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SELEÇÃO DE
CONTOS
O casamento da
boneca pintada
SELEÇÃO GELMA
Fernando Moreira
[1] LEITE Aldo. Memória do teatro maranhense. São Luís: EdFunc, 2007, p. 130.
[2] Tenessee Williams é o pseudônimo de Thomas Lanier Williams III (1911-1983), um
dos mais conhecidos dramaturgos dos estados Unidos e ganhador de diversos prêmios.
Um de seus livros mais conhecidos é Um bonde chamado desejo.
[3] MACHADO, Nauro. Província: o pó dos pósteros. São Luís: Edição do Autor, 2012,
p. 361.
a alma dos indivíduos, para nela fazer o raio X do desespero em
que, vazia de valores, mergulha a fatuidade moderna até à
autodestruição. Sob esse aspecto, algumas peças de Fernando
Moreira são como contos levados ao palco e ganham nítida
aproximação à obra de Lúcio Cardoso.[4]
·A convalescente (Novela)
·A vítima perfeita (Novela)
·Para sempre, enquanto durar (Novela)
·Desenhos na parede (Novela)
·Reflexos na superfície (Contos)
·O grupo (Contos)
·Contos
·Artigos sobre cinema
·O preço do passado (Roteiro para cinema ou televisão)
·Aspectos da dramaturgia brasileira contemporânea (Ensaio)
·Cinema: uma perspectiva histórica, social e artística (Ensaio)
·Nine dramatistis and The Great Moments on the American Stage[5] (Ensaio)
·A juventude e o momento atual (Ensaio)
·Notes on XXth Century English Drama[6] (Ensaio)
conto
O casamento da
boneca pintada
– Pepita precisa casar.
A frase da matriarca caiu como uma pedra no lago de silêncio que precedia
a sobremesa. Embora não fosse dirigida a qualquer um deles em particular,
todos ergueram os olhos e fitaram D. Elpídio, o único que parecia não ter
ouvido a frase materna. Todos: Ramón, com aquele lábio inferior tão
estranhamente caído; Angústias, com aquela expressão perplexa que
assumira desde que se submetera a uma histerectomia; há cinco anos; e
Pedrito, o jovem caçula de 35 anos de idade que desfrutava de uma certa
reputação como globo-trotter inveterado no dizer dos colunistas sociais.
D. Santinha também olhou para Don Elpídio, como que à espera de uma
resposta a sua observação; mas ele, cioso de sua condição de filho mais
velho, parecia nada ter ouvido e continuava embevecido a explorar as
profundezas da narina esquerda. Os olhares dos outros filhos
acompanharam o de D. Santinha, e permaneceram suspensos, à espera: a
família toda sabia que, tradicionalmente, quando D. Elpídio falava sempre
dizia coisas interessantes que valiam a pena ser escutadas.
– Pepita precisa casar. Ela está completando 37 anos hoje.
– Ahh?
– Estou dizendo que Pepita precisa casar. Ela está com 37 anos, é tempo de
pensar nisso.
– Ora, D. Elpídio, o senhor sabe que não sou dessas coisas. Além disso,
acrescentou com um leve encolher de ombros, onde é que eu iria encontrar
alguém que se interessasse por mim? Na missa das seis? Nós nunca vamos a
parte alguma.
– Isso é muito bom, arguiu D. Elpídio.
– Bom? Como é que ela vai arranjar um marido sem conhecer pessoa
alguma, sem ir às festas ou mesmo passear?
– É bom porque eu conheço. Eu, continuou D. Elpídio dirigindo-se mais
diretamente à mãe, não me descuidei da sorte de Pepita. E tenho alguém em
vista para ela, um excelente marido. Um homem que pode fazer a felicidade
de uma menina bem educada, prendada e bonita como a nossa Pepita.
