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Mediadores e literatura para

crianças
Dagoberto Buim Arena*

Resumo Introdução1
No campo da literatura para crian-
ças, o lugar ocupado pelos adultos é No campo da literatura para crian-
considerado como o do mediador. O ças, o lugar ocupado pelos adultos –
objetivo deste ensaio é reafirmar que bibliotecários, pais e professores – é
esse lugar pertence aos signos e, para
isso, recupera o conceito de signo
ideológico em Volóchinov (1895-1936), *
Possui graduação em Letras pela Universidade Esta-
a formação do psiquismo e a função dual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1972), graduação
em Pedagogia pela Faculdade de Ciências e Letras de
mediadora dos signos em Vigotski Votuporanga (1978), mestrado em Educação pela Uni-
(1896-1934) e o conceito precursor de versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
mediadores em Sorokin (1889-1968). (1991), doutorado em Educação pela Universidade
A tese a ser defendida considera os Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1996) e
Pós-Doutorado pela Universidade de Évora, Portu-
homens como seres humanos em re- gal (setembro a dezembro de 2007), financiamento
lação mediada por signos organizados FAPESP. Em novembro e dezembro de 2010, realizou
em gêneros, que compõem o campo da estágio pós-doutoral junto ao Instituto Nacional de
literatura para crianças. A conclusão Pesquisas Pedagógicas (INRP), em Lyon, França.
Pós-Doutorado pela Université-Sorbonne, Paris IV
aponta que as atitudes humanas, ao (08.10.2013 a 07.08.2014), com financiamento FAPESP.
lidar com a literatura, podem vir a Livre-docente pela Universidade Estadual Paulista
ser signos e que somente neste aspec- (UNESP) em 2013. Atualmente é professor Adjunto do
Departamento de Didática e do Programa de Pós-Gra-
to é que o homem pode fazer parte de
duação em Educação da Universidade Estadual Paulista
um conjunto sígnico mediador. Júlio de Mesquita Filho, em Marília. Trabalhou como
professor, diretor de escola e supervisor de ensino na
Palavras-chave: Literatura infantil; rede pública estadual paulista. Tem experiência na área
de Educação, com ênfase em Métodos e Técnicas de
Mediador; Signo ideológico; Fato so- Ensino, atuando principalmente nos seguintes temas:
cial. leitura, alfabetização, leitura e escrita. Orientador
no programa DINTER entre Universidade Federal
do Maranhão e UNESP de Marilia (2008-2010) e no
DINTER entre Instituto Técnico Federal do Ceará e
UNESP de Marília (2012-2014). Pesquisador convidado
do Laboratório Linguistique, Langues, Parole (LiLPa)
da Faculté de Lettres, da Université de Strasbourg,
França no período de 22 de setembro a 18 de dezembro
de 2015. Orientador no Dinter entre UNESP de Marília
e Instituto Federal de Rondônia de 2018 a 2022. E-mail:
dagobertobuim@gmail.com

Data de submissão: dez. 2020 – Data de aceite: mar. 2021


http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v17i01.11554

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consensualmente o lugar ocupado pelo relação mediada por signos organizados
mediador. Esse aspecto consensual vem, em gêneros que compõem o campo da
quero crer, da visão da aparência do fe- literatura para crianças. Visto por esse
nômeno, porque há a percepção visual de prisma, o homem adulto não medeia,
um adulto que toma um livro nas mãos mas faz parte de um dos polos. Todavia,
e intermedeia a relação da criança com a tese considera também que o livro,
esse livro e com seu conteúdo literário. isto é, a criação cultural humana, não
Essa relação entre seres humanos, de se descola dos homens. Isso pressupõe
gerações distintas, transposta para um que os homens criam histórias, livros,
esquema simplificado, acentua e justifi- gestos e modos de ler e é esse conjunto
ca o consenso: há um livro com texto e que compõe o mediador. Portanto, as
ilustrações, parte da cultura humana, atitudes humanas, ao lidar com a lite-
que compõe a literatura de um povo e ratura, são compostas por signos que se
que deve ser conhecido pelas novas ge- fundem a ela. Neste aspecto, e somente
rações. O adulto estaria em posição in- neste aspecto, é que o homem compõe o
termediária, como neste esquema: livro conjunto mediador, mas não ele mesmo,
de literatura – adulto – criança. isoladamente, o ocupante desse lugar.
Analisado o esquema com as lentes da Os argumentos arrolados para a defesa
aparência não há como discordar do con- dessa tese compõem o desenvolvimento
senso. Como a função do investigador é a deste ensaio que incluem como o pensa-
de pensar e de repensar constantemente mento Valentin Volóchinov (1895-1936),
suas abordagens de análise, alimentadas de Lev Vigotski (1896-1934), e Pitirim
por diferentes princípios teóricos, é pos- Sorokin (1889-1968).
sível acoplar outras lentes e olhar para As lentes teóricas que reinterpretam
o mesmo processo por outra perspectiva. esse papel de mediador têm como referên-
É esse exercício que pretendo fazer neste cia os estudos de Vigotski sobre o conceito
ensaio. Em palavras mais diretas, o ob- de mediador atribuído aos signos e, em
jetivo é rever o papel de mediador atri- um olhar mais amplo, a toda a cultura
buído ao adulto. Em vez de usar o termo humana, porque os signos são os instru-
mediação, optarei por usar o de mediador mentos de constituição do pensamento.
por se referir à uma manifestação concre- Entre a geração adulta e a outra que
ta, ancorada em conjuntos de signos, mas nasce interpõem-se os signos, a cultura, a
a referência a outros estudos respeitará arte, e também a literatura para crianças,
o termo empregado na fonte de origem. A considerados os reais mediadores, porque
tese a ser defendida pressupõe conside- portam com eles os gestos, os atos, os
rar os homens como seres humanos em materiais, os instrumentos e os modos

