Você está na página 1de 12

IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH

TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

A ANTROPOLOGIA COMO PANO DE FUNDO PARA A CRIAÇÃO DE DEUS E


DAS RELIGIÕES EM LUDWIG FEUERBACH
Antunes Ferreira da Silva1
Jéssica de Sousa Lira2
RESUMO

Analisar o ateísmo proposto por Feuerbach apresentando-o como antropologia é um dos


principais objetivos da presente pesquisa. Tendo em vista que o referido filósofo está
preocupado não com a negação de Deus, mas com a autoafirmação do homem, pode-se
afirmar que essa forma de ateísmo é, em suas bases, antropologia. Para o estudo do tema foi
desenvolvida uma revisão bibliográfica e utilizado o método dedutivo, de modo que a
apresentação das teorias está fundamenta em obras do filósofo e de alguns comentadores.
Feuerbach afirma que o homem cria Deus e não o contrário, que teologia é antropologia e
que a essência divina é mesma que a essência humana. A partir desses três pontos já se faz
possível defender que a antropologia é norteadora das teses do referido filósofo. Feuerbach
explica que o homem cria Deus pela necessidade de um padrão no qual possa se pautar para
atingir a perfeição, no entanto, essa realidade aliena o homem, haja visto que o homem não
pode ser perfeito para um ser além físico. Para o filósofo, o homem só pode ser perfeito para
si, para seu gênero. Assim, ele propõe que se dê um processo de desalienação. Para que isso
ocorra, uma nova religião entra em cena, a religião antropológica, que permite ao homem
religar-se a si e pautar seu comportamento no próprio gênero. Esse é o apogeu no ateísmo
antropológico identificado nas obras do autor; uma religião que tome o homem por Deus e o
faça buscar sua essência, ou seja, que mostre as coisas por meio delas mesmas e não através
de algo alheio a realidade material do indivíduo. Para Feuerbach o homem só pode ser 193
objeto do próprio homem e a busca pela essência humana o faz consciente e o desaliena.
Diante disso conclui-se que o ateísmo defendido por Feuerbach e grande parte de sua
filosofia estão voltados para campo antropológico, ou ainda, que a antropologia é o escopo
fundamental do pensamento do filósofo.
Palavras-chave: Antropologia. Homem. Essência. Deus.

ABSTRACT

Analyze the atheism proposed by Feuerbach presenting it as anthropology is one of the main
objectives of this research. Considering that the said philosopher is concerned not with the
denial of God, but with the self-affirmation of man, it can be stated that this form of atheism
is, in his bases, anthropology. To the theme of the study was developed a bibliographic
review and used the deductive method, so that the presentation of the theories are founded
on the works of the philosopher and some commentators. Feuerbach affirms that man
creates God and not the opposite, that theology is anthropology and that the divine
essence is same as the human

1
Mestre em Filosofia (UFPB). Professor de Filosofia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
2
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões (UFPB). Graduada em Filosofia
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras (FAFIC).

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

essence. From these three points is already be possible to defend that anthropology is
guiding the referred philosopher of that thesis. Feuerbach explains that the man criates God
in the need for a pattern in which can be guided to achieve perfection, however, this reality
alienates the man, given the fact that man can not be perfect for a being beyond physical.
For the philosopher, the man can only be perfect for himself, for his gender. So, he proposes
to take a disalienation process. For this to happen, a new religion arrives on the scene, the
anthropological religion, which allows man to reconnect themselves and guide their
behavior in the genre itself. This is the apogee in the anthropological atheism identified in
the works of the author; a religion that takes the man by God and do and make then search
for own essence, in other words, that shows things by means of themselves and not by
something alien to the individual's material reality. For Feuerbach man can only be the
object of man himself and the pursuit of human makes him conscious and disalienated.
Therefore, it is concluded that atheism defended by Feuerbach and much part of his
philosophy, are directed to the anthropological field, or even, that the anthropology is the
essential scope of the philosopher's thought.
Keywords: Anthropology. Man. Essence. God.

