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História do Ensino da

Matemática: uma introdução


Maria Laura Magalhães Gomes

História do Ensino da
Matemática: uma introdução

Belo Horizonte
CAED-UFMG
2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS CONSELHO EDITORIAL
Profº Clélio Campolina Diniz Profª. Ângela Imaculada Loureiro de Freitas Dalben
Reitor Profº. Dan Avritzer
Profª Rocksane de Carvalho Norton Profª. Eliane Novato Silva
Vice-Reitoria
Profº. Hormindo Pereira de Souza
Profª Antônia Vitória Soares Aranha
Profª. Paulina Maria Maia Barbosa
Pró Reitora de Graduação
Profª. Simone de Fátima Barbosa Tófani
Profº André Luiz dos Santos Cabral
Pró Reitor Adjunto de Graduação Profª. Vilma Lúcia Macagnan Carvalho
Profº. Vito Modesto de Bellis
Profº. Wagner José Corradi Barbosa
CENTRO DE APOIO DE EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA
Profº Fernando Selmar Rocha Fidalgo COLEÇÃO EAD – MATEMÁTICA
Diretor de Educação a Distância Coordenador: Dan Avritzer
Prof º Wagner José Corradi Barbosa LIVRO: Lições de Cálculo Integral em Várias Variáveis
Coordenador da UAB/UFMG Autores: Dan Avritzer e Mário Jorge Dias Carneiro
Profº Hormindo Pereira de Souza Junior Revisão: Jussara Maria Frizzera
Coordenador Adjunto da UAB/UFMG
Projeto Gráfico: Laboratório de Arte e Tecnologia para
Educação/EBA/UFMG
Formatação: Sérgio Luz
EDITORA CAED-UFMG
Profº Fernando Selmar Rocha Fidalgo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil)

Ficha catalográfica elaborada por XXXXXXXXXXXXXXXXXX, CRB-6/2725


Sumário

Apresentação 7
Nota do Editor 11

Unidade 1: Aspectos gerais da história do ensino de Matemática no Brasil 13


Introdução 13
Brasil Colônia (1500-1822) 14
Brasil Império (1822-1889) 15
Brasil República (a partir de 1889) 17
Para Concluir 27
Referências 29
Leituras Complementares 30
Atividades Referentes à Unidade 1
31
Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:
os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no Brasil 33
Introdução 33
No início do século XX: racionais e irracionais nos livros de Aritmética 34
Dois tipos de números e sua caracterização nos livros de Aritmética 36
Entre a reforma Francisco Campos e o movimento da matemática moderna 39
Durante o movimento da matemática moderna 42
Um balanço dos três momentos 46
Referências 48
Leituras complementares 50
Atividades referentes à Unidade 2
51
Unidade 3: Memórias e reflexões: histórias de ensino de Matemática 53
Introdução 53
Álvaro Moreyra e suas lembranças de um professor de Matemática 55
Felicidade Arroyo Nucci e o ensino da tabuada na escola primária 56
Augusto Meyer e suas dificuldades com a Matemática 58
Sylvia Orthof e sua professora de Matemática no ginásio 59
Humberto de Campos e as práticas com a Matemática na escola do final do século XIX 60
Nelson Werneck Sodré e a Matemática ensinada na formação militar 62
Breves reflexões sobre o ensino da Matemática nas memórias de seis brasileiros 65
Referências 66
Atividades referentes à Unidade 3 67
Lista de tópicos para orientar a escrita do texto de memórias 68
apresentaç ão

Somos devedores de parte do que somos aos que nos precederam.


O dever de memória não se limita a guardar o rastro material, escrito ou
outro, dos fatos acabados, mas entretém o sentimento de dever a outros,
dos quais diremos mais adiante que não são mais, mas já foram.
Pagar a dívida, diremos, mas também submeter a herança a inventário.
Paul Ricoeur1

O texto aqui apresentado foi escrito para o curso de Licenciatura em Matemática a


distância, oferecido pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG2. Este trabalho
visa à disciplina História do Ensino da Matemática, que compõe a matriz curricular do curso
e está alocada ao final de seu 3º ano.
A história tem sido apontada, tanto nas pesquisas quanto nas propostas curriculares3, como
um dos componentes importantes nas questões que envolvem o ensino e a aprendizagem
da Matemática, salientando-se suas diversas potencialidades. Essa posição favorável
à participação da história nas práticas pedagógicas da educação escolar se tem feito
acompanhar, em geral, de uma preocupação com a presença de disciplinas que envolvam
história nos cursos de formação de professores. O exame dos projetos curriculares das
licenciaturas em Matemática de muitas instituições públicas e privadas revela, com
frequência, que tais disciplinas vêm, de fato, fazendo parte do elenco proposto para formar
o professor da escola básica brasileira.
No entanto, é oportuno lembrar que, em geral, a inclusão da História da Matemática na
formação de professores tem se referido ao enfoque do desenvolvimento, ao longo do
tempo, dos conhecimentos matemáticos, sem atenção específica às dimensões históricas
do ensino. Tais dimensões constituem o objeto do campo de investigação que tem se
estabelecido no Brasil e em outros países com o nome de História da Educação Matemática.
Na maioria das vezes, mesmo quando as matrizes curriculares dos cursos de licenciatura
acusam a presença de conhecimentos históricos, os aspectos relativos ao ensino não são
mencionados nas ementas e programas das disciplinas.
Contudo, a compreensão histórica de diversos aspectos ligados à formação e à atuação
docentes, a partir de concepções passadas e presentes, é um elemento de importância

1 RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François [et al.]. Campinas: Editora da UNICAMP,
2007, p. 101.
2 O curso iniciou-se em 2009, com turmas ingressantes em quatro polos: Araçuaí, Conceição do Mato Dentro, Governador
Valadares e Montes Claros. Em 2011, iniciaram suas atividades novas turmas em Araçuaí, Conceição do Mato Dentro
e Governador Valadares, além de turmas nos dois novos polos de Januária e Teófilo Otoni. Em 2012, foram abertas
inscrições para ingresso de mais turmas em Governador Valadares e Montes Claros e ainda em mais dois polos: Bom
Despacho e Corinto.
3 Distinguem-se, na investigação sobre essa temática, os trabalhos dos pesquisadores Antonio Miguel e Maria Ângela
Miorim, entre os quais destacamos o livro História na Educação Matemática: propostas e desafios. Já no âmbito das
propostas curriculares, é possível notar a defesa dos componentes históricos, por exemplo, nos documentos publicados
pelo Ministério da Educação desde 1997-1998, a partir da divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o
Ensino Fundamental.

7
considerável na formação docente, pois esses conhecimentos, adequadamente problemati-
zados, podem levar os estudantes a entenderem melhor suas próprias concepções sobre a
profissão de professor e sobre as práticas docentes em relação à Matemática. Mais ainda,
esses conhecimentos têm o potencial de contribuir para a proposição, pelos professores,
de formas alternativas positivas de atuação em relação ao que se tem feito na maioria das
vezes – reproduzir práticas inadequadas do passado, mesmo sem entendê-las.
Na criação do curso a distância da UFMG, a elaboração do projeto curricular valorizou a
focalização de aspectos históricos do ensino da Matemática e aprovou a inclusão da disciplina
a que este texto se destina, com a proposta de ementa transcrita abaixo, considerando-se
uma carga horária de 30 horas-aula no curso a distância:
A evolução do ensino de Matemática na educação básica no Brasil: surgimento e principais
momentos; a “escola nova” e o “movimento da matemática moderna”; décadas recentes, com
os movimentos de universalização e inclusão na educação básica.
Ainda que o escopo previsto seja o da história do ensino da Matemática no Brasil, a proposta
é bastante ampla e poderia acolher uma grande variedade de abordagens.
O presente texto foi elaborado levando em conta que uma disciplina não tem espaço para
abordar “tudo” e que, mais importante do que apresentar informações, é criar as condições
para que os estudantes, no futuro (quando estiverem atuando como professores) possam
estudar mais e compreender melhor o que estudam fundamentados em uma postura crítica
e investigativa. O título escolhido para o trabalho – História do ensino da Matemática:
uma introdução – procura retratar que não se pretendeu escrever um livro panorâmico
sobre a história do ensino da Matemática no Brasil, guiado pela ementa proposta para
a disciplina do curso de licenciatura a distância da UFMG. Por outro lado, essa ementa
está contemplada nas três unidades em que o trabalho foi organizado e sobre as quais
discorremos brevemente a seguir.
Na Unidade 1, apresentamos uma visão geral da história do ensino da Matemática no
Brasil, organizada cronologicamente, na qual procuramos abranger os itens que compõem a
ementa da disciplina. Esboçam-se, então, considerações mais genéricas acerca de questões
da história da educação brasileira nos períodos colonial, imperial e republicano, com alguma
atenção específica ao ensino da Matemática. Considerando que a consolidação de um
sistema de ensino no país veio a ocorrer somente no século XX, o espaço maior é dedicado
ao Brasil República. Nessa parte, a Matemática é focalizada mais de perto, destacando-
se a reforma Francisco Campos (que, em 1931, conferiu ao ensino brasileiro a primeira
organização nacional) e o movimento da matemática moderna, marco na história do ensino
da Matemática em todo o mundo, nas décadas de 1960 e 1970.
A Unidade 2 se destina à tarefa específica de mostrar como os conteúdos matemáticos
veiculados na escola, mesmo que estejam sempre presentes, se transformam com o
transcorrer do tempo. Para isso, foi escolhido o tema dos números racionais e irracionais, que
é abordado a partir de uma fonte muito relevante para a história do ensino da Matemática –
os livros didáticos, particularizando três diferentes períodos do século XX: as três primeiras
décadas; de 1931 até o início dos anos 1960; e os anos 1960-1970 – período de penetração
e difusão do movimento da matemática moderna em nosso país.

8 história do ensino da matemática


Para complementar o trabalho desenvolvido nas Unidades 1 e 2, são solicitadas leituras
de outros textos, a serem disponibilizados aos estudantes com os recursos da plataforma
Moodle. Com base na leitura do texto de cada unidade e desse material complementar, são
propostas algumas atividades, que podem ser usadas na avaliação da disciplina.
A Unidade 3 tem um objetivo duplo. Pretende-se, primeiramente, mostrar ao aluno
a relevância das fontes autobiográficas para que se conheça o passado do ensino da
Matemática no Brasil, por intermédio da apresentação de excertos de livros de memórias de
autores brasileiros que viveram no século XX e relatam, em suas obras, suas experiências
escolares. Na valorização da escrita autobiográfica para a história, recorremos às palavras
de Paul Ricoeur ao referir-se à memória como matriz da história, “na medida em que ela
continua sendo a guardiã da problemática da relação representativa do presente com o
passado”4.
Em segundo lugar, visa-se conduzir o licenciando à própria inserção, como sujeito da história
do ensino da Matemática no Brasil, pela proposição de uma tarefa reflexiva sobre sua vida
pessoal e escolar consubstanciada na escrita de um texto memorialístico, desencadeado a
partir da leitura dos fragmentos autobiográficos incluídos na terceira unidade, subsidiado pelo
conteúdo das unidades anteriores. Busca-se, com essa proposta, aproveitar a oportunidade
do trabalho com a história do ensino da Matemática para explorar as potencialidades das
narrativas autobiográficas dos estudantes, que vêm sendo crescentemente valorizadas na
pesquisa sobre formação de professores.
Finalizando esta apresentação, registro meus agradecimentos ao professor Dan Avritzer
pelo convite para escrever este texto e ministrar, pela primeira vez, no curso de Licenciatura
em Matemática a distância da UFMG, a disciplina História do Ensino da Matemática. Cabe-
me, ainda, estender esses agradecimentos à professora Maria Cristina Costa Ferreira, pela
leitura e cuidadosa revisão deste texto, bem como pelas muitas trocas de ideias e sugestões
que contribuíram para o aperfeiçoamento do trabalho que me foi solicitado.

Belo Horizonte, fevereiro de 2012


Maria Laura Magalhães Gomes

4 RICOEUR, op. cit., p. 100.

9
nota do editor

A Universidade Federal de Minas Gerais atua em diversos projetos de Educação a Distância,


que incluem atividades de ensino, pesquisa e extensão. Dentre elas, destacam-se as ações
vinculadas ao Centro de Apoio à Educação a Distância (CAED), que iniciou suas atividades
em 2003, credenciando a UFMG junto ao Ministério da Educação para a oferta de cursos a
distância.
O CAED-UFMG (Centro de Apoio à Educação a Distância da Universidade Federal de Minas
Gerais), Unidade Administrativa da Pró-Reitoria de Graduação, tem por objetivo administrar,
coordenar e assessorar o desenvolvimento de cursos de graduação, de pós-graduação e
de extensão na modalidade a distância, desenvolver estudos e pesquisas sobre educação
a distância, promover a articulação da UFMG com os polos de apoio presencial, como
também produzir e editar livros acadêmicos e/ou didáticos, impressos e digitais, bem como
a produção de outros materiais pedagógicos sobre EAD.
Em 2007, diante do objetivo de formação inicial de professores em serviço, foi criado o
Programa Pró-Licenciatura com a criação dos cursos de graduação a distância e, em 2008,
com a necessidade de expansão da educação superior pública, foi criado pelo Ministério
da Educação o Sistema Universidade Aberta do Brasil – UAB. A UFMG integrou-se a esses
programas, visando apoiar a formação de professores em Minas Gerais, além de desenvolver
um ensino superior de qualidade em municípios brasileiros desprovidos de instituições de
ensino superior.
Atualmente, a UFMG oferece, através do Pró-licenciatura e da UAB, cinco cursos de
graduação, quatro cursos de pós-graduação lato sensu, sete cursos de aperfeiçoamento e
um de atualização.
Como um passo importante e decisivo, o CAED-UFMG decidiu, neste ano de 2011, criar a
Editora CAED-UFMG como forma de potencializar a produção do material didático a ser
disponibilizado para os cursos em funcionamento.

Fernando Selmar Rocha Fidalgo


Editor

11
1 Aspectos gerais da história do
ensino de Matemática no Brasil
Unidade 1: A spectos gerais da história do
ensino de Matemática no Brasil

Objetivo

• Apresentar uma visão panorâmica da história do ensino da Matemática no Brasil, com


atenção particular às questões que envolvem a tríade professor-aluno-conhecimento
matemático.

Introduç ão

A organização atual da educação no Brasil foi estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases


da Educação Nacional – LDB –, em 20 de dezembro de 1996, quase quinhentos anos
depois do descobrimento. Os cursos de Licenciatura em Matemática têm como objetivo
a formação de professores para a educação básica proposta pela LDB, que é composta
pela educação infantil, pelo ensino fundamental e pelo ensino médio. Em particular, os
licenciandos se preparam para serem os docentes que atuarão nos quatro últimos anos do
ensino fundamental e nos três anos do ensino médio. Poderão ser também os professores
de Matemática da educação de jovens e adultos, da educação profissional, da educação
indígena, da educação especial. A Matemática é componente de todos esses currículos, e
há grande quantidade de materiais atualmente disponíveis para o seu ensino, alguns deles
muito difundidos, como os livros didáticos.
Pode parecer aos futuros docentes que tudo isso é natural, e que sempre foi assim em nosso
país. Entretanto, um breve olhar para o passado nos revela que houve muitas mudanças
no que diz respeito ao oferecimento das oportunidades de educação e, especialmente para
aqueles que pretendem ser professores, em relação aos objetivos, conteúdos e modos de
ensinar os conhecimentos matemáticos para a população no longo intervalo de tempo
decorrido desde a época em que o Brasil era uma colônia portuguesa até os dias atuais.
Cabe também chamar à atenção para algo que pode passar despercebida, quando se focaliza
a formação de professores de Matemática: em geral, ao abordar esse tema, esquecemo-nos
de que os anos iniciais da escolarização constituem a época em que se ensinam e aprendem
os primeiros conhecimentos matemáticos. Ao lado da língua materna, esses conhecimentos
são o principal componente do processo de alfabetização, e integram a célebre tríade “ler,
escrever e contar”. A compreensão de dimensões históricas do ensino da Matemática não
pode, portanto, desconsiderar conhecimentos gerais relativos ao passado dos níveis mais
elementares da educação brasileira.
Neste texto, apresentamos um panorama da educação em nosso país ao longo do tempo
no qual buscamos ressaltar alguns aspectos relativos ao ensino da Matemática. Fazemos
uma abordagem extremamente geral, com referência aos períodos colonial, imperial e
republicano de nosso país, buscando situar, para o estudante de licenciatura, alguns marcos
importantes na história do ensino de sua disciplina. Valemo-nos de muitas leituras, e, entre
elas, destacamos o livro Introdução à história da educação matemática, de Maria Ângela

Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 13


Miorim1 . Um conhecimento mais profundo dos temas aqui apenas sobrevoados demandará
muitas outras leituras e estudos complementares, para os quais podem contribuir as
referências bibliográficas listadas no final do texto.
Alertamos nossos leitores para as dificuldades da empreitada que ousamos esboçar e para
a consciência que temos das muitas lacunas resultantes. As escolhas aqui realizadas trazem
os limites naturais advindos da intenção de abarcar um tema tão complexo em tão longo
período. Todavia, há alguma coisa de muito útil a se aprender das falhas inerentes a uma
tarefa como essa – não há histórias do ensino da Matemática completas, e num país imenso
e diverso como o Brasil, muito existe e muito existirá sempre a se pesquisar para conhecer
essas histórias, para compreender melhor o nosso passado.

Brasil Colônia (1500-1822)

Desde o descobrimento, o ensino no Brasil foi quase uma prerrogativa dos padres da
Companhia de Jesus. O primeiro grupo de jesuítas chegou ao Brasil em 1549, junto com o
primeiro governador-geral, Tomé de Souza. Esses seis padres, liderados pelo padre Manuel
da Nóbrega, foram os responsáveis pela criação da primeira escola elementar, na cidade
de Salvador. A rede de educação jesuíta ampliou-se com a fundação de outras escolas
elementares (em Porto Seguro, Ilhéus, São Vicente, Espírito Santo e São Paulo de Piratininga)
e dos colégios, gradualmente estabelecidos na Bahia (1556), no Rio de Janeiro (1567), em
Olinda (1568), no Maranhão (1622), em São Paulo (1631) e, posteriormente, também em
outras regiões.
Nas escolas elementares, no que diz respeito aos conhecimentos matemáticos,
contemplava-se o ensino da escrita dos números no sistema de numeração decimal e o
estudo das operações de adição, subtração, multiplicação e divisão de números naturais.
Nos colégios, o ensino ministrado era de nível secundário, e privilegiava uma formação em
que o lugar principal era destinado às humanidades clássicas. Havia pouco espaço para
os conhecimentos matemáticos e grande destaque para o aprendizado do latim. Sobre o
ensino desses conhecimentos, conhece-se pouco: por exemplo, sabe-se que a biblioteca
do colégio dos jesuítas no Rio de Janeiro possuía muitos livros de Matemática. No entanto,
estudos realizados por muitos pesquisadores conduzem à ideia geral de que os estudos
matemáticos eram realmente pouco desenvolvidos no ambiente jesuíta.
Em 1759, Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, primeiro-ministro de
Portugal no período 1750-1777, ordenou a expulsão dos jesuítas de todas as colônias.
Como esses padres eram os responsáveis pela maior parte das instituições educacionais no
Brasil – havia 17 colégios em vários locais nesse momento –, considera-se que sua retirada
do país é um marco importante na história da educação brasileira. Restaram poucas escolas,
dirigidas por outras ordens religiosas e instituições de ensino militar.
Em 1772, um alvará do marquês de Pombal criou as “aulas régias”, nas quais isoladamente
se ensinaram primeiramente a gramática, o latim, o grego, a filosofia e a retórica, e,

1 MIORIM, M. A. Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual, 1998.

14 história do ensino da matemática


posteriormente, as disciplinas matemáticas: aritmética, álgebra e geometria. Eram aulas
avulsas, e, em relação aos conhecimentos matemáticos, há indícios de que havia poucos
alunos e, também, que era difícil conseguir professores.
Em resumo, o que se conhece dessa fase é que o número de aulas de Matemática era
pequeno e essas aulas tinham baixa frequência. Uma ocorrência importante, no Brasil do
fim do século XVIII, no que diz respeito ao destaque à Matemática e às ciências, foi a criação
do Seminário de Olinda pelo bispo de Pernambuco, Dom Azeredo Coutinho, em 1798. Essa
instituição, que funcionou a partir de 1800 e não formava somente padres, tornou-se uma
das melhores escolas secundárias do Brasil2. Ela conferiu importância ao ensino dos temas
matemáticos e científicos, e era estruturada em termos de sequenciamento dos conteúdos,
duração dos cursos, reunião dos estudantes em classes e trabalho de acordo com um
planejamento prévio.
Enquanto o Brasil foi colônia de Portugal e mesmo durante o império, além das aulas
avulsas, havia seminários e colégios mantidos por ordens religiosas, escolas e professores
particulares, e os chamados Liceus nos atuais estados do Rio Grande do Norte, da Bahia e
da Paraíba.
A chegada de D. João VI e da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, trouxe mudanças em
muitos campos, entre os quais é preciso enfatizar os ligados à educação e à cultura em geral.
Muitas instituições culturais e educacionais foram implantadas, como a Academia Real de
Marinha (1808), no Rio de Janeiro, a Academia Real Militar (1810), também no Rio, destinadas
a formar engenheiros civis e militares; cursos de cirurgia, agricultura e química, a Escola Real
de Ciências, Artes e Ofícios (1816), o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, entre outras.

