Você está na página 1de 5

O rápido lançamento do primeiro veículo bicombustível do Brasil em

2003, pela Volkswagen, representou uma excepcional resposta à mudança


do mercado automobilístico brasileiro. No entanto, a iniciativa foi de um
fornecedor de sistemas de injeção eletrônica, a Magneti Marelli, que depois
ofereceu a mesma tecnologia às concorrentes da VW. Será que esse tipo de
resposta, ainda que ágil, interessa mesmo às empresas?

tecnologia do motor bicombustível, capaz de funcionar tanto com gasolina

A como com álcool, foi desenvolvida no Brasil pela Magneti Marelli,


fabricante de sistemas eletrônicos para controle de motor e fornecedora das
grandes montadoras que atuam no País. Ela a ofereceu às montadoras e foi
com a Volkswagen que fechou a primeira parceria para introduzir o motor flexível EA
827 1.6 l, que equipou o modelo VW Gol 1.6 Total Flex lançado em março de 2003.
Esse tipo de história é resultado do ambiente empresarial do século 21, marcado
pelo acirramento da concorrência e pelo aumento do poder dos clientes, o que exige
agilidade para mudar e atender as demandas do mercado. Nesse cenário, o
desenvolvimento de novos produtos tem fundamental importância estratégica na
definição da competitividade dentro de cada setor de atividade: há necessidade de
encurtar prazos de desenvolvimento, diversificar o portfólio de produtos,
reduzir custos.
Várias empresas de diferentes setores procuram formas alternativas de organizar
o gerenciamento da produção e o desenvolvimento de produtos para acompanhar a
mudança, e uma das formas de organizá-los que parece emergir com muita força nos
últimos anos é a externalização ou terceirização de atividades para fornecedores
(outsourcing). Tanto que uma das decisões mais importantes de uma empresa nos
dias atuais diz respeito a quais atividades externalizar e quais fazer internamente
(decisão make-buy) e como coordenar as atividades interfirmas no desenvolvimento
de produtos.
O fato de o motor bicombustível ter surgido por proposta de um fornecedor e
não de uma montadora é o foco deste artigo. Nesse ambiente de mudança contínua,
não estariam os fornecedores, a exemplo dos consumidores, ganhando cada vez mais
poder? Afinal, eles passam a responder por uma característica determinante do
produto na hora da compra pelo cliente. E abrir mão da competência de desenvolver
módulos fundamentais para o desempenho do produto na visão do cliente no caso
aqui tratado, da tecnologia eletrônica de controle do motor não pode tornar as
montadoras apenas montadoras, no sentido estrito da palavra, perdendo importância
estratégica?

HSM Management Update nº 36 - Setembro 2006


O desenvolvimento da tecnologia
Desde o final dos anos 1980, com o declínio do álcool hidratado como opção de
combustível e a instabilidade no mercado de petróleo, a indústria automobilística,
especialmente os fornecedores de sistemas eletrônicos para controle do motor, buscava
uma alternativa à utilização da gasolina como combustível, aliando a experiência
brasileira com o uso do álcool à necessidade de redução de emissão de poluentes.
Tanto a Bosch como a Magneti Marelli empresas consideradas líderes em
inovação em sistemas eletrônicos passaram a desenvolver sistemas de injeção
bicombustível, utilizando tanto álcool hidratado como gasolina. A Bosch foi a
primeira a apresentar um sistema de injeção bicombustível tecnicamente viável, mas o
custo da tecnologia utilizada o sensor físico de combustível inviabilizou-a
comercialmente. A Magneti Marelli optou por um sistema de injeção baseado em
software que tinha custo competitivo e passou a oferecê-lo às montadoras. A partir de
2001, com o aumento do preço do petróleo e com a mudança da legislação tributária
que concedeu aos carros bicombustíveis redução de imposto sobre produtos
industrializados (IPI) similar à de veículos a álcool, o produto tornou-se
mercadologicamente viável.
A partir da inovação da Magneti Marelli, a Volkswagen foi a pioneira ao lançar o
Gol 1.6 Total Flex em março de 2003. A Magneti Marelli cuidou do sistema de injeção
e a Volkswagen do desenvolvimento do motor, integrando diferentes sistemas
eletrônicos e mecânicos, criando especificações que atendessem características
técnicas de desempenho (torque, consumo, potência) e atributos subjetivos (maciez
ao dirigir, agressividade etc.).
Todo desenvolvimento de um novo produto seja uma modificação em produtos
já existentes, seja um veículo totalmente novo segue uma série de procedimentos
padronizados na VW. Esse processo abrange, em linhas resumidas, os seguintes passos:
1. Delineamento do conceito de produto. A área de Planejamento do Produto recebe
propostas de novos produtos ou modificações de legislação das áreas de marketing,
engenharia de produtos ou de outras plantas VW ao redor do mundo. As sugestões
com maior potencial mercadológico são selecionadas e cria-se, então, uma solicitação
de investigação.
2. Investigação. Nessa fase, as áreas de engenharia de produtos e engenharia avançada
(protótipos) traduzem a proposta de produto em especificações. São realizados testes
preliminares de viabilidade técnica. Gera-se uma descrição genérica do produto que se
deseja desenvolver basicamente uma lista de peças.
3. Detalhamento da proposta. A lista de peças passa a ser discutida pelas áreas de
finanças, suprimentos, manufatura, engenharia e qualidade quanto a questões
técnicas e de custos (investimentos necessários em processos e ferramental, custos de
desenvolvimento e testes, custo do produto). Nessa fase, define-se o que será
desenvolvido e produzido internamente ou por fornecedores terceirizados.
4. Aprovação pela diretoria. Essas informações técnicas e de custos são consolidadas
em um documento (a Carta de Produto), que é levado à apreciação da diretoria, que
pode aprová-la ou não.
5. Desenvolvimento. Caso a proposta seja aprovada, inicia-se o desenvolvimento
técnico do produto. A VW do Brasil tem autonomia para desenvolver produtos de
plataformas locais famílias Gol, Santana, Kombi e Fox, além de motores a ar, o motor
EA 827 (que equipa Gol e Santana) e de modificações necessárias em famílias de
motores mundiais, para atender a exigências legais e características locais de mercado
(que é o caso dos veículos movidos a álcool e bicombustíveis).