INTRODUÇÃO

Em muitos cenários de discussão da filosofia de Feuerbach (1804-1872), são


expostos argumentos e interpretações capazes de demonstrá-lo como sendo um filósofo
ateu. É certo que essas afirmações são pertinentes e adequadas. No entanto, não se trata
194
de reduzir a isso o pensamento desse pensador. Por trás do ateísmo feuerbachiano, ou
arraigado a ele, está sua proposta de uma antropologia. Afirmar a existência de uma
antropologia nas obras de Feuerbach, que tanto tratam sobre críticas à religião, é possível,
particularmente, quando a teologia, de acordo com seu pensamento, é exposta como
antropologia. Essa afirmação faz referência a uma das ideias principais difundas pelo
filósofo: a ideia de que o homem deve se pôr no centro dos próprios questionamentos e
que deve tornar-se
Deus para si mesmo, ou seja, objeto de si.
Um segundo motivo que justifica a existência de uma antropologia no pensamento
feuerbachiano é a pergunta pela essência humana. Feuerbach postula que a essência humana
consiste no ato do homem tornar-se objeto de si, como forma de se chegar à sua essência.
Outra razão pertinente que pode levar à percepção de uma antropologia feuerbachiana é a
opinião do próprio Feuerbach a respeito de Deus, pois ele afirma a não criação do homem
por parte de Deus, mas, sim, o contrário.

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

Perguntar por Deus é, de modo estrito, o mesmo que perguntar pelo homem e por sua
essência. No entanto, para que se chegue a essa conclusão, é necessário passar por todo um
processo que pode ser chamado de desalienação. O que se pretende aqui afirmar é que o
homem, em um primeiro momento, aliena- se a uma realidade dogmática na qual se afirma
que Deus criou o homem sua imagem e semelhança e que por conta disso são encontradas
no homem características divinas. Nesse cenário de crenças dogmáticas, o homem se
encontra num estágio de consciência adormecida e atribui a Deus muitos dos fenômenos
presentes em sua vida. Essa realidade além de alienar o homem, o afasta de sua essência. A
busca pela essência humana em Deus (enquanto ser divino e metafísico) não é admissível,
segundo Feuerbach, uma vez que essa essência está no próprio homem enquanto gênero.
Uma coisa só faz sentindo se for interpretada a partir dela mesma.
Partindo desses princípios é que se há de expor no texto algumas premissas que
fundamentem a afirmação de uma antropologia ou ateísmo antropológico nas obras de
Feuerbach. Para tanto, utilizaremos os conceitos de consciência, essência e hipostatização.

O HOMEM CRIA DEUS E FAZ-SE OBJETO DE SI


195
Feuerbach elabora sua crítica à religião levantando questionamentos acerca de Deus;
pondo em dúvida sua divindade e transcendência; afirmando que tanto Deus quanto a
religião são criações humanas e, por esse motivo, suas características e sua essência são
reflexo das características e essência humanas. Note-se que há uma inversão, se comparados
o pensamento deste filósofo e a proposta do cristianismo. Nesse estágio de consciência, o
homem percebe que os predicados que se atribuem a Deus são, na verdade, predicados
humanos. Consoante afirma: “[...] a religião é a reflexão, a projeção da essência humana
sobre si mesma” (FEUERBACH, 2012, p. 88). Assim, é possível afirmar que Deus é reflexo
daquilo que o homem é em sua essência. Entretanto, a autoafirmação do homem não implica
a negação de Deus. Ressalta-se que a pretensão, aqui, é apenas certificar-se de que Deus e
religião são criações humanas. Como diz Aleixo:

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

[...] da mesma maneira, longe de negar Deus, apenas o reconduz àquilo que
considera ser a sua verdadeira personalidade, o homem. O homem é o criador de
todos os Deuses ou, dito por outras palavras, o sujeito de qualquer religião só pode
ser humano. Foi este pressentimento que levou a teologia a inventar um Deus
homem – Cristo (ALEIXO, 2009, p. 7).