Brasil Império (1822-1889)

Após a independência, em 1822, na instalação dos trabalhos da Assembleia Constituinte,


que elaboraria a Constituição, D. Pedro I chamou a atenção para a necessidade de uma
legislação especial sobre a instrução pública. A Constituição de 1824, que prevaleceu
durante todo o período imperial, afirmava a gratuidade da instrução primária para todos
os brasileiros, mas foi somente depois de muitos debates sobre a educação popular que,
em 15 de outubro de 1827, a Assembleia Legislativa votou em favor da primeira lei de
instrução pública nacional no Império do Brasil. Essa lei estabelecia que houvesse escolas
de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares populosos.
No ensino das primeiras letras, a Matemática estava presente: “primeiras letras”
significavam, afinal, “ler, escrever e contar”. É interessante notar que a lei de outubro de
1827 diferenciava a educação para meninos e meninas, prevendo escolas separadas para
os dois sexos. O currículo para as escolas de meninos envolvia “ler, escrever, as quatro
operações aritméticas, prática de quebrados3, decimais e proporções, noções gerais de

2 Conforme SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007.
3 Trata-se do estudo das frações ordinárias.

Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 15


geometria, gramática da língua nacional, moral cristã e doutrina católica”4. As escolas para
meninas existiriam nas localidades mais populosas, seriam dirigidas por professoras e em
seu currículo eliminava-se a geometria e a prática de quebrados, incluindo-se o ensino de
práticas importantes para a economia doméstica.
No entanto, se é nesse momento que se pode situar a primeira colocação da educação da
população como direito social, com a descentralização que o governo do Brasil promoveu em
1834, passando o encargo das “primeiras letras” para as administrações provinciais5, não foi
possível a constituição de um sistema escolar capaz de atender a população. Há que se ter
sempre em mente a marca antiga da exclusão em nosso país, colonizado por uma metrópole
contrarreformista, que considerava os índios como bárbaros e os escravos negros como
propriedade de seus senhores; para essa grande parcela da população, a educação era, pois,
perfeitamente dispensável. A essas circunstâncias, associavam-se as dificuldades naturais
de prover instituições escolares em um país imenso, despovoado, com enormes distâncias6.
No que concerne ao ensino secundário, no início do século XIX, os colégios, liceus, ginásios,
ateneus, cursos preparatórios anexos às faculdades e seminários religiosos tinham como
objetivo a preparação dos estudantes para os exames de acesso às academias militares
e poucas escolas superiores existentes no país. A partir da metade do século, cresceu o
número de colégios particulares em quase todas as províncias, que também passaram a
oferecer ensino público no nível secundário.
O currículo não era uniforme, mas as disciplinas priorizadas eram o latim, o grego, a retórica,
a poética, a filosofia e as línguas modernas. No Rio de Janeiro, o Município da Corte, em
1837, o ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, inspirado na organização dos colégios
franceses, criou o Imperial Colégio de Pedro II, concebido para funcionar como internato
e externato. O Colégio dava o grau de bacharel em letras aos alunos aprovados em todas
as disciplinas durante os sete anos do curso e os alunos concluintes eram dispensados dos
exames de ingresso aos cursos superiores.
As matemáticas, que eram as disciplinas de Aritmética, Álgebra, Geometria, e, posteriormente
a Trigonometria, apesar do predomínio das disciplinas literárias e humanistas, estavam
presentes em todas as séries do curso do Colégio de Pedro II, em todas as várias reformas
que modificaram o seu plano de estudos ao longo do tempo.
O Colégio Pedro II tornou-se a instituição modelo para o ensino secundário no Brasil, e
de acordo com a História da educação, escrita por Cynthia Greive Veiga7, professora da
Faculdade de Educação da UFMG, até 1873, alunos de outras províncias tinham que ir ao
Rio de Janeiro para realizar seus exames, que lá eram centralizados. Posteriormente, uma
lei autorizou a aplicação desses exames nas próprias províncias.
O Colégio Pedro II, os liceus provinciais, os estabelecimentos religiosos e outros laicos
ofereciam, durante a época imperial, o ensino secundário no Brasil. Fundamentalmente,

4 De acordo com VEIGA, Cynthia. G. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007.
5 Em 1834, promulgou-se um ato adicional à Constituição, que transferiu para as assembleias das províncias a tarefa de
administrar a instrução pública. Cada província passou a ter sua legislação educacional particular.
6 CURY, Carlos R. J. A educação como desafio na ordem jurídica. In: LOPES, Eliane M.; FARIA FILHO, Luciano M.; e VEIGA,
Cynthia G. 500 anos de educação no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
7 VEIGA, C. G., op. cit.

16 história do ensino da matemática


o público desse ensino era constituído pela elite econômica masculina do país, que se
preparava para ocupar cargos político-administrativos e/ou para ingressar nos cursos
superiores. As filhas das classes privilegiadas geralmente eram educadas para as atividades
do lar e para a convivência social em colégios femininos – leigos ou religiosos – ou em
casa, com o auxílio de preceptoras estrangeiras. Aprendiam as primeiras letras, o francês,
música, piano e prendas femininas. As mulheres das classes populares podiam frequentar
as aulas de instrução elementar, as escolas normais (para formação de professores) e cursos
profissionalizantes. Na década de 1880, algumas mulheres passaram a estudar no Colégio
Pedro II. Em 1887, a primeira mulher recebeu o diploma de médica no Rio de Janeiro, sendo
a única presença feminina na turma.

Brasil República ( a partir de 1889)

A proclamação da República se deu num momento em que 85% da população era


analfabeta8. O primeiro titular do Ministério da Instrução, Correios e Telégrafos, Benjamin
Constant (1836-1891), foi o responsável por uma reforma do ensino, em 1890, que ficou
conhecida pelo seu nome. Essa reforma, consubstanciada no Decreto 981, referia-se somente
à instrução pública de nível primário e secundário no Distrito Federal, então situado no Rio
de Janeiro. A lei buscava romper com a tradição humanista e literária do ensino secundário
pela adoção de um currículo que privilegiava as disciplinas científicas e matemáticas. A
Matemática era tida como a mais importante das ciências no ideário positivista do filósofo
francês Auguste Comte (1798-1857), ao qual aderiram Benjamin Constant e o grupo de
militares brasileiros que liderou a proclamação da República. Assim, essa disciplina adquiria
grande relevância na proposta da Reforma Benjamim Constant, particularmente nos sete
anos que compunham a educação secundária. É importante assinalar que o Colégio Pedro
II, referência para esse nível da educação, passou a se chamar Ginásio Nacional quando se
estabeleceu a República. A frequência ao ensino secundário, cujo objetivo principal, como
vimos, era a preparação para a educação superior, não era obrigatória, e muitos estudantes,
sem realizar um curso regular, faziam os chamados exames preparatórios para o ingresso
nos cursos superiores, entre os quais figuravam os das disciplinas matemáticas: Aritmética,
Álgebra, Geometria e Trigonometria.
No que diz respeito ao ensino primário, o início da República foi o momento da implantação
de um novo modelo de organização, o dos grupos escolares, e o estado pioneiro nessa
medida foi São Paulo, em 1893. Esse modelo, que logo se difundiu pelos outros estados,
reunia as classes em séries, estruturadas progressivamente, com cada série numa sala,
com um professor, e grupos de quatro ou cinco séries reunidos em um mesmo prédio. Em
Minas Gerais, os grupos escolares foram estabelecidos em 1906, durante o governo de João
Pinheiro, e se organizavam em quatro séries.
Na década de 1920, num contexto de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais,
realizaram-se, em diversos estados brasileiros e no Distrito Federal9, reformas no sistema

8 Conforme ROMANELLI, O. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2001.


9 As reformas que ocorreram nesse período foram lideradas por autoridades ligadas à educação em cada local. Alguns

Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 17


de ensino relativas à educação primária e à formação de professores para esse nível. As
mudanças efetivadas pelas legislações estaduais e do Distrito Federal vinculavam-se ao
movimento pedagógico conhecido, entre outras denominações, como Escola Nova ou
Escola Ativa10.
Com esse movimento, procurava-se implementar, na escola primária, ideias em desenvolvi­
mento na Europa e nos Estados Unidos desde o século XIX apresentadas nos trabalhos de
diversos educadores de países distintos. Embora a Escola Nova se tenha nutrido de um amplo
espectro de teorias, alguns princípios se constituíram como seus traços identificadores.
Segundo Diana Vidal11, esses princípios eram “a centralidade da criança nas relações de
aprendizagem, o respeito às normas higiênicas na disciplinarização do corpo do aluno e
de seus gestos, a cientificidade da escolarização de saberes e fazeres sociais e a exaltação
do ato de observar, de intuir, na construção do conhecimento do aluno”. Maria Ângela
Miorim12 destaca duas ideias fundamentais comuns às diversas correntes escolanovistas:
o “princípio da atividade” e o “princípio de introduzir na escola situações da vida real”, que
trouxeram mudanças no ensino dos anos iniciais da escolarização, com reflexos específicos
na abordagem da Matemática.
Em Minas Gerais, no contexto das reformas realizadas por Francisco Campos (1891-1968), o
titular da secretaria do governo estadual responsável pela educação, começou a funcionar,
a partir de 1929, a Escola de Aperfeiçoamento. Esta instituição situava-se na capital do
estado, Belo Horizonte, com o objetivo de oferecer às docentes mineiras em exercício no
ensino primário um curso sintonizado com os princípios da Escola Nova, a fim de preparar
adequadamente profissionais que seguissem as novas diretrizes pedagógicas.
Para dar uma ideia de como se manifestavam essas diretrizes em relação ao ensino da
Matemática, é oportuno citar um trecho de um texto escrito pela professora Alda Lodi
(1898-2002), docente de Metodologia da Aritmética na Escola de Aperfeiçoamento:
Como Arith. não deve ser ensinada com o fim de arith. exclusivamente, á parte das
necessidades da vida, sem attender ás sit. reaes que a creança encontra, mas sim ajudal-a a
estimar, a medir, a comparar, a calcular, a tornal-a socialmente efficiente no manejo das sit.
numéricas, entendemos iniciar nosso curso discutindo a creança e o programa escolar. Assim,
sempre firmamos as bases do nosso trabalho – giral-o em torno da creança, aproveitando
seus interesses imediatos como ponto de partida da educação. (Lodi, 1929, p. 1)13.
Segundo Maria Ângela Miorim, esse movimento de renovação pedagógica não alcançou
logo a educação secundária, que continuou pautando sua ação “num ensino livresco,
sem relação com a vida do aluno, baseado na memorização e na assimilação passiva dos
conteúdos” (1998, p. 90).

exemplos são: São Paulo (1920), com Sampaio Dória; Ceará (1922-1923), com Lourenço Filho; Distrito Federal (1922-
1926) e Pernambuco (1928), com Carneiro Leão; Minas Gerais (1927-1928), com Francisco Campos; Bahia (1928), com
Anísio Teixeira. No Distrito Federal, em 1928, ocorreu nova reforma, sob a liderança de Fernando de Azevedo (Conforme
Veiga, C. G., op. cit.).
10 De acordo com Veiga (2007), utilizaram-se ainda os termos “escola moderna”, “escola progressista” e “escola do trabalho”.
11 VIDAL, D. Escola nova e processo educativo. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. (Orgs.) 500 anos de Educação
no Brasil.3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 497-517.
12 Miorim, 1998, p. 90.
13 Preservamos a ortografia e as abreviações da autora em Lodi, A. [Relato de atividades desenvolvidas nos três primeiros
meses como docente da Escola de Aperfeiçoamento] (1929). Belo Horizonte: não publicado.

18 história do ensino da matemática


Em 1908, realizou-se em Roma o quarto congresso internacional de Matemática, no qual
foi criada uma comissão internacional14 para tratar de questões do ensino, presidida
pelo matemático alemão Felix Klein (1849-1925). Essa comissão estabeleceu como meta
proceder a um estudo sobre o ensino secundário da Matemática em vários países, entre os
quais estava o Brasil, e sua constituição assinala a existência de um primeiro movimento
internacional para a modernização do ensino. As principais propostas desse movimento
eram: promover a unificação dos conteúdos matemáticos abordados na escola em uma
única disciplina, enfatizar as aplicações práticas da Matemática e introduzir o ensino do
cálculo diferencial e integral no nível secundário.
No Brasil, o maior adepto das ideias modernizadoras foi o professor catedrático de Matemática
do Colégio Pedro II15, Euclides Roxo (1890-1950), que liderou a proposição de uma mudança
radical nos programas de ensino da instituição, aprovada por sua congregação em 1928.
A característica mais evidente dessa proposta era a unificação das antigas disciplinas de
Aritmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria, que eram ensinadas por docentes distintos
e faziam uso de livros diferentes, em uma nova disciplina chamada Matemática.
A introdução das ideias modernizadoras em âmbito mais amplo nas escolas secundárias
brasileiras concretizou-se, porém, somente em 1931, com uma série de decretos que se
propunham a organizar nacionalmente a educação no país, e que ficaram conhecidos
como a reforma Francisco Campos, porque foram publicados quando da gestão desse
mineiro como o primeiro titular do Ministério da Educação e da Saúde, instituído no
governo Getúlio Vargas.
A proposta curricular da nova disciplina Matemática na reforma Francisco Campos é bastante
detalhada, ultrapassando uma simples lista de conteúdos a serem ensinados na escola
secundária. Seu texto se inicia por uma exposição das finalidades do ensino da Matemática:
O ensino da Matemática tem por fim desenvolver a cultura espiritual do aluno pelo
conhecimento dos processos matemáticos, habilitando-o, ao mesmo tempo, à concisão e ao
rigor do raciocínio pela exposição clara do pensamento em linguagem precisa.
Além disso, para atender ao interesse imediato da sua utilidade e ao valor educativo dos seus
métodos, procurará, não só despertar no aluno a capacidade de resolver e agir com presteza
e atenção, como ainda favorecer-lhe o desenvolvimento da capacidade de compreensão e
de análise das relações quantitativas e espaciais, necessárias às aplicações nos diversos
domínios da vida prática e à interpretação exata e profunda do mundo objetivo.16
A proposta enfatizava a necessidade de se ter sempre em vista, no ensino, o grau de
desenvolvimento mental do aluno e seus interesses, e insistia em que sua atividade fosse
constante, de modo que o estudante fosse “um descobridor e não um receptor passivo
de conhecimentos17”. Por isso, recomendava a renúncia “à prática da memorização sem

14 Trata-se da Comission Internationale de l’Enseignement Mathématique – CIEM – ou Internationalen Mathematischen


Unterrichts Kommission – IMUK –, que ficou conhecida, desde 1954, pela sigla ICMI – International Comission on
Mathematical Instruction.
15 A instituição, que havia tido seu nome trocado com a proclamação da República, voltou a usar o nome antigo em 1911.
16 Novíssimo Programa do Ensino Secundário (nos termos do art.10, do decreto n. 19.890 de 18 de abril de 1931). Rio de
Janeiro, 1931.
17 Os trechos entre aspas neste parágrafo são expressões transcritas da proposta de Matemática da reforma Francisco
Campos.

Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 19


raciocínio, ao enunciado abusivo de definições e regras e ao estudo sistemático das
demonstrações já feitas”.
Além disso, salientava-se que o ensino deveria partir da intuição; para a geometria, em
particular, o estudo das demonstrações formais precisa ser precedido de atividades de
experimentação e construção. A proposta atribuía papel importantíssimo ao conceito de
função, como “ideia central do ensino”, apresentada primeiro intuitivamente, e desenvolvida
gradativamente ao longo das séries. Na quinta série, prescrevia-se o ensino das noções
básicas do cálculo diferencial e integral – limite, derivada e integral.
Havia, ainda, orientações específicas quanto à Aritmética, à Álgebra e à Geometria, e, por
fim, a lista de conteúdos para cada uma dessas áreas a serem trabalhados nas cinco séries
do ensino fundamental, que se sucederiam ao curso primário de quatro anos.
Deve-se chamar a atenção para a estruturação do ensino secundário introduzida pela reforma:
após o primário, vinha o curso fundamental, de cinco anos, com a presença da Matemática
em todos eles, e posteriormente seguia-se o curso complementar, com duração de dois anos,
já dirigido para o ensino superior almejado pelo aluno. No curso voltado para as carreiras de
medicina, farmácia e odontologia, a Matemática comparecia em um dos dois anos; para os que
desejassem ser engenheiros, químicos ou arquitetos, estava presente em todo o curso.
Uma característica central da proposta de educação secundária da reforma Francisco
Campos é sua afirmação do caráter de formação desse nível de ensino, em contraposição
à natureza anterior que se lhe associava, de preparação para os cursos superiores. Essa
caracterização do ensino secundário, como uma etapa de formação, está explícita, na
exposição de motivos do ministro Francisco Campos ao presidente Getúlio Vargas, em abril
de 1931, como se pode notar no trecho a seguir:
A finalidade do ensino secundário é, de fato, muito mais ampla do que a que se costuma
atribuir-lhe. Via de regra, o ensino secundário tem sido considerado entre nós como um simples
instrumento de preparação para dos candidatos ao ensino superior, desprezando-se, assim,
a sua função eminentemente educativa que consiste, precisamente, no desenvolvimento das
faculdades de apreciação, de juízo e de critério, essenciais a todos os ramos da atividade
humana, e, particularmente, no treino da inteligência em colocar os problemas nos seus
termos exatos e procurar as suas soluções mais adequadas18.
Sendo revolucionária em relação à tradição de ensino vigente, a proposta de Matemática
da reforma Francisco Campos foi atacada de muitas maneiras. Maria Ângela Miorim19
destaca alguns dos problemas ocorridos. Os professores da época tiveram dificuldades de
adaptação, agravadas, num primeiro momento, pela falta de livros didáticos de acordo com
as novas diretrizes.
Havia os defensores do ensino das humanidades clássicas, e especialmente do latim, como
o padre Arlindo Vieira, que criticaram fortemente o que consideravam um excesso de
conteúdos no programa da reforma, bem como a fusão das disciplinas matemáticas em
uma única disciplina.

18 Novíssimo Programa do Ensino Secundário (nos termos do art.10, do decreto n. 19.890 de 18 de


abril de 1931). Rio de Janeiro, 1931.
19 MIORIM, 1998, op. cit.

20 história do ensino da matemática


Professores de Matemática que se posicionavam favoravelmente ao ensino tradicional, no
qual a Matemática era concebida principalmente como disciplina mental, consideraram que
a nova proposta, que começou a ter repercussões em alguns livros didáticos de caráter mais
intuitivo, rebaixava o ensino. O principal representante desse grupo era um professor do
Colégio Pedro II, Almeida Lisboa, que, em muitos artigos publicados em jornais da época,
atacava frontalmente o professor Euclides Roxo, o principal responsável pela reforma no
que diz respeito à Matemática.
No que toca à educação superior20, nos anos iniciais da República, foram criadas várias
faculdades no país. O controle desse nível de ensino pertencia ao governo federal. A
primeira instituição de ensino superior brasileira com o nome de universidade foi a
Universidade de Manaus, surgida em 1909, no auge da exploração da borracha, que
teve existência até 1926. Em São Paulo (1911) e no Paraná (1912), criaram-se outras
universidades, que também duraram pouco; a primeira universidade duradoura foi a do
Rio de Janeiro, estabelecida em 1920, pela reunião das faculdades de Medicina, Direito e
Engenharia já existentes.
Em 1927, as faculdades do mesmo tipo situadas em Belo Horizonte, juntamente com a de
Odontologia e Farmácia, foram reunidas na Universidade de Minas Gerais, que veio a ser,
a partir de 1965, a atual Universidade Federal de Minas Gerais. Cabe assinalar, ainda, que
a formação específica de professores para o ensino secundário em nível superior só teve
início no Brasil em 1934, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de
São Paulo (USP). No Rio de Janeiro, tem destaque a criação da Universidade do Distrito
Federal, em 1935, extinta em 1939 para dar lugar à Universidade do Brasil. Nesse mesmo
ano, criou-se a Faculdade Nacional de Filosofia, na qual, bacharelando-se primeiramente
em Matemática e, posteriormente, cursando Didática, o estudante poderia obter o diploma
de licenciado em Matemática.
De 1942 a 1946, a educação brasileira passou por novas reformas, pela via de uma série
de decretos-lei que criaram o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial –Senai – e
o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac – e normatizaram os ensinos
industrial, comercial, primário, secundário, normal e agrícola. O conjunto de decretos ficou
conhecido como a reforma Gustavo Capanema.
O ensino secundário, regulamentado em 1942 por meio da Lei Orgânica do Ensino
Secundário, foi organizado em dois ciclos: o ginasial, de quatro anos, e o colegial, de três
anos, nas modalidades clássico e científico. Criou-se o ramo secundário técnico-profissional,
subdividido em industrial, comercial e agrícola, além do normal, para formar professores
para a escola primária.
Esse conjunto de reformas tinha caráter centralista e dualista no sentido de separar o
ensino secundário, destinado às elites, e o ensino profissional, para o povo, pois somente os
egressos do ensino secundário tinham o direito de acesso aos cursos superiores21 .

20 Baseamo-nos, aqui, no texto de Luiz Antônio Cunha: CUNHA, L. A. Ensino superior e universidade
no Brasil. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M. e VEIGA, C. G. 500 anos de educação no Brasil. 3ª
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
21 Conforme SAVIANI, 2007, op. cit.

Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 21


A Lei Orgânica do Ensino Secundário foi acompanhada por uma portaria ministerial, datada
de 17 de julho de 1942, na qual se estabeleciam os programas para as disciplinas do curso
ginasial do ensino secundário. Diferentemente do ocorrido com a reforma Francisco Campos,
a reforma Gustavo Capanema não detalhou esses programas, limitando-se a portaria a
apresentar listas de conteúdos, sem quaisquer indicações metodológicas para a abordagem
dos diversos assuntos.
Os programas de Matemática das duas primeiras séries se subdividem em dois temas:
Geometria Intuitiva e Aritmética Prática, enquanto os das duas últimas séries contêm,
separadamente, os itens relativos à Álgebra e à Geometria Dedutiva. Após a reforma Campos,
foram publicadas várias coleções de livros didáticos em cinco volumes que visavam atender
ao disposto em sua proposta para o curso fundamental. Com a reforma Capanema, autores
e editoras reorganizaram essas coleções em quatro volumes e as colocaram no mercado
para atender a nova estruturação do ensino secundário22.
A partir da década de 1950, as disciplinas escolares, e entre elas a Matemática, começam a
se modificar. Uma transformação das condições econômicas, sociais e culturais do Brasil e
das possibilidades de acesso à escola começa a requerer alterações no funcionamento e nas
finalidades dessa instituição, o que repercute no ensino das diversas disciplinas.
Modifica-se o público de estudantes, com a inserção, na educação escolar, de alunos
provenientes das camadas populares, que vinham reivindicando há muito tempo o direito
à escolarização. Trata-se de uma democratização da escola, que passa a receber também
os filhos da classe trabalhadora, e cresce enormemente o número de alunos no primário
e no secundário. As necessidades de professores para atender a esse público expandido
levam à diminuição das exigências na seleção desses profissionais. Assinala-se, nesse
momento, portanto, uma mudança significativa das condições escolares e pedagógicas, das
necessidades e exigências culturais23.
De fato, e também por fatores além dos que acabamos de comentar, o ensino da
Matemática no Brasil se alteraria muito a partir do final da década de 1950, quando
tiveram início os primeiros congressos nacionais de ensino realizados em nosso país. O
primeiro desses encontros ocorreu em Salvador, em 1955, com a participação de 115
professores de sete estados, e o segundo em Porto Alegre, em 1957, com a presença de
240 professores.
Muitos matemáticos e professores de Matemática se envolveram, desde essa época, no
movimento internacional que ficou conhecido como o Movimento da Matemática Moderna.
Apresentamos, a seguir, uma síntese dos aspectos principais desse movimento, cujos
desenvolvimentos e desdobramentos vêm sendo pesquisados profunda e minuciosamente
no Brasil e em outros países.
Em 1957, os soviéticos, superando os norte-americanos na corrida espacial, foram os primeiros
a lançar o Sputnik, o primeiro satélite artificial da Terra. O governo dos Estados Unidos, que
já se mobilizava em torno de uma reforma dos currículos escolares de Ciências e Matemática

22 De acordo com VALENTE, W. R. (Org.). O nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2004.
23 Conforme SOARES, M. Português na escola: História de uma disciplina curricular. In: LOPES, E. M.; PEREIRA, M. R. (orgs.).
Conhecimento e inclusão social: 40 anos de pesquisa em Educação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

22 história do ensino da matemática


para vencer a defasagem entre este currículo e o progresso científico-tecnológico do
momento, intensificou seus esforços e financiamentos para desenvolver recursos didáticos,
inclusive livros, e disseminar as novas propostas no país e no estrangeiro24.
Ao mesmo tempo, na Europa, especialmente na França, matemáticos e educadores promoviam
eventos e também propagavam um ideário renovador do ensino da Matemática. Em 1959,
a Organização Europeia de Cooperação Econômica – OECE – realizou uma conferência de
duas semanas de duração na cidade de Royaumont, na França, reunindo especialistas de
vinte países para discutir propostas de mudanças para o ensino de Matemática no nível
secundário. Buscava-se, com o Movimento da Matemática Moderna, renovar o ensino pela
introdução, no currículo, de aspectos da Matemática desenvolvida mais modernamente, isto
é, a partir do século XVIII.
Foi nessa conferência que se estabeleceram as bases do movimento modernista:
além da introdução, nos currículos, de uma Matemática produzida mais recentemente,
defendia-se o realce na precisão da linguagem matemática; uma nova abordagem dos
conteúdos tradicionais na qual estivessem presentes as linguagens dos conjuntos, as
relações (subconjuntos do conjunto dos pares ordenados do produto cartesiano de
dois conjuntos) e as estruturas matemáticas (anéis, grupos, corpos, espaços vetoriais),
a sequenciação dos conteúdos de acordo com a moderna construção lógica da
Matemática, o destaque para as propriedades das operações em lugar da ênfase nas
habilidades computacionais.
A penetração das ideias do Movimento da Matemática Moderna no Brasil foi grande. Em
1959, o 3º Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, realizado no Rio de Janeiro, agregou
500 professores de 18 estados e nesse evento se verificaram as primeiras manifestações
sobre o Movimento da Matemática Moderna em nosso país.
Formaram-se, em vários estados, grupos cujo objetivo era preparar os professores para atuar
em sintonia com as novas diretrizes propostas. Desses grupos, um dos mais importantes foi
o Grupo de Estudos do Ensino da Matemática –GEEM –, fundado em São Paulo, em 1961,
sob a liderança de Osvaldo Sangiorgi, que havia realizado, em meados do ano anterior, um
estágio nos Estados Unidos, na Universidade do Kansas. Outros grupos de destaque foram
o Grupo de Estudos de Ensino da Matemática – GEEMPA –, de Porto Alegre; o Grupo de
Estudos e Pesquisas em Educação Matemática – GEPEM –, do Rio de Janeiro; o Núcleo de
Estudo e Difusão do Ensino da Matemática – NEDEM –, de Curitiba; e o grupo da Bahia,
coordenado pelo professor Omar Catunda25.
Em 1962, durante o 4º Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, em Belém do Pará, o
GEEM apresentou algumas experiências realizadas com a Matemática Moderna, bem como
um programa para a Matemática da escola secundária, baseado nas ideias modernizadoras.
Em 1966, o 5º Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, realizado em São José dos
Campos, no estado de São Paulo, teve como foco principal a implantação da Matemática
Moderna no Brasil, e contou com a presença de defensores da reforma modernista em

24 Ver, por exemplo, Fiorentini (1995), Miorim (1998).


25 Conforme MIORIM, 1998, e VALENTE, W. Programas e livros didáticos modernos para o ensino de matemática no Brasil.
In: MATOS, J. M. e VALENTE, W. R. A reforma da Matemática Moderna em contextos ibero-americanos. Lisboa: Faculdade
de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2010, pp. 77-102.

Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 23


outros países, como os professores Marshall Stone, dos Estados Unidos, e Georges Papy, da
Bélgica, entre outros26.
O Movimento da Matemática Moderna tinha, como um de seus principais objetivos, integrar
os campos da aritmética, da álgebra e da geometria no ensino, mediante a inserção de
alguns elementos unificadores, tais como a linguagem dos conjuntos, as estruturas
algébricas e o estudo das relações e funções. Enfatizava-se, ainda, a necessidade de
conferir mais importância aos aspectos lógicos e estruturais da Matemática, em oposição às
características pragmáticas que, naquele momento, predominavam no ensino, refletindo-se
na apresentação de regras sem justificativa e na mecanização dos procedimentos.
Como a Matemática havia se tornado, desde o século XIX, mais precisa e fundamentada
logicamente, buscava-se que os conhecimentos veiculados na escola refletissem essa
característica27. Por outro lado, para a geometria, os defensores do movimento propunham
a substituição da abordagem clássica inspirada nos Elementos, de Euclides, que dominava
as escolhas dos autores e professores há séculos, pelo enfoque das transformações
geométricas, com o estudo dos conceitos de vetor, espaço vetorial e transformação linear.
Torna-se agora importante sublinhar um aspecto mais geral da educação brasileira desde,
principalmente, os anos 1960. De acordo com Magda Soares28, a necessidade de um
recrutamento mais amplo e menos seletivo de professores em decorrência do crescimento
da necessidade desses profissionais, já comentada anteriormente, levou a uma intensificação
do processo de depreciação da função docente, que se manifestou no rebaixamento
salarial e na maior precariedade das condições de trabalho. Nesse momento, os professores
precisam de recursos que suavizem as atribuições docentes, e uma das estratégias para isso
é transferir ao livro didático a tarefa de preparar aulas e exercícios. Observa-se, então, um
aumento da importância dos livros didáticos no ensino de todas as disciplinas escolares.
No caso específico da Matemática, nesse período de propagação das ideias do Movimento
da Matemática Moderna, muitas coleções de livros didáticos, publicados a partir de 1963,
tiveram papel importantíssimo na disseminação do ideário modernista. Esses livros,
fundamentados na organização estrutural dos conjuntos numéricos, na maior parte das
vezes se iniciavam pela abordagem dos conjuntos, em que se evidenciava fortemente a
presença da linguagem simbólica. Somente depois se focalizavam os conjuntos numéricos,
na seguinte ordem: naturais, inteiros, racionais e reais, enfatizando a relação de inclusão de
cada um deles naquele que o seguia. Na abordagem dos conjuntos numéricos, insistia-se
nas propriedades estruturais das operações neles definidas, destacando-se, para a adição
e a multiplicação, a associatividade, a comutatividade, os elementos neutro e inverso, a
distributividade da multiplicação em relação à adição.
Em um estudo publicado em 2005, Maria Ângela Miorim29 aponta as dificuldades dos
autores de livros didáticos para chegar a uma abordagem em conformidade com o ideário

26 De acordo com MIORIM, 1998, op. cit.


27 De acordo com FIORENTINI, D.; Miguel, A.; MIORIM, M. A. Álgebra ou Geometria: para onde pende o pêndulo? In: Pro-
Posições. São Paulo, v.3, n.1 (7), pp.39-54.
28 SOARES, M., op. cit.
29 MIORIM, M. A. Livros didáticos de matemática do período de implantação do movimento da matemática moderna no
Brasil. In: V Congresso Ibero-americano de educação matemática, 2005, Porto. V CIBEM - Congresso Ibero-americano de
educação matemática. Porto: Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, 2005. v. 1, p. 1-20.

24 história do ensino da matemática


modernista. A autora salienta que tais dificuldades parecem ter sido ainda maiores no
tocante à geometria, pois os enfoques adotados nas obras não se distanciaram muito do
que era feito anteriormente. Consequentemente, houve realizações distintas, e cada autor
ou grupo de autores trabalhou de forma diferenciada os conteúdos geométricos, embora
se possa perceber, nas apresentações desses conteúdos em diversos livros, um aspecto
comum: a utilização da linguagem dos conjuntos.
A geometria escolar, tendo assumido abordagens muito variadas nos livros, foi, de acordo
com Maria Ângela Miorim, traduzida pelos autores em suas obras segundo suas próprias
experiências pedagógicas e leituras das propostas modernistas. Pode se dizer, porém, que
resultou dos modos de apropriação das ideias do movimento, em parte, a descaracterização
da tradicional abordagem axiomático-dedutiva da geometria em favor da presença de
uma abordagem eclética, na qual se tornou patente o abrandamento da exigência das
demonstrações.
Um dos efeitos da disseminação das ideias do Movimento da Matemática Moderna, de
acordo com vários autores, foi uma diminuição da presença dos conteúdos geométricos
nas práticas pedagógicas realizadas nas escolas, tanto pelo papel de relevo adquirido
pela álgebra quanto pela falta de subsídios dos professores para efetivar as propostas
modernistas para a geometria.
Regina Pavanello30 sublinha que, em decorrência da ampliação da rede de escolas públicas
e das políticas educacionais daquele momento em que o país era governado por uma
ditadura militar, a partir de 1968 criaram-se cursos de natureza aligeirada para formar
professores para atender as demandas urgentes que se colocavam. Nesses cursos, não
havia investimento suficiente em relação à preparação para o ensino da geometria, e como
consequência da penetração do ideário modernista e desse contexto, configurou-se, no
Brasil, aquilo que se passou a denominar “o abandono do ensino da geometria”.
Um ponto importante a ser destacado na história da organização do ensino brasileiro são as
mudanças trazidas pela Lei de Diretrizes e Bases para o Ensino de 1º e 2º graus (LDB 5692)
de 1971. Essa lei dividiu o ensino em dois níveis. O primeiro grau, com duração de oito anos,
unia os antigos primário e ginásio sem a necessidade de que o estudante se submetesse,
como anteriormente, ao chamado Exame de Admissão que o habilitava a prosseguir os
estudos depois dos quatro primeiros anos de escolarização. O 2º grau foi proposto como
curso de preparação profissional, buscando desviar parte da demanda pelo ensino superior,
que não oferecia vagas suficientes para todos os concluintes da escola secundária.
Segundo Regina Pavanello, não foi possível realizar essa profissionalização nas escolas
públicas, que careciam de recursos humanos e materiais para tais tarefas, enquanto
as escolas particulares, interpretando de acordo com seus interesses a legislação,
mantiveram um ensino preparatório para o nível superior. O que se verificou, em parte
devido à expansão da rede escolar desacompanhada do oferecimento de uma formação
docente de qualidade em larga escala, num contexto em que a álgebra assumiu papel
preponderante, foi quase a total ausência do ensino da geometria nas escolas públicas
nas décadas de 1970 e 1980.

30 PAVANELLO, R. M. O abandono da geometria no Brasil: causas e conseqüências. Zetetiké, Campinas, n. 1, p. 7-17, mar. 1993.

Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 25


No final dos anos 1970, surgem críticas ao Movimento da Matemática Moderna em muitos
países. Pessoas de grande credibilidade entre os matemáticos, como Morris Kline31 ,
nos Estados Unidos, e René Thom32, na França, posicionam-se contra as propostas do
movimento. Critica-se a ênfase na Matemática pela Matemática, em seu formalismo e nos
aspectos estruturais, assim como a preocupação excessiva com a linguagem e os símbolos.
No Brasil, a crítica à Matemática Moderna e a discussão sobre seu fracasso no ensino,
no final da década de 1970 e início dos anos 1980, fizeram parte de um contexto de
renovação dos ideais educacionais, estimulado pelo fim da ditadura militar. Em relação
às propostas curriculares para a Matemática, no nível anteriormente chamado 1º grau,
surgem alternativas ao ideário modernista, como a representada pelo documento oficial do
estado de São Paulo, em 1986, que, centrada em três grandes temas – números, medida e
geometria – apresenta características opostas às prevalecentes durante a predominância
das concepções associadas à Matemática Moderna.
Entre essas alternativas destacam-se a preocupação com uma abordagem histórica dos
temas, a ênfase na compreensão dos conceitos, levando-se em conta o desenvolvimento
dos alunos, a acentuação na importância da geometria e a eliminação do destaque conferido
aos conjuntos, à linguagem simbólica e ao rigor e à precisão na linguagem matemática.
Outros marcos relevantes quanto ao ensino da Matemática no Brasil, nos últimos trinta
anos do século XX, são a implantação de programas de pós-graduação em Matemática
nas universidades, desde 1971, e, a partir de 1987, a criação de cursos específicos de pós-
graduação em Educação Matemática, em nível de especialização, mestrado e doutorado, em
vários estados brasileiros.
Salienta-se, ainda, a realização de inúmeros encontros locais, estaduais e nacionais
de Educação Matemática e a fundação, em 1988, da Sociedade Brasileira de Educação
Matemática – SBEM – 33, uma sociedade civil, de caráter científico e cultural, cuja finalidade
principal é congregar profissionais da área de Educação Matemática ou áreas afins. Os
membros da SBEM são pesquisadores, professores e alunos que atuam na educação básica
e superior no Brasil.

31 Morris Kline (1908-1902), professor da Universidade de Nova Iorque e historiador da Matemática


norte-americano, publicou, em 1973, um livro em que expunha sua oposição radical ao ideário
do Movimento da Matemática Moderna, intitulado Why Johnny Can’t Add: The Failure of the New
Mathematics, que foi editado no Brasil em 1976, com o título de O fracasso da Matemática
Moderna.
32 René Thom (1923-2002), matemático francês, ganhador, em 1958, do mais importante prêmio
internacional de Matemática, a medalha Fields, é o criador da Teoria das Catástrofes. Escreveu
textos contra as ideias do Movimento da Matemática Moderna. Como exemplo, tem-se o artigo
denominado Matemática “moderna”: um erro pedagógico e filosófico?
33 Para mais informações, consultar o site da SBEM, cujo endereço é <www.sbem.com.br>.

26 história do ensino da matemática


Para Concluir

Em 1996, como já foi comentado no início deste texto, publicou-se a atual Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB), que contém os principais parâmetros relacionados à
educação em nosso país, inclusive sua estruturação.
As mudanças ocorridas em relação às recomendações para o ensino da Matemática vinculadas
à crise do Movimento da Matemática Moderna, à emergência e ao desenvolvimento da
área da Educação Matemática, com a realização de um número enorme de pesquisas que
contemplam muitas tendências e os mais diversos contextos em que se ensina a Matemática,
têm repercutido nas propostas curriculares mais recentes. Entre elas, a de maior relevo é a
dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, de responsabilidade do
Ministério da Educação – MEC –, publicada em 1997-1998.
Posteriormente, surgiram propostas análogas para o Ensino Médio, a Educação de Jovens
e Adultos e a Educação Indígena, também vinculadas ao MEC. Todas essas propostas
incorporaram os resultados de pesquisas acadêmicas em Educação Matemática no Brasil
e no exterior, desde o final da década de 1970. Elas trazem alguns elementos comuns,
como a colocação da necessidade de incorporação, nas práticas pedagógicas escolares, das
tecnologias da informação e da comunicação, dos jogos e materiais concretos, da história
da Matemática, e almejam, sobretudo, que os conhecimentos matemáticos na formação
escolar básica tenham realmente significado para os estudantes, ultrapassando a simples
preparação para as carreiras profissionais que eventualmente venham a seguir.
Outra mudança recente a ser sublinhada na atualidade brasileira é a extensão do Ensino
Fundamental de oito para nove anos, com a inclusão das crianças de seis anos nesse nível.
Essa modificação traz novas demandas à formação de professores e à produção de materiais
didáticos, no contexto da alfabetização, proposta para ser iniciada mais cedo.
O Brasil modificou-se completamente em suas dimensões políticas, sociais, econômicas e
culturais no final do século XX e início do século atual. A educação está sempre atrelada
às demandas e características das sociedades que a sustentam, e o ensino de Matemática
integra essa educação. Em cada momento histórico, a Matemática, como qualquer outra
disciplina escolar, tece-se pelos fatores externos – as condições sociais, políticas, culturais e
econômicas que compõem a escola e o ensino – e pelos fatores internos – aqueles referentes
à natureza dos conhecimentos de uma área específica. Para a Matemática, como também
ocorre em outros campos, os fatores internos têm se constituído, cada vez mais, não apenas
em relação aos conteúdos específicos, já que conhecimentos sobre a natureza dos processos
de ensino e aprendizagem e a formação dos profissionais da área da Educação Matemática
têm repercutido com força nas propostas e recursos curriculares e didático-pedagógicos.
A maior demanda da atualidade brasileira para a melhoria do ensino da Matemática é a
formação de professores para atender a uma enorme e diversa população. Por isso, também se
têm ampliado consideravelmente, nos últimos anos, os cursos de preparação de docentes, na
graduação e na pós-graduação. Não podemos deixar de aludir, nesse contexto, aos programas
de formação inicial de professores de Matemática a distância, inseridos na Universidade
Aberta do Brasil – UAB –, como uma das iniciativas de destaque dos últimos anos, da qual faz
parte o curso de licenciatura à distância da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 27


Não podemos, também, ao concluir este texto, deixar de chamar a atenção, uma vez mais,
para o seu caráter de incompletude e para a consequente necessidade de outras leituras
e estudos para que o futuro professor conheça mais acerca do passado do ensino dos
conhecimentos matemáticos no Brasil.

Apêndice: notas explicativas sobre alguns nomes usados para instituições de ensino
Ao longo do tempo, alguns substantivos de origem grega e latina têm sido utilizados para
designar instituições de ensino e algumas vezes também de pesquisa. Entre eles, procuramos
dar uma breve explicação para os termos escola, colégio, liceu, academia, ateneu e museu.
Academia: A origem da palavra é o nome de um ginásio (para a prática de esportes) dedicado
ao herói Academo, em Atenas, perto do lugar em que Platão residiu e que fundou sua escola
de filosofia. Lá, Platão ensinou durante quarenta anos, de 387 a. C. até sua morte no ano
347 a. C. Essa escola ficou conhecida como a Academia de Platão e existiu até o ano 529,
quando foi fechada por ordem do imperador romano Justiniano.
Ateneu: Originalmente, em Atenas, na Grécia antiga, o Ateneu era um lugar público dedicado
à deusa da sabedoria, Palas Atena (chamada de Minerva pelos romanos). Nesse lugar,
poetas e literatos liam suas obras. Por extensão de sentido, a palavra foi usada para nomear
instituições ou associações com finalidade cultural e também instituições de ensino.
Colégio: A palavra é de origem latina (collegium) e significa associação, confraria, corporação.
É usada para indicar uma reunião de indivíduos da mesma categoria (colégio eleitoral,
colégio de sacerdotes) e instituições de ensino.
Escola: Sua origem mais próxima é a palavra schola, do latim clássico, advinda, por sua
vez, do termo grego skolé, que significava ócio ou lazer, descanso, repouso. Para os gregos
antigos, a busca do conhecimento tinha esse sentido. Por essa razão, o significado mais
comum da palavra é o de instituição em que se ministra qualquer tipo de ensino coletivo.
Liceu: Palavra de origem grega (lyceum) foi o nome da escola de filosofia fundada em 335
a. C. por Aristóteles. Ela se situava a leste de Atenas, num bosque consagrado a Apolo
Lykeios. O nome foi e ainda é usado em várias línguas para indicar lugares de instrução.
Na França, o termo lycée se refere a estabelecimentos para os três últimos anos do ensino
secundário. Em Portugal, até o final da década de 1970, os liceus eram as escolas voltadas
para a formação geral em ciências e humanidades e a preparação para o ensino superior,
e funcionavam paralelamente a diversos tipos de escolas técnicas profissionais. A partir
de 1975, os liceus e escolas técnicas começaram a se transformar em escolas secundárias
que deveriam ministrar o ensino liceal e também o ensino técnico. Em 1978, concluiu-se
o processo de extinção dos liceus e todas as escolas que ainda eram assim designadas
passaram a ter o nome de escolas secundárias.
Museu: O museu (mouseion) era, na Grécia Antiga, um templo de devoção às musas, que
eram divindades protetoras da música, da poesia, da história, da tragédia, da comédia, da
dança, da oratória e da astronomia. A palavra pode designar: uma instituição que busca,
conserva, estuda e expõe objetos de valor artístico, histórico etc.; o local em que esses
objetos são expostos; ou uma coleção de objetos raros.

