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ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
Dentre os variados caminhos abertos pela literatura para tratar das mais
diversas faces e dimensões do mal (e dos males), um dos mais fortes e expressivos
tem sido o que se refere à própria condição do ser humano em si, como condição
terrível, absurda, irremediável, apenas suportável: condição de imperfeição, de
limitação ante a natureza e a sociedade, o tempo e o espaço, o desejo e a vontade de
verdade, de conhecimento e mesmo de poder. Essa abordagem da literatura, segue
especificamente as raízes dos despedaçamentos míticos e trágicos e da sua
produtividade pelo compartilhamento patêmico (ou na exacerbação das paixões, o
patético), e tem servido até mesmo como um dos fundamentos discursivos da
chamada “filosofia do trágico”, desenvolvida a partir do século XIX.
O sofrimento, o πάθος (pathos), é espetacularizado na tragédia grega
como sofrimento desmesurado que causa “compaixão”, “desolação”, “piedade” (eleos)
e “temor”, “espanto de tremor” (phobos), e considerado na Retórica de Aristóteles
como afecção receptiva da persuasão ou uma das três fontes de que procedem as
premissas dos argumentos (ethos, pathos e logos), e que imprimem confiança
subjetiva ao raciocínio. O filósofo defende, ali, que “as emoções [paixões, πάθη) são
as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus
juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer” (ARISTÓTELES, 2005, p.
160).
Esse pathos, como afecção e resultado dos conflitos existenciais deslocados
para a experiência cotidiana estendida entre ser e linguagem, mundo e corpo, pode
aparecer assim no intervalo entre o circunstante, o vivido ou a vivência histórica e os
construtos ideiais; os desmantelamentos humanos e um impulso de continuidade de
vida; o perene e o perecível, sendo perspectivado como irremediável, raiz de uma
visão da condição humana vista como absurda. Ou, por outro lado, instaurado na dor e
angústia da própria cisão sentida pelo sujeito, que precisa construir uma habitação
possível do “mesmo” com o “si”, nas contradições que aparecem sorrateiras, à meia-
luz, intrometendo-se das fissuras mais sombrias e insuspeitas. É neste sentido, na
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atualização de sua compreensão e produtividade que este sentimento pode ser visto
como motor de uma certa lírica.
Nesse caso, o fenômeno trágico se funda antes filosoficamente, como uma
“categoria capaz de apresentar a situação do homem no mundo, a essência da
condição humana, a dimensão fundamental da existência” (MACHADO, 2006, p. 42-
43), isto é, numa tragicidade presente no mundo como choque ou contradição, que,
conforme Peter Szondi (2004) – só para reportar alguns autores – em Schelling pode
aparecer como o conflito da liberdade humana com o poder do mundo objetivo; em
Hegel como dialética da eticidade entre o universal e o particular, amor e lei
(Antígona), concebendo que a substância ética se manifesta como pathos individual e
base da ação individual; em Goethe como oposição irreconciliável entre o que o
homem precisa querer e o que não tem o direito de querer; e em Nietzsche, a
conciliação entre os princípios da embriaguez, do despedaçamento dionisíaco, e o
que se afirma no princípio da objetivação da aparência e da forma apolínea.
A partir dessas considerações, é que se aborda nesse trabalho a sombria e
passional obra Trindade Dantesca (2012), do poeta maranhense Nauro Machado.
Nauro nasceu em 1935, em São Luís do Maranhão. Publicou seu primeiro livro,
Campo sem Base, em 1958, e, desde então, tem dedicado sua vida à poesia
alcançando número recorde de mais de 40 livros já publicados. Além de constar em
importantes antologias nacionais e internacionais, é detentor de prêmios importantes,
inclusive da Academia Brasileira de Letras (1999) por sua Antologia Poética e
conjunto da obra, e da União Brasileira de Escritores (2000). Talvez a importância
maior de sua obra seja antes por sua profundidade e densa contribuição à poesia e à
língua portuguesa que por seu reconhecimento ou mesmo reconhecimento dessa
obra. Nome parco nos compêndios gerais da literatura circulante, dado certo
isolamento e talvez uma escritura não exatamente popular – na esteira de uma poesia
visceral voltada para as zonas obscuras e os estertores da intimidade humana, ao
pathos trágico de um eu oprimido e sufocado, dir-se-ia amaldiçoado.
Trindade Dantesca é o coroamento de uma trajetória, mas uma trajetória que
começou/que foi “parida” lá em 1957-58, e se manteve fiel a uma proposta inicial,
solidificando-se no decorrer de toda uma vasta produção. Para a compreensão desse
fenômeno, é importante reportar um poema antológico do primeiro livro de Nauro:
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O Parto1
1 Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/nauro.html#parto
2 TD: Trindade Dantesca [MACHADO, 2008].
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um defunto,/para fiar no chão a dívida/de quem com ela vai junto/pelos trapos de um
Rei Midas/trocando ouro por presunto” (TD, p. 101;102).