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de operar humanos. De Volóchinov serão considerado ideológico, especialmente o
recuperados o conceito de signo ideológico signo verbal escrito, matéria-prima da
no vasto mundo da criação ideológica, obra literária, e o signo de modo geral,
onde se situa a literatura para crianças instrumento pelo qual o homem com-
e seu papel na formação da consciência. preende a realidade e age sobre ela. Por
Os aportes vindos de Sorokin, via Tilko- essa razão, é necessário compreender a
wski (2012), destacarão o conceito de fato noção de signo ideológico, o lugar que ele
social, o papel das trocas sociais entre os ocupa na criação da cultura humana e
grupos humanos e, sobretudo, a origem do a sua ligação com os meios de produção
conceito de mediador e de sua estrutura. da base econômica; dito de outro modo,
Tanto Vigotski quando Volóchinov podem o lugar que ele ocupa na superestrutura
ter se nutrido dos estudos de Sorokin social, no mundo ideológico, e seus vín-
para desenvolver algumas de suas teses culos com a infraestrutura. Essa abor-
sobre mediadores. É o que demonstrarei dagem foi bem discutida por Volóchinov
no último tópico. em sua obra mais conhecida no Brasil
Para perseguir a demonstração desta – Marxismo e Filosofia da Linguagem:
tese, o desenvolvimento do ensaio se “O problema da correlação entre a base
apoiará também nos princípios de cul- e as superestruturas [...] pode ser, em
tura como forma de humanização, da grande parte, compreendido justamente
necessidade de se oferecer às crianças no material da palavra” (VOLÓCHINOV,
as formas ideais (VIGOTSKI, 2010) de 2017, p. 106). A base seria constituída pe-
cultura desde o nascimento, e no princí- las relações humanas direcionadas para
pio de que o homem histórico, cultural e e pela produção econômica. As relações
social se funde, pelos seus atos culturais, refletiriam a organização econômica,
com sua criação, e pode, por isso, ocu- a relação entre capital e trabalho, a
par, somente nessa condição de signo, a produção de bens, o acesso a eles, a sua
função de mediador, porque essa função distribuição e a sua partilha.
pertenceria exclusivamente aos signos. São essas relações de base, de infraes-
trutura, que estabelecem vínculos estrei-
Os aportes da filosofia tos com a criação cultural humana, si-
da linguagem e da teoria tuada em outro patamar das relações, na
superestrutura, já que “a essência desse
histórico-cultural problema se reduz a como a existência
Um dos pontos teóricos dos argu- real (a base) determina o signo, e como
mentos aqui apresentados tem como o signo reflete e refrata a existência em
referência o caráter mediador do signo, formação” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 106.

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grifos do autor). Não há, portanto, reflexo ções. O signo, aparentemente fixado nos
da realidade de uma instância à outra, suportes, é sensível às mudanças sociais
mas refração, porque a criação cultural, que se desenrolam na infraestrutura: “É
cuja matéria é o signo, interpreta essa bastante óbvio que a palavra será o in-
realidade conforme são estabelecidas as dicador mais sensível das mudanças so-
relações dos homens que a recriam. ciais, sendo que isso ocorre lá onde essas
No reino da criação literária para mudanças estão se formando, onde elas
crianças, o livro com suas histórias ainda não se constituíram em sistemas
seria o objeto mediador entre o homem ideológicos organizados” (VOLÓCHI-
e a realidade; a palavra verbal escrita NOV, 2017, p. 106, itálicos no original),
e as imagens refratadas assumiriam isto é, na infraestrutura. O signo verbal,
profundamente a sua função de signos na essência de seus sentidos, se modifica
ideológicos que se situam na relação conforme são modificadas as trocas e as
entre o adulto e a criança que chega ao mudanças sociais, porque ele mesmo dá
mundo, uma vez que condições para a criação das relações e
[...] a palavra participa literalmente de toda para a recriação ininterrupta da cultura.
interação e de todo contato entre as pessoas Concebe-se, consideradas essas condi-
[...] Na palavra se realizam os inúmeros fios ções, o seu papel de mediador sensível.
ideológicos que penetram todas as áreas da
comunicação social. (VOLÓCHINOV, 2017, A palavra artística escrita, inscrita
p. 106). em suportes diversos, é manifestação
concreta do ser humano que dela faz
A literatura infantil, como criação
seu instrumento de recriação da reali-
cultural, então, penetra e compõe a co-
dade, de criação da cultura e de troca
municação social.
social entre homens e entre gerações.
A tradução do russo para o francês fei-
Há, entretanto, outras manifestações e
ta por Sériot e Tilkowski-Ageeva da obra
criações sígnicas além do campo da pala-
acima citada de Volochinov substitui a
vra verbal que compõem um conjunto ao
expressão “comunicação social” por “tro-
qual Volóchinov (2017, p. 93, grifo autor)
ca social” (VOLOŠINOV, 2010, p. 151),
nomeia como o universo ou o mundo dos
mais próxima das relações humanas,
signos: “desse modo, além dos fenômenos
pelas quais os homens dão e recebem os
da natureza, dos objetos tecnológicos
bens culturais já criados. Desse ponto
e dos produtos de consumo, existe um
de vista, a literatura para crianças,
mundo particular: o mundo dos signos”.
como bem cultural, permite que adultos
Ora, esse mundo povoado de signos não
e crianças troquem gestos, intenções,
seria constituído por signos-palavras
saberes, condutas, sentidos e aprecia-
apenas, mas por muitos outros, porque