Em outras palavras, o homem só se afirma enquanto homem, em sua essência,


quando é objeto de si mesmo. Desse modo, buscar em Deus a forma mais sublime e perfeita
das características humanas é em vão, porque tomar conhecimento da essência de algo
extratemporal, metafísico e ilimitado não é provável para o gênero humano que é temporal,
material e limitado. Para conhecer a essência de Deus ou do homem é necessário, primeiro,
que deles se tome consciência e a “[...] consciência no sentido rigoroso existe somente
quando, para um ser, é objeto o seu gênero” (FEUERBACH, 2012, p. 35).
É razoável afirmar, em linhas gerais, a respeito da consciência, que relações
estabelecidas com elementos metafísicos são de cunho racional, esse raciocínio, somente é
possível, quando se interpreta a consciência enquanto ato puro de pensar algo, de exercer a
racionalidade caracteristicamente humana. No entanto, a consciência aqui ressaltada, ou
seja, em sentido estrito, faz referência não ao ato deliberado de pensar, mas o ato de pensar a
si mesmo, de tornar-se objeto do próprio pensamento. Tendo em vista que a característica da
196
racionalidade é uma particularidade humana, apenas o ser humano pode tomar consciência
de si, uma vez que apenas ele é capaz de fazer-se objeto próprio de seu pensamento. Assim,
diz-se que a faculdade da consciência confere predicado peculiar ao gênero humano e que
esse é hábil ao conhecimento de sua essência, pois é capaz de tomar consciência de si.
Para que se estipulem as relações referentes à razão e à essência, fazem- se
necessárias as participações efetivas de sujeito e objeto. O sujeito é entendido como o agente
ativo, participante direto do processo de busca pela essência, e o objeto como produto final
dessa busca, ou seja, a própria essência humana. Pode- se, então, dizer que Deus não é o
sujeito, mas que o sujeito é o próprio homem que, ao fazer de Deus seu objeto, imprime-
lhe predicados humanos, cria-o à sua imagem e semelhança, produz uma essência divina a
partir de qualidades humanas e, ao buscar a essência desse Deus, acaba por se deparar com
a própria essência. “Se, pois, Deus tal como é, necessária e essencialmente – é um objecto

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

do homem, então na essência desse objecto exprime-se apenas a própria essência do


homem” (FEUERBACH, 2008, p. 10). Portanto, sujeito, objeto, ser, essência, homem e
Deus sintetizam-se no homem e em sua atividade racional.

[...] assim como em geral as determinações metafísicas ou ontoteológicas só têm


verdade e realidade quando se reconduzem às determinações psicológicas ou,
antes, antropológicas, assim também a necessidade do Ser divino na antiga
metafísica ou ontoteologia só tem sentido e intelecto, verdade e realidade, na
determinação psicológica ou antropológica (FEUERBACH, 2008, p. 8).

Somente por meio do homem, ser dotado de razão, é que a existência de Deus pode
ser efetivada e a religião criada. O homem cria uma divindade moral (Deus metafísico) e
uma física (Deus da religião, ou que se efetiva através dela), e se aliena a essa realidade, sem
se dar conta de que ele mesmo é criador e não criatura, quando ainda se encontra num
estágio de consciência adormecida e razão condicionada. Ao relacionar-se com Deus e
fazer-se instrumento da religião, o homem abdica de grande parte dos anseios que lhe são
inerentes, nisso consiste a sua verdadeira limitação, fazendo com que a religião castre muitas
das ações humanas, o que pode representar retrocesso para seu gênero.
Para que o homem possa elevar a si, favorecendo o desenvolvimento de sua
197
consciência, ele carece do rompimento com a religião, devendo desprezar as suas regras
morais escravizantes ditadas. Esses são critérios primordiais para que o homem possa pensar
e agir por si e tomar o próprio gênero por parâmetro comportamental. Assim, ele passa de
um estágio de consciência adormecida para a consciência de sua essência, como se pode
perceber nas palavras do filósofo:

[...] minha intenção era mostrar que os poderes diante dos quais o homem se curva
e os quais teme na religião, diante dos quais ele não se intimida nem mesmo de
praticar sangrentos sacrifícios humanos a fim de aplacá- los são apenas criações de
sua própria afetividade servil e medrosa, assim como de sua razão ignorante e
inculta (FEUERBACH, 2009, p. 35-36).