Don Elpídio tinha suas ideias, mas achava que ainda não era o momento
de transmiti-las. Era um homem preguiçoso, qualidade que todos
confundiam com prudência, e tal reputação lhe ia muito bem. Todos o
acreditavam ponderado, equilibrado e incapaz de agir com precipitação:
não provara isso abundantemente na Grande Crise? Com a mesma placidez,
se reintegrara à vida leiga e reassumira o seu papel de chefe da família,
mesmo sabendo que, na realidade, era D. Santinha quem mandava. Tal
situação convinha perfeitamente ao temperamento de ambos.
– Estou curiosa por saber o que tens a me falar sobre noivo de Pepita, disse
D. Santinha, mal viu a sós com o filho mais velho! Angústias e Pepita tinham
ido dormir, Ramón saíra "para dar uma volta" (e todos sabiam naquela casa
o que escondia a discreta metáfora), e Pedrito estava na sala de música
escutando uns discos iugoslavos que trouxeram da última viagem.
– Oh, não é muito. Uma ideia apenas, talvez, que pode ser amadurecida.
– Uma ideia, apenas.
– Bem, um pouco mais que isso. Para dizer a verdade, já estive conversando
com… o interessado.
– Quem é ele, posso perguntar?
– Claro, mamacita, eu queria mesmo dizer-lhe. Estava apenas esperando…
dispor de fatos mais concretos. Mas já que a Pepita parece interessada…
acredito que tudo sairá bem, como desejamos.
– O nome dele, D. Elpídio?
– Carlos Fábio Coltrane Martins.
– Carlos… Coltrane Martins?
– Exatamente. Um Coltrane Martins seria um bom noivo para nossa Pepita.
Seria melhor se ele tivesse sangue espanhol como nós, mas não há como
negar que a família dele também é muito tradicional, e ele está em
excelentes condições para casar com ela.
– Ele não é… um pouco velho para a menina? Ela só tem 37 anos.
– Carlos Fábio Coltrane Martins é apenas dois anos mais velho do que eu,
disse D. Elpídio com dignidade. E é um esportista. Lembre-se que tem o
único campo de golfe da cidade, e é um dos melhores jogadores desse
esporte. É um homem rico, saudável, inteligente e educado, um amante das
artes. Falei-lhe de Pepita – claro, em termos de maior discrição para não
criar uma situação embaraçosa se ele não me manifestasse interessado.
Mas, pelo contrário, ele não foi nada adverso à ideia. A senhora
compreende, já não é uma criança, e praticamente não tem família - irmã
não conta, casou-se muito bem e mora no Rio. Uma esposa é exatamente do
que ele está precisando.
– Ele… cria um afilhado, não?
– Edvaldo? Não é mais um menino, já tem mais de 20 anos. É uma espécie
de secretário de Carlos, cuida da discoteca dele, trata da correspondência,
paga impostos – enfim, essas coisas.
– Ele e esse rapaz estão sempre juntos.
– Para uma pessoa que só sai de casa para ir à igreja e ao cemitério, a
senhora está muito bem informada. Mas Edvaldo não tem a menor
importância: um homem precisa se apegar a alguma coisa, afinal. Quando
ele casar com Pepita, Edvaldo já não será necessário.
– Quero dizer… Esse rapaz não será fruto de alguma loucura da
mocidade? Não gostaria de ver minha filha casada com um homem que
tivesse um filho bastardo dentro de casa. Poderia haver complicações mais
tarde, os filhos do casal, a herança… Você sabe como são esses assuntos
horrorosos.
– Asseguro-lhe que Edvaldo não é filho de Carlos. Que ideia, mamacita,
Edvaldo é um mulato quase preto, e Carlos é um homem finíssimo.
– Há homens finíssimos que têm cozinheiras pretas. E às vezes têm
filhos com elas.
– Fique descansada. Sei que estou fazendo.
Como a maior parte das pessoas que pensam assim, D. Elpídio não sabia.
