Você está na página 1de 13

FERNANDO MOREIRA

SELEÇÃO DE
CONTOS

O casamento da
boneca pintada

SELEÇÃO GELMA
Fernando Moreira

Fernando Moreira (1930-1994) foi um professor, contista, novelista,


roteirista, crítico e dramaturgo maranhense que, embora não seja tão
divulgado perante o público leitor, deixou um importante legado em forma
de contos, novelas e, principalmente, de peças teatrais.

Homem de grande conhecimento na área das linguagens e que


dominava o idioma francês e o inglês com suas respectivas literaturas,
Fernando Moreira foi professor da Universidade Federal do Maranhão, por
onde se aposentou, prestando também serviços a outras instituições de
ensino superior. Sua obra é vasta e parte de suas peças teatrais foi recolhida
pelo cronista e jornalista Ubiratan Teixeira, que trouxe a lume o livro Teatro
Escolhido, contendo 15 peças do autor, com o selo editorial do Instituto Geia,
em 2012.

Embora fosse admirado e elogiado por diversos intelectuais de sua


geração, Fernando Moreira sempre foi bastante discreto com relação a sua
produção artística e preferiu ficar longe dos holofotes. No livro Memória do
teatro maranhense, organizado por Aldo Leite, o escritor Fernando Moreira
faz o seguinte comentário sobre sua produção teatral:
Eu devo ter escrito mais de vinte peças. E hoje em dia eu não as
reescreveria. Eu acho que... vamos dizer, minha vida como
escritor de peças – não me atrevo a dizer nem dramaturgo nem
teatrólogo – foi um caso de amor não correspondido, um amor
não correspondido ninguém fica vivendo a vida toda em função
dele; vira-se a página e sai para outra.[1]

Visivelmente influenciada pela obra de Tenessee Williams[2], a obra


de Fernando Moreira apresenta forte teor psicológico, com ênfase nas
fraturas das relações sociais, principalmente nos conflitos familiares,
conforme se pode ter um bom exemplo no conto abaixo transcrito.

O poeta e crítico Nauro Machado era outro entusiasta da literatura


produzida por Fernando Moreira e, ao comentar a encenação peça Reunião
em Família, escreveu que:
Fernando Moreira, autor de O grupo, livro de contos que reúne
algumas das mais altas realizações do gênero no País, é
principalmente conhecido como autor de peças teatrais, entre
elas a premiada Reunião em família (considerada no Rio de
Janeiro uma das dez melhores peças de teatro de 1960), que o
fazem artística e biologicamente plantar-se num isolamento
contrário à vida literária do grupo e à frouxa e dispersiva
facilidade da maior parte de seus companheiros de ofício[3].

A comentar a obra de Fernando Moreira, o professor e crítico


Sebastião Moreira Duarte chama a atenção para o fato de que em seus
textos, o autor de As figuras em cera construir suas tramas de tal forma que:

É como se o autor se dispensasse de pôr abaixo a “quarta parede” que


separaria atores e expectadores, e levasse esses últimos a escalavrar, por
sobre o telhado:

[1] LEITE Aldo. Memória do teatro maranhense. São Luís: EdFunc, 2007, p. 130.
[2] Tenessee Williams é o pseudônimo de Thomas Lanier Williams III (1911-1983), um
dos mais conhecidos dramaturgos dos estados Unidos e ganhador de diversos prêmios.
Um de seus livros mais conhecidos é Um bonde chamado desejo.
[3] MACHADO, Nauro. Província: o pó dos pósteros. São Luís: Edição do Autor, 2012,
p. 361.
a alma dos indivíduos, para nela fazer o raio X do desespero em
que, vazia de valores, mergulha a fatuidade moderna até à
autodestruição. Sob esse aspecto, algumas peças de Fernando
Moreira são como contos levados ao palco e ganham nítida
aproximação à obra de Lúcio Cardoso.[4]

De modo geral, a obra literária de Fernando Moreira é envolvente e


leva o leitor a vivenciar alguns momentos ao lado das personagens e a
desenvolver um grau de empatia para como os problemas e dramas
compartilhados nas narrativas. Mesmo em seus contos e novelas, é possível
“visualizar” de alguma forma a cena se desenrolando nas páginas dos livros.
Sua linguagem é clara e escorreita e os desfechos remetem um pouco ao
estilo rodrigueano. É um escritor que merece ser mais conhecido e
divulgado.