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“os signos também são objetos únicos e encontra fora dos seus limites. Tudo o que
é ideológico possui uma significação: ele
materiais e, como acabamos de ver, qual-
representa e substitui algo encontrado fora
quer objeto da natureza, da tecnologia ou dele, ou seja, ele é um signo. Onde não há
de consumo pode se tornar um signo.” signo também não há ideologia. (VOLÓCHI-
NOV, 2017, p. 91).
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 93).
Pode-se entender que os gestos são Quais são os destaques dessa citação
signos, a conduta e a expressão física e in- para o que aqui interessa? A ideia de que
telectual humanas são signos. Portanto, o produto ideológico que se situa na supe-
o adulto bibliotecário/professor/pai pode restrutura, portanto no reino da criação
compor, ao se relacionar com a criança cultural humana, refrata a realidade
por meio do livro, e com ele também, a seu modo, mas não a reproduz, nem
um conjunto sígnico, isto é, um conjunto dela faz uma cópia, é um dos destaques.
semiótico. Esta hipótese será retomada A refração da realidade e a função do
mais ao final deste ensaio. Por ora, é signo são referendadas por Volóchinov
preciso destacar a natureza ideológica (2017, p. 93):
dos signos, entre os quais as palavras
[...] o signo não é somente uma parte da
e as ilustrações de uma obra, e, por que realidade, sendo por isso mesmo capaz de
não, as expressões, os olhares, os gestos, distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um
ponto de vista específico, e assim por diante.
as apreciações, os julgamentos visíveis,
audíveis e as intenções percebidas. O segundo destaque é o de que um
A função e a natureza do signo são corpo físico, não como parte da realidade,
determinantes para a compreensão da mas tomado como algo que remete a uma
realidade, na qual se inclui o homem, significação fora dele, pode vir a ser um
porque são, ao mesmo tempo, instru- signo. Adiante este aspecto será reto-
mentos de compreensão da realidade e mado quando Sorokin será chamado a
instrumentos de formação da consciên- contribuir para a argumentação. Pode-se
cia humana, portanto, profundamente pensar no corpo humano não como um
essenciais ao longo da vida e por meio corpo biológico, mas como instrumento
dos quais são feitas as escolhas e são de uma consciência que faz trocas com
tomadas as decisões que formarão o outras, como no caso da sessão de lei-
psiquismo: tura, da partilha de atos de ler livros
Qualquer produto ideológico é não apenas de literatura com crianças. Nesse caso,
uma parte da realidade natural e social – pode-se reiterar: a consciência e o corpo
seja ele um corpo físico, um instrumento de
produção ou um produto de consumo – mas físico fundidos se tornam signo. O tercei-
também, ao contrário desses fenômenos, ro destaque se refere ao valor ideológico
reflete e refrata outra realidade que se do signo, isto é, há sempre apreciação

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valorativa na percepção e na manifes- conceito de forma ideal é preciso recor-
tação humana por signos, os mediadores rer a suas observações sobre a relação
fundamentais das trocas sociais. entre o meio, entendido como o entorno
Em suma: os signos, sejam quais fo- cultural, e o desenvolvimento da criança.
rem, têm natureza ideológica e, portanto, O autor faz uma indagação inicial sobre
portam valores sujeitos a apreciações e isso, ensaia uma resposta com o intuito
julgamentos. As relações de troca cultu- de delinear gradativamente o conceito:
ral entre gerações, em que a literatura Em que consistem essas relações especí-
para crianças ocupa o papel de mediado- ficas entre o meio e o desenvolvimento, se
ra, são constituídas por signos visuais, falamos sobre o desenvolvimento da per-
sonalidade da criança, sobre as qualidades
enunciados verbais escritos, ilustrações, específicas do homem? A mim me parece que
gestos, expressões corporais, enunciados essa particularidade consiste no seguinte:
no desenvolvimento da criança, naquilo que
verbais orais, entonações, ênfases, tim-
deve resultar ao final do desenvolvimento,
bres, todos eles prenhes de valores e de como resultado do desenvolvimento, e que
ideologia, fundamentais para a formação já está dado pelo meio logo de início. E não
somente dado pelo meio logo de início, mas,
da consciência e da própria condição
também, influente nas etapas mais prime-
humana. vas do desenvolvimento da criança (VIGOT-
SKI, 2010, p. 693).
As formais ideais de A incorporação do pensamento de
cultura em Vigotski Vigotski e desses trechos de sua autoria
deriva da minha intenção de analisá-los
Vigotski atribui fundamental papel
com as lentes dos estudos da literatura
às formas ideais de cultura no processo
considerada criação constituinte da cul-
de humanização das crianças como seres
tura humana, composta não somente pelo
da espécie em desenvolvimento ontoge-
objeto cultural, mas pelos atos culturais
nético e filogenético. O entorno cultural,
humanos que a impregnam desde a sua
isto é, o meio – e aqui estão incluídos
criação, pela escolha dos suportes, pelos
a criação cultural e os homens que as
modos de circulação, pelos modos de ler e
criam, as distribuem e as manipulam
pelos modos de a apreciar. Orientado por
– desempenha função incontornável na
esse olhar, as palavras de Vigotski insis-
formação do psiquismo e no legado cul-
tem que a formação intelectual esperada
tural entre gerações. Entre essas formas
no final do desenvolvimento do homem
ideais de cultura destaco a invenção
deve estar já no seu entorno desde o início
histórica e cultural da literatura para
de sua vida. Se os homens e suas insti-
crianças, sua divulgação e sua prática
tuições esperam e desejam que os adultos
social. Para melhor compreender esse