HSM Management Update nº 36 - Setembro 2006


Desde a fase de delineamento do conceito de produto, os fornecedores podem
contribuir, apresentando sugestões para a empresa, por meio da engenharia de
produto exatamente o que aconteceu no caso do Gol Total Flex. Esse é um
procedimento usual na companhia já há muitos anos.
Outra forma de envolvimento dos fornecedores é com o desenvolvimento
completo de peças/módulos conhecidos por black boxes para esses componentes, a
montadora estipula parâmetros de desempenho e delega 100% do desenvolvimento e
produção a fornecedores.
O critério de decisão sobre quais sistemas/módulos a VW desenvolve e quais são
black boxes não ficou claro durante a pesquisa. Segundo um executivo da montadora
entrevistado, a VW terceiriza o desenvolvimento do que não é capaz ou não deseja
desenvolver sozinha. No caso de motores, toda parte eletrônica (ECU, motor de
partida, ventilador, sensores, atuadores etc.) é desenvolvida por fornecedores são black
boxes tanto no Brasil como na Alemanha. Já o chamado Rupfmotor bloco, cabeçote,
cilindro, válvulas, virabrequim, cárter, eixo comando (a parte mecânica) pode ter até a
manufatura terceirizada, mas nunca seu desenvolvimento. O desenvolvimento desses
componentes é considerado know-how exclusivo da montadora, uma competência
essencial, por se tratar de atributos que os clientes enxergariam como exclusivos dos
motores VW a “alma do motor”.
A partir dessa afirmação, é possível questionar o porquê de a parte mecânica ser
considerada essencial e não a eletrônica, uma vez que esta demonstra, cada vez mais,
ser fundamental para garantir a competitividade no setor automobilístico. No caso da
tecnologia mecânica, dificilmente a montadora se tornaria dependente por
conhecimento, mas no da eletrônica ela já o é. E é a dependência por conhecimento
que pode levar uma empresa a comprometer seu futuro.

O desenvolvimento do carro
Há alguns anos, a VW vinha trabalhando no desenvolvimento de um motor
bicombustível em parceria com a Magneti Marelli e com a Bosch. A proposta da Bosch
(sensor com atuação física) já estava adaptada ao veículo, mas seu custo a inviabilizava
comercialmente. Com a proposta da Marelli e a modificação na política de tributação
de IPI, o custo do motor bicombustível tornou-se competitivo no mercado e o projeto
foi novamente levado à diretoria e aprovado, com uma incumbência específica de
reduzir ao máximo o time to market a VW queria ser a pioneira nessa tecnologia
no mercado.
Como a empresa já possuía expertise no motor EA827 a álcool as modificações
necessárias para o motor tornar-se bicombustível o aproximam do motor a álcool e
com a participação de fornecedores no desenvolvimento, otimizaram-se algumas
etapas de testes e pré-produção e o veículo pôde ser lançado num prazo recorde: seis
meses, desde a aprovação do projeto até o lançamento no mercado.
Portanto, no desenvolvimento do Gol 1.6 Total Flex não houve nenhuma
alteração significativa no processo usual de desenvolvimento de produto, tanto
por parte da montadora como do fornecedor. Desde seu surgimento no Brasil, no
início dos anos 1990, o desenvolvimento de sistemas eletrônicos de motor é
responsabilidade dos fornecedores trata-se de black boxes.
No atual estágio tecnológico da eletrônica de motor, a Volkswagen (e tampouco
suas concorrentes no Brasil) não teria condições de desenvolver 100% sozinha a
tecnologia bicombustível.
Nos anos 1980, no início do uso de sistemas eletrônicos em motores, a VW na