OBRAS DE FERNANDO MOREIRA


Como foi dito anteriormente, Fernando Moreira teve uma produção
intelectual bastante alentada. Grande parte de sua produção, infelizmente,
não foi reeditada. Muitos de seus trabalhos estão dispersos em jornais,
carecendo de uma reunião e de estudos críticos.
Listamos a seguir algumas de suas principais obras:

·A convalescente (Novela)
·A vítima perfeita (Novela)
·Para sempre, enquanto durar (Novela)
·Desenhos na parede (Novela)
·Reflexos na superfície (Contos)
·O grupo (Contos)
·Contos
·Artigos sobre cinema
·O preço do passado (Roteiro para cinema ou televisão)
·Aspectos da dramaturgia brasileira contemporânea (Ensaio)
·Cinema: uma perspectiva histórica, social e artística (Ensaio)
·Nine dramatistis and The Great Moments on the American Stage[5] (Ensaio)
·A juventude e o momento atual (Ensaio)
·Notes on XXth Century English Drama[6] (Ensaio)

[4] DUARTE, Sebastião Moreira. “Orelha” do livro Teatro escolhido de Fernando


Moreira. São Luís: Instituto Geia, 2012.
[5] Em tradução livre: Nove dramatizações e os grandes momentos do palco americano
[6] Em tradução livre: Notas sobre o drama inglês do século XX
·Teatro escolhido (Obra póstuma na qual estão enfeixadas as seguintes
peças teatrais)
1. Um momento na vida
2. A mola partida
3. A canção do desejo
4. Auto de Inês e Pedro
5. Mãos vazias
6. Estás em tua casa, Carolina
7. Fim de semana
8. Reunião de família
9. Eu e Julieta
10. A verdade acerca da beata
11. O embaraço de escolha
12. O fim do verão
13. Os ratos
14. As regras do jogo
15. Tresloucada mariposa ateou fogo às vestes
texto de apresentação por José Neres

conto
O casamento da
boneca pintada
– Pepita precisa casar.

A frase da matriarca caiu como uma pedra no lago de silêncio que precedia
a sobremesa. Embora não fosse dirigida a qualquer um deles em particular,
todos ergueram os olhos e fitaram D. Elpídio, o único que parecia não ter
ouvido a frase materna. Todos: Ramón, com aquele lábio inferior tão
estranhamente caído; Angústias, com aquela expressão perplexa que
assumira desde que se submetera a uma histerectomia; há cinco anos; e
Pedrito, o jovem caçula de 35 anos de idade que desfrutava de uma certa
reputação como globo-trotter inveterado no dizer dos colunistas sociais.

D. Santinha também olhou para Don Elpídio, como que à espera de uma
resposta a sua observação; mas ele, cioso de sua condição de filho mais
velho, parecia nada ter ouvido e continuava embevecido a explorar as
profundezas da narina esquerda. Os olhares dos outros filhos
acompanharam o de D. Santinha, e permaneceram suspensos, à espera: a
família toda sabia que, tradicionalmente, quando D. Elpídio falava sempre
dizia coisas interessantes que valiam a pena ser escutadas.
– Pepita precisa casar. Ela está completando 37 anos hoje.

Angústia suspirou audivelmente, causando um certo embaraço a todos.


Mais do que a voz da mãe, o suspiro pareceu interromper o deleite de Don
Elpídio.

– Ahh?
– Estou dizendo que Pepita precisa casar. Ela está com 37 anos, é tempo de
pensar nisso.