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das gerações emergentes sejam leitores de humanização. Com um olhar imbuído
de literatura, ou mesmo recriadores de pela importância da literatura para as
literatura, é necessário que essa forma crianças, compreende-se que os adultos,
ideal de cultura, integral e complexa, não os livros lidos e por eles manipulados
somente como objeto isolado, mas como em suas relações compõem uma forma
objeto nas relações humanas, faça parte ideal que desde os primeiros momentos
do universo infantil deste os primeiros da vida promovem o desenvolvimento
momentos de seu desenvolvimento. Se intelectual, social e psíquico:
houver a ausência dessa forma ideal A maior particularidade do desenvolvi-
na infância, se as crianças forem dela mento infantil consiste em se tratar de um
privadas, ficarão à margem de um as- desenvolvimento que ocorre em condições de
interação com o meio, quando a forma ideal,
pecto da cultura humana, essencial para a forma final, esta que deverá aparecer ao
seu desenvolvimento ontogenético, com final do desenvolvimento, não somente exis-
te no meio e concerne à criança logo desde o
consequências para o desenvolvimento
início, mas realmente interage, realmente
filogenético. exerce influência sobre a forma primária,
O conceito de forma ideal se esboça sobre os primeiros passos do desenvolvi-
mento infantil, ou seja, em outras palavras,
um pouco mais em Vigotski (2010), ao
há algo, algo que deve se construir bem ao
entender que essa forma é a ideal, a espe- final do desenvolvimento, e que, de alguma
rada, a desejada, ou, ainda, a necessária, maneira, influencia logo o início desse de-
senvolvimento. (VIGOTSKI, 2010, p. 693).
a crucial para o desenvolvimento pleno
do homem. É como se fosse um ponto As assertivas a respeito do papel
de chegada (embora o ponto de chegada da literatura podem até ser contesta-
sempre se desloque) do desenvolvimento das, porque adultos ávidos leitores de
desejado: literatura podem não ter tido a opor-
Combinemos que essa forma desenvolvida, tunidade de viver em um meio cultural
que deverá aparecer no final do desenvolvi- quando crianças. Ou, em caminho in-
mento infantil, será chamada, assim como
verso, crianças que viveram situações
fazem na pedologia contemporânea, de for-
ma final ou ideal – ideal no sentido de que culturais com essas formas ideais não
ela consiste em um modelo daquilo que deve mantiveram quando adultas as mesmas
ser obtido ao final do desenvolvimento – ou
final – no sentido de que é esta a forma que atitudes intelectuais. Somente pesquisas
a criança, ao final de seu desenvolvimento, específicas poderiam encontrar razões,
alcançará. (VIGOTSKI, 2010, p. 693). acontecimentos, situações de vida, re-
Ocultar a forma ideal na infância é lações humanas que explicariam essas
colocar obstáculos ao desenvolvimento hipóteses. Vigotski (2010), de seu lado,
intelectual, cultural, social do homem. mencionava, ainda que de modo bem
Significa, portanto, retardar o processo genérico, pesquisas que indicavam ser

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a ausência da forma ideal desde o início Ao entender a literatura para crian-
um obstáculo ao desenvolvimento pleno. ças e os modos como os homens a criam,
Ao trazer a observação para a temática a usam e a transmitem como um con-
deste ensaio, levanto a hipótese de que junto semiótico, quero compreender que
os leitores adultos de literatura que não as gerações humanas em uma cultura
leram a literatura na infância não terão determinada, em um espaço geográfico
o mesmo desenvolvimento no ponto de determinado, tomam esse conjunto como
chegada em relação àqueles que a le- o mediador de suas relações. Esse con-
ram. Assim se manifesta Vigotski (2010, junto mediador porta, em seu núcleo, a
p. 695) sobre isso: materialidade, a imaterialidade e os atos
[...] pesquisas mostram que iriam, mas de culturais humanos. Os signos medeiam
forma extraordinariamente singular, isto as relações, por isso os atos humanos
é, as ações sempre irão se desenvolver de também compõem esse universo sígnico.
modo muito lento, muito particular e nun-
ca atingirão aquele nível que atingiriam Entretanto, há um duplo papel para o
quando existe no meio uma forma ideal homem: é mediado – o primeiro papel –
correspondente.
porque está nas relações em que a forma
Pesquisas mostram que iriam, mas de for-
ma extraordinariamente singular, isto é, as ideal ocupa o lugar de mediador, mas ao
ações sempre irão se desenvolver de modo usar e ao se impregnar da forma ideal
muito lento, muito particular e nunca atingi-
– o segundo papel – ele se funde com o
rão aquele nível que atingiriam quando exis-
te no meio uma forma ideal correspondente. livro pela forma ideal de lê-lo, de usá-lo,
por isso se torna também um signo que
Por fim, Vigotski (2010) insiste que contribui para a composição do conjunto
o processo de formação humana toma semiótico da forma ideal de mediador.
como princípio o processo de apropria- A criança não se apropria da literatura
ção da cultura, em todas as suas formas como uma forma ideal isolada do homem,
e manifestações, portanto, de todas as mas se apropria dela por inteiro, impreg-
suas formas ideais constituídas pela nada pelos atos humanos específicos de
cultura material e pela cultura imaterial ler literatura.
impregnadas pelas intenções, gestos e
atitudes humanas.
A função mediadora dos
Essas formas ideais influenciam a criança
desde os primeiros passos que ela dá rumo
signos em Vigotski
à dominação da forma primária. E, no de-
correr de seu desenvolvimento, a criança Para abordar a temática dos signos
se apropria, transforma em suas aquisições como mediadores e a que enfatiza a ne-
interiores aquilo que, a princípio, era sua
forma de interação externa com o meio. (VI-
cessidade de desenvolvimento cultural
GOTSKI, 2010, p. 698). do homem, convém esclarecer que o fio