28 história do ensino da matemática


Referências

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Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 29


VEIGA, C. G. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007.
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anos de Educação no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 497-517.

Leituras Complementares

Como complementação ao texto “Aspectos gerais da história do ensino de Matemática no


Brasil”, propomos a leitura e algumas atividades que tomam como referência dois outros
textos, a serem disponibilizados na plataforma Moodle.
O primeiro desses textos foi extraído do Novíssimo Programa do Ensino Secundário, nos
termos do artigo 10 do Decreto n. 19.890, de 18 de abril de 1931 – um dos decretos da
reforma Francisco Campos.
A primeira parte do material consiste da Exposição de Motivos da reforma do ensino
secundário feita pelo ministro da Educação, Francisco Campos, ao Chefe do Governo
Provisório, Getúlio Vargas, em 10 de janeiro de 1931. Nesse texto, o ministro apresenta
considerações sobre as finalidades do ensino secundário e justifica a proposta de reforma. A
segunda parte refere-se especificamente à Matemática no ensino secundário, apresentando
os objetivos da disciplina, orientações metodológicas (gerais e específicas em relação a
alguns conteúdos) para o trabalho dos professores e uma lista de tópicos a serem focalizados
em cada uma das cinco séries do ginásio.
O segundo texto importante para complementar a Unidade 1 é o artigo Alguns modos de
ver e conceber o ensino da Matemática no Brasil, de autoria de Dario Fiorentini, publicado
em 1995 na revista Zetetiké, da Faculdade de Educação da UNICAMP-Universidade Estadual
de Campinas. O texto está disponível no site da revista Zetetiké:<http://www.fae.unicamp.
br/zetetike/index.php>.
No artigo, Fiorentini se propõe a descrever e caracterizar alguns modos de ver e conceber
a melhoria do ensino da Matemática, historicamente produzidos no Brasil. O autor
identificou seis tendências que tiveram presença marcante na configuração do conjunto
de ideias acerca da Educação Matemática em nosso país e expõe, no texto, o que distingue
as tendências quanto aos seguintes aspectos: concepção de Matemática; crença sobre
como se forma o conhecimento matemático; finalidades e valores atribuídos ao ensino da
Matemática; concepção de ensino-aprendizagem; cosmovisão (visão de mundo) subjacente;
relação professor-aluno; perspectiva de estudo/pesquisa com vistas à melhoria do ensino
da Matemática.

30 história do ensino da matemática


Atividades Referentes à Unidade 1

Atividade 1
Após ler o texto Aspectos gerais do ensino de Matemática no Brasil até o fim do trecho que
focaliza a reforma Francisco Campos e, também, o texto extraído do Novíssimo Programa
do Ensino Secundário (especialmente a parte relativa à Matemática na reforma Francisco
Campos):
1. Faça uma síntese das ideias quanto ao papel da noção de função expostas no texto
extraído do Novíssimo Programa do Ensino Secundário (reforma Francisco Campos).

2. Destaque e explique três das recomendações feitas no texto da reforma Francisco


Campos acerca do ensino da geometria.

Atividade 2
Depois de terminar a leitura do texto Aspectos gerais do ensino de Matemática no Brasil,
escreva um texto de 1 a 3 páginas (se for digitado, use Times New Roman, tamanho 12,
espaçamento 1,5), comentando três pontos que chamaram sua atenção quanto à história
do ensino de Matemática no Brasil. Considere, para elaborar o seu trabalho, além do texto
mencionado, a parte de Matemática da reforma Francisco Campos no texto extraído do
Novíssimo Programa do Ensino Secundário. No trabalho, você deve explicitar e explicar, com
suas palavras, os três pontos escolhidos e indicar os motivos pelos quais eles despertaram
o seu interesse.

Atividade 3
Faça a leitura completa do texto de Dario Fiorentini – Alguns modos de ver e conceber o
ensino da Matemática no Brasil, 1ª e 2ª partes.
Nesse artigo, o autor apresenta e discute seis tendências marcantes na configuração
histórica do conjunto de ideias norteadoras do ensino da Matemática no Brasil: a tendência
formalista clássica; a tendência empírico-ativista; a tendência formalista moderna; a
tendência tecnicista e suas variações; a tendência construtivista; e a tendência sócio-
etnocultural.
Escolha uma das tendências e, usando suas palavras, explique como ela se caracteriza, de
acordo com o texto de Fiorentini, quanto aos seguintes aspectos: concepção de Matemática;
crença sobre como se forma o conhecimento matemático; finalidades e valores atribuídos ao
ensino da Matemática; concepção de ensino-aprendizagem; cosmovisão (visão de mundo)
subjacente; relação professor-aluno; perspectiva de estudo/pesquisa com vistas à melhoria
do ensino da Matemática.

Unidade 1: A spectos gerais da história do ensino de M atemática no Brasil 31


2
Os conteúdos matemáticos escolares se
modificam ao longo do tempo:
os números racionais e irracionais nos
livros didáticos usados no Brasil
Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares
se modificam ao longo do tempo: os números
racionais e irracionais nos livros didáticos
usados no Brasil

Objetivo

• Mostrar, por meio das diferentes abordagens conferidas a um conteúdo específico da


matemática escolar – os números racionais e irracionais – identificadas mediante
a utilização de uma fonte específica para o conhecimento da história do ensino da
Matemática – os livros didáticos –, que as propostas para esse ensino se transformam
no transcorrer do tempo.

Introduç ão

Quando tratamos dos aspectos gerais da história do ensino de Matemática no Brasil,


procuramos mostrar que as diversas alterações nas condições políticas, econômicas, sociais
e culturais do país e do mundo repercutiram nos componentes desse ensino. A sociedade
brasileira, em diversos momentos, demandou de maneira diferente a contribuição do ensino
dos conhecimentos matemáticos na educação de seus membros. Necessidades, expectativas,
objetivos e interesses em relação à escola e ao que nela se deve ensinar e aprender no que
se refere à Matemática passaram por muitas transformações. A formação de professores
para ensinar a Matemática em diversos níveis também se modificou profundamente.
Talvez não se conteste que tenha havido mudanças nas escolas, nos estudantes, nos
professores, nas realidades educacionais. Contudo, pode parecer aos olhos de muitos que
os conhecimentos matemáticos focalizados na escola são sempre os mesmos, ensinados e
aprendidos permanentemente do mesmo modo.
Se, porém, examinarmos, com algum cuidado, os programas de ensino, documentos
curriculares e livros didáticos elaborados no passado, mesmo recente, serão possíveis
perceber muitos exemplos de mudanças. Essas mudanças se manifestam na sequência da
apresentação dos conteúdos, nas ênfases conferidas a diferentes aspectos, na abordagem
dos conceitos e procedimentos, nos tipos de exercícios e problemas propostos.
Na Unidade 2, vamos nos dedicar a estudar algumas dimensões históricas da abordagem
de um conteúdo específico que tem sempre feito parte do elenco de conhecimentos
matemáticos veiculados na escola. Focalizaremos o tratamento conferido aos números
racionais e irracionais no Brasil, valendo-nos da análise de livros didáticos para o ensino
secundário usados em nosso país a partir do final do século XIX.
Vários autores têm assinalado a relevância dos livros didáticos para a pesquisa em história
da educação, particularmente no que diz respeito à história das disciplinas escolares. Por

Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:


os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no B rasil 33
exemplo, Magda Soares34 sublinha que os livros didáticos são uma fonte privilegiada para
a compreensão da escolarização ou didatização dos saberes, isto é, do processo de sua
seleção, segmentação e organização em sequências, que é determinado e explicado pela
evolução de políticas culturais, sociais e, consequentemente, educacionais. A análise dessa
autora chama a atenção, também, para as alterações verificadas nos manuais escolares
ao longo do tempo como reflexos da natureza dos conhecimentos disponíveis em cada
momento, do nível de desenvolvimento em que eles se encontram e das expectativas da
sociedade em relação a esses conhecimentos para a formação das novas gerações.
Um argumento forte utilizado por muitos pesquisadores para justificar a pesquisa histórica
nos livros didáticos é o fato de que essas obras podem ser consideradas como os principais
portadores do currículo escolar quanto aos conteúdos das disciplinas, uma vez que subsidiam
o trabalho docente e norteiam o estudo pelos estudantes, e, em alguns momentos, têm sido
a principal, quando não a única, referência para alunos e professores.
Em que pesem esses argumentos, precisamos considerar, também, que os livros didáticos
apresentam limitações como fontes para conhecermos a história do ensino de Matemática,
pois examinar o seu conteúdo não nos pode revelar os modos como foram usados por
professores e estudantes. Todavia, eles podem nos mostrar, sim, o que foi proposto para
o ensino em determinados períodos, e podem, portanto, nos auxiliar a compreender as
propostas que norteiam o trabalho com a Matemática na escola na atualidade.
Nesta unidade, construída com base em dois textos publicados anteriormente35, trabalhamos
com livros didáticos do passado no que se refere a um tema específico. Queremos evidenciar
que, do início do século XX até os anos 1960-1970, os manuais escolares de Matemática
utilizados no Brasil apresentam diferenças acentuadas no enfoque dos números racionais e
irracionais. Fazemos, então, uma tentativa de caracterização do tratamento desses números
em livros didáticos representativos de três momentos: 1) as três primeiras décadas do século
XX; 2) o período que se estende de 1931 até o início dos anos 1960; 3) os anos 1960-1970
– período de penetração e difusão do movimento da matemática moderna em nosso país.

No início do século X X: racionais e irracionais nos


livros de Aritmética

Durante as três primeiras décadas do século XX, o ensino secundário brasileiro ainda
se realizava balizado pelos programas e pontos fixados pelo governo central para os
exames preparatórios que possibilitavam o acesso aos cursos superiores36. No sistema dos
preparatórios, que atravessou o Império e as primeiras décadas da República no Brasil, os
candidatos ao ensino superior prestavam exames de acordo com a carreira a que aspiravam,

34 SOARES, M. Um olhar sobre o livro didático. Presença Pedagógica, v. 2, n. 2, p. 53-63, nov./dez. 1996. Cidade?
35 GOMES, M. L. M. Os números racionais em três momentos da história da matemática escolar brasileira. BOLEMA, Rio Claro,
n. 26, p. 17-44, 2006.
GOMES, M. L. M. Aspectos históricos da abordagem dos números irracionais na matemática escolar brasileira. VI Seminário
Nacional de História da Matemática, 2005. Brasília. Anais do VI Seminário Nacional de História da Matemática. Rio Claro:
Sociedade Brasileira de História da Matemática, 2005, p. 195-204.
36 Conforme HAIDAR, M. L. M. O ensino secundário no império brasileiro. São Paulo: Grijalbo/EDUSP, 1972.

34 história do ensino da matemática


e as disciplinas de conteúdo matemático eram ensinadas e exigidas separadamente em
exames de Aritmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria.
Nessa época, todo o ensino secundário e particularmente o estudo dos conhecimentos
matemáticos tinham caráter essencialmente propedêutico, e não se sublinhava o seu
papel formativo. No entanto, os preparatórios desempenharam um papel importante
na incorporação da matemática à cultura clássico-literária que predominava nas elites
intelectuais brasileiras no século XIX, pois foi por meio deles que a disciplina deixou de
representar um saber técnico, específico das academias militares, para passar a fazer parte
da cultura escolar geral de formação do candidato ao ensino superior.
Essa mudança de status está diretamente ligada à produção dos primeiros manuais
escolares por autores brasileiros para uso nas escolas, nos cursos preparatórios, nos liceus
e colégios37. A partir das últimas décadas do século XIX, editaram-se, em nosso país, muitos
livros didáticos de Matemática, entre os quais se sobressai uma grande quantidade de textos
de Aritmética. Nesses livros de Aritmética, localizava-se o estudo dos números racionais e
irracionais na matemática escolar secundária brasileira.
Escolhemos algumas dessas obras, todas elas indicadas pelos programas oficiais de ensino
de Matemática para o curso secundário, da segunda metade do século XIX até as primeiras
décadas do século XX38, como fontes para o exame do enfoque dos números racionais
e irracionais nesse momento. Os livros de J. A. Coqueiro, Aarão e Lucano Reis, Adelino
Serrasqueiro e J. J. L. Vianna tiveram um número muito grande de edições39. Em suas
páginas iniciais, esses autores convergem ao começar seu texto pela definição de grandeza
como tudo o que é capaz de aumento ou diminuição.
As grandezas são, então, classificadas em contínuas – aquelas que podem ser aumentadas
ou diminuídas por graus tão pequenos quanto se queira; ou que constam de partes ligadas
entre si –, e discretas ou descontínuas – aquelas que só podem aumentar ou diminuir
por unidades ou graus determinados ou, ainda, que constam de partes separadas umas
das outras. Como exemplo de grandeza contínua, Coqueiro é o único entre os autores
mencionados a citar aquela que, mais adiante, servirá a todos os autores para a separação
dos números em racionais e irracionais – o comprimento de uma linha geométrica.
Logo em seguida, em todos os livros, aparece a noção de medição de uma grandeza: trata-
se da comparação dessa grandeza com outra grandeza de mesma espécie, já conhecida, a
qual recebe o nome de unidade. Nas palavras de Coqueiro, “medir é, então, procurar saber

37 Conforme VALENTE, W. R. A disciplina Matemática: etapas históricas de um saber escolar no Brasil. In: OLIVEIRA, M. A. T. e
Ranzi, S. M. História das disciplinas escolares no Brasil: contribuições para o debate. Bragança Paulista: EDUSF, 2003, p.
217-254; VALENTE, W. R. (Org.). O nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004. VALENTE,
W. R. Uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930). São Paulo: Annablume/FAPESP, 1999.
38 De acordo com MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. Os logaritmos na cultura escolar brasileira. Rio Claro: Editora da SBHMAT,
2002; PITOMBEIRA, J. B. O cálculo na escola secundária brasileira – algumas considerações históricas. In: FERREIRA,
Eduardo Sebastiani (Org.). História e Educação Matemática. Cadernos CEDES. Campinas: Papirus, 1996; Valente (1999,
2004), obras citadas.
39 Estamos nos referindo às seguintes obras e edições: COQUEIRO, J. A. Tratado de Arithmetica. Para uso dos collegios, lyceos
e estabelecimentos de instrucção secundaria. Rio de Janeiro: Casa Mont’Alverne, 1897; REIS, A.; REIS, L. Curso Elementar
de Mathematica – Theorico, pratico e applicado. Aritmética. Cálculo de valores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1892;
SERRASQUEIRO, A. Tratado Elementar de Arithmetica. Composto segundo o Programma Official para o ensino d’esta
sciencia nos lyceus. 23ª edição. Coimbra: Livraria Central de J. Diogo Pires – Sucessoras, 1930; VIANNA, J. J. L. Elementos
de Arithmetica. 24ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929.

Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:


os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no B rasil 35
quantas vezes a unidade escolhida se contém na grandeza que se quer medir”40. Finalmente,
apresenta-se o conceito de número – a título de ilustração, citamos a definição dos irmãos
Aarão e Lucano Reis: “Número é o resultado da comparação de qualquer grandeza com a
respectiva unidade”41 O número é definido, pois, sempre, como o resultado da comparação
da grandeza com a unidade, ou seja, o número é o resultado da medição de uma grandeza.
Observemos que os autores dos textos de Aritmética dessa época preocupam-se, portanto,
desde as páginas iniciais, em atribuir um significado à ideia de número. Uma vez fixada essa
noção de número como o resultado da medida de uma grandeza, os textos se propõem, de
modos ligeiramente distintos entre si, a classificar os possíveis resultados dessas medidas;
e é essa classificação que oferece os dois tipos básicos de números, os comensuráveis
ou racionais e os incomensuráveis ou irracionais. Vejamos, a seguir, de que maneira são
apresentados os dois tipos de números nos livros que focalizamos.

Dois tipos de números e sua caracteriz aç ão nos


livros de Aritmética

Com pequenas variações, Coqueiro, Reis e Reis, Serrasqueiro e Vianna abordam a noção de
medida comum entre duas grandezas, e é segundo a existência ou a não existência de uma
medida comum entre a grandeza a ser medida e a grandeza adotada como unidade que
esses autores classificam as grandezas e os números que expressam suas medidas.
No primeiro caso, obtêm-se os números comensuráveis ou racionais, e no segundo caso,
os números incomensuráveis ou irracionais. Enfatizamos o fato de todos os autores
parecerem ter preferência pelos adjetivos comensurável e incomensurável em relação
aos qualificativos racional e irracional, normalmente utilizados atualmente. Em geral, as
palavras comensurável e incomensurável são mencionadas antes das palavras racional e
irracional. Em cada uma das obras aqui focalizadas, com exceção do livro de Vianna, há uma
seção ou capítulo intitulado Números incomensuráveis e não Números irracionais.
Para ilustrar a caracterização dos números racionais e irracionais a partir da existência ou
inexistência de uma medida comum entre a grandeza a ser medida e aquela escolhida como
unidade, vamos descrever detalhadamente a forma como Coqueiro faz isso. Apresentando
a medição de uma grandeza contínua – o comprimento de um segmento AB – como a
comparação desse comprimento com o de um segmento CD fixado como unidade, o autor
destaca duas possibilidades. Na primeira, a unidade escolhida cabe um número exato de
vezes na grandeza a ser medida, e obtém-se um número inteiro.
A segunda possibilidade corresponde ao caso em que, feita a comparação da grandeza a ser
medida com a unidade, sobra da grandeza um resto menor que a unidade adotada, o qual
precisa ser medido. Coqueiro continua a explicação: para isso, divide-se a unidade em certo
número de partes iguais, e repete-se a operação com o objetivo de se verificar quantas
vezes a unidade subdividida cabe no resto. Se ela não estiver contida um número exato de

40 De acordo com COQUEIRO, op. cit., p. 2.


41 Segundo REIS & REIS, op. cit., p. 5.

36 história do ensino da matemática


vezes no resto, continua-se o processo. Pode acontecer que se chegue a um resto contido
exatamente no resto precedente. Nesse caso, o resto original terá por medida uma fração
da unidade, e “a medida da grandeza se comporá de um número inteiro mais uma fração da
unidade”42, o que o autor chama de um número fracionário.
A partir dessa explicação, Coqueiro define as grandezas comensuráveis: são aquelas tais
que, quando se toma uma delas como unidade, o valor da outra é expresso por um número
inteiro ou fracionário. Diz-se que as grandezas têm, no primeiro caso, como medida comum
a unidade e, no segundo caso, uma divisão dessa unidade. Os números comensuráveis são
os valores das medidas de grandezas comensuráveis e são, portanto, os números inteiros e
os números fracionários.
É interessante observar que Serrasqueiro e os irmãos Reis reservam a denominação números
fracionários para o que costumamos chamar hoje frações impróprias, e distinguem o que
chamamos comumente frações próprias com os nomes frações ou números quebrados,
considerando assim mais uma categoria para os números comensuráveis.
Todavia, nem sempre a grandeza a ser medida e a unidade são comensuráveis, e essa
situação é abordada por Coqueiro do seguinte modo:
Grandezas há, porém, que qualquer que seja a lei adotada para as divisões sucessivas, e
por mais que se prolongue a operação, não encontram números, que lhes exprimam as
medidas exatamente. Neste caso, diz-se que elas não admitem medida alguma comum – são
incomensuráveis, e incomensuráveis também se chamam os números intermináveis, que lhes
indicam os valores43.
(COQUEIRO, 1897, p. 7, destaques no original).
Os outros autores de que tratamos aqui – Serrasqueiro, Vianna e os irmãos Reis – utilizam-
se de palavras muito próximas a essas para referir-se aos números incomensuráveis como
números associados a grandezas incomensuráveis, isto é, grandezas que não têm medida
comum.
Retomando o que comentamos a respeito da preferência dos autores dos livros de Aritmética
do final do século XIX pelas designações número comensurável e número incomensurável
em relação a número racional ou número irracional, consideramos oportuno observar que
o uso do primeiro par de expressões torna totalmente explícito a ligação dos números
racionais e irracionais à medição de grandezas. Chamamos também a atenção de nossos
leitores para o fato de as expressões números comensuráveis e números incomensuráveis
não serem mais usadas há muitos anos, tendo sido substituídas, respectivamente, por
números racionais e números irracionais. Não se ressalta, com essas últimas expressões,
que os números irracionais são necessários para que sempre se possa expressar a medida
de uma grandeza utilizando-se como unidade qualquer outra grandeza de mesma espécie.
Tal aspecto central dos números irracionais é, porém, como acabamos de expor, realçado
logo às primeiras páginas dos livros de Aritmética produzidos e/ou utilizados na escola
secundária brasileira até as primeiras três décadas do século XX. A título de esclarecimento

42 COQUEIRO, op. cit., p. 3.


43 COQUEIRO, op. cit., p.7.

Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:


os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no B rasil 37
em relação aos livros de Aritmética, apresentamos uma breve descrição de sua estrutura.
As organizações das obras de Coqueiro, Reis e Reis e Vianna são muito semelhantes. Após
essa primeira abordagem dos números racionais na introdução, primeiro capítulo ou seção,
todas elas se dedicam ao tratamento dos números inteiros, isto é, daqueles números que
resultam da medição de grandezas no caso em que a unidade escolhida para essa medição
cabe um número inteiro de vezes na grandeza a ser medida.
Seguem-se, então, capítulos ou seções que focalizam a adição, a subtração, a multiplicação
e a divisão de inteiros44, as noções sobre divisibilidade, os números primos, o máximo
divisor comum e o mínimo múltiplo comum. É somente depois desses tópicos que os autores
retomam o tema dos números racionais, em capítulos ou seções cujos títulos contêm as
expressões números fracionários ou frações ordinárias. Os demais conteúdos abordados são
medidas, potências e raízes, matemática comercial e financeira, progressões e logaritmos;
um item que merece destaque em todos os manuais são as aproximações numéricas,
acompanhadas do estudo dos erros nelas cometidos.
O cenário da educação brasileira registrou, a partir da década de 1920 do século passado,
inquietações e movimentos de reforma, reflexo das tensões entre uma estrutura voltada
para a formação das elites e as necessidades de uma sociedade em acelerado processo de
industrialização e urbanização45. Nesse ambiente efervescente, Euclides Roxo, diretor do
Colégio Pedro II desde 1925 e participante ativo dos debates educacionais, tendo abraçado as
ideias do primeiro movimento internacional pela modernização do ensino da Matemática46,
liderado pelo matemático alemão Felix Klein (1849-1925), lutou intensamente pela
renovação dos métodos de ensino.
A proposta de modernização encaminhada por Roxo e aprovada pela Congregação do
Colégio Pedro II em 1928 tinha como sua característica mais evidente a criação de uma
nova disciplina denominada Matemática, na qual se reuniriam os ensinos até então isolados
da Aritmética, da Álgebra e da Geometria, a partir de 1929.
A aprovação dessa proposta representou um elemento decisivo para a introdução do ensino
moderno em todas as escolas secundárias brasileiras, concretizada depois da reforma
Francisco Campos, em 1931, que acatou, para o ensino secundário, todas as ideias da
proposta adotada no Colégio Pedro II.
Essa reforma, primeira iniciativa de organização nacional da educação em nosso país, marca
uma mudança fundamental e definitiva quanto à educação matemática brasileira, até então

44 É importante observar que todos os manuais de diferentes épocas que examinamos empregam a
expressão números inteiros para referir-se aos números naturais com o acréscimo do zero.
45 Conforme Pitombeira, J. B. Euclides Roxo e as polêmicas sobre a modernização do ensino da
matemática. In: Valente, W (org.). Euclides Roxo e a modernização do ensino de Matemática no
Brasil. São Paulo: Sociedade Brasileira de Educação Matemática, 2003.
46 Esse movimento se desencadeou a partir da constituição da Comissão Internacional para o Ensino
da Matemática, conhecida atualmente por sua sigla em inglês ICMI – International Comission on
Mathematical Instruction , em 1908, no Congresso Internacional de Matemática, realizado em
Roma.