Nesse instante as luzes da casa se apagaram e um forte perfume


almiscarado invadiu o ambiente. Os olhares convergiram para a porta da
copa. Pepita estava no limiar, sorridente, com bolo de chocolate cheio de
velinhas. Com seus longos cabelos pretos salpicados de leve de fios brancos
numa trança que emoldurava um rosto de um moreno pálido, parecia uma
encantadora pintura de mulher, cujos traços suaves eram avivados pelo
brilho das velas. Seus ombros nus prometiam um busto já não muito firme,
mas generoso, de curva ternas. Parada à porta, era como um postal
estrangeiro, antigo.

Pepita adiantou-se e colocou o prato no meio da mesa. Todos se


levantaram, e cantaram "parabéns a você". Depois da salva de palmas,
Ramón tornou a acender as luzes.

– Minha primeira fatia é sua, mamãe, disse Pepita estendendo-lhe um


prato.
– Não, minha filha, a primeira fatia é de seu irmão. Ele é o verdadeiro chefe
da família, disse D. Santinha, embora soubesse que ninguém acreditava
nela.
– Ahh, fez D. Elpídio.
– Realmente, Pepita, eu insisto. Devemos obedecer a essas pequenas
etiquetas se queremos conservar nossa família unida e respeitada.
– Ahh, fez D. Elpídio.
– Aqui está, D. Elpídio, disse Pepita, estendendo o prato, e depois servindo
os demais, por ordem de importância: sua mãe, Ramón, Angústias, Pedrito
e, naturalmente ela própria.
– Está delicioso, disse D. Elpídio mastigando ruidosamente. Tens
verdadeiramente mãos de fada para cozinha.
– Já Angústias borda como ninguém, disse Pedrito; e nada mais
acrescentou, interrompido que foi por um olhar de sua mãe. Angústias
suspirou audivelmente.
– Uma moça como Pepita faria uma excelente esposa para um bom homem,
disse D. Santinha, olhando D. Elpídio fixamente.
– Que faria, faria. Tens algum namorado em vista, mana?
Dona Santinha respirou aliviada então suas alusões não haviam sido
perdidas; era muito difícil lidar com D. Elpídio, nunca se sabia ao certo se ele
se dava conta ou não do que se passava ao seu redor. Parecia-lhe que os
longos anos de seminário e de vida sacerdotal, sua grande Crise Religiosa, o
tinham colocado num plano especial diferente do restante da família. Às
vezes aparentava estar inteiramente desligado de suas tarefas de irmão
mais velho da família dos Gonzalez, e D. Santinha sentia uma certa inibição
em lembrá-lo disso. Ainda bem que isso não ocorria com muita frequência.
Se ele se interessasse pelo destino de Pepita, a velha estava certa de que ela
logo estaria casada.

– Ora, D. Elpídio, o senhor sabe que não sou dessas coisas. Além disso,
acrescentou com um leve encolher de ombros, onde é que eu iria encontrar
alguém que se interessasse por mim? Na missa das seis? Nós nunca vamos a
parte alguma.
– Isso é muito bom, arguiu D. Elpídio.
– Bom? Como é que ela vai arranjar um marido sem conhecer pessoa
alguma, sem ir às festas ou mesmo passear?
– É bom porque eu conheço. Eu, continuou D. Elpídio dirigindo-se mais
diretamente à mãe, não me descuidei da sorte de Pepita. E tenho alguém em
vista para ela, um excelente marido. Um homem que pode fazer a felicidade
de uma menina bem educada, prendada e bonita como a nossa Pepita.

A declaração causou um impacto dos maiores. De repente, o que parecia


uma hipótese longínqua, improvável até, se aproximava com foros de
realidade e parecia quase tangível. A família tinha um chefe que se
interessava pelos destinos do clã. Não eram um grupo de pessoas que o
destino reunira à volta de um jantar de aniversário, eram uma família. Uma
família.

– E quem é ele? Os olhos de Pepita brilhavam, ela parecia rejuvenescida.