Sabe-se que o poema de Dante possui a simetria do número três. Este número
é simbólico para o catolicismo porque se relaciona às pessoas da Trindade divina – o
Pai, o Filho e o Espírito Santo. São três partes do poema dantiano3: Inferno,
Purgatório e Paraíso, a primeira um canto introdutório mais 33 cantos de jornada,e a
segunda e terceira, cada uma com 33 cantos. São, portanto, 99 cantos de jornada e
um introdutório, totalizando 100. Os lugares descritos em cada livro são representados
como tendo cada um nove ciclos, perfazendo outro número múltiplo de três, 27. Todos
os cantos são em terça rima, ou seja, formam um entrelaçado em que os dois versos
externos rimam entre si e o central fica órfão, encontrando seu apoio nos dois versos
externos do terceto seguinte, deixando o outro verso central órfão, e assim
sucessivamente. Essa estrutura dá movimento à forma do poema, como se pode
perceber nos versos seguintes:
Nauro, por sua vez, não utiliza a terça rima na obra em questão, nem o
decassílabo, como Dante, mas redondilhas em estrofes de seis versos. Pode-se
justificadamente supor que essa estrutura formal deve-se a uma relação estabelecida
com outro poeta além de Dante: Gonçalves Dias, cuja Canção do Exílio é
reinterpretada por Nauro tanto no poema-epígrafe do livro [Canção do (D)Exílio], já
3 A preferência por este termo deve-se à diferença nas conotações semânticas de dantiano e dantesco. Enquanto o
primeiro predicado pode ser significado como “de Dante”, o segundo pode receber conotações como “infernal” e
semelhantes.
4 “Nel mezzo del cammin di nostra vita, //mi ritrovai per una selva oscura// ché la diritta via era smarrita.// Ahi
quanto a dir qual era è cosa dura,//esta selva selvaggia e aspra e forte// che nel pensier rinova la paura!// Tant'è
amara che poco è più morte;// ma per trattar del ben ch'i' vi trovai, dirò de l'altre cose ch'i' v'ho scorte.” (Tradução
Minha) Cf. [Dante Alighieri – Inferno, Canto 1] http://www.kalliope.org/en/digt.pl?longdid=dante2005050101
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5 Cf. http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/2002/10/06/000.htm
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não existisse: a fissura irremediável entre poeta e a sociedade, que tem como
resultante o exílio e desprezo da poesia.
Por outro lado, é sobre a dor e a morte, sobre o que é dado como acabado ou
completo que se constrói a mítica da eternização do poeta, do renascimento da poesia
como fôlego da vida e do eterno retorno da revoltada escritura. A leitura de Trindade
Dantesca, importante e sintetizadora obra aponta e verte-se para as profundidades do
eu, enquanto ser cindido em si mesmo, enquanto ser exilado pelo social, que exila e
ou é exilado, e que por ser amaldiçoado, sombriamente amaldiçoa (há portanto claro
um vestígio das poéticas do insólito e da revolta, sombrias, dos conflitos, da poesia
romântica e crepuscular que vai do norte-americano William Blake ao Decadentismo
finissecular francês:
Como uma espiral de abismos, essa poesia se centra e entranha cada vez
mais, nas reviravoltas existenciais, viscerais, da angústia e da morte – representação
lírica de um pathos trágico, infernal do ser humano, de labor sisífico, cujos infinitos só
se aprofundam para devassar o “eu”, para explorar um mundo (poético) construído
sobre a representação da ruína e do sofrimento. Nisso, guardadas as devidas
proporções entre os gêneros, lembrando o que Flávio Kothe (1987) fala sobre o
rebaixamento/tragicidade do herói pode-se ter situação análoga a este: que quanto
mais esse herói é degradado do sublime ou do divino, mas se eleva em sua
humanidade.
Funda-se assim uma possibilidade de compreensão desse empreendimento
lírico como um redimensionamento da proposta do trágico clássico, cuja relação de
“alívio” se fundamenta não só da identificação, mas, na cisão entre o que é
6 « Car La poésie naît et se féconde des les régions – son domaine – où s’établit le contact de l’âme et du langage :
elle est alors malédiction, mais tente aussi de retourner sa malediction, contre la société, contre la civilisation,
contre les hommes, contre Dieu, contre le langage, parfois contre elle même. Les poètes maudits, selon la formule
célèbre de Verlaine, deviennent parce qu’ils son maudits, des poètes qui maudissent. » (LEMAITRE, 1982, p. 9)
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“verossímil” e o que é “verdadeiro”, pelo limite entre arte e vida real. O trágico agora o
é, espantosamente, porque aparece como terrificantemente real nesse discurso: é o
que é, não o que “pode ser”. E assim sendo, o espetáculo desta poesia mediando a
conjunção conflituosa do homem-poeta e da linguagem apostrófica-imprecativa ao
espaço das suas vivências, torna-se o espetáculo irônico do próprio real poeticamente
desdobrado (ou representado) tal como a “dor que deveras [se] sente” (Pessoa).
O patêmico, que nos corresponde, apresenta-se então nessa poética como o
compartilhamento de uma tragicidade existencial por via do lírico: é dor que sentimos
como aquele “que deveras sente”, porque este “espetáculo” é apresentado ou até
mesmo dado como espetáculo da ironia do vivido (do existencial), não do fingido.
Agora, aqui, no território da dor partilhada no paixão re-velada de nossa própria
condição, de onde, das conjurações dos demônios e das sombras resgatamos nossos
próprios infinitos.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Obras completas: Retórica. 2ed. Coord. António Pedro Mesquita. Lisboa
(PT): Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005. (Biblioteca de autores clássicos)
BRUNEL, Pierre (Org.) Dicionário de Mitos Literários. 4ed. Trad. Carlos Sussekind et al. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2005.
KOTHE, Flávio. O Herói. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987. (Série Princípios)
LEMAIRE, Henri. La poésie depuis Baudelaire. Paris : Librairie Arman Colin, 1982
MACHADO, Nauro. Trindade Dantesca (poema). São Luís: Ed. do Autor, 2008.
SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004. (Estéticas)
UNAMUNO, Miguel de. Do sentimento trágico da vida nos homens e nos povos. Trad.
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Referências web :