Esse mecanismo de voltar-se para própria essência ou tomar consciência de si


enaltece o gênero humano, uma vez que faz com que o homem perceba que não há
necessidade de um ser metafísico que regule suas experiências, já que é capaz, por si só, de
reger o andamento de sua vida. O que interessa aqui é a negação dos predicados de Deus
em detrimento da afirmação dos predicados humanos, pois

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

estes últimos satisfazem as necessidades do gênero, sem que seja necessária


intervenção divina.

RAZÃO, SENTIMENTO E VONTADE: A TRINDADE HUMANA OU ELEMENTOS


QUE CONSTITUEM A CONSCIÊNCIA

Para que o homem seja conhecedor de sua essência e possa voltar-se para si como
parâmetro comportamental, ele utiliza-se de três elementos que são a própria composição
dessa essência, a saber: a razão (entendimento), o sentimento (coração ou amor) e a vontade
(ato de desejar). Essas são características específicas do gênero humano e lhe atribuem a
possibilidade de viver em função de si mesmo, tendo em vista que o homem contemplado
por essas qualidades é tido como completo; segundo o próprio Feuerbach (2012, p. 36) “um
homem completo possui a força do pensamento, a força da vontade, e a força do coração”.
O pensamento consiste no conhecimento iluminado pela razão, é o uso que o
homem dela faz quando já se encontra em seu estado de consciência. O sentimento é o amor
ou capacidade humana de amar, ou ainda, enfatizando o homem como objeto de si, a
inclinação do indivíduo de amar o seu gênero. A vontade, “a energia do caráter” 198
(FEUERBACH, 2012, p. 36), é a força que objetiva as escolhas livres, é o querer humano.
Como esses atributos são particularidades humanas, eles constituem sua essência e
fundamentam sua existência, pois o que está em sua essência é o que regula o curso e o
sentido de seu existir, logo “[...] querer, pensar, amar, são os propósitos que movem o
homem” (ALEIXO, 2009 p. 10).
Por meio dessa tríade, o homem mostra-se capaz de bastar-se do próprio gênero, sem
a necessidade de um Deus ou de seus predicados, pois já aí está a perfeição da espécie
humana, aí está o que a limita e ao mesmo tempo embeleza, já que o homem que reconhece
suas restrições como perfeição é o homem consciente e conhecedor de sua essência. Assim,
como afirma o filósofo, “[...] razão, amor e vontade são perfeições, são os mais altos
poderes, são a essência absoluta do homem enquanto homem e a finalidade de sua
existência. O homem existe para conhecer, para amar e para querer” (FEUERBACH, 2012,
p. 36).

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

O homem esclarecido de que nessa tríade consiste a efetivação de seu gênero,


enquanto perfeito para si mesmo, é o mesmo que se liberta da realidade alienante da religião.
No entanto, o próprio Feuerbach (2012, p. 36) levanta questionamentos acerca da
finalidade da razão, do sentimento e da vontade, afirmando que “[...] conhecemos para
conhecer, amamos para amar, queremos para querer, i.e., para sermos livres”. Partindo dessa
afirmação, apresenta-se um dos pontos mais importantes da antropologia feuerbachiana
trabalhados nesta pesquisa: o entendimento de que uma coisa só pode ser fundamenta e
objetivada a partir de si mesma, uma vez que, “[...] verdadeiro, perfeito, divino é apenas o
que existe em função de si mesmo” (FEUERBACH, 2012, p. 36). Em outras palavras, se o
ato de conhecer é o fundamento do conhecimento, o ato de amar embasa o sentimento e o
ato de querer justifica a vontade, então, o homem só pode ser objeto de si próprio.
Essa trindade se apresenta ao homem como sua essência e, portanto, está acima do
ser individual, levando-se em conta que esses predicados são a essência do gênero humano,
que a religião dele suprime, pois retira do homem essas características com a única
finalidade de fazer com que ele acredite que há uma necessidade de buscar tais predicados
em um Deus. No entanto, o homem que busca em si essas qualidades e torna-se consciente
de que elas fazem parte de sua essência, desprende-se da religião e suas imposições 199
alienantes, percebendo que é ele próprio dotado de todas as características que a religião o
fez acreditar que só existiam em Deus. Assim, o homem reconhece a si mesmo como
Deus, pois “[...] não há distinção entre os predicados da essência divina e da essência
humana” (HARTMANN, 2012, p. 68). Logo, ao reconhecer-se como Deus, percebe que o
seu objeto é sua essência, e que sua essência é a já citada trindade. Desse modo, se dá conta
de que seu real objeto é ele mesmo e não Deus, como pretende a religião.

AFIRMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA FEUERBACHIANA POR MEIO DE SEU


ATEÍSMO: TEOLOGIA É ANTROPOLOGIA

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

Pautando-se no que foi exposto até então, afirma-se: Deus e a religião são criações
humanas. A imagem de um Deus perfeito se dá pelo fato de o homem atribuir a ele
características que lhe são próprias. Desse modo, a religião deturpa a essência do homem,
quando o faz crer que ela é apenas uma ínfima parte da essência divina. A busca do
homem por um ser absoluto nada mais é que a procura por sua própria essência, que é
auto-objetivação, autoafirmação e autoconsciência.
Ao ato de atribuir a Deus qualidades pertencentes ao gênero humano, pode- se dar o
nome de hipostatização. Esse mecanismo de projetar um ser metafísico com características
exclusivamente humanas lança os fundamentos do ateísmo proposto por Feuerbach. O
filósofo não pauta seu ateísmo na negação de Deus, mas na explicação de que um ser divino
estabelece relação de dependência diante do gênero humano. Em outras palavras, a
existência de Deus depende do homem.
Tal ideia constitui um dos principais fundamentos para se afirmar que o ateísmo
feuerbachiano é, antes, antropologia que puro ateísmo, visto que o embasamento de tal
ateísmo consiste na afirmação do homem.
A teologia feuerbachiana se identifica com a antropologia, ou ainda, toda a teologia
é, na verdade, uma antropologia velada, na qual o homem esquece-se de si, pois a religião, 200
especificamente aquela que se pauta na teologia cristã, o aliena. Quando essa religião
dogmática deixa de oferecer respostas plausíveis, ou seja, quando o homem toma
consciência de sua condição de ser divino, ele funda uma nova religião que se pauta na
antropologia, esquecendo os dogmas teológicos e elevando seu gênero a Deus. Ora, o que
seria essa nova religião senão a própria antropologia?
Assim, se funda a nova religião embasada em dois pilares: no ateísmo, à medida que
seu Deus não é um ser metafísico, mas material; e na antropologia, tendo em vista que seu
Deus é o próprio gênero humano. De acordo com essa religião, “[...] como o homem pensar,
assim é o seu Deus; o valor que tiver o homem, este será o valor atribuído a Deus”
(HARTMANN, 2012, p. 68). Tais postulados resgatam o valor que o homem perdeu ao
exteriorizar suas qualidades, porque o faz perceber que ele mesmo é o centro do problema
religioso.

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

Partindo dessa exposição, chega-se ao artifício que melhor resume a proposta desta
pesquisa: o pensamento de Feuerbach é, acima de tudo, antropologia, uma vez que, como ele
mesmo afirma:

[...] esta minha doutrina é simplesmente: teologia é antropologia, ou seja, no objeto


da religião a que chamamos théos em grego, Gott em alemão, expressa-se nada
mais do que a essência do homem, ou: o deus do homem, portanto a história da
religião ou, o que dá na mesma, de Deus [...] nada mais é do que a história do
homem (FEUERBACH, 2009, p. 29- 30, grifos do autor).