Don Elpídio tinha suas ideias, mas achava que ainda não era o momento
de transmiti-las. Era um homem preguiçoso, qualidade que todos
confundiam com prudência, e tal reputação lhe ia muito bem. Todos o
acreditavam ponderado, equilibrado e incapaz de agir com precipitação:
não provara isso abundantemente na Grande Crise? Com a mesma placidez,
se reintegrara à vida leiga e reassumira o seu papel de chefe da família,
mesmo sabendo que, na realidade, era D. Santinha quem mandava. Tal
situação convinha perfeitamente ao temperamento de ambos.

Realmente, ele pensava em casar Pepita. Ele próprio já dobrara a casa


dos cinquenta, e não se sentia disposto a, mais uma vez, iniciar uma vida;
Ramón dirigia os negócios da família, e não covinha dividir suas atenções
com uma vida conjugal; Augústias, pobre Angústias; e Pedrito, com sua
mania de viagens, parecia singularmente imaturo aos 34 anos para assumir
os deveres de casado que, como ex-padre, D. Elpídio tinha em alta conta.
Restava Pepita, e ele deixou que seu olhar escorresse com carinho para irmã
mais nova, com sua beleza espanholada, seus modos recatados, sua pureza
pelo menos imprevista e tão intacta aos 37 anos.

– E quem é ele? A moça repetiu a pergunta, numa ansiedade incontida.


– Calma, calma, Pepita. Isso ainda é um projeto. Primeiro tenho que discuti-
lo com mamacita para ver se ela está de acordo. Mas acredito que não
surgirão problemas.

Como uma gravura de Goya, Pepita se recolheu e deixou que as sombras


descessem sobre seu rosto. Mas os olhos, esses continuavam brilhando.
Casar-se, ela? Já há tantos anos nem ousara esperar por isso, tentando
conformar-se com seu destino de solteirona e moldar sua placidez pela de
Angústias. Mas Angústias, pobre Angústias, era diferente. Ela não, era uma
mulher completa, saudável, e sabia que poderia ser uma boa esposa e, até
mesmo, mãe. Se não a fizessem esperar por muito tempo, claro.
Discretamente, correu os olhos em torno - escapar ao ciclo familiar, àquela
decoração pesada e imutável, onde cada cortina tinha sua prega
cuidadosamente estudada e possuir, de seu, um homem - um filho! Suas
entranhas se contorceram, e ela mordeu os lábios até quase fazer sangue.
Um homem - um filho!

– Estou curiosa por saber o que tens a me falar sobre noivo de Pepita, disse
D. Santinha, mal viu a sós com o filho mais velho! Angústias e Pepita tinham
ido dormir, Ramón saíra "para dar uma volta" (e todos sabiam naquela casa
o que escondia a discreta metáfora), e Pedrito estava na sala de música
escutando uns discos iugoslavos que trouxeram da última viagem.
– Oh, não é muito. Uma ideia apenas, talvez, que pode ser amadurecida.
– Uma ideia, apenas.
– Bem, um pouco mais que isso. Para dizer a verdade, já estive conversando
com… o interessado.
– Quem é ele, posso perguntar?
– Claro, mamacita, eu queria mesmo dizer-lhe. Estava apenas esperando…
dispor de fatos mais concretos. Mas já que a Pepita parece interessada…
acredito que tudo sairá bem, como desejamos.
– O nome dele, D. Elpídio?
– Carlos Fábio Coltrane Martins.
– Carlos… Coltrane Martins?
– Exatamente. Um Coltrane Martins seria um bom noivo para nossa Pepita.
Seria melhor se ele tivesse sangue espanhol como nós, mas não há como
negar que a família dele também é muito tradicional, e ele está em
excelentes condições para casar com ela.
– Ele não é… um pouco velho para a menina? Ela só tem 37 anos.
– Carlos Fábio Coltrane Martins é apenas dois anos mais velho do que eu,
disse D. Elpídio com dignidade. E é um esportista. Lembre-se que tem o
único campo de golfe da cidade, e é um dos melhores jogadores desse
esporte. É um homem rico, saudável, inteligente e educado, um amante das
artes. Falei-lhe de Pepita – claro, em termos de maior discrição para não
criar uma situação embaraçosa se ele não me manifestasse interessado.
Mas, pelo contrário, ele não foi nada adverso à ideia. A senhora
compreende, já não é uma criança, e praticamente não tem família - irmã
não conta, casou-se muito bem e mora no Rio. Uma esposa é exatamente do
que ele está precisando.
– Ele… cria um afilhado, não?
– Edvaldo? Não é mais um menino, já tem mais de 20 anos. É uma espécie
de secretário de Carlos, cuida da discoteca dele, trata da correspondência,
paga impostos – enfim, essas coisas.
– Ele e esse rapaz estão sempre juntos.
­– Para uma pessoa que só sai de casa para ir à igreja e ao cemitério, a
senhora está muito bem informada. Mas Edvaldo não tem a menor
importância: um homem precisa se apegar a alguma coisa, afinal. Quando
ele casar com Pepita, Edvaldo já não será necessário.
– Quero dizer… Esse rapaz não será fruto de alguma loucura da
mocidade? Não gostaria de ver minha filha casada com um homem que
tivesse um filho bastardo dentro de casa. Poderia haver complicações mais
tarde, os filhos do casal, a herança… Você sabe como são esses assuntos
horrorosos.
– Asseguro-lhe que Edvaldo não é filho de Carlos. Que ideia, mamacita,
Edvaldo é um mulato quase preto, e Carlos é um homem finíssimo.
– Há homens finíssimos que têm cozinheiras pretas. E às vezes têm
filhos com elas.
– Fique descansada. Sei que estou fazendo.