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condutor para essa abordagem será feito mais se desenvolve culturalmente quan-
pelos fios tecidos por Nascimento (2014) to mais se relacionar com os adultos que
ao estudar esses conceitos em Vigotski estão no outro polo do esquema de rela-
(2010). ções em que uma manifestação cultural
A respeito da cultura e de seu papel criada e em permanente recriação, como
na formação humana, Nascimento (2014) a literatura, ocupa o lugar de mediador.
registra que Vigotski vê O que medeia a relação entre eles é esse
[...] o desenvolvimento cultural como “o do- bem cultural composto por um conjunto
mínio de meios externos da conduta cultural semiótico complexo. Esse conjunto é gra-
e do pensamento, ou o desenvolvimento da dualmente apropriado pela criança, isto
linguagem, do cálculo, da escrita, da pin-
tura, etc.” (VYGOTSKI, 1930/1995b, p. 34 é, “toda uma série de formas de conduta”.
apud NASCIMENTO, 2014, p. 144). Isso vai ser fundamental na sua forma-
ção e em seu processo de humanização.
É nesse universo cultural que se inse-
Esse conjunto de signos exerce o pa-
re a literatura para crianças e seu papel
pel de mediador entre as duas gerações,
no desenvolvimento pleno do homem,
uma vez que
resultante das relações entre os homens
no mundo social, porque [...] para Vygotski (1930/1995d), é graças ao
signo que se estabelece a comunicação, pois,
Para Vygotski (1930/1995d, p. 150), a etapa o signo é o traço fundamental do desenvol-
externa da história do desenvolvimento vimento superior das relações mediadas dos
cultural é social, ou seja, encontra-se no homens (NASCIMENTO, 2014, p. 188).
conjunto das relações humanas. Vygotski
(1930/1995d, p. 150) entende que, por trás Ao se referir às relações humanas
do desenvolvimento de todas as funções
como mediadas, Vigotski sugere que
superiores, estão as relações sociais – as
relações humanas. [...] “cada forma nova de existe entre os homens algo que os me-
experiência cultural não surge simplesmen- deia, isto é, os signos, e com uma visão
te desde fora, independentemente do estado
mais ampliada pode-se afirmar que são
do organismo no dado momento de desenvol-
vimento, mas que o organismo, ao assimilar os bens culturais compostos por signos,
as influências externas, ao assimilar toda e, sob uma visão mais específica, a lite-
uma série de formas de conduta, as assimila
de acordo com o nível de desenvolvimento ratura para crianças em qualquer forma
psíquico em que se encontra.” (VYGOTSKI, física ou virtual impregnada dos gestos
1930/1995d, p. 155 apud NASCIMENTO, humanos. Nas relações entre adultos e
2014, p. 145).
crianças há uma abundância sígnica que
É importante destacar na citação estreita o vínculo entre um e outro, que
a ideia de que o desenvolvimento do vem a fortalecer o elo de desenvolvimen-
homem depende de suas relações com to cultural e intelectual da espécie.
os outros homens, logo, a criança tanto