Portanto, mesmo quando o filósofo direciona suas pesquisas e escritos à religião e a


Deus, a questão que está por trás é a afirmação do homem por meio dele mesmo e sua busca
pela essência que lhe é perfeita e divina, já que “o sujeito divino só pode ser humano”
(ALEIXO, 2009, p. 14), especialmente porque uma espécie não se limita a ela mesma, uma
vez que só se reconhecem limitações entre espécies diferentes. Sob essas condições, o
homem é limitado apenas quando cria uma realidade metafísica a qual atribui seus
predicados, tornando-se ilimitado e divino quando é parâmetro de comportamento moral
para si mesmo.
O ateísmo e humanismo postulados por Feuerbach consistem nesse retornar do 201
homem a si mesmo, passando esse a desejar, de acordo com sua própria vontade, a amar a
partir de seus próprios padrões e pensar por meio da própria racionalidade, livre de
condicionamentos. Ao ser para si o próprio objeto de estudos, o homem, sob a perspectiva
feuerbachiana, educa sua espécie para que ela o baste, para que acredite nos próprios
predicados e não recorra à realidades exteriores a ele. Hartman, sobre tal temática, escreve:

Feuerbach tem a intenção de desmascarar e desmistificar Deus e os deuses,


apoiando o homem para que encontre em si mesmo a fonte de sua atuação e
não fora ou acima de si. É pelo progresso da ciência e da educação que se
alcançará tal objetivo; progresso de superação da dependência, do temor, do
desamparo e da ignorância, ou seja, a partir do ateísmo, ou, melhor dizendo, do
antropoteísmo (HARTMANN, 2012, p. 72).

A antropologia é, pois, responsável pelo esclarecimento das coisas que estejam


relacionadas ao homem e, tomando-se por pressuposto o pensamento desse filósofo, postular
que, conforme Hartmann (2012, p. 74), “sua antropologia é a única chave para explicar
tudo”. Assim, a ideia de fazer da antropologia

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

parâmetro norteador da vida humana é ainda mais veemente. E, em se tratando da religião,


essa função da antropologia ganha acuidade ainda maior, tendo em vista que a antropologia
torna-se religião e o homem protagonista integral de sua própria vida e ações.
De acordo com essa nova realidade imposta pela religião que se pauta no
antropoteísmo, a ordem do mito da criação se ajusta, tendo em vista que afirmação de Deus
como criador do homem inverte a ordem adequada das coisas, ou ainda, “[...] a filosofía da
identidade absoluta inverteu completamente o ponto de vista da verdade” (FEUERBACH,
2008, p. 72), pois, ao concreto não deve ser atribuído caráter abstrato, mas o abstrato precisa
ser pensado concretamente. Não se deve pensar que Deus cria o homem, mas que o homem
cria Deus.
Para que o gênero humano conquiste o espaço que lhe cabe no mundo, tornando-se
ser divino para si mesmo e podendo viver sem repressões advindas de regras impostas por
um pseudo Deus, cabe a cada homem, em sua individualidade, reconhecer seu gênero como
Deus para si, enaltecer sua essência tornando-a objeto do próprio pensamento e,
consequentemente, fazendo de si também esse objeto. Para que seja possível a efetivação da
antropologia proposta por Feuerbach, o homem passa por todo um processo:
202
[...] num primeiro momento, o homem seria como que tomado de vertigem face ao
abismo da incomensurabilidade da sua própria essência. Num segundo momento,
através de um mecanismo psicológico vagamente freudiano, o homem negaria a
sua essência e projectála-ia num sujeito autónomo e independente a que viria a
chamar Deus, ou seja, à negação dos predicados próprios suceder-se-ia a
transferência desses predicados para uma personalidade fictícia. Este processo
exigiria que o homem se empobrecesse e diminuisse, para assim enriquecer esse
ser simplesmente imaginado. O homem tornar-se-ia então objecto da sua própria
subjectividade alienada. Mas, no fundo, este Deus inventado não seria mais que a
sublimação da própria essência: a auto-negação seria na realidade auto-afirmação
(ALEIXO, 2009, p. 32).

O homem, enquanto centro dos referenciais religiosos, passa por estágios de


consciência adormecida, acreditando haver um ser metafísico e adorando-o por considerar
tal ato de adoração necessário. Posteriormente, retorna à sua consciência e mantêm-se, ainda
assim, no núcleo desses referenciais, uma vez que é o criador e não criatura. Esse é o
homem do qual Feuerbach trata; por meio dele, é possível afirmar uma antropologia
presente em sua filosofia, conforme

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

alegava: “[...] verdadeiro, perfeito, divino é apenas o que existe em função de si mesmo”
(FEUERBACH, 2012, p. 36).

