporar, incertezas da existência humana, ao
ganhar corpo etc., à margem de outras sabor do contingente. O que se reflete
dimensões: da alma, do espírito, do co- também em:
ração...
Hito-no ue-ni fuku kaze-wa waga
Mi, dimensão corporal, pode facil- Mi-ni ataru.
mente estender-se à totalidade: uma
vez que o corpo do ser vivo é precisa- O vento que sopra em cima do ou-
mente um corpo animado. Assim, tro, bate em meu Mi...
Ortega: “Yo soy yo y mi circunstan- ral, que garante a integridade do Mi. Hirose C
ISSN 1982-8632 Mi-de Mi-wo kuu. nidade do Mi. Mesmo as vicissitudes e
contingências da vida são (devem ser)
É o Mi que consome (come) o Mi. proporcionais ao Mi:
Revista
@mbienteeducação O provérbio lembra que a prin- Mi-ni sugita kahou-wa wazawai-
V. 4, nº 1, jan/jun, cipal destruição é a autodestruição. -no moto.
2011: 19-28
Também há a variante:
A sorte que ultrapassa o Mi será a
Mi-de Mi-wo tsumeru. base da desgraça.
Muitas coisas sobre nós mesmos Fatalmente, todos os que hoje es-
não podemos perceber sozinhos. O me- tão vivendo, um dia morrerão.
lhor é perguntar aos outros para se au-
toconhecer. E ouvir com humildade as Shoubu goto-no suki-na mono-wa
opiniões alheias. Mi-ga motenu.
28 Aceito em 05.12.2010.
Educação e
autonomia: o lugar
do corpo na tradição
japonesa
Hirose C