Como a maior parte das pessoas que pensam assim, D. Elpídio não sabia.
Não sabia, por exemplo, que o sonho de Pepita era possuir um homem e um
filho; não sabia, também, que Carlos Fábio Coltrane Martins estava muito
mais interessado em sua discoteca e no campo de golfe e em outras coisas do
que em Pepita como mulher; não sabia que, para ele, o casamento era
apenas a presença de uma futura enfermeira sem remuneração e com
tempo integral e dedicação exclusiva; não sabia que Edivaldo tinha deveres
muito bem definidos, e que Carlos Fábio não cogitava em substituí-lo em
suas funções. D. Elpídio, na realidade, não sabia muita coisa além de
determinar os pontos da filosofia tomista que tinham trazido dúvidas
concretas a sua fé e o haviam feito solicitar dispensa a Roma dos votos
sacerdotais.
Contrariamente ao que se esperava, Pepita não delirou de contentamento
à ideia do noivo quinquagenário, esportivo e rico. Ela era uma moça tímida
e educada à antiga, com requintes de severidade vindos do lado espanhol
paterno e exageros de recato impostos pela mãe, que se fizera mais
espanhola ainda do que o marido. Mas não era tola. Tinha olfato excelente
para detectar cheiro de peixe podre, e algo lhe dizia que não era naquele
casamento que ia realizar anseios muito íntimos, muito antigos, e, por isso
mesmo, muito bem delimitados.

– Ele está mesmo querendo casar comigo? Perguntou ela, com uma nota de
dúvida e ironia que passou desapercebida ao irmão.
– Claro que quer, disse D. Elpídio. Carlos Fábio Coltrane Martins é um
cavalheiro. Está ansioso por desposá-la. Você será uma ótima esposa para
ele, ele sabe disso. Viverão um para o outro.
– E o afilhado dele? Não quero aquele negro morando conosco.
– Pepita, isso é muito feio de sua parte. Primeiro, não há nada errado em ser
um negro. Segundo, Edvaldo não é um negro, é um mulato. Terceiro, não
fica nada bem você querer fazer imposições ao homem que a escolheu para
esposa.
– Eu vou ter que morar com ele, não é? Então, lá vai ser minha casa. E onde é
que eu posso impor minha vontade a não ser em minha própria casa?
– Realmente, mocinha, a senhora está passando dos limites! Você não foi
educada como uma dessas emancipadas, doidivanas, que veem no marido…
bem, sei lá o que elas veem, acho que é um instrumento de seus caprichos.
Não foi essa a educação que lhe demos.
– Tudo isso é muito certo, D.Elpídio, mas eu é que não estou querendo me
casar com um homem que já leva consigo… uma família. E se Edvaldo for
filho dele?
– Pepita, realmente dessa vez você passou dos limites. Seu noivo virá aqui no
sábado à noite. Não quero ouvir mais nenhuma palavra sobre esses assuntos
idiotas.

