Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O que penso segundo a medida do gênero humano penso como o homem não pode deixar de
pensar, como o indivíduo deve pensar se quiser pensar normalmente, conforme a Lei e dentro da
Verdade. Feuerbach
A crítica que Ludwig Feuerbach (1804-1872) faz ao cristianismo é a crítica da sua deformação, em
última análise, egoísta, individualista, que ele vê submeter ainda a própria Modernidade secularizada
e filistéia, e até acirrar-se com ela - em contraposição ao que seria uma virada na direção do ser
natural dos homens, essencialmente genérico e amoroso. Feuerbach desenvolve um ponto de vista
filosófico humanista-comunitário, contra a religião “subjetivista", enquanto trata de resgatar o que
para ele é seu núcleo verdadeiro, humano, deformado pela fantasia, pela teologia, pela especulação.
Tal núcleo seria justamente a “essência genérica”, amorosa e comunitária, dos homens, constituída
por seus predicados mais nobres, suas potências supremas - o Razão, o Amor, a Vontade -
atribuídas a Deus no cristianismo. É tal essência humana genérica, recuperada, que deverá ser
agora, no lugar de Deus e da religião, o fundamento (Grund), real, terreno, objetivo e universal, para
a moral, a política e a cultura, na Modernidade, e para a crítica de suas deformações ou patologias.
Dessa maneira, a “virada antropológica” feuerbachiana seria também uma virada essencialista e
Contato, Comentários, Sugestões fundacionista, que pode acabar confrontando os homens existentes, e suas formas contingentes de
jose_crisostomo@uol.com.br associação, com uma nova medida absolutizada, uma nova idealização hipostasiada. É tomando a
José Crisóstomo de Souza essência genérica do homem como fundamento normativo absoluto que Feuerbach quer confrontar
Deptº, Filosofia FFCH/UFBA
Estrada de S. Lázaro, 197 criticamente a Modernidade e lhe oferecer uma alternativa. Mais do que isso, “deduzida” diretamente
40210-730 Salvador, Bahia, Brasil da religião, essa essência deve ser capaz de suscitar uma nova devoção, mais efetiva do que a
webdesign: Leall merecida por Deus no cristianismo (tomado como religião “absoluta”, pois, mesmo como “ilusão” e
“patologia”, é capaz de “revelar” ao homem sua verdadeira essência universal). A última coisa que
Feuerbach gostaria é de deixar o homem moderno sem um ideal superior.
O filósofo do “ponto de vista antropológico”, do homem como Gattungswesen (ser genérico, essência
genérica) e como “ser supremo para o homem” - este é Feuerbach. É o pensador do altruísmo e do
amor, como Friedrich Engels reconhece, com algum embaraço, no Feuerbach e o Fim da Filosofia
Clássica Alemã. E quer ser também, por fim, o filósofo dos sentidos e da realidade sensível
(Sinnlichkeit), embora isso não tenho certeza de que ele consiga coerentemente. Neste texto, trato
em primeiro lugar de associar o lado materialista/naturalista, de Feuerbach, à sua crítica do
cristianismo e da Modernidade como “alienação” e “egoísmo”. Em seguida, procuro expor,
criticamente, a dimensão “essencialista” da sua virada antropológica (vale dizer, da sua
crítica/superação do cristianismo enquanto alienação), essencialismo presente na proposta de
reapropriação, pelos homens, com força de norma universal, dos virtuosos predicados humanos
atribuídos a Deus pela consciência religiosa cristã. Por fim, procuro evidenciar mais claramente um
empenho de certo modo restaurador, junto com fundacionista e idealizante, contido no humanismo
com que Feuerbach enfrenta o “ateísmo dissimulado” (expressão dele) dos Tempos Modernos. Tento
fazer essas três coisas acompanhando as fórmulas textuais do filósofo, e tendo como horizonte um
enquadramento contemporâneo de sua concepção, mesmo que eu não chegue a desenvolvê-lo
inteiramente.