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Apesar de o protagonismo do media- não é o mediador entre a criança e o
dor ser assumido pelos signos, o adulto se bem cultural, mas ele próprio encarna
funde a eles, porque as suas práticas e os o bem e a ele dá vida. O homem adulto
seus gestos são também signos. Portanto não seria simplesmente uma estrada,
é ele, como afirmei antes, nessa condição como sugere a metáfora de Vigotski. Se
de signo também um mediador, como assim fosse, os signos e todo o conjunto
Nascimento (2014) destaca: semiótico não seriam os mediadores, mas
Desde os primeiros dias do desenvolvi- os mediados, e a função de mediador, a
mento, toda a história do desenvolvimento de estrada, seria a do adulto, mas isso
psíquico da criança nos mostra que consegue contraria os princípios que atribuem aos
adaptar-se ao entorno, graças à mediações
sociais, por intermédio das pessoas que a signos essa função.
rodeiam. O caminho da coisa à criança e É clássico o argumento entre vigost-
desta à coisa, passa por intermédio de outra
kianos de que se a humanidade sofresse
pessoa. A transição desde a via biológica à
social do desenvolvimento é a conexão chave uma hecatombe e se somente um ser
no processo de desenvolvimento, um ponto humano recém-nascido sobrevivesse, ele
de inflexão crucial na história do compor-
não se apropriaria da cultura humana,
tamento da criança. Nossos experimentos
demonstram que o caminho por intermédio mesmo se os bens culturais continuas-
de outra pessoa é a autoestrada [rodovia, via sem existindo, porque não haveria o
de circulação] central do desenvolvimento
da inteligência prática. Aqui, a fala desem- outro homem adulto que o ensinasse a
penha um papel primordial. (VYGOTSKI; compreender e a usar os bens culturais.
LURIA, 1931/2007, p. 28-29 apud NASCI- Como vem sendo discutido até aqui, a
MENTO, 2014, p. 197).
coisa não se separa do homem e o homem
As palavras de Vigotski sobre o desen- não se separa da coisa.
volvimento da criança dão protagonismo
às mediações sociais, isto é, aos homens Fatos sociais e mediadores
que estão no entorno da criança e que se
situam no caminho entre a criação cul- Por quem o conceito de mediador
tural, a coisa, e ela, a criança. A criação teria entrado no cenário russo nos anos
pode ser o livro de literatura. Entretan- 1920? Para comentar essa interrogação
to, essa coisa não é um objeto isolado que a mim me fiz, foi necessário recorrer
dos atos humanos, dos usos humanos, aos estudos de Tilkowski (2012) sobre o
do fazer humano. A coisa, o objeto, a contexto intelectual em que Volóchinov
história criada, porta com ela esses atos se nutria. Entre os sociólogos da época,
todos que são, em síntese, o conjunto a pesquisadora encontrou nos estudos
semiótico já aqui referido. É necessário sociológicos de Pitirim Sorokin as pistas
considerar, por essa razão, que o homem que estabeleciam o elo entre esses dois

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pesquisadores. Volochinov não teria de contato entre os três, especialmente
tido contato direto com Sorokin, mas o em relação à noção de troca, formação
conhecimento de sua obra teria sido feito social do psiquismo e os signos exteriores
por meio dos estudos de Pavel Sakulin como objetos de estudo. O conceito de
(1868-1930) de quem ele era próximo mediador vai se constituindo a partir
e com quem convivera em Nevel, nos desse outro, do fato social elementar e
duros tempos da crise econômica rus- de sua estrutura, assim concebida por
sa. Sorokin publicara dois tomos de O Sorokin, conforme registra Tilkowski
sistema de sociologia, muito citado por (2012, p. 218):
Sakulin, com previsão de oito volumes. Sorokin define o fato elementar como um fe-
O primeiro cuidou da interação entre nômeno com três componentes: (1) ao menos
os indivíduos e o segundo da interação dois indivíduos que condicionam mutual-
mente sua vivência e seu comportamento;
entre grupos sociais. Os demais não fo- (2) os atos pelos quais os indivíduos se in-
ram publicados, porque ele foi expulso fluenciam uns aos outros; e (3) os “mediado-
res” [provodnik konduktori] que veiculam os
da Rússia pelos bolcheviques em 1922 e
atos de um indivíduo a outro (ibi:142).
se instalou posteriormente nos Estados
Unidos (TILKOWSKI, 2012). Os mediadores entre os homens são
Sorokin considera a interação entre os signos exteriores, instrumentos que
dois indivíduos como o fato elementar permitem a troca de atos sociais e, conse-
de toda a vida social constituída pela quentemente, dão as condições para que
interação entre grupos de indivíduos e os homens se influenciem mutuamente
grupos sociais. Para ele, “as vivências na formação de suas consciências. Antes,
psíquicas [psixiceskie perezivanija] ou os portanto, de Vigostki e de Volóchinov,
atos exteriores [vnesnie akty] de um in- Sorokin já tinha esclarecido o conceito
divíduo mudam em função das vivências de mediador e apontado quem são esses
e dos atos exteriores de um outro (ou de mediadores. Mais interessante ainda é
outros) indivíduo(s)”. (SOROKIN [1920] o aprofundamento da conceituação que
1993:102, apud TILKOWSKI, 2012, p. revela ser ele uma das possíveis fontes
2017). Para analisar esse fato social ele- de onde Volóchinov e seus amigos, entre
mentar, é proposto um método objetivo os quais Medvedev (1892-1938), Bakhtin
que considere “os atos, os movimentos, os (1895-1975) e Jakubinskij (1892-1945)
gestos, as mímicas, o conteúdo da fala, a teriam bebido a água que os levaria a
entonação, etc., como fato exterior obser- escolher o diálogo amplo, não somente
vável” (TILKOWSKI, 2012, p. 217). Os o face a face, como matriz das relações
estudiosos das obras de Volóchinov e de humanas. Para Tilkowski (2012, p. 219),
Vigotski encontram neste trecho pontos “Sorokin define os ‘mediadores’ como os