Pepita pensando em
Edvaldo e conversando
com Carlos
No sábado à noite, Carlos Fábio Coltrane Martins se apresentou para sua
primeira visita à mansão dos Gonzalez. Era um homem de maneiras
finíssimas, que conquistou D. Santinha com uma caixa de bombons de licor
da Kopenhagen, e encantou a todos com sua conversação polida e suas
atitudes de grão-senhor. Discutiu filosofia com D. Elpídio, valor de negócios
com Ramón, de viagens com Pedrito, escutou os suspiros de Angústias com
discreto interesse, dirigindo-se a D. Santinha como se ela fosse a pessoa
mais importante da casa (e era realmente) e olhou Pepita com curiosidade,
simpatia e admiração. Com efeito, sua futura noiva era uma bela mulher:
colocar-se estrategicamente contra a luz, e seu rosto moreno saltava na
penumbra, emoldurado pela trança negra onde os fios brancos sobressaíam
como prata. Falando pouco e observando tudo, Pepita lembrava uma
pintura, sim quase uma pintura do século XVI ou XVII, de algum grande
mestre ibérico. Seus olhos vivazes e inteligentes levavam a esquecer a
imobilidade que adotara como atitude naquela noite.

Em resumo, a visita de Carlos Fábio Coltrane Martins foi um sucesso. D.


Santinha mostrou-se encantada, Ramón e Pedrito comentaram sua
versatilidade e erudição, e Angústias elogiou as boas maneiras, entre dois
suspiros que diziam muito. D. Elpídio aceitou os cumprimentos como se
tudo fosse devido a ele. Pepita apenas disse:

– Ele não falou no filho adotivo.


– Que ideia. Já te disse que ele não tem nenhum filho. O rapaz é secretário
dele. Uma espécie de fac-totum.
–Faço quê?

As visitas se amiudaram, Carlos Fábio Coltrane Martins era agora uma


presença imprescindível nos serões dos Gonzalez. Já não podia haver dúvida
sobre interesse que ele sentia por Pepita, que aguardava com ansiedade o
desenrolar dos acontecimentos.

Finalmente, aconteceu. Depois de acordos preliminares com D. Elpídio,


Carlos Fábio Coltrane Martins pediu Pepita em casamento. Espocou-se
champanhe, a noiva parecia adequadamente feliz, o noivo alegre, e
Angústias derramou algumas lágrimas para manter a tradição que D.
Santinha não cumprira: como boa espanhola de coração, a vigorosa
matrona via a cena com aquisição de mais um hotel para cadeia que Ramón
administrava com eficiência para aumentar o patrimônio da família. Carlos
Fábio Coltrane Martins era, ela dizia consigo mesma, à última etapa na
ascensão social.

No dia seguinte, Pepita apareceu pronta para sair. Ao vê-la, a mãe


perguntou por força de hábito:
– Aonde vais?
– Vou à rua.
– Angústias não te acompanha?
– Não é necessário. Vou demorar muito.
Saiu, antes que a mãe fizesse mais perguntas. Vestia
traje branco que a rejuvenescia bastante, e os sapatos
baixos a faziam mais ágil e mais leve. Vista de relance por
observador pouco atento, que não reparasse nos fios
brancos salpicando as tranças parecia quase uma
adolescente.