38 história do ensino da matemática


essencialmente propedêutica: a instituição, nos currículos escolares, de uma única disciplina
denominada Matemática. Como foi estudada na Unidade 1, a grande mudança integrava o
projeto de um ensino secundário de caráter formativo defendido pelos decretos do ministro
Francisco Campos47.
Já assinalamos, também, que a organização escolar brasileira foi novamente alterada
pela reforma Gustavo Capanema, realizada em 1942. Entretanto, essa reforma manteve a
Matemática como disciplina única no ensino secundário48. Depois dessas duas reformas,
publicaram-se no país muitas coleções de livros didáticos, que reuniram os conteúdos das
quatro disciplinas matemáticas anteriormente existentes para constituir os manuais para
o ensino da Matemática. Essas coleções, cuja produção tem origem nas décadas de 1930
e 1940, costumam chamar a atenção, na capa, na folha de rosto e nas apresentações ou
prefácios, para o fato de estarem em consonância com as determinações legais das reformas.
Mudanças posteriores na legislação educacional preservaram a Matemática como uma única
disciplina e não parecem ter afetado significativamente os tópicos e sua apresentação nos
manuais brasileiros, particularmente no que diz respeito à abordagem dos números racionais
e irracionais, até que as ideias do movimento da matemática moderna se disseminassem e
fossem apropriadas em nosso país, caracterizando o terceiro momento que focalizaremos
neste texto. Passemos a examinar, então, o segundo momento a que nos referimos, a saber,
aquele situado entre a reforma Francisco Campos e o início dos anos 1960. Nessa parte,
daremos atenção específica ao enfoque dos números racionais.

Entre a reforma Francisco C ampos e o movimento da


matemática moderna

Para o estudo do enfoque dos números racionais no segundo momento – da Reforma


Francisco Campos até o início dos anos 1960 – examinamos livros didáticos destinados
ao primeiro ano do primeiro dos dois ciclos em que a escola secundária se dividiu desde
193149 – o curso ginasial – em edições publicadas entre 1934 e 1959.
Nesses livros, nas partes dedicadas aos números, procuramos identificar as mudanças e
permanências dos aspectos assinalados como característicos do momento anterior: a

47 De acordo com MIORIM, M. A. Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual,
1998.
48 As reformas Campos e Capanema fizeram parte do mesmo contexto de tentativa de renovação do
ensino de Matemática, mas a segunda representou o desfecho de uma forte reação às inovações
propostas, desde 1929, no Colégio Pedro II, as quais se refletiram na reforma Francisco Campos
(conforme DASSIE, B. A.; ROCHA, J. L.; e SOARES, F. S. Ensino de Matemática no século XX – da
Reforma Francisco Campos à Matemática Moderna. Horizontes, v. 22, n. 1, p. 7-15, jan./jun. 2004).
Cidade?
49 A reforma Francisco Campos instituiu um primeiro ciclo (ginasial) de cinco anos e um segundo
ciclo (complementar) de dois anos; a Reforma Gustavo Capanema reorganizou o ensino secundário
em um ciclo ginasial de quatro anos e um colegial de três anos. A partir de 1971, com a entrada
em vigor da Lei 5692/71, os quatro anos de escolarização correspondentes ao curso ginasial
passaram a constituir as quatro últimas séries do 1º grau (Pimenta; Gonçalves, 1992).

Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:


os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no B rasil 39
presença ou ausência da definição de grandeza, da conceituação de número como resultado
da medição de grandezas e da definição de fração ligada à medição de comprimentos.
Verificamos que nenhum dos livros emprega mais as expressões números comensuráveis
e números incomensuráveis, mas que existe uma grande variedade em relação aos demais
aspectos.
Assim, levando em consideração as oito obras que consultamos, de cinco ainda consta
a definição de grandeza e em seis delas o número é conceituado como o resultado da
medição de grandezas. Já a definição de fração vinculada à medição de comprimentos foi
constatada em somente três dos livros. O quadro abaixo sintetiza os resultados para as oito
obras, indicadas pelos nomes de seus autores e pelas datas das edições que utilizamos.

Conceituação
Definição de
Presença da de número
fração ligada
Livro Edição Conteúdo definição de como resultado
à medição de
grandeza da medição de
comprimentos
grandezas

Aritmética,
Thiré; Mello e
álgebra e
Souza (1934)1 7ª Não Não Não
geometria
Roxo, Thiré;
Aritmética e
Melo2 e Souza
Não consta geometria Sim Sim Sim
(1943)3

Aritmética e
Maeder (1940) Sim Sim
9ª geometria Sim
Aritmética,
Stávale (1940) 15ª álgebra e Sim Sim Não
geometria
Aritmética e
Stávale (1943) 2ª Não Sim Sim
geometria

Sangiorgi Aritmética e
4ª Não Não Não
(1953) geometria

Aritmética e
Maeder (1955) 16ª Sim Sim Não
geometria
Sim, para
Lacaz Neto Aritmética e número natural
Não consta Sim Não
(1959) geometria Não, para
frações

Como os autores que mantêm a definição de grandeza em suas obras fazem isso? Percebemos
que existem variações: Maeder e Stávale, nas edições de 1940 de seus livros, optam pela
antiga definição – grandeza é tudo aquilo que pode aumentar ou diminuir; Roxo, Thiré e
Melo e Souza, em seu livro de 1943, e Maeder, em sua obra de 1955, conceituam grandezas
como entes abstratos entre os quais se pode definir a igualdade e a soma; Lacaz Neto, em
edição de 1959, tem ainda outra definição – grandeza é tudo aquilo que podemos medir,

40 história do ensino da matemática


isto é, comparar com outra grandeza para determinarmos, pelo menos aproximadamente,
quantas vezes uma contém a outra. É interessante notar que Stávale, em um livro publicado
em 1943, tem posição diferente da que apresentara no manual anterior que analisamos: na
obra mais recente, ele escreve que a noção de grandeza é intuitiva e não se define.
Abordemos agora outro aspecto que chama nossa atenção – a conceituação de número
como resultado da medição de uma grandeza: a julgar por esses oito manuais de ensino,
ela prevalece no segundo momento. É oportuno ressaltar o caso de um único autor – Lacaz
Neto – que faz isso somente em parte, isto é, apresenta os números naturais dessa maneira,
mas não faz o mesmo para as frações.
Observamos, ao examinar livros do momento anterior, que, nos manuais de Aritmética,
quando o adjetivo racionais era aplicado aos números, isso era feito como segunda opção
para qualificá-los, já que os autores preferiam a expressão números comensuráveis. No
segundo momento, é interessante notar que, dos oito livros pesquisados, somente um50
emprega a expressão números racionais – trata-se do manual de Euclides Roxo, Cecil Thiré
e Júlio César de Melo e Souza, de 1943, em que, à página 245, encontramos a frase “Os
números inteiros e fracionários são números racionais”.
Não tivemos acesso a todos os demais livros das coleções das quais aqui analisamos o
primeiro volume. Entretanto, pudemos verificar a presença da expressão números racionais
no livro do terceiro ano51 da coleção de Thiré e Mello52 e Souza (nesse volume, com a
participação, também, de Euclides Roxo), bem como no volume da 2ª série de Osvaldo
Sangiorgi, em que o termo é associado à medição de grandezas comensuráveis53. De
qualquer modo, os autores não manifestam muita preocupação, nesse momento, em dar
destaque à expressão números racionais.
Finalmente, uma diferença fundamental se faz notar nesse conjunto de manuais em relação
ao modo de apresentar as frações, escolhido por todos os autores dos livros do primeiro
momento. De fato, enquanto as obras de Coqueiro, Reis e Reis e Vianna apresentam as
frações de forma ligada à medição de comprimentos, dentre as oito obras que selecionamos
para representar o segundo momento, esse enfoque só se mantém em três: a de Roxo, Thiré
e Melo e Souza (1943), a de Maeder de 1940, e a de Stávale de 1943. Contudo, mesmo
esses autores, como os demais, não utilizam mais a expressão números comensuráveis,
preponderante no momento anterior. O abandono dessa expressão parece refletir, na
matemática escolar brasileira, o desligamento operado ao longo do tempo entre a noção de
fração e a medição de comprimentos. De forma mais geral, podemos assinalar que ocorreu
uma progressiva desvinculação entre grandeza e número.
Vejamos como se define fração sem a explicitação de uma conexão direta com a medição

50 Os sete outros livros utilizam-se, em geral, da expressão “números fracionários”.


51 Trata-se de Roxo; THIRÉ; MELLO E SOUZA. Curso de Matemática. 3º ano. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
1935.
52 Em todos os livros dessa coleção de cinco volumes, o nome de Melo e Souza aparece grafado como Mello e Souza. Veja-se
a nota de número 14.
53 Escreve Sangiorgi em seu livro de 1959: “A relação entre duas grandezas comensuráveis é expressa mediante um número
denominado racional”. (SANGIORGI, O. Matemática para a Segunda Série Ginasial. 45ª ed. (Revista). São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1959).

Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:


os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no B rasil 41
de segmentos nos cinco demais livros. A idéia que prevalece é a de fração como uma ou
mais partes iguais de uma unidade. Contudo, em três livros – o de Thiré e Melo e Souza,
de 1934, o de Maeder, de 1955, e o de Lacaz Neto, de 1959 –, a palavra fração designa
precisamente essa uma ou mais partes, enquanto que nos outros dois, o de Stávale, de
1940, e o de Sangiorgi, de 1953, a fração é o número que indica uma ou mais partes iguais
em que a unidade é dividida. É interessante, ainda, assinalar as diferentes representações
de unidade escolhidas pelos autores: um segmento, para Thiré e Melo e Souza; uma laranja,
para Stávale; um tablete de chocolate, para Sangiorgi; uma régua de madeira, para Maeder.
Assim, embora nesse momento da matemática escolar brasileira alguns autores de
livros didáticos ainda mantenham a ligação entre números fracionários e medição de
comprimentos, percebe-se nitidamente uma mudança de abordagem. Para os autores dos
livros de Aritmética do momento anterior, a fração também é uma ou algumas das partes
iguais em que se divide a unidade.
Todavia, o modelo de unidade é, invariavelmente, um segmento de reta. As modificações
dos livros didáticos em relação à apresentação dos números racionais verificadas no
segundo momento apontam, portanto, na direção da dissociação entre número e medição
de grandezas e, particularmente, na direção de um progressivo abandono do segmento
de reta como o protótipo preferido de grandeza/unidade. Configura-se, desse modo, uma
alteração marcante, a qual diferencia a abordagem dos números, e, particularmente, dos
números racionais, entre os dois momentos históricos que focalizamos até agora.
No entanto, ainda que tenhamos podido perceber e assinalar, com o passar do tempo,
algumas modificações nos manuais, pelo menos naquilo que diz respeito ao tratamento
dado aos números racionais, os livros didáticos de Matemática brasileiros refletiram certa
estabilidade na apresentação dos conteúdos até a década de 50 do século XX54.
Mudanças profundas na matemática escolar brasileira se realizariam, de fato, a partir
da penetração e difusão, em nosso país, do ideário propagado pelo segundo movimento
internacional de renovação do ensino da matemática, iniciado na Europa e nos Estados Unidos,
e amplamente conhecido como o movimento da matemática moderna. Focalizaremos essas
mudanças em nosso terceiro momento, em que observaremos alterações significativas na
abordagem dos conteúdos matemáticos da escola secundária em geral, e, particularmente,
na dos números racionais. Comentamos, no que se segue, as modificações que se operaram
nos livros didáticos nesse terceiro momento.

Durante o movimento da matemática moderna

A entrada definitiva das propostas de renovação do ensino da matemática em nosso


país deu-se, a partir de 1961, com a constituição, em São Paulo, do Grupo de Estudos
do Ensino da Matemática – GEEM. Propunha-se, sobretudo, modificar a Matemática
da escola secundária mediante a busca de proximidade com a Matemática ensinada
nas universidades – um elemento central da proposta era a ênfase nas estruturas

54 De acordo com PFROMM NETO, et al. O livro na educação. Rio de Janeiro: Primor/INL, 1974.

42 história do ensino da matemática


matemáticas. Assim, o adjetivo moderna para qualificar a Matemática referia-se, em
boa parte, à incorporação ao ensino elementar de temas desenvolvidos na matemática
científica a partir da segunda metade do século XIX. O adjetivo moderno, todavia,
trazia outras conotações, tais como a de atualização do ensino de forma a adequá-lo às
exigências de uma sociedade em acelerado desenvolvimento técnico e a de sintonia com
os avanços nas pesquisas nos campos da Psicologia e da Didática, as quais, acreditava-
se, deveriam alimentar o ensino da Matemática. A expressão Matemática moderna,
assim, carregava uma forte valoração positiva em nosso país55.
O movimento da Matemática moderna teve enorme impacto na Matemática escolar brasileira,
pela realização de inúmeros cursos para professores e, em grande parte, pela publicação
e ampla circulação de uma enorme quantidade de manuais que, muito frequentemente,
declaravam-se adeptos do então novo ideário pelo uso do adjetivo moderno em seus títulos.
Criaram-se as coleções denominadas curso moderno de Matemática, estabelecendo-se um
novo padrão para o ensino no nível ginasial56.
Um traço característico essencial do conjunto de ideias defendidas pelos modernistas e
incorporadas aos livros didáticos foi a proposta de unificação da Matemática no ensino
pela introdução de elementos como a linguagem dos conjuntos, as estruturas algébricas e
o estudo das relações. De modo geral, a abordagem dos números se modificou de maneira
radical, passando a aritmética “a ser concebida como o estudo dos campos numéricos, sendo
a ordem de apresentação desses campos feita segundo o critério da menor para a maior
complexidade estrutural dos mesmos”57.
Para focalizar a apresentação dos números e, especialmente, dos números racionais nos livros
didáticos desse terceiro momento, selecionamos cinco manuais produzidos e publicados
com o propósito de subsidiar o ensino de Matemática na primeira série do ginásio, isto é,
no primeiro ano da escolarização secundária. A opção por livros destinados a esse ano da
escolarização buscou acompanhar o tipo de manual analisado, neste texto, para o estudo
do momento anterior. Os livros escolares escolhidos foram os de Castrucci e Bóscolo (1966),
Morandi (1971), Pierro Neto (s. d.), Quintella (1967) e Sangiorgi (1966)58.
A leitura do sumário de todas essas obras mostra os conteúdos organizados de forma
semelhante, distribuídos em capítulos ou unidades que focalizam quatro grandes temas:
números naturais e operações; divisibilidade; números fracionários e operações; grandezas
e medidas. Esses temas são praticamente os mesmos abordados nos livros didáticos do
segundo momento.

55 Conforme, BÚRIGO, E. Matemática Moderna: progresso e democracia na visão de educadores brasileiros dos anos 60.
Teoria e Educação, n. 2, p. 255-265, 1990. CIDADE?
56 De acordo com PFROMM NETO, et al., op. cit.
57 Palavras de FIORENTINI, Miguel e MIORIM, 1992, p. 46. Essa forma de apresentação, como pode ser facilmente verificado,
num rápido exame de diversas coleções editadas pelo menos até a década de 90 do século passado, foi mantida nos
livros didáticos mesmo após o declínio do movimento da Matemática moderna no Brasil.
58 CASTRUTTI, B.; BÓSCOLO, A. Matemática para o Ciclo Ginasial. (1º volume). São Paulo: Editora F.T.D., 1966; MORANDI,
H. Matemática. Método Moderno. Curso Médio – Ciclo Ginasial. (1ª série). 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1971;
PIERRO NETO, S. Matemática para a Escola Moderna. Curso Ginasial.. São Paulo: IBEP, s. d., V. 1; QUINTELLA, A. Matemática
para a primeira série ginasial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, 112. ed.; SANGIORGI, O. Matemática 1. Curso
Moderno para cursos ginasiais. 8ª ed., revista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.

Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:


os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no B rasil 43
Nota-se, contudo, em todos os livros do terceiro momento, uma das marcas mais fortes do
movimento da Matemática moderna – a presença das noções sobre conjuntos – diferença
nítida entre esses manuais e os dos momentos anteriores. A colocação dessas noções na
abertura dos livros é o preâmbulo para a introdução do número de forma bem diferente
daquela adotada pelos autores dos dois momentos anteriores. De fato, as grandezas e sua
medição se ausentam quase totalmente59, agora, das páginas dos manuais, para ceder lugar
à apresentação do número60 como uma propriedade comum a todos os conjuntos61 que
têm a mesma quantidade de elementos. Vejamos como os autores estudados se pronunciam
sobre o tema.
Osvaldo Sangiorgi escreve que o número “é uma idéia que associamos a certos conjuntos que
têm em comum, uma mesma propriedade. Que é o número três? É a propriedade comum a
todos os conjuntos de três objetos”62. Scipione di Pierro Neto prefere dizer que “aos conjuntos
que podem ser colocados em correspondência biunívoca ou correspondência um a um,
atribui-se o mesmo número”63. Para Ary Quintella, a característica comum a dois conjuntos,
de estarem em correspondência biunívoca “independentemente da forma, da natureza e
da disposição de seus elementos, é que nos dá a ideia de número natural”64. Castrucci e
Bóscolo, após o mesmo tipo de considerações sobre dois conjuntos em correspondência
biunívoca, apresentam do seguinte modo o conceito de número: “Número, que é uma idéia
associada a um conjunto através da operação de contar, constitui também um atributo
comum a conjuntos que podem ser colocados em correspondência biunívoca”65. O último
dos autores cujo livro da primeira série ginasial analisamos neste terceiro momento,
Henrique Morandi, no item intitulado Noção de Número Natural, no primeiro capítulo de
seu manual, ao referir-se a um conjunto A e a seus conjuntos equivalentes – os conjuntos
que podem ser postos em correspondência biunívoca com A – assim se expressa:
Entre um conjunto e outro, os elementos podem ter cores diferentes, gostos diferentes, formas
diferentes, etc., mas, sendo os conjuntos equivalentes, eles têm todos uma propriedade
comum, que é a mesma quantidade de elementos, dada pela correspondência biunívoca dos
elementos. A esta quantidade comum dos elementos de conjuntos equivalentes chamamos
de número natural.66
Observa-se, em todos os autores que estudamos a preocupação com a explicitação
de um conceito – o de correspondência biunívoca entre conjuntos, para apresentação da
noção de número natural. Nos manuais de tempos anteriores, percebe-se que a ideia de
número como propriedade de uma coleção de objetos também está presente; entretanto,
a linguagem empregada é totalmente diferente, e não inclui a expressão correspondência
biunívoca, adotada unanimemente nos livros das décadas de 1960 e 1970.

59 De todos os livros estudados, somente Quintella (1967) alude à medição de grandezas. Porém, isso só ocorre à página
162, no capítulo sobre frações, quando o primeiro emprego apresentado para as frações é o de medida de um segmento
(o segundo é o de quociente de uma divisão).
60 Trata-se do número natural, mas nem todos os autores usam explicitamente essa terminologia ao conceituar o número.
61 Os conjuntos referidos são finitos, mas isso não é explicitado nos textos, e pode apenas ser inferido a partir dos exemplos
de conjuntos que são apresentados.
62 SANGIORGI, 1966, p. 8.
63 PIERRO NETO, op. cit., p.33.
64 QUINTELA, op. cit., p.16.
65 CASTRUCI e BÓSCOLO, op. cit., p.25.
66 MORANDI, op. cit., p.18, itálicos e negritos no original.