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fenômenos que permitem interagir não para restar assim tão afastada do núcleo
somente as pessoas que se encontram em dos comentários referenciados, estão in-
presença física imediata, mas também clusos a noção tão cara a Volóchinov de
aquelas que estão separadas do ponto troca social por meio de signos/símbolos,
de vista espacial e temporal”. quanto o pensamento de Vigotski ao se
Os estudos de Tilkowski revelam que referir à escrita como um símbolo de
Sorokin, em 1913, bem antes de Volóchi- segunda ordem, ao tomar a linguagem
nov, de seus amigos e de Vigotski, discu- oral como de primeira ordem: “é natu-
tia o conceito de símbolo e de seu papel ral que uma fala sem sonoridade real,
na vida social, em um tipo precursor de somente imaginada e representada, que
estudos semióticos. Os símbolos seriam exige simbolização de segunda ordem,
os mediadores, isto é, os signos, uma vez resulte à criança tão difícil em relação
que “Sorokin designa por mediadores à fala oral como a álgebra em relação à
os símbolos ou os signos que ele define aritmética” (VIGOTSKI, 2012, p. 340).
como ‘as formas externas de todo pensa- Sorokin e Vigotski se encontram na
mento [mysl’] e de todo ato consciente’”. expressão “segunda ordem”, tão citada
(SOROKIN, 1913:10 apud TILKOWSKI, entre os vigotskianos.
2012, p. 219). As fontes de Sorokin para Um dos objetivos anunciados na in-
analisar o conceito de símbolo estariam, trodução deste ensaio fazia referência ao
para Tilkowski, nos estudos linguísticos debate do papel de mediador conferido a
de Humboldt (1767-1835) - a quem Voló- professores, bibliotecários, como profis-
chinov situa no campo do subjetivismo sionais, ou a qualquer ser humano, em
idealista - e retomados por Potbenjá qualquer etapa da vida, quando introduz
(1835-1891). Tilkowski (2012, p. 220, o outro na cultura humana, nas criações
grifos do autor) o encontra em Sorokin ideológicas, entre as quais se acomoda a
para quem literatura para crianças. As incongruên-
[...] a palavra humana é inteiramente sim- cias, divergências ou deslizes conceituais
bólica já que ela exprime o pensamento, que certamente se manifestam em virtude de
‘a vida social não é outra coisa senão o sim- opções teóricas distintas, de pontos de
bólico’ ou um processo de troca de símbolos.
Se Sorokin faz a distinção entre os ‘símbolos’ ancoragens não próximos uns dos outros.
e os ‘símbolos de símbolos’ (ou símbolos de Para os que querem se situar no campo
segundo, terceiro graus, etc.), no Sistema
dos estudos do enfoque Histórico-Cultu-
sociológico, ele opõe ‘mediadores físicos’ e
‘mediadores simbólicos’ ral, como Vigotski, ou em um dos campos
da Filosofia da Linguagem no qual se
Neste trecho, parte de uma nota de abriga Volóchinov, convém melhor escla-
rodapé, que considero muito importante recer o lugar de onde aqueles se posicio-

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nam para observar, na conceituação de entretanto, fazer qualquer referência a
Sorokin, o fato social elementar, a troca Sorokin. O professor/bibliotecário/ ou
social por meio de signos e a distinção qualquer ser humano, em seu aspecto
entre mediadores físicos e mediadores físico, por si só não é um mediador, mas
simbólicos, para quem “o ‘mediador’ é poderá vir a ser, se compuser um amplo
uma rede intermediária entre dois fatos conjunto semiótico a ser apropriado pela
psíquicos” (TILKOWSKI, 2012, p. 220). geração emergente. Ainda em Volóchinov
Para discutir o papel simbólico de um há referência mais próxima à simbolo-
mediador físico, Sorokin faz referência gia do tecido vermelho de Sorokin, ao
ao uso de um pano vermelho em países e fazer referência à foice e ao martelo no
situações não coincidentes. Em um país emblema da URSS como símbolos ideoló-
em tempos de paz, um trapo vermelho gicos em vez de apenas uma imagem do
içado na rua causa especulações entre os objeto. Reafirma o que dissera Sorokin:
transeuntes a respeito de seus sentidos e “todo corpo físico pode ser também per-
objetivos de quem o içou. Em um país es- cebido como uma imagem de qualquer
tremecido por movimentos revolucioná- coisa [...]” (VOLOŠINOV, 2010, p. 129,
rios, os sentidos serão outros. Nas duas trad. nossa), mas “um corpo físico, por
situações, “o indivíduo que o içou pode assim dizer, idêntico a ele mesmo, nada
condicionar o comportamento de outras significa, coincidindo inteiramente com
pessoas pelas propriedades puramente seu caráter de dado único e natural”
físicas desse mediador” (TILKOWSKI, (VOLOŠINOV, 2012, p. 128, trad. nos-
2012, p. 221, grifos do autor), mas sa). A referência ao pão e ao vinho no
[...] o indivíduo que iça uma bandeira verme- universo cristão também é por ele citada
lha determina e influencia o comportamento como exemplo de metamorfose de instru-
dos outros, menos pelas propriedades físicas mento a signo: “por exemplo, o pão e o
do mediador, do que pela significação simbó-
lica pela qual o mediador deve comunicar, vinho tornam-se símbolos religiosos no
‘assinalar’ às outras pessoas. (SOROKIN sacramento cristão da comunhão. Mas
apud TILKOWSKI, 2012, p. 221).
um produto de consumo como tal não é
Essas afirmações de Sorokin, encon- em caso algum um signo” (VOLOŠINOV,
tram-se, para Tilkowski (2012, p. 221), 2012, p. 129, trad. nossa). Portanto, o ho-
em Marxismo e Filosofia da Linguagem, mem vir a ser signo apenas na condição
de Vološinov, notadamente ao encontrar e na situação em que se remete para fora
nessa obra a afirmação de que “o signo dele mesmo, como a foice e o martelo,
tem uma significação que ultrapassa como o pão e o vinho.
seu caráter de dado singular”, sem,