HSM Management Update nº 36 - Setembro 2006


Alemanha decidiu criar um centro de competência em eletrônica e desenvolveu uma
tecnologia própria de controle eletrônico de motor (chamada de Digifunt). Essa
tecnologia chegou a ser introduzida em veículos da marca, mas, em poucos anos, ficou
defasada tecnologicamente e com custo alto em relação aos sistemas desenvolvidos por
empresas como a Bosch e a VW definitivamente terceirizou essa competência.
Hoje, praticamente não há como uma montadora concorrer em tecnologia e
custo com empresas como Bosch, Magneti Marelli, Siemens, Delphi, Visteon e
Hitachi, que se dedicam exclusivamente ao desenvolvimento de sistemas eletrônicos.

A dependência de conhecimento
Nesse ambiente de mudanças contínuas, que enfatiza a inovação, o processo de
desenvolvimento de produtos dá-se por duas vias distintas: a primeira é a própria
montadora que demanda o projeto ou a tecnologia; a segunda, os fornecedores
propõem novos produtos numa ação proativa.
No caso do motor flexível brasileiro, foi a segunda opção que prevaleceu. A
Magneti Marelli ofereceu uma solução tecnológica pronta para a montadora, que,
após debater questões de interesse financeiro, tributário e estratégico, decidiu
implementá-la no mercado num tempo recorde.
A Volkswagen agiu, portanto, como integradora de diferentes sistemas do
motor, fossem eletrônicos ou mecânicos. Ao dotar o motor de uma arquitetura
modular e a partir do momento em que o desenvolvimento de sistemas eletrônicos
tornou-se uma atividade em que a montadora não teria condições de concorrer com os
fornecedores especializados, a Volkswagen e as outras montadoras passaram a
depender desses fornecedores, numa dependência de conhecimento. Essa situação é
potencialmente perigosa para elas, segundo alguns autores, pois a competitividade em
longo prazo pode ficar comprometida, uma vez que os fornecedores passam a
controlar a evolução tecnológica dos sistemas e impõem padrões.
Especificamente no caso do motor bicombustível, isso já ocorreu: dois anos após
o lançamento do VW Gol, praticamente todas outras montadoras que atuam no Brasil
já tinham lançado ou planejavam lançar modelos bicombustíveis.
Por outro lado, as montadoras continuam ditando as características que o cliente
percebe e que são propiciadas por aspectos técnicos do motor de um automóvel, como
maciez ao dirigir, tipo de ruído e agressividade. Sua competência é detectar as
preferências do mercado e delinear essas características segundo uma espécie de
“DNA” do automóvel, para, em seguida, transformá-las em especificações,
repassando-as aos fornecedores.
Acontece que a inovação do motor bicombustível por envolver não somente o
sistema de injeção, mas a modificação de diversos componentes para que o motor seja
funcional guarda relação próxima com o “DNA” dos automóveis. Delegar a um
fornecedor o desenvolvimento de componentes-chave para o sucesso dessa inovação,
como o sistema de injeção eletrônica, é muito arriscado.
A forma de gerenciar essa parceria com o terceirizado é o que pode ajudar a
montadora a reter suas competências essenciais, mas fato é que há, sim, um risco maior
de as montadoras perderem suas competências essenciais no desenvolvimento de
motores. Elas estão cada vez mais dependentes de conhecimento dos fornecedores em
produtos essenciais para manter a competitividade.
Mesmo que a montadora ainda controle a competência de integrar a arquitetura
do produto e saiba gerenciar bem essa parceria, a evolução da tecnologia eletrônica
pode fazer com que padrões do setor sejam estabelecidos por fornecedores e não mais
pelas montadoras.
HSM Management Update nº 36 - Setembro 2006
Adriana Marotti de Mello é mestre em engenharia de produção, Luis Henrique Rigato Vasconcellos é
doutorando em engenharia de produção e pesquisador ligado a ESPM e a FGV-EAESP e Roberto Marx é
professor doutor. Todos fazem parte do grupo de pesquisa TTO (Trabalho, Tecnologia e Organização) do
departamento de Engenharia de Produção da Poli-USP, a faculdade de engenharia da Universidade de
São Paulo.

HSM Management Update nº 36 - Setembro 2006

Você também pode gostar