44 história do ensino da matemática


Atentemos agora para a alocação dos números racionais na sequência de conteúdos adotada
nos livros nesse terceiro momento. O aparecimento dos números racionais ocorre somente
após uma série de seções, capítulos ou unidades em que se focalizam a adição, a subtração,
a multiplicação e a divisão no conjunto dos números inteiros (naturais reunidos ao zero),
com ênfase especial nas propriedades de tais operações e, posteriormente, as noções de
divisibilidade, máximo divisor comum e mínimo múltiplo comum.
É após a apresentação de tais conteúdos que surge, nos livros didáticos, o capítulo que trata
dos números racionais. Seu título varia: alguns autores continuam preferindo os termos
números fracionários ou frações ordinárias – tal é o caso de Osvaldo Sangiorgi, em seu livro
de 1966, que escolhe a primeira dessas alternativas, e de Henrique Morandi e Ary Quintella,
que adotam a segunda. Nas obras que examinamos, Scipione di Pierro Neto e Castrucci e
Bóscolo, porém, optam, respectivamente, pelos títulos O conjunto dos números racionais e
Números racionais.
Todos os cinco livros começam pela abordagem das frações. Em relação ao momento histórico
anterior aqui estudado, nota-se uma diferença fundamental – enquanto antes do movimento
da Matemática moderna, como vimos, dominava a ideia da fração como uma ou mais partes
iguais em que se divide uma unidade, agora, ainda que essa ideia seja apresentada, ela
é, de certa maneira, menos valorizada ao aparecer, em alguns manuais como uma noção
intuitiva ou vulgar. Com efeito, observemos que, por exemplo, Osvaldo Sangiorgi, na abertura
de seu capítulo sobre números fracionários, escreve: “Você tem a primeira idéia de número
fracionário quando, repartindo um objeto (que nesse instante representa a unidade) em um
número qualquer de partes iguais, considera uma ou algumas dessas partes.67”
Todavia, após algumas páginas em que são focalizados aspectos das frações – representação
numérica, nomes dos termos, representações por figuras geométricas divididas em partes
iguais, das quais algumas são coloridas, frações próprias, impróprias e aparentes –, o autor
declara a seu leitor, estudante da primeira série ginasial, que ele agora já está “amadurecido”
para receber uma definição “geral” de número fracionário que “apanhe” todos os casos
estudados.68 O texto enfatiza que, em todos esses casos de números fracionários, participam
dois números inteiros, um dos quais (o denominador) não pode ser zero. Define-se, então, o
número fracionário como um par ordenado de números inteiros, em que o segundo número
não é zero.
Para dar outro exemplo da maior valorização conferida a essa ideia do par de números
inteiros que constitui a fração em relação à ideia anteriormente prevalecente de fração como
uma ou mais partes iguais da unidade, recorremos a Morandi69 que, na ordem contrária à
adotada por Sangiorgi, primeiramente define a fração como “um número representado por
um par ordenado de números inteiros a e b e indicado pelo símbolo (a, b) ou a/b, para b ≠
0”, para depois acrescentar que “vulgarmente entende-se por fração uma ou mais partes
iguais de um inteiro”.

67 SANGIORGI, 1966, op. cit., p.161.


68 Todas as aspas são do autor, e essa conversa com o leitor situa-se à página 168 do manual.
69 MORANDI, op. cit., p.127.

Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:


os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no B rasil 45
Observa-se, claramente, portanto, nesse terceiro momento, uma mudança da escolha da
ênfase a ser conferida dentre os vários aspectos dos números racionais: em conformidade
com as ideias do movimento da Matemática moderna, passa a realizar-se, a partir de agora,
a apresentação formal da fração ou número fracionário por meio de um par ordenado de
números inteiros.
Ao mesmo tempo, parece completar-se o processo, iniciado no momento anterior, de
desvinculação entre a noção de fração e a medição de comprimentos, pois, entre os cinco
livros analisados, somente o de Ary Quintella faz referência à associação entre fração e
medida de comprimentos.
Por outro lado, quatro das cinco obras apresentam, no livro correspondente ao primeiro ano
da escola secundária, a classe de equivalência de uma fração como o conjunto das frações
a ela equivalentes. Os autores de duas delas, Quintella e Castrucci e Bóscolo, utilizam esse
conceito para apresentar o número racional como a classe de equivalência de uma fração.
Contudo, os autores das outras três coleções optam por apresentar o número racional
como qualquer número que pode ser colocado na forma de fração p/q, sendo p e q inteiros
quaisquer e q diferente de zero.
Cabe ainda assinalar que a importância atribuída às propriedades das operações com os
números, no interior das concepções que norteiam o movimento da Matemática moderna,
leva os livros didáticos a enfatizar uma vantagem do conjunto dos números racionais: a
divisão é sempre possível, desde que o divisor não seja zero. Destaca-se, em quase todos70
os livros que estudamos, a ideia de ampliação do campo numérico dos naturais para um
conjunto no qual a operação de divisão, com exceção do caso do divisor nulo, goza da
propriedade do fechamento, isto é, seu resultado pertence sempre ao conjunto.
Examinando os oito manuais do momento anterior analisados neste texto, percebemos que
apenas dois – o de Roxo, Thiré e Melo e Souza e o de Stávale, ambos de 1943 – sublinham
a ideia de que a introdução dos números fracionários possibilita a realização da divisão com
uma única exceção. A ênfase sobre a ideia de ampliação do campo numérico configura-se,
pois, como mais uma das características da abordagem dos racionais no terceiro momento.

Um balanço dos três momentos

No estudo que acabamos de apresentar, procuramos identificar e caracterizar muitas das


alterações pelas quais passou a abordagem dos números e, em especial, dos números
racionais e irracionais no ensino secundário brasileiro por meio da leitura de alguns livros
didáticos representativos de três momentos.
Em linhas gerais, verificamos que, no primeiro momento, a conceituação de número como
o resultado da medição de uma grandeza coloca a ênfase no aspecto do número racional
como expressão da medição de uma grandeza que tem uma medida comum com a grandeza
escolhida como unidade. Essa expressão é um número inteiro ou fracionário, chamado

70 A única exceção é representada pelo manual de Scipione.

46 história do ensino da matemática


preferencialmente número comensurável. Notemos que essa conceituação depende de
uma noção um tanto imprecisa de grandeza e se apoia fortemente sobre a medição de
comprimentos.
No segundo momento, os livros continuam, ainda que com menos destaque, a conceituar
o número como o resultado da medição de uma grandeza. Entretanto, enfraquece
sensivelmente a ligação entre a noção de fração e a medição de comprimentos. Não se
usa mais a denominação números comensuráveis: a fração é, sobretudo, uma ou mais das
partes iguais em que se divide a unidade, unidade esta que não é mais sempre representada
por um segmento de reta. Observa-se, ainda, tanto a ausência de uma definição para os
números racionais quanto a inexistência dessa denominação em quase todos os livros
analisados.
No terceiro momento, a noção de grandeza ausenta-se definitivamente dos livros. O número
(natural) é apresentado como uma propriedade comum a dois conjuntos entre os quais se
pode estabelecer uma correspondência biunívoca. A ideia da fração como uma ou mais
partes iguais em que se divide a unidade é desvalorizada em favor de uma apresentação
da fração a/b que coloca a ênfase sobre o par ordenado de inteiros a e b, com b diferente
de zero. Aparece, assim, outra vez, uma abordagem formal que, porém, é completamente
diferente daquela realizada no primeiro momento.
Ao mesmo tempo, desaparece a associação entre a noção de fração e a medição de
comprimentos e manifestam-se, diferentemente do que acontecia no momento anterior,
preocupações em definir o número racional. De acordo com as ideias defendidas no
contexto do movimento da Matemática moderna, adota-se, para isso, um enfoque formal:
ou o racional é apresentado como o número definido pela classe de equivalência de uma
fração, ou é definido como qualquer número que possa ser colocado na forma p/q, sendo p
e q inteiros quaisquer e q não nulo. Simultaneamente, sublinha-se a ideia de que o conjunto
dos racionais representa a ampliação do campo numérico dos naturais de forma que a
divisão seja sempre possível, exceto no caso em que o divisor é zero.
Podemos notar, portanto, que, com o passar do tempo, foram variando as escolhas sobre os
aspectos dos racionais a serem postos em evidência, de acordo, certamente, com as propostas
pedagógicas de que a Matemática escolar brasileira se apropriou em cada momento. Vale
observar, ainda, que em vista das características apontadas para o tratamento dos racionais
nos três períodos, no primeiro e no terceiro momentos, predomina uma linguagem mais
formal do que a que se adota no segundo.
Levando em conta que os livros didáticos têm sido, como já dissemos, os principais
portadores do currículo escolar quanto ao conteúdo lecionado nas escolas, o texto nos dá
uma ideia sobre as formas como os números racionais foram apresentados aos estudantes
pertencentes a várias gerações em nosso país. Essas formas certamente se refletiram na
compreensão dos conceitos e na formação de concepções entre estudantes e professores.
Mesmo não tendo focalizado todos os aspectos envolvidos nas abordagens dos números
racionais e irracionais no período envolvido neste estudo, torna-se claro, a partir dessa
leitura de alguns livros didáticos de diferentes épocas, que ocorrem variações por trás da
aparente homogeneidade dos conteúdos da Matemática escolar ao longo do tempo.

Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:


os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no B rasil 47
Referências

BÚRIGO, E. Z. Matemática Moderna: progresso e democracia na visão de educadores brasileiros dos anos 60.
Teoria e Educação, n. 2, p. 255-265, 1990. Cidade?
DASSIE, B. A.; ROCHA, J. L.; SOARES, F. S. Ensino de Matemática no século XX – da Reforma Francisco Campos
à Matemática Moderna. Horizontes, v. 22, n. 1, p. 7-15, jan./jun. 2004. . Cidade?
FIORENTINI, D.; MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. Álgebra ou Geometria: para onde pende o pêndulo? Pro-Posições,
vol. 3, n. 1 (7), p. 39-54, mar.1992. . Cidade?
GOMES, M. L. M. Os números racionais em três momentos da história da matemática escolar brasileira.
BOLEMA, Rio Claro, n. 26, 2006. p. 17-44.
GOMES, M. L. M. Aspectos históricos da abordagem dos números irracionais na matemática escolar brasileira.
VI Seminário Nacional de História da Matemática, 2005. Brasília. Anais do VI Seminário Nacional de História
da Matemática. Rio Claro: Sociedade Brasileira de História da Matemática, 2005. p. 195-204.
HAIDAR, M. L. M. O ensino secundário no Império brasileiro. São Paulo: Grijalbo/EDUSP, 1972.
MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. Os logaritmos na cultura escolar brasileira. Rio Claro: Editora da SBHMAT, 2002.
MIORIM, M. A. Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual, 1998.
PFROMM NETO et al. O livro na educação. Rio de Janeiro: Primor/INL, 1974.
PIMENTA, S. G.; GONÇALVES, C. L. Revendo o Ensino de 2º grau: propondo a formação do professor. São Paulo:
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PITOMBEIRA, J. B. Euclides Roxo e as polêmicas sobre a modernização do ensino da matemática. In: Valente,
W (Org.). Euclides Roxo e a modernização do ensino de Matemática no Brasil. São Paulo: Sociedade Brasileira
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PITOMBEIRA, J. B. O cálculo na escola secundária brasileira – algumas considerações históricas. In: FERREIRA,
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VALENTE, W. R. A disciplina Matemática: etapas históricas de um saber escolar no Brasil. In: OLIVEIRA, M. A.
T. & RANZI, S. M. História das disciplinas escolares no Brasil: contribuições para o debate. Bragança Paulista:
EDUSF, 2003. p. 217-254.
VALENTE, W. R. (Org.). O nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004.
VALENTE, W. R. Uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930). São Paulo: Annablume/FAPESP,
1999.

Livros didáticos citados


CASTRUCCI, B.; BÓSCOLO, A. Matemática para o Ciclo Ginasial. (1º volume). São Paulo: Editora F.T.D., 1966.
COQUEIRO, J. A. Tratado de Arithmetica. Para uso dos collegios, lyceos e estabelecimentos de instrucção
secundaria. Rio de Janeiro: Casa Mont’Alverne, 1897.
LACAZ NETO, F. A. Matemática. Destinado para 1ª série. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1959.
MAEDER, A. M. Lições de Matemática. 1º ano (1ª série). 9ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1940.
MAEDER, A. M. Curso de Matemática. 1ª série. Curso Ginasial. 16ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1955.
MORANDI, H. Matemática. Método Moderno. Curso Médio – Ciclo Ginasial. (1ª série). 2ª ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1971.
PIERRO NETO, S. Matemática para a Escola Moderna. Curso Ginasial. Vol. 1. São Paulo: IBEP, s. d.

48 história do ensino da matemática


QUINTELLA, A. Matemática para a primeira série ginasial. 122ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1967.
REIS, A.; REIS, L. Curso Elementar de Mathematica – Theorico, pratico e applicado. Aritmética. Cálculo de
valores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1892.
ROXO, E.; THIRÉ, C.; MELO E SOUZA, J. C. Curso de Matemática. 3º ano. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves, 1935.
ROXO, E.; THIRÉ, C.; MELO e SOUZA, J. C. Matemática Ginasial. 1ª série. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1943.
SANGIORGI, O. Matemática para a Primeira Série Ginasial. 4ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953.
SANGIORGI, O. Matemática para a Segunda Série Ginasial. 45ª ed. (Revista). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1959.
SANGIORGI, O. Matemática 1. Curso Moderno para cursos ginasiais. 8ª ed., revista. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1966.
STÁVALE, J. Primeiro Ano de Matemática. 15ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940.
STÁVALE, J. Elementos de Matemática. Primeiro Volume para a Primeira Série do Curso Ginasial. 2ª ed. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943.
THIRÉ, C.; MELO e SOUZA, J. C. Matemática. 1º ano. 7ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1934.
VIANNA, J. J. L. Elementos de Arithmetica. 24ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929.

Unidade 2: Os conteúdos matemáticos scolares se modificam ao longo do tempo:


os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no B rasil 49
Leituras complementares

Para complementar a Unidade 2, na apresentação sobre os diferentes modos como foi


proposta ao longo do tempo, na escola brasileira, a abordagem dos números racionais e
irracionais, consideramos importante que o licenciando tenha a oportunidade de conhecer
as propostas atuais. Com esse objetivo, propomos a leitura de um trecho selecionado
(páginas 100 a 107) dos “Parâmetros Curriculares Nacionais – Matemática para o Terceiro
e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental”. A referência bibliográfica do texto no qual se
encontra a passagem escolhida é:
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: matemática. Terceiro e
Quarto Ciclos do Ensino Fundamental. MEC/SEF, Brasília, 1998. 148p.

Esse material, a ser disponibilizado na Plataforma Moodle, também pode ser encontrado
na íntegra no endereço do portal do Ministério da Educação (MEC), na parte referente à
Secretaria de Educação Básica. O endereço do portal do MEC é: <www.portal.mec.gov.br>.

50 história do ensino da matemática


Atividades referentes à Unidade 2

Atividade 1
Depois de ler o texto “Os conteúdos matemáticos escolares se modificam ao longo do
tempo: os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no Brasil”:
1. Faça uma síntese dos comentários do texto sobre o uso das expressões números
comensuráveis e números incomensuráveis, nos livros didáticos das décadas iniciais
do século XX, em lugar das expressões números racionais e números irracionais
atualmente utilizadas.

2. Responda, de acordo com o texto: qual é a mudança fundamental na apresentação


das frações nos livros didáticos do segundo momento em relação ao que se fazia no
momento anterior?

3. Explique com suas palavras as características principais da abordagem do conceito


de fração nos livros didáticos do terceiro momento.

Atividade 2
Escreva um pequeno texto (tamanho mínimo: meia página; tamanho máximo: uma página,
em Times New Roman, fonte tamanho 12, espaçamento entre linhas 1,5) comentando o que
mais chamou sua atenção na leitura do “Os conteúdos matemáticos escolares se modificam
ao longo do tempo: os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no Brasil”.
Nesta atividade, você deve considerar a sua experiência e os seus conhecimentos, como
estudante, desde a escola básica até a situação atual de licenciando em Matemática pela
UFMG, e relacioná-la a aspectos das abordagens dos números racionais e irracionais nos
três momentos, de acordo com o texto.
Atividade 3
Faça a leitura complementar indicada para a Unidade 2.
O texto dos “Parâmetros Curriculares Nacionais para os anos finais do Ensino Fundamental”,
recomendado como leitura complementar da Unidade 2, comenta as dificuldades dos alunos
quanto aos números racionais (p.101) e aos números irracionais (p.106).
Estabeleça e procure descrever as relações entre esses comentários e sua experiência com
esses números, como aluno e/ou como professor.
1 Memórias e reflexões: histórias
de ensino de Matemática
Unidade 3 : Memórias e reflexões: histórias de
ensino de Matemática

Objetivos

• Evidenciar a relevância das fontes autobiográficas para o conhecimento de experiências


e práticas de ensino e aprendizagem da Matemática que tiveram lugar no Brasil do
século XX, mediante a apresentação de fragmentos autobiográficos extraídos de
livros de seis autores brasileiros: Álvaro Moreyra, Felicidade Arroyo Nucci, Augusto
Meyer, Sylvia Orthof, Humberto de Campos e Nelson Werneck Sodré.

• Incluir o licenciando em Matemática como sujeito da história do ensino da Matemática


no Brasil por intermédio da escrita de suas próprias memórias, proposta a partir
da leitura dos fragmentos autobiográficos presentes nesta unidade e dos estudos
realizados nas unidades 1 e 2.

Introduç ão

Nesta unidade, vamos nos dedicar ao estudo de escritos autobiográficos como fonte para o
conhecimento da história do ensino da Matemática.
Os escritos autobiográficos mais comuns são os livros de memórias e autobiografias,
as correspondências e os diários. Trata-se daquilo que vem sido chamado de “escrita
autorreferencial” ou “escrita de si” pelos pesquisadores. De acordo com a historiadora
Angela de Castro Gomes71 , a escrita de si é um gênero que agrega um conjunto de práticas
culturais das sociedades ocidentais modernas, isto é, constituídas a partir do século XVIII,
ligadas à difusão da leitura e da escrita, e também à emergência do indivíduo moderno
nessas sociedades.
A escrita autobiográfica tem sido considerada, por diversos autores72, como fonte e objeto
importante para a pesquisa em História da Educação. Embora reconhecendo as dificuldades
de tal tarefa, pelo desafio de fixar os limites da escrita autobiográfica e elaborar uma
classificação dos escritos autorreferenciais válida para épocas e lugares distintos, o
pesquisador espanhol Antonio Viñao73 procura estabelecer uma categorização para esses
escritos. Alertando para o fato de que o que é considerado autobiografia, memórias, carta,

71 GOMES, A. C. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro. (org.). Escrita de si, escrita
da história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004, p.7-24.
72 Por exemplo: Gomes (2004), op. cit.; VIÑAO, Antonio. Las autobiografías, memorias y diarios como fuente histórico-
educativa: tipología y usos. Teias: Revista da Faculdade de Educação da UERJ, n.1. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação
– UERG, 2000. p.82-97; VIÑAO, Antonio. Relatos e relações autobiográficas de professores e mestres. In: MENEZES, Maria
Cristina Educação, memória, história: possibilidades, leituras. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 333-373; MIGNOT,
Ana Chrystina. Em busca do tempo vivido: autobiografias de professoras (2003). In: MIGNOT, Ana Chrystina; CUNHA,
Maria Teresa Santos (Orgs.). Práticas de memória docente. São Paulo: Cortez. p. 135-148.
73 Em seus trabalhos de 2000 e 2004 citados na nota de rodapé anterior.

Unidade 3 : Memórias e reflexões: histórias de ensino de M atemática 53


diário, livro ou caderno com anotações e recortes, etc. é algo que se modifica no espaço e
no tempo, muitas vezes não correspondendo a sua denominação formal, o autor enumera
alguns tipos de escritos autobiográficos: as autobiografias e memórias, as entrevistas
autobiográficas, os diários, os autorretratos.
As autobiografias e memórias em sentido estrito (confissões, recordações, testemunhos,
impressões etc.) são textos que narram vidas, independentemente de um caráter mais
ou menos pessoal, íntimo, profissional ou público. Já as entrevistas autobiográficas,
provenientes de depoimentos gravados ou taquigrafados, constituem uma modalidade
próxima ou precursora da metodologia da história oral74.
Os diários são uma sucessão de textos mais ou menos extensos, escritos com maior ou menor
frequência ou regularidade, ao longo de um período determinado. Entre os diários, há os
pessoais e os profissionais (para os professores, podem ser, por exemplo, os de preparação de
aulas; os diários de classe, de registro das atividades de sala de aula; os de prática, em forma
de memória do acontecido). O autorretrato é um texto breve, independente ou integrado a
outro mais amplo, circunscrito à descrição dos traços físicos e psicológicos de quem escreve.
Antonio Viñao considera ainda as agendas, a correspondência, os arquivos pessoais e as
folhas de méritos e serviços, que seriam uma espécie de curriculum vitae comentado.
As formas autobiográficas mais comumente evocadas, as autobiografias e memórias,
são, amiúde, distinguidas do seguinte modo: na autobiografia, o centro da atenção é o
eu que recorda e dá conta de sua vida e sua pessoa, ao passo que, nas memórias, o que
prepondera não é o eu que recorda e narra, mas sim o mundo exterior, os acontecimentos
e personagens que são recordados e dos quais se fala. Assim, as memórias tenderiam a ser
uma representação do mundo e a autobiografia uma representação do eu.
Contudo, como Viñao e outros autores indicam, essa distinção é de natureza mais teórica
e acadêmica do que conceitual, uma vez que o mais comum é a combinação, em um
mesmo texto, de ambos os aspectos, e o uso indiferente, nos títulos, de um ou outro dos
termos. Na verdade, é impossível à narrativa “restringir-se à focalização do eu que narra”,
pois este, “ao desencadear a retrospecção, olha não apenas para si e para outros eus que
com ele interagiram, e com os quais estabeleceu relações recíprocas, mas também para
um determinado contexto histórico-geográfico, que pode ser objeto de maior ou menor
atenção”75.