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Conclusão Professoras/bibliotecárias/pais que
leem uma narrativa para crianças fazem
Ler livros com as crianças e para as parte dessas relações mediadas pelos
crianças desvela um dos modos culturais signos. Eles próprios, com sua voz, seu
dos atos de ler que são recriados e lega- corpo, seu olhar, suas entonações, com o
dos de uma geração a outra. Os signos, seu modo de virar a página, de rolar a
a literatura para crianças, os modos de tela, se tornam formas ideais de cultura
ler do homem, seus gestos e atitudes em processo de apropriação pelo outro.
formam um conjunto semiótico que me- Ninguém gosta de formas ideais de cul-
deia essas relações. Os seres humanos tura não conhecidas e não apropriadas,
em diferentes gerações se relacionam, nem sabe, por isso, apreciá-las.
no caso aqui abordado, por uma forma O papel dos homens se alarga, porque
de cultura - a literatura para crianças, são eles, ao mesmo tempo, agentes das
que é uma das formas ideais na qual a relações com a cultura escrita, mas são
criança deve mergulhar para dela se eles próprios e seus gestos os objetos
apropriar por meio de um outro, e, em culturais de apropriação e de transfor-
seguida, recriá-la e legá-la às gerações mação. Ensinar o ato de ler com suas
subsequentes. múltiplas variações e compartilhar esses
A convivência entre gerações durante atos promovem o desenvolvimento do
dezenas de anos permite a apropriação e homem como espécie e estabelecem um
a transmissão da cultura. Suas relações real processo de humanização.
históricas rompem fronteiras e compõem O adulto/professor não é, então, um
um grande cenário em que se banham mediador, uma estrada, como sugeriu
as gerações, de modo mais superficial ou Vigotski (apud NASCIMENTO, 2014),
mais profundo, conforme a intensidade mas pode vir a ser um signo cultural,
maior ou menor de suas relações. As social e ideológico que encarna outros
gotas que formam esse cenário/oceano signos e suas manifestações. Forma, as-
cultural são as recriações e as criações sim, um conjunto híbrido de signos que
culturais constituídas por signos de vai mediar as relações de uma geração
toda natureza, uma verdadeira babel a outra e compor o mundo complexo
semiótica por meio da qual o homem se do processo de humanização. Sem o
alimenta de cultura para poder se desen- homem precedente, que já se apropriou
volver em seu processo de humanização. da cultura, não haverá a apropriação
Humanizar-se é, então, experimentar, correspondente pelo homem subsequen-
viver o processo de apropriação dos sig- te. Bibliotecários, professores e pais são
nos culturais que medeiam as relações. esses homens históricos, sociais e cul-

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turais, responsáveis por legar tudo isso Referências
às crianças que já nasceram e às que
ainda nascerão. Todas essas questões NASCIMENTO, R. de O. Um estudo da
até então comentadas ficam por aqui, mediação na teoria de Lev Vigotski e suas
implicações para a educação. 2014. Tese
perambulando, mal acabadas, à procura
(Doutorado em Educação) – Faculdade de
de outras reflexões. Educação. Universidade Federal de Uber-
lândia. 2014.
TILKOWSKI, I. Volosinov em contexte. Essai
Mediators and literature for d’épistemologie historique. Limoges: Édition
Lambert Lucas, 2012.
children
VIGOTSKI, L. S. Quarta aula: a questão
do meio na pedologia. Tradução de Márcia
Abstract Pileggi Vinha. Psicologia USP, 2010, 21 (4),
p. 681-701. Disponível em <https://www.
In the field of children’s literature, scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
the place occupied by adults is consi- =S0103-65642010000400003>. Acesso em:
dered to be that of the mediator. The 27 jul. 2020.
purpose of this article is to reaffirm
that this place belongs to signs and, VIGOTSKI, l. Pensamiento y habla. Tradução
de Alejando Ariel Gonzáles. Buenos Aires:
for that, it recovers the concept of
Colihue, 2012.
ideological sign in Volochinov (1895-
1936), the formation of the psyche VOLOŠINOV, V. N. Marxisme et Philosophie
and the mediating function of signs du Langage: les problems fondamentaux de
in Vigotski (1896-1934) and the pre- la méthode sociologique dans la science du
cursor concept of mediators in So- langage. Tradução de Patrick Sériot e Inna
rokin (1889-1968). The thesis to be Tylkowski-Ageeva. Limoges: Lambert-Lucas,
defended considers men as human 2010.
beings in a relationship mediated by VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da
signs organized in genders, which linguagem: problemas fundamentais do
make up the field of children’s litera- método sociológico na ciência da linguagem.
ture. The conclusion points out that Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vó-
human attitudes, when dealing with lkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
literature, can become signs and that
only in this aspect can man be part
of a mediating sign set.

Keywords: Children’s literature; Me-


diator; Ideological sign; Social fact.

Nota
1
As ortografias dos nomes citados obedecem ao
disposto em cada obra referenciada. As tradu-
ções são de responsabilidade do autor.

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