Com efeito, a descendência filosófica de Feuerbach, como o entendo aqui, inclui não apenas, por
exemplo, Moses Hess, Karl Grün e Karl Marx, no séc. XIX, mas também Karl-Otto Apel e Jürgen
Habermas, no nosso tempo. Podemos encontrar em Feuerbach um precedente da crítica, de nossos
dias, ao sujeito e às filosofias do sujeito. Mas, sobretudo, o problema de que ele se ocupa pode ser
entendido como aquele de um fundamento normativo, ao mesmo tempo “último” e
“destranscendentalizado”, para a conduta dos homens, na moral e na política, numa época
descrente, secularizada, “pós-metafísica”: a Modernidade. Creio que esse é um terreno em que vale
a pena explorá-lo, valorizá-lo e criticá-lo, ainda que eu o faça aqui de modo apenas tentativo. Por
outro lado, é certo que o alcance da virada antropológica de Feuerbach não se esgota no que é
visado neste meu comentário crítico, isto é, no seu essencialismo especulativo fundacionista. Seus
esforços por desenvolver uma filosofia - ou uma “não-filosofia” - que tenha a medida dos homens
reais e da vida vivida, bem como sua elaborada (semi-freudiana) hermenêutica psicológica, crítica,
da religião cristã (como “sonho” do espírito humano, onde se manifestam nossos “segredos” mais
íntimos), merecem, no meu modo de ver, uma renovada atenção, oferecendo preciosas sugestões a
quem estiver interessado em explorar essas duas pistas. De resto, o pensamento feuerbachiano -
mesmo dentro do escopo limitado de que me ocupo, no período 1839-45, em torno da Essência do
Cristianismo - apresenta, como qualquer pensamento interessante, ambigüidades e alterações de
ênfase que podem relativizar juízos taxativos a seu respeito. Tendo, aliás, a achar que suas
“contradições” têm a ver com um louvável esforço para expressar o que escapa a modos mais
tradicionais de filosofar.
Referência bibliográfica:
BAUER, Bruno. The Genus and the Crowd (1844). Em L. Stepelevich (ed.), The Young Hegelians: An
Anthology, Cambridge University Press, 1983.
ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie. Em:
Marx & Engels Werke. Berlim, Dietz Verlag, 1962, vol. 21, pp.283-315.
ESPINOSA, Baruch de. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. Em Espinoza (Col. Os
Pensadores), São Paulo, Abril Cultural, 1983, pp. 71-302.
ESPINOSA, Baruch de. Pensamentos metafísicos. Em Espinoza (Col. Os Pensadores), São Paulo,
Abril Cultural, 1983, pp. 1-40.
FUERBACH, Ludwig. My Starting Point in Philosophy (1845-46). Em The Philosophical Forum, v. VIII,
n. 2-3-4, Boston University, 1978.
SASS, Hans-Martin. Ludwig Feuerbach. Reinbek bei Hamburg, Rowohlt Verlag, 1984.
SCHELLING, Programa Sistemático, em Schelling, Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1984.
SOUZA, Draiton G. de. O Ateísmo Antropológico de Ludwig Feuerbach. Porto Alegre, Edipucrs, 1994.
SOUZA, José Crisóstomo de. A Questão da Individualidade: A crítica do humano e do social na
polêmica Stirner-Marx. Campinas, Editora Unicamp, 1994.
SOUZA, José Crisóstomo de. Materialismo e moral em Friedrich Engels: uma confusão do século
XIX. Em Ideação, UEFS, no.1 (set.), Feira de Santana, 1997, pp. 53-58.
SOUZA, José Crisóstomo de. Marx and Feuerbachian Essence: Returning to the Question of ‘Human
Essence’ in Historical Materialism. Em The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian
School. Cambridge University Press, 2006.
STIRNER, Max. L’Unique et sa Proprieté. (1844). Trad. Robert Réclaire. Paris, Stock et Plus, 1978.
VOLTA