74 De modo bastante simplificado, pode-se dizer que a história oral é uma metodologia de pesquisa na qual se fazem
entrevistas gravadas com pessoas que falam de acontecimentos, instituições, suas próprias vidas ou quaisquer aspectos
da época em que viveram.
O uso dessa metodologia passou a ser feito na década de 1950, com a difusão do gravador, sobretudo nos Estados Unidos,
na Europa e no México. Cada vez mais ela é empregada, não apenas por historiadores, mas por antropólogos, cientistas
políticos, cientistas sociais, educadores, psicólogos, dentre outros. No Brasil, a metodologia foi introduzida na década de
1970, com a criação do Programa de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea
do Brasil – CPDOc –, vinculado à Fundação Getúlio Vargas. O movimento em torno da história oral cresceu cada vez mais
nos anos 1990, e em 1994, criou-se a Associação Brasileira de História Oral – ABHO. Conforme texto veiculado no site do
CPDOC: <www.cpdoc.fgv.br>, acesso em 27/01/2012.
No campo da Educação Matemática, um grupo brasileiro de pesquisa tem se destacado pelo uso dessa metodologia
em pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado. Trata-se do Grupo de Pesquisa História Oral e Educação
Matemática – GHOEM – , fundado em 2002. Informações sobre o grupo, seus pesquisadores e trabalhos podem ser
encontradas em seu site: <www.ghoem.com>.
75 Conforme MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: Editora da

54 história do ensino da matemática


Para o tema que nos interessa, a História do Ensino da Matemática, também pode ser
proveitoso trabalhar com textos autorreferenciais, uma vez que seus autores, frequentemente,
relatam experiências de escolarização nas quais os conhecimentos matemáticos participam
desde os primeiros estudos. Muitas vezes, ao narrar suas vidas, esses autores aludem às
diferentes práticas de organização da educação escolar no que se refere à Matemática, aos
procedimentos dos professores, às formas como conduzem o ensino, ao ambiente da sala
de aula. Esses textos permitem que tenhamos acesso a histórias de ensino de Matemática
de um modo diferente daqueles favorecidos pela leitura da legislação, das prescrições
curriculares, dos livros didáticos e de outros documentos dos arquivos escolares.
Escritos memorialísticos nos informam, particularmente, sobre representações acerca da
Matemática e seus professores construídas pelos alunos e reelaboradas no momento
em que eles se dedicam a escrever sobre suas lembranças. Também podem contribuir
para o conhecimento histórico do ensino da Matemática as narrativas de professores
que ensinaram essa disciplina. Já foram publicadas várias obras desse tipo, redigidas,
sobretudo, por docentes que ensinaram Matemática na escola primária brasileira, e que,
em geral depois que se aposentaram, procuraram relatar suas impressões sobre os alunos,
a organização e o funcionamento dos sistemas escolares, as inovações pedagógicas
propostas/impostas pelos órgãos gestores, as relações com colegas e profissionais da
administração escolar, entre outros temas, contribuindo indispensavelmente para que
possamos compreender os modos como esses docentes conduziram a complexa tarefa
educacional que assumiram.
Apresentamos, a seguir, fragmentos de escritos autobiográficos de seis autores brasileiros
– Álvaro Moreyra, Felicidade Arroyo Nucci, Augusto Meyer, Sylvia Orthof, Humberto de
Campos e Nelson Werneck Sodré –, nos quais estão registradas diversas histórias de ensino
de Matemática.

Álvaro Moreyra e suas lembranç as de um professor


de Matemática

Álvaro Moreyra nasceu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 23 de novembro de 1888,
e faleceu no Rio de Janeiro, em 12 de setembro de 1964. Foi jornalista, poeta, prosador,
autor de muitos livros e membro da Academia Brasileira de Letras. Seus estudos iniciais
foram feitos em Porto Alegre e os secundários num internato de padres jesuítas, o Colégio
N. S. da Conceição, de São Leopoldo, também no Rio Grande do Sul. O escritor começou o
curso de Direito em Porto Alegre e o concluiu no Rio de Janeiro, em 1912.
Álvaro Moreyra escreveu um livro de memórias intitulado “As amargas, não... (Lembranças)”,
que foi publicado pela Editora Lux, no Rio de Janeiro, em 1954. Essa obra é composta por
parágrafos de tamanho variado, que perfazem 327 páginas. Ao que parece, o autor escreveu
esses textos durante muitos anos de sua vida, reunindo-os depois nesse livro. Essa ideia nos
é sugerida pelo seguinte trecho:

Universidade de São Paulo; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992.

Unidade 3 : Memórias e reflexões: histórias de ensino de M atemática 55


Por muitos, muitos anos, escrevi, todas as noites, os sentimentos das horas passadas junto
dos semelhantes. Escrevia e esquecia. Continuava a escrever. As horas boas e as horas que,
a mim, não tinham parecido boas. Quando abri a gaveta, na manhã mais sozinha da vida, e
comecei a ler aquelas folhas soltas, onde ficou guardado um tempo longo, não quis conservar
as recordações aflitas. As coisas ruins acontecem, eu sei, mas devem ser, depois, como se não
acontecessem. Da morada na Terra, só desejo lembrar, e contar, o que foi de entendimento,
de doçura, de bem querer76.
Na passagem abaixo, extraída do livro de Moreyra, o autor se refere a seu professor de
Matemática no internato jesuíta de São Leopoldo (pp.23-24):
Às vezes, quando me acho pequeno (isto em geral acontece no verão) penso naquilo: “Quem
tem praga na cabeça, roga a Deus que nunca cresça”. A praga deve ter crescido. Recebi-a
da boca do professor de matemática, que também lecionava história natural, matérias em
cujos exames, por especial indulgência, fui aprovado com grau 1. Chamava-se Rick. Era
apavorante: muito comprido, muito magro, muito feio, e sabia tudo. Na galeria do pátio, os
mestres, alemães e amáveis, se despediam dos alunos. A cada um dos que haviam terminado
o curso, murmuravam palavras sem consequências, reproduziam votos de venturas e triunfos.
A mim, orador da turma, o poeta do colégio, ator aplaudidíssimo nos espetáculos das festas
do Reitor, de São Luiz Gonzaga, do fim do ano, iam profetizando, à medida que me abraçavam,
futuros maravilhosos. Cheguei ao padre Rick, o último, na porta quase. Ele derramou as mãos
cabeludas em cima dos meus ombros, fincou os olhos gelados nos meus olhos, perguntou:
Endon, Morrera, que vai fazer agôrra? – Respondi, tremendo, que pretendia estudar Direito.
– Dirreito! – Abriu-se de alto a baixo, numa terrível gargalhada. E com a recordação de que
eu nada tinha sido nas aulas dele, concluiu: - Vai, Morrêra, vai! Nunca serrá nada na vida! –
Vim. Somei idade. Não entendi mais da vida do que entendi das matemáticas. Continuei a
preferir as histórias artificiais às outras histórias. Nosso Senhor já chamou o padre Rick para
classificar as plantas dos jardins suspensos do Paraíso e ensinar geometria no espaço. Eu
fiquei. Fiquei com aquela praga, que foi só o que aprendi com ele...77

Felicidade Arroyo Nucci e o ensino da tabuada na


escola primária

Felicidade Arroyo Nucci nasceu em 1914, em uma fazenda do interior de São Paulo. Ingressou
no colégio interno de Jaboticabal (SP), dirigido por freiras de nacionalidade belga, no 4º ano
primário, e concluiu o curso de normalista na Escola Normal Livre do mesmo colégio em
1932. Começou a atuar como professora no estado de São Paulo em 1933, em Itajobi, onde
ficou até 1939, quando se removeu para Araraquara e lá esteve até 1950. Nesse ano, foi
transferida para um Grupo Escolar em Guarulhos e, em 1952, para outro Grupo Escolar em
Vila Carrão. De 1954 a 1963, atuou como auxiliar de direção e, em 1963, tornou-se diretora
do Grupo Escolar na Delegacia de Ensino de Jales, aposentando-se logo em seguida, em
1964, sem deixar de escrever para jornais e revistas (de bairro, religiosos e de colégios).

76 MOREYRA, A. As Amargas, não... (Lembranças). 2. ed. Rio de Janeiro: Lux, 1955. p.305.
77 MOREYRA, op. cit., p. 23-24.

56 história do ensino da matemática


Em 1985, publicou o livro “Memórias de uma mestra-escola”, em edição particular impressa
nas Oficinas da Sociedade Impressora Pannartz Ltda, da cidade de São Paulo.
Apresentamos, a seguir, uma parte do relato da experiência de Felicidade como professora
primária na qual a autora escreve sobre o ensino da tabuada:
No bairro onde eu lecionava, os pais saíam cedo para o trabalho nas fábricas e as crianças
ficavam sozinhas para olhar os irmãos menores, aquecer o almoço e cuidar da casa: não
tinham tempo de estudar. A esses, bem como aos outros eu ensinava o método de ensinar a
tabuada ou aprender os acidentes geográficos de um modo mais interessante.
[...]
E sobre a tabuada?Era um bicho de sete cabeças a decoração da tabuada: era uma aula
monótona, insípida, da qual o aluno não tinha nenhum interesse e daí a dificuldade em decorá-
la. Comecei a usar de vários recursos os quais auxiliavam a memorização e tornavam a aula
menos massante78. Primeiro eu lhes ensinei que todas as tabuadas pares eram constituídas
de números igualmente pares, as tabuadas ímpares começavam com número ímpar, seguido
de número par e assim ímpar, par, ímpar, par... até o primeiro número ser multiplicado por
dez. Para as classes de 1º ano eu dizia infantilmente: o último número é o primeiro chutando
uma bolinha...
Depois eu os mandava observar que nas tabuadas pares, o final do 1º número era igual ao 6º,
o segundo igual ao sétimo; o terceiro igual ao oitavo, e assim por diante.
Ex:
2X1=2 2 X 6 = 12
2 X 2 = 4 2 X 7 = 14
2 X 3 = 6 2 X 8 = 16
2 X 4 = 8 2 X 9 = 18
2 X 5 =10 2 X 10 = 20
Então do primeiro ao quinto: 2, 4, 6, 8, 0 é o final do sexto ao décimo: e assim é o mesmo em
todas as tabuadas pares.
Na tabuada do nove os algarismos da esquerda são em ordem crescente: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7,
8, 9 e o algarismo da direita, em ordem decrescente: 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0. Somando-se os
dois algarismos, dá sempre nove, assim: 0 + 9 = 9; 1 + 8 = 9; 2 + 7 = 9; ... e os algarismos são
invertidos, assim: 09 = 90; 18 = 81; 27 = 72; 36 = 63; 45 = 54,... E de fato torna-se mais fácil a
decoração da tabuada usando esses segredinhos”, sim, era esta a palavra que eu empregava.
Esta curiosidade atraía sempre a atenção dos alunos que gostavam de demonstrar aos
familiares estes “segredinhos”.
Alguns me diziam: “Meu irmão está na faculdade e desconhecia estas curiosidades; eu lhe
ensinei tudo, professora.” Diziam isto com orgulho estampado no rosto79.

78 Embora a grafia correta da palavra seja “maçante”, optamos, aqui, por reproduzir a forma como ela está escrita no livro de
Felicidade Nucci.
79 NUCCI, F. A. Memórias de uma mestra escola. São Paulo: Ed. da Autora, 1985, p. 81-83.

Unidade 3 : Memórias e reflexões: histórias de ensino de M atemática 57


Augusto Meyer e suas dificuldades com a Matemática

ugusto Meyer nasceu em Porto Alegre, em 24 de janeiro de 1902, e faleceu em 10 de julho


de 1970, no Rio de Janeiro. Foi poeta, jornalista, ensaísta, folclorista e membro da Academia
Brasileira de Letras – ABL.
Seus primeiros estudos foram realizados no colégio Bom Conselho, em Porto Alegre, em
que atuavam freiras. Em seguida, o autor ingressou no Ginásio Anchieta, também em Porto
Alegre, onde frequentou três anos de curso preliminar e depois o ginásio. No preliminar,
teve irmãos maristas como professores, enquanto que os docentes do curso ginasial eram
padres jesuítas. De acordo com sua biografia no site da Academia Brasileira de Letras80,
Augusto Meyer deixou os estudos regulares para se dedicar às línguas e à literatura. Isso
indica que sua escolaridade máxima deve ser a dos estudos secundários.
Em 1947, publicou a primeira edição de seu livro de memórias, denominado “Segredos da
infância”. O livro teve uma segunda edição pelas Edições O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, em
1966. Na página 64, o autor faz a seguinte reflexão sobre sua rememoração:
O tempo e a memória dos homens impregnam quase sempre as coisas de uma névoa de
passado e evocação que se transfigura com não sei que toques de magia. Torna-se transparente
qualquer paisagem, aos olhos de quem recorda ou tenta reconstituir os seus aspectos
anteriores, e uma cidade, uma rua, começam a desandar para as suas feições primitivas, a
desmanchar-se, recompondo-se noutra ordem de planos, quando se projeta no seu passado
a luz da fantasia evocativa.
Em alguns trechos, Augusto Meyer escreve sobre suas experiências em relação à Matemática
na escola. No fragmento que escolhemos, chamando a si mesmo de Tico, o autor diz:
Criado o automatismo da leitura, como se aprende a caminhar depois de muita queda,
dificilmente conseguimos reproduzir por meio da evocação o nosso esforço durante aquela
fase inicial, ao ensaiarmos os primeiros passos no mundo da palavra escrita. Se é verdade
que às vezes no próprio obstáculo já existe um princípio de incitação, na maioria dos casos
predomina o perigo de uma repulsa ou de um choque humilhante, quando a criança tropeça
em dificuldades muito sérias, para compreender e assimilar.
No caso do Tico, foi a dura experiência dos números que o trouxe acovardado diante das
quatro operações. Somar, subtrair, multiplicar, dividir, tudo isso era rima que não rimava com
ele, custou-lhe um esforço doloroso, deixando arranhões na pele sensível do amor-próprio.
Ainda mais tarde, no ginásio, a aula de aritmética sempre lhe pareceu aborrecida, e mal
podia compreender o gosto de certos colegas por aqueles momentos de aridez; os cadernos
quadriculados, que usavam então, pareciam-lhe as grades de um cárcere81 .

80 O endereço do site da ABL é <www.academia.org.br>.


81 MEYER, A. Segredos da infância. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966. p.53.

58 história do ensino da matemática


Sylvia Orthof e sua professora de Matemática no
giná sio

Sylvia Orthof nasceu no Rio de Janeiro, em 3 de setembro de 1932, e faleceu em 24 de julho


de 1997. Era filha única de um casal de judeus austríacos que fugiram para o Brasil entre
as duas guerras mundiais. Foi escritora de literatura infantil e juvenil, atriz, pesquisadora,
professora e diretora de teatro. Publicou o seu primeiro livro infantil em 1981 e escreveu
cerca de 120 títulos para crianças e jovens, entre contos, peças teatrais e poesias. Ganhou
diversos prêmios de teatro, jornalismo e literatura infantil. Teve formação profissional em
cursos de mímica, desenho, pintura, arte dramática e teatro.
Em 1987, Sylvia Orthof publicou seu livro de memórias, intitulado “Se a memória não me
falha”. A autora reflete sobre o processo de recordar para escrever acerca de suas lembranças:
Pensei que escrever acontecesse assim: a gente ia lembrando, lembrando e escrevendo, em
sequência certa de tempo. Mas não é: a memória é um dos grandes mistérios.
Sou capaz de lembrar de poesias de Fernando Pessoa, recitar trechos de Romeu e Julieta, mais
ou menos de cor. (Não, credo, não costumo recitar, ninguém precisa ficar receoso!) No entanto,
sou exímia para esquecer, em momentos críticos, como por exemplo em lançamentos de
livros, desses em que o pobre do escritor fica sentado e os pobres dos amigos são convidados
pela pobre da editora para virem prestigiar o evento... uf! Aí vai me dando um nervoso! Fico
achando que o livro é uma droga afinal, coitados de todos nós, livreiros, inclusive! Esqueço
dos nomes mais íntimos. Esqueço também, em hora de apresentações. Esqueço, de tanto
medo de esquecer82.
Sylvia fez muitos registros sobre sua escola, o Colégio Rezende, no Rio de Janeiro, e,
particularmente, sobre a professora de Matemática que teve lá. À página 39, a autora
descreve brevemente a escola:
Nosso colégio ficava na Rua Bambina e se chamava Colégio Rezende. Estive em outros
colégios, antes... mas o Rezende foi o nosso-meu-colégio. Quando penso em escola, penso
nele.
Até hoje existem quatro palmeiras, muito lindas e eretas, ali, na Rua Bambina. O colégio, há
pouco tempo foi demolido.
Era um casarão branco, de janelas azuis. A diretora chamava-se Dona Marieta. Dona Marieta
tinha duas irmãs, também professoras: Dona Sylvia (professora de matemática) e Dona Lucília
(de inglês).
Mais adiante, na página 51, Sylvia fala de seus professores e especialmente de Dona Sylvia.
Eu sempre gostei de professores. Acontece somente que os professores, alguns, não sei por
quê, é que implicavam comigo. Fui uma vítima indefesa, ora, e se não fui, sempre achei que
era. De alguns, certamente.
Em matéria de matemática, sempre fui “português”. Quer dizer: essa coisa abstrata de
símbolos que viravam teoremas, letras, x, e frações para mim eram um verdadeiro suplício.

82 ORTHOF, S. Se a memória não me falha. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p. 101-102.

Unidade 3 : Memórias e reflexões: histórias de ensino de M atemática 59


Minha professora de matemática, só para me chatear, tinha que se chamar Sylvia, também.
Era irmã da diretora da escola. Sem dúvida, a de aspecto mais severo. Enquanto Dona Marieta
pintava os cabelos de castanho e Dona Lucília pintava as faces de cor de laranja, no mesmo tom
dos cabelos, Dona Sylvia Prosseguindo, a autora relata práticas da professora de Matemática.
Como é que Dona Lucília poderia ter boa pronúncia se era ruim de ouvido, né?
era grisalha. Daquele digno grisalho, imponente, apesar de baixinha.
Dona Sylvia, a irmã, ouvia perfeitamente, para o meu sofrimento. Era esperta, inteligente e
irônica. No fundo, divertia-se com a gente, fazendo o contrário daquilo que fazíamos com sua
cândida irmã. Vingava a família, com classe. Engraçado: nunca cheguei a não gostar de Dona
Sylvia, quando ela estava presente. Ela era dona de um certo humor que me fascinava. Agora,
quando ela estava longe, ausente, cheguei a fazer bruxarias para ver se ela ficava doente em
dia de prova, ou coisa assim. Mas Dona Sylvia tinha uma saúde de teorema de Tales, mais uma
resistência de Pitágoras... mesmo que Pitágoras não tivesse resistência física, sei lá se teve,
seus teoremas estão aí, atormentando, até hoje. Os matemáticos que me perdoem, sei que
sou ingrata, mas a gente não é feita só de qualidades, e é isso aí.
Dona Sylvia não adoecia. Tinha a mania odiosa de, no meio da aula, de repente, me descobrir,
sumida, lá na última carteira... e dizer, com voz meio cantada:
Minha xará... ao quadro! (Eu sentava na última carteira, na aula de matemática.)
Lá ia eu, tremendo. E começava o desespero: se um trem a tantos quilômetros vai de A a B, e
outro, com a velocidade de xyz, trafega de B a A, em qual ponto da reta eles se encontrarão?
Eu era mais “português” do que “matemática” e já ficava, de olhos no teto, imaginando
como seriam os trens, se eram da Central, ou da Leopoldina, e se na hora do acidente, quem
sabe, por força do cruel destino... ou por causa das minhas preces, na hora do encontro... ou
acidente, quem sabe, Dona Sylvia não estaria atravessando a linha e... coitada, morreu tão
moça, ainda grisalha, nem tinha ficado de cabeça totalmente branca, nem nada...
Minha maior nota em matemática foi sete, num dia em que colei bastante. Éramos especialistas
em cola. Naturalmente, colar, em matemática, não é tão fácil, porque o raio da reta A-B
sempre mudava de tamanho, e os trens (que trens sem horário certo!) sempre saíam em horas
e velocidades diferentes. Mas consegui colar, copiei tudo de minha colega Yolanda Vargas.
Pois é, tive duas colegas de sobrenomes inimigos: Yolanda Vargas e Lígia Lacerda. Só que
o Vargas da Yolanda nada tinha a ver com Getúlio, de modo que nunca existiu problema83.

Humberto de C ampos e as pr áticas com a Matemática


na escola do final do século XIX

Humberto de Campos nasceu no Maranhão, na cidade de Miritiba (atualmente denominada


Humberto de Campos), em 25 de outubro de 1886, e morreu no Rio de Janeiro, em 5 de
dezembro de 1934. Foi jornalista, crítico, contista e memorialista. Elegeu-se membro da
Academia Brasileira de Letras em 30 de outubro de 1919, tendo sido o terceiro ocupante da
cadeira de número 20. Foi também deputado federal eleito pelo Maranhão em 1920.