Pepita não voltou para almoçar. D. Santinha não se


inquietou, imaginando que ela tivesse ido visitar alguma
amiga e ficado para refeição. Poderia telefonar, mas a
velha matriarca não era dada a inquietações: sabia a
educação que deram aos filhos e o que esperar deles. E, por
outro lado, estava ocupada com a relação para o enxoval: o
casamento não deveria tardar muito, conforme fora
combinado.
Lá pelas três horas da tarde, Pepita
regressou. A única modificação aparente que
havia nela eram os cabelos soltos, caindo e
ondas macias sobre os ombros; mas como
ninguém da família se interessava pelo
cinema americano e sua simbologia, a
alteração passou despercebida. Pepita
recolheu-se ao quarto, depois tomou um
banho, fez um lanche reforçado e depois se
aprontou para a reunião da família que
precedia o jantar, quando os homens
tomavam o seu cálice de xerez.

Carlos Fábio Coltrane Martins não apareceu nessa noite. Todos


lamentaram sua ausência, menos Pepita, que manteve seu habitual silêncio.
Não apareceu na noite seguinte, nem na outra. No 4° dia, D. Elpídio, que
estava perplexo, procurou-o em sua residência.

– Viajou, disse ele a D. Santinha em particular. Viajou de repente há três


dias. A governanta só informou isso, não consegui nem sequer saber para
onde ele foi.
– Mas Carlos Fábio Coltrane Martins é um cavalheiro. Tem de haver
uma explicação! Ele não pode ter ficado noivo num dia e viajado no outro
sem dar satisfações, sem ao menos se despedir.
– Mas é o que ele fez.
– Só falaste com a governanta? E o rapaz que mora lá?
– Não mora mais. Carlos Fábio Coltrane Martins o pôs na rua com todas
as bagagens, antes de viajar, disse D. Elpídio, que já agora não conseguia
disfarçar a extensão de seus receios.
– Estranho muito estranho. Em todo caso, vamos aguardar.
– Eu acho, mamacita, eu acho que não há mais nada para guardar,
respondeu ele retirando-se.
D. Elpídio encaminhou-se para o quarto de Pepita. Bateu levemente e
entrou. A irmã estava sentada numa poltrona, bordando um objeto que ele
não reconheceu de imediato.
– Podes me explicar, perguntou ele (o terrível irmão mais velho, o chefe
da família, o líder do clã dos Gonzalez) o que significa tudo isso?
– Não sei a que te referes.
– Sabes muito bem.
– Não há nada a explicar.
– Fica sabendo que sei de tudo.
– Então, não há necessidade de acrescentar coisa
alguma.
– Como pretende explicar à mamacita… o que
aconteceu?
– Ainda não tive tempo de pensar nisso. Mas ela vai
se horrorizar muito, podes estar certo. Basta que se
lembre do ramo de negócios de papai antes de casar
com ela.
– Ficaste louca?
– Elpídio, eu sempre soube que os nossos hotéis eram, no tempo de papai,
simples motéis. Ou casas de tolerância, ou redevu, como dizia naquele
tempo. Se nosso avô não tivesse condicionado a mão de mamãe a uma
mudança… de categoria, papai teria continuado com as suas casas de
mulheres, administrando-as e ganhando bom dinheiro para nós.
– Pepita, depois de tudo, como te atreves?
– Mano, vamos interromper essa conversa que não leva a coisa alguma. Meu
noivado durou um dia e acabou. Não há o que lamentar, estou contente.
Agora precisamos dizer a mamãe… só o essencial, por enquanto. Elpidio
contemplou a desconhecida que era sua irmã. Parecia mais jovem, mais
bonita, e, naturalmente, muito mais mulher. Uma mulher segura de si,
adulta, que sabia o que queria, e soubera agir em função disso. Uma
estranha com quem teria de se habituar a conviver. De repente algo lhe
ocorreu:
– Que queres dizer… por enquanto?
– Simples, disse Pepita mostrando-lhe a pequena peça de cambraia branca
que estava bordando. Estou certa de que vou ter uma criança. Nem sei dizer
o quanto estou feliz, era o que eu mais desejava no mundo; mesmo que saia
escuro como o pai, não me importo. Achas que, na minha idade poderei ter
parto natural, ou será preciso fazer uma cesariana?

FONTE: Jornal O Estado do Maranhão, edição de 06 de junho de 1993. Pág. 26.

Você também pode gostar