CONCLUSÃO

O problema antropológico abordado nesta pesquisa, elaborada a partir de Ludwig


Feuerbach, apresenta acuidade fulgente, principalmente se forem consideradas as influências
provocadas por seu pensamento, através de suas pesquisas acerca do homem, e de suas
ideias inovadoras que tratam de conteúdos antropológicos. O filósofo tece uma crítica à
religião, redirecionando a função antropológica para além da fé.
Consoante esse pensamento, Feuerbach se afirma como um expressivo filósofo no
que se refere à dissertação acerca da antropologia e da filosofia, com a proposta de que o
homem deve ocupar o papel que lhe cabe e dele fazer uso pleno. Assim, por trazer uma
visão diferenciada do campo antropológico em sua filosofia materialista, Feuerbach torna-se
um referencial de significativa acuidade no estudo sobre o homem. Portanto, o
filósofo/antropólogo traz, em sua obra, uma discussão relevante ao unir filosofia e
antropologia. 203
A proposta de Feuerbach é apontar o homem como senhor de si, a partir do
reconhecimento de si como ser perfeito. Deste modo, o tema estudado desponta como
relevante contribuição para a compreensão do homem em sua essência.
A partir do pensamento de Feuerbach, afirma-se que o homem basta-se com as
características peculiares do gênero e com elas sente-se satisfeito, pois reconhece a si como
próprio parâmetro comportamental; não há necessidade de um absoluto que mascare a
consciência humana e que se faça impossível de cognição por estar situado em outro plano,
pois o homem pode ter consciência de si, por estar em um plano finito, mas não pode ter
consciência do absoluto, pois esse fazer parte de um plano desprovido de temporalidade.
Diante do exposto, conclui-se que há forte presença da antropologia nas obras
feuerbachianas, tendo em vista que o homem é o objeto direto das pesquisas e centraliza
todas as discussões. A religião constitui, desse modo, mais uma antropologia do que uma
teologia. É sugerida por Feuerbach, inclusive, a construção de uma nova religião que se
paute na antropologia, uma religião, por

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE
IV ENCONTRO INTERNACIONAL LUDWIG FEUERBACH
TEMA: ANTROPOLOGIA E ÉTICA

assim dizer, ateia. Ateia no sentido de não haver Deus metafísico a ser adorado, pois nessa
religião a essência do gênero humano é objeto do próprio homem, o que, consequentemente,
o afirma como Deus.
Embora a pesquisa não objetive esgotar a discussão a respeito do referido tema e que
estas considerações finais não pretendam conferir caráter categórico à interpretação atribuída
ao pensamento do filósofo em questão, o que se almeja afirmar, a partir do que foi
desenvolvido, é que o homem que toma consciência de si e faz-se objeto para si mesmo é
capaz de desempenhar todas as suas atividades pautando seu comportamento no próprio
gênero. Para tanto, sua essência é seu objeto e a antropologia toma o lugar da teologia. Com
esse mecanismo, o gênero humano é beneficiado, tendo em vista que não mais se sentirá
limitado, pois, para seu próprio gênero, o homem é ilimitado. Além disso, ao aderir às
propostas de Feuerbach, o homem readquire sua autonomia e passa a pensar, agir e viver por
meio de seus próprios moldes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEIXO, Alice. Ludwig Feuerbach: um manifesto antropológico. Covilhã: LusoSofia, 204


2009. (Artigos lusosofia).

FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Tradução José da Silva Brandão.


3. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

. Preleções sobre a essência da religião. Tradução José da Silva


Brandão. Petrópolis: Vozes, 2009.

. Princípios da filosofia do futuro. Tradução Artur Morão. Covilhã: LusoSofia,


2008. (Textos clássicos de filosofia).

HARTMANN, Paulo Airton. Feuerbach e o ateísmo antropológico. 2012. 84 f.


Dissertação (Mestrado em filosofia) – Faculdade de Ciências Humanas, Pontifìcia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

FORTALEZA - CE
19 A 23 DE MAIO DE

Você também pode gostar