83 ORTHOF, op. cit, p. 51-54.

60 história do ensino da matemática


Humberto de Campos frequentou diferentes escolas durante curtos e descontínuos períodos
de sua vida, e não obteve certificados referentes aos estudos primários ou secundários.
Muitas dessas experiências escolares do autor são narradas no primeiro volume de suas
memórias, publicado originalmente em 1933. Esse livro intitulado “Memórias: Primeira
Parte – 1886-1900” focaliza a infância e o início da adolescência do autor no Maranhão.
Órfão de pai aos seis anos, o autor teve seu aprendizado das primeiras letras em parte
conduzido por sua mãe. Entretanto, frequentou, também, pequenas escolas do interior do
Maranhão, como a de Dona Marocas Lima, em que ingressou com nove anos, e sobre a qual
escreveu:
A escola em que minha mãe me ia matricular, era, ainda desta vez, dirigida por uma mulher
e destinada a meninas, mas admitia, também, embora em número reduzido, alunos do outro
sexo. Ficava à rua Duque de Caxias, em uma casa pequena, de calçada alta, com uma porta
e duas janelas de frente. A sala, que abria diretamente para a rua por essa porta e por essas
duas janelas, era consagrada à escola. Em frente à porta, encostada à parede, em uma fila
única, as doze ou quatorze cadeiras dos meninos. Do lado oposto, em filas sucessivas, as
meninas. Entre uns e outros, de frente para a rua, a mesa de Dona Marocas Lima, nossa mestra.
Dona Marocas Lima, ou melhor, mestra Marocas, era uma senhora de pequena estatura,
morena, magra, de cabelos lisos e negros, e de uma palidez terrosa e doentia. Tinha uma
tosse miúda e seca, e diziam-na doente do peito há mais de vinte anos. Casada com um
homenzarrão forte e alegre, não se metia muito, parece, com os negócios dele, nem ele lhe
admirava, como devia, o espírito e a atividade84.
No fragmento a seguir85, Humberto de Campos narra práticas que vivenciou nessa escola
em relação à matemática.
Os sábados eram, na escola, dias chamados de “argumento”. De pé, em semicírculo, os alunos
da mesma classe, a mestra sentava-se na sua cadeira, de frente para eles. E começava a
inquirição, ou “argumento” da tabuada:
— Oito vezes quatro?
O aluno tinha que responder prontamente, sem refletir nem pestanejar:
— Trinta e dois.
— Noves fora?
— Cinco; porque três e dois são cinco.
Aproveitando essa resposta, e o algarismo final, a professora saltava a inquirir um aluno da
outra extremidade:
— Vezes cinco?
— Adiante... adiante.... adiante... _ dizia, mudando de alvo, à medida que o aluno titubeava.
— Vinte e cinco.
— Noves fora?
— Sete!

84 CAMPOS, H. Memórias: Primeira Parte 1886-1900. Rio de Janeiro: W. M. Jackson INC. Editores, 1951, pp. 204-205.
85 CAMPOS, op. cit., p. 213-215.

Unidade 3 : Memórias e reflexões: histórias de ensino de M atemática 61


— Bolo! – ordenava Dona Marocas.
O aluno vitorioso tomava a palmatória, que se achava sobre a mesa, e corria a roda, castigando
com um bolo, ora forte, ora mais suave, conforme a simpatia que os ligava ou a antipatia
mútua, os companheiros que não haviam respondido, ou tinham respondido errado.
Resolvido a compensar pelo esforço a injustiça da Natureza, eu me tornei, em breve, um
elemento respeitável na tabuada. E era com verdadeira delícia que, aos sábados, no
“argumento”, segurava com a minha mão curta e grossa de plebeu, os dedos finos de mocinhas
de quatorze ou quinze anos, a fim de lhes aplicar na palma um bolo estalado e seguro, - dos
que nós chamávamos “de pé atrás”, - que às vezes as fazia chorar. E isso as tornava cada
vez mais prevenidas contra mim e as levava a festejar com grande alegria, e não raro com
algazarra, cada desastre que me ocorria.
Na continuidade da narrativa, Humberto de Campos escreveu:
A gargalhada foi geral. As meninas riam. Riam os rapazes. [...] Eu fiquei vermelho, congestionado,
e com a cara de quem ia cometer um crime. Previ o lançamento de um apelido. Mas os meus
companheiros não insistiram. Eu tinha, garantindo-me contra os apelidos e contra qualquer
tentativa de ridículo, boa memória para a tabuada, e mão pesada, para o bolo.
A escola de Dona Marocas Lima utilizava, ainda, como a totalidade dos estabelecimentos de
ensino primário do seu tempo, castigos físicos severos e humilhantes. O mais vulgar consistia
em passar a tarde de joelhos. Mas havia uma coleção de capacetes de papelão com os dísticos
vadio, burro, malcriado, e outros, que eram colocados à cabeça do aluno, pondo-o, em seguida,
de pé, com o livro aberto, à porta da rua. Os transeuntes olhavam e sorriam. O aluno, porém,
fazia-lhes uma careta, e ficava por isso.
Não tenho ideia de ter ficado, jamais, de castigo, exibindo qualquer desses capacetes. Mas é
possível que se trate, apenas, de uma modéstia da minha memória86...

Nelson Werneck Sodré e a Matemática ensinada na


formaç ão militar

Nelson Werneck Sodré nasceu no Rio de Janeiro em 27 de abril de 1911 e faleceu na cidade
paulista de Itu em 13 de janeiro de 1999. Foi militar, jornalista e historiador. Realizou
estudos primários em escolas públicas e internatos, estudos secundários no Colégio Militar
do Rio de Janeiro e estudos superiores na Escola Militar do Realengo, também no Rio de
Janeiro. Pertenceu ao Exército Brasileiro até 1962, quando passou para a reserva no posto
de general. Dedicou-se, a partir de então, somente à atividade intelectual, tendo sido
professor do Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB.
Em 1964, teve seus direitos políticos cassados por dez anos pelo regime militar que depôs o
presidente João Goulart. Esse regime, que o colocou na prisão, no Rio de Janeiro, durante 57
dias, tirou-lhe o direito de ensinar. Sodré passou a ter como atividade o estudo e a produção
de livros. Escreveu 58 livros e sua última obra foi publicada em 199587.

86 CAMPOS, op. cit., p. 217-218.


87 Informações sobre o autor no site: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/nelson_werneck_sodre>.
Acesso em 20 de novembro de 2011.

62 história do ensino da matemática


Entre os livros de Nelson Werneck Sodré, estão as “Memórias de um soldado”, publicadas em
1967. Nessa obra, o autor relata detalhadamente suas lembranças dos tempos de estudante
interno no Colégio Militar do Rio de Janeiro e na Escola Militar do Realengo. Seu ingresso,
por concurso, no Colégio Militar, deu-se no ano de 1924.
Na passagem a seguir, Sodré caracteriza o regime militar dessa escola.
Porque o Colégio Militar não honrava o nome apenas pela forma das edificações: o seu
regime era integralmente militar. A administração era constituída por oficiais da ativa – só o
general-comandante era às vezes da reserva: comandante, fiscal, capitão-ajudante, tenente-
ajudante, instrutores. Os alunos eram grupados em Companhias, comandadas por capitães
da reserva. Austero o regime, severíssimo. Os professores eram militares da reserva ou civis
que tinham honras militares e ministravam as aulas fardados. Como num quartel, havia
vestiário, onde mudavam os trajes civis, antes de ganhar as salas de aula. Os trabalhos eram
marcados por toques de corneta e por campainhas; tudo se processava em ordem absoluta e
em silêncio. Enquadrados pela instrução militar, desde os primeiros dias, os alunos portavam-
se como soldados, e faziam por isso: compunham um batalhão de infantaria e um esquadrão
de cavalaria, participando, como até hoje, das formaturas, da tropa, no 7 de setembro88.
Prosseguindo, o autor se refere à rigorosa disciplina do colégio:
O rigor da disciplina, no meu tempo, era impressionante. [...].
As sanções iam da simples repreensão à prisão por um ou vários dias; excepcionalmente,
havia suspensões, e o aluno ficava proibido de frequentar o Colégio por determinado número
de dias; raras eram as expulsões. A severidade cotidiana evitava sanções mais pesadas. A
vigilância não se resumia ao recinto do Colégio; prolongava-se nas ruas, nos cinemas, nas
festas. As faltas externas mais comuns eram relacionadas com o uso dos uniformes. O
uniforme cáqui só era permitido para circulação de casa para o Colégio e do Colégio para
casa, e limitado aos bairros; para circular na cidade, era obrigatório o uso do uniforme garance,
túnica azul e calça vermelha; a transgressão dessa norma importava em falta grave. Outra
falta grave era fumar, dentro ou fora do Colégio89.
Nelson Werneck Sodré também nos conta sobre o ensino em sua escola:
O Colégio Militar gozava de fama não apenas pela sua disciplina, mas também pela qualidade
do ensino ali ministrado. Quanto à disciplina, a fama era justa, deixando de lado a sua análise
qualitativa. Quanto ao ensino, nem tanto. Talvez o conceito fosse relativo; provavelmente
o seria, como todos os conceitos. Não conheci outros colégios da época, para avaliar, e por
isso não estou em condições de julgar senão o caso isolado daquele que frequentei. Os dois
primeiros anos eram como que introdutórios; no terceiro, começavam os exames finais das
diversas disciplinas; os alunos que, nos dois primeiros anos, alcançassem média superior a
cinco nos trabalhos mensais ficavam dispensados dos exames; a partir do terceiro ano, os
exames eram obrigatórios e encerravam os estudos de cada matéria. Era o regime chamado
dos preparatórios, corrente no país, ao tempo: o ensino médio, o curso secundário, consistia
em provar, em exames prestados perante bancas oficiais, o conhecimento de dez ou doze
disciplinas, tidas como preparatórias para o ensino superior.

88 SODRÉ, N. W. Memórias de um soldado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 6.


89 SODRÉ, op. cit., p. 7.

Unidade 3 : Memórias e reflexões: histórias de ensino de M atemática 63


No Colégio Militar, subordinado ao Ministério da Guerra – e naquele tempo não havia ainda
o Ministério de Educação e Cultura – as bancas oficiais eram constituídas pelos seus próprios
professores. Nos outros colégios, essas bancas vinham de fora. O estabelecimento padrão era
o Colégio Pedro II, perante cujas bancas, em inscrição avulsa, podiam prestar exame aqueles
que o desejassem. No primeiro e segundo ano do Colégio Militar, estudávamos Aritmética,
Português, Geografia, e, creio Francês90.
Em relação à Matemática, ingrediente fundamental da educação militar, Sodré faz reflexões
específicas, relacionando o seu ensino ao das demais disciplinas.
Foi, pois, no terceiro ano que travamos conhecimento com a História. Normalmente a formação
militar, no Brasil, punha em destaque a matemática sobre tudo o mais; matérias como as de
ciências naturais e a História eram tidas como secundárias. O esforço do curso do Colégio era,
portanto, na matemática. Aritmética, particularmente a teórica, Álgebra, Geometria, eram
matérias básicas, longamente estudadas. A Física limitava-se a informações experimentais; a
História Natural era meramente descritiva; dela, estranhamente, não constava a reprodução
nos animais e, particularmente, no homem, embora compreendesse a reprodução dos vegetais.
No Desenho, Teixeira da Rocha, monarquista apaixonado, só tratava do artístico, para o qual
éramos impreparados; Sussekind, oficial de Marinha, só tratava do geométrico, muito útil aos
que, na Escola Militar, iriam defrontar-se com a Geometria Descritiva; perspectiva e sombra,
para o pintor que era Teixeira da Rocha, parecia uma coisa; para Sussekind, outra coisa; não
podíamos compreender que se tratava da mesma coisa.
Nessa tendência, era natural que a História ficasse subestimada. E não é que as matérias
ligadas à matemática fossem, realmente, bem entendidas e ministradas, apesar dos
cuidados especiais que mereciam, consideradas que eram fundamentais. Em que pese
a atenção dispensada à parte teórica, dedicada não apenas a solucionar problemas mais
a deduzir fórmulas – a análise matemática que pode, sem dúvida, ter papel relevante no
desenvolvimento do raciocínio, era esquecida, reduzida a uma compreensão estreita, sem
fôlego para as abstrações, as generalizações. De todo o curso de matemática, no Colégio
Militar, restou-me na memória, uma definição, a de Álgebra, proporcionada por Agrícola
Bethlen, professor hábil, maneiroso, inteligente, excepcional para o meio, distinguindo-se
facilmente no conjunto da congregação medíocre: ‘Álgebra é a parte da matemática que
generaliza as questões propostas sobre números’.
É curioso como, de longos anos de aprendizagem, tão pouca coisa permaneça em nossa
lembrança. Esquecemos tudo o que não usamos, e felizmente; é imenso o acervo do que
nos ensinam e esquecemos, por desnecessário. Claro que, no ensino básico, o de formação, o
importante não está na massa de conhecimentos, transmitida, está no hábito de raciocinar.
Em matemática, a finalidade estaria, desse modo, em aprender a fazer análise e não a fazer
contas, a resolver problemas. E tem sido por isso, acredito, que o ensino militar, em suas
diversas escolas, não forneceu ao país o número de matemáticos capazes de avançar nos
campos superiores, científicos, hoje abertos e necessários, apesar do destaque que confere à
matemática em seus cursos91 .

90 SODRÉ, op. cit., p.15.


91 SODRÉ, op. cit., p.22-24.

64 história do ensino da matemática


Breves reflexões sobre o ensino da Matemática nas
memórias de seis brasileiros

Apresentamos, aqui, fragmentos das lembranças de seis brasileiros registrados em seus


livros de memórias. Quatro homens e duas mulheres, dois gaúchos, dois cariocas, uma
paulista, um maranhense, ao rememorarem suas vidas, se preocuparam em inserir em seus
escritos referências a suas experiências com a Matemática. Essas experiências, como o
leitor certamente percebeu, são muito diversas.
Um dos autores, Nelson Werneck Sodré, fala do ensino da Matemática no âmbito militar e
critica o enfoque desse ensino. Outro autor, Álvaro Moreyra, que mostra, no próprio título de
seu livro, sua intenção de rejeitar as lembranças amargas, tece recordações desagradáveis,
mas tratadas com o amadurecimento trazido pelo tempo, de um padre que foi seu professor
de Matemática. A escritora Sylvia Orthof focaliza, de modo bem humorado, suas relações
com sua professora de Matemática, representando-a com graça. Humberto de Campos, num
misto de tristeza e humor, aborda o ensino da Matemática nas antigas escolas de primeiras
letras, em que se insistia no domínio da tabuada e se usava a palmatória para os próprios
alunos castigarem os que erravam, além de castigos de natureza moral. Augusto Meyer
retrata a sensação de desamparo que o atingia, desde a infância, nas práticas escolares com
os números. Felicidade Nucci, antiga professora primária, tem prazer em se recordar que,
para auxiliar os estudantes a memorizar a tabuada, para tornar a aula menos aborrecida,
lhes chamava a atenção para algumas regularidades nas tabelas de multiplicação – o que
ela denomina “segredinhos”.
Todos eles, ainda que sejam diversos os tempos e contextos, os estilos, as vidas, se
apropriam das formas de experiência com a Matemática na escola para produzir registros
que precisamos compreender como processos de recordação e elaboração de lembranças
significativas para esses sujeitos. Essas reminiscências, embora carreguem marcas da
individualidade de cada autor, estão relacionadas aos seus grupos de pertencimento
sociocultural, grupos esses aos quais deve ser creditada participação de grande relevância
na elaboração das memórias.
Tempos vividos no pretérito, recordados no momento em que os autores traçam memórias
escritas, nos quais se inscrevem experiências e práticas com a Matemática da escola,
contribuem, desde que interpretados à luz de outros conhecimentos, para que possamos
entender melhor as práticas e as representações mais antigas e também as da atualidade.
Nas palavras de Denice Catani e Paula Vicentini, que dizem respeito não somente às
memórias, mas também à literatura em geral:
Ao reconstruírem de modo romanceado ou ao criarem ficções, os escritores, a propósito
das experiências escolares, tendem a descrever estados, sentimentos e relações que
impregnaram sua vida escolar. Tais descrições são ricas pelo que acrescentam ao já sabido
sobre a escola, e o que acrescentam é justamente o sentido que as experiências ganham.
Sentidos esses que se apresentam como mesclas de tempos vividos, rememorados e
narrados, dando conta de mostrarem em vida dupla: o que a história e a formação fazem
aos sujeitos e aquilo em que os sujeitos transformam a ação exercida sobre eles. De algum

Unidade 3 : Memórias e reflexões: histórias de ensino de M atemática 65


modo, pode-se dizer que, nesse processo de dotar de sentido o que se vive, a reconstrução
autobiográfica assume o lugar de uma inflexão temporal e social92.
As lembranças escritas sobre o papel representado pela Matemática escolar e por seus
professores, na formação dos autores aqui mostrados em fragmentos de textos, evidenciam
eloquentemente a inexistência de uma única história de ensino da Matemática no Brasil.
Elas reforçam, em sentido oposto, que importa levar em consideração as muitas histórias
de ensino de Matemática construídas por estudantes e professores.

Referências

CAMPOS, H. Memórias: Primeira Parte 1886-1900. Rio de Janeiro: W. M. Jackson INC. Editores, 1951.
CATANI, D. B.; VICENTINI, P. P. Uma história das práticas de ensino da leitura e da escrita na produção
autobiográfica de professores e alunos no Brasil (1870-1970). Educação. v.34, n. 2. Porto Alegre: 2011, p.207-
212 (p. 209).
GOMES, A. C. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro. (org.). Escrita
de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004. p.7-24.
MEYER, A. Segredos da infância. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966.
MIGNOT, A. C. Em busca do tempo vivido: autobiografias de professoras (2003). In: MIGNOT, A. C.; CUNHA, M.
T. S. (Orgs.). Práticas de memória docente. São Paulo: Cortez. p. 135-148.
MIRANDA, W. M. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992.
MOREYRA, A. As Amargas, não... (Lembranças). 2. ed. Rio de Janeiro: Lux, 1955.
NUCCI, F. A. Memórias de uma mestra escola. São Paulo: Ed. da Autora, 1985.
ORTHOF, S. Se a memória não me falha. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
SODRÉ, N. W. Memórias de um soldado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
VIÑAO, A. Las autobiografías, memorias y diarios como fuente histórico-educativa: tipología y usos. Teias: Revista
da Faculdade de Educação da UERJ, n.1. Rio de Janeiro: UERJ-Faculdade de Educação, 2000. p.82-97.
VIÑAO, A. Relatos e relações autobiográficas de professores e mestres. In: MENEZES, M. C. Educação, memória,
história: possibilidades, leituras. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 333-373.

92 CATANI, D. B.; VICENTINI, P. P. Uma história das práticas de ensino da leitura e da escrita na produção autobiográfica de
professores e alunos no Brasil (1870-1970). Educação. v.34, n. 2, Porto Alegre: 2011, p.207-212 (p. 209).

66 história do ensino da matemática


Atividades referentes à Unidade 3

Atividade 1
Escolha dois entre os seis fragmentos autobiográficos apresentados no texto da Unidade 3
que mais tenham lhe chamado a atenção na primeira leitura que você fez. Releia esses dois
trechos e escreva um texto de no mínimo uma página e no máximo três páginas (Times New
Roman, tamanho da fonte 12, espaçamento entre linhas 1,5) sobre eles.
Em seu trabalho, procure relatar a sua interpretação do que dizem esses dois autores sobre
suas experiências com a Matemática e aponte os componentes de seus escritos que mais se
destacaram na leitura que você fez, comentando os motivos para esse destaque.

Atividade 2
Procure rememorar suas experiências de vida, dando especial atenção às suas vivências
escolares e, nelas, àquelas vinculadas ao ensino e à aprendizagem de Matemática.
Em seguida, produza um texto que narre sua própria história de ensino de Matemática,
desde os primeiros anos escolares até o curso de licenciatura em Matemática da UFMG.
Para orientá-lo (a) na escrita das suas memórias, apresentamos, a seguir, uma lista de tópicos.
O que se pretende, com essa lista, não é que você redija respostas isoladas associadas a
cada tópico ou a alguns deles, mas que componha o seu texto procurando contemplar esses
tópicos integradamente.
Ao recordar sua vida quanto aos temas presentes na lista, procure estabelecer relações
entre suas experiências no que se refere ao ensino e aprendizagem da Matemática e o que
você estudou na disciplina História do Ensino da Matemática.
Use sua criatividade para escolher um título para as suas memórias.
Seu trabalho deve ter no mínimo duas e no máximo seis páginas em Times New Roman,
fonte 12, espaçamento entre linhas 1,5.

Unidade 3 : Memórias e reflexões: histórias de ensino de M atemática 67


Lista de tópicos para orientar a escrita
do texto de memórias

1. Identificação pessoal:

• nome, local e data de nascimento;

• características de sua família (pais, irmãos e outras pessoas próximas a você);

• profissão e escolaridade de seus pais;

• cidade em que você reside hoje;

• estado civil;

• principais atividades que exerce atualmente;

• quaisquer outros assuntos que você julgue relevantes quanto à sua vida pessoal para
a escrita de suas memórias.
2. Vida escolar (com ênfase no ensino e aprendizagem de Matemática)

• momento e local em que iniciou a escolarização;

• escolas que frequentou até hoje;

• lembranças da vida escolar;

• práticas pedagógicas dos professores, particularmente com a Matemática;

• características de seus professores (especialmente os de Matemática), tais como sexo,


raça, idade, formação acadêmica, relacionamento com os alunos, uso de recursos
no ensino (aula expositiva, livros didáticos, trabalhos em grupo, aulas de exercícios,
filmes, jogos, computador, calculadora, leitura de textos etc.);

• conteúdos de Matemática nos quais teve facilidade ou dificuldades e dos quais gostou
ou não gostou;

• professores que você teve e foram importantes na sua vida, por aspectos positivos
ou negativos;

• mudanças significativas ocorridas no ensino em geral e no ensino de Matemática, em


particular, para a sua vida escolar;

• razões para a realização do curso de licenciatura em Matemática;

• quaisquer outros assuntos que você julgue relevantes quanto a sua vida escolar para
a escrita de suas memórias.

68 história do ensino da matemática


Composto em caracteres Aller, Arial, Calibri, PT Sans e Times New Roman.
Editorado pelo Centro de Apoio à Educação a Distância da UFMG (CAED-UFMG).
Impresso pela XXXXXXXXXXX
Capa em Supremo, 250g, 4 X 0 cores - Miolo Off Set 120g, 2X2 cores.
2012

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