Não sabia, por exemplo, que o sonho de Pepita era possuir um homem e um
filho; não sabia, também, que Carlos Fábio Coltrane Martins estava muito
mais interessado em sua discoteca e no campo de golfe e em outras coisas do
que em Pepita como mulher; não sabia que, para ele, o casamento era
apenas a presença de uma futura enfermeira sem remuneração e com
tempo integral e dedicação exclusiva; não sabia que Edivaldo tinha deveres
muito bem definidos, e que Carlos Fábio não cogitava em substituí-lo em
suas funções. D. Elpídio, na realidade, não sabia muita coisa além de
determinar os pontos da filosofia tomista que tinham trazido dúvidas
concretas a sua fé e o haviam feito solicitar dispensa a Roma dos votos
sacerdotais.
Contrariamente ao que se esperava, Pepita não delirou de contentamento
à ideia do noivo quinquagenário, esportivo e rico. Ela era uma moça tímida
e educada à antiga, com requintes de severidade vindos do lado espanhol
paterno e exageros de recato impostos pela mãe, que se fizera mais
espanhola ainda do que o marido. Mas não era tola. Tinha olfato excelente
para detectar cheiro de peixe podre, e algo lhe dizia que não era naquele
casamento que ia realizar anseios muito íntimos, muito antigos, e, por isso
mesmo, muito bem delimitados.
– Ele está mesmo querendo casar comigo? Perguntou ela, com uma nota de
dúvida e ironia que passou desapercebida ao irmão.
– Claro que quer, disse D. Elpídio. Carlos Fábio Coltrane Martins é um
cavalheiro. Está ansioso por desposá-la. Você será uma ótima esposa para
ele, ele sabe disso. Viverão um para o outro.
– E o afilhado dele? Não quero aquele negro morando conosco.
– Pepita, isso é muito feio de sua parte. Primeiro, não há nada errado em ser
um negro. Segundo, Edvaldo não é um negro, é um mulato. Terceiro, não
fica nada bem você querer fazer imposições ao homem que a escolheu para
esposa.
– Eu vou ter que morar com ele, não é? Então, lá vai ser minha casa. E onde é
que eu posso impor minha vontade a não ser em minha própria casa?
– Realmente, mocinha, a senhora está passando dos limites! Você não foi
educada como uma dessas emancipadas, doidivanas, que veem no marido…
bem, sei lá o que elas veem, acho que é um instrumento de seus caprichos.
Não foi essa a educação que lhe demos.
– Tudo isso é muito certo, D.Elpídio, mas eu é que não estou querendo me
casar com um homem que já leva consigo… uma família. E se Edvaldo for
filho dele?
– Pepita, realmente dessa vez você passou dos limites. Seu noivo virá aqui no
sábado à noite. Não quero ouvir mais nenhuma palavra sobre esses assuntos
idiotas.
Pepita pensando em
Edvaldo e conversando
com Carlos
No sábado à noite, Carlos Fábio Coltrane Martins se apresentou para sua
primeira visita à mansão dos Gonzalez. Era um homem de maneiras
finíssimas, que conquistou D. Santinha com uma caixa de bombons de licor
da Kopenhagen, e encantou a todos com sua conversação polida e suas
atitudes de grão-senhor. Discutiu filosofia com D. Elpídio, valor de negócios
com Ramón, de viagens com Pedrito, escutou os suspiros de Angústias com
discreto interesse, dirigindo-se a D. Santinha como se ela fosse a pessoa
mais importante da casa (e era realmente) e olhou Pepita com curiosidade,
simpatia e admiração. Com efeito, sua futura noiva era uma bela mulher:
colocar-se estrategicamente contra a luz, e seu rosto moreno saltava na
penumbra, emoldurado pela trança negra onde os fios brancos sobressaíam
como prata. Falando pouco e observando tudo, Pepita lembrava uma
pintura, sim quase uma pintura do século XVI ou XVII, de algum grande
mestre ibérico. Seus olhos vivazes e inteligentes levavam a esquecer a
imobilidade que adotara como atitude naquela noite.