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Não é a meritocracia; é o valor que se cria

filosofia
Joel Pinheiro da Fonseca
terça-feira, 20 out 2015

Meritocracia é uma palavra bonita. Não. É uma palavra que remete a uma coisa bonita: que cada um
receba de acordo com seu mérito, que em geral é igual a esforço, dedicação; às vezes se inclui a
inteligência.
E — é o que garantem alguns liberais — é isso que vigora no mercado. Quem se esforça, chega lá.
É questionável até que ponto esse tal mérito pessoal sequer exista. Hélio Schwartsman, na Folha,
apontou aquele fato que ninguém gosta de lembrar: o esforço pessoal, o suor, a capacidade de
trabalho, a inteligência; todos dependem de variáveis que estão fora da escolha pessoal — do mérito,
portanto — do indivíduo. Essa esfera do que é só meu, do mérito próprio distinto das circunstâncias
do ambiente e da história, simplesmente não existe. Ao menos, não da forma simplória que se
vende.
E existindo ou não, será verdade que o mercado premia justamente o mérito? Se for, caro liberal,
então você está obrigado a defender que Gugu Liberato e Faustão têm mais mérito do que um
professor realmente excelente e que realmente ensine coisas úteis.
Nada contra o Gugu e o Faustão, mas eles não são meu exemplo ideal de disciplina, dedicação e
trabalho duro. E, mesmo assim, o mercado os recompensa muito bem. Do outro lado, milhões de
trabalhadores labutam dia e noite, e outros milhões de desempregados procuram o que fazer, e
continuam pobres. Ainda falta esforço? São preguiçosos, burros talvez?
Nada disso.
O que realmente determina a remuneração no mercado não é o mérito, não é a virtude, não é o
esforço ou a dedicação. É apenas a criação de valor; o valor que aquela pessoa consegue adicionar
à vida dos demais.
Não importa se é por esforço, inteligência, sorte, talento natural, herança; quanto mais
imprescindível ela for aos outros, mais os outros estarão dispostos a servi-la.
O esforço por si só não garante nada. É verdade que, tudo o mais constante, se a pessoa encontra
um campo em que ela gera valor, o esperado é que mais esforço gere mais valor. Com o passar das
gerações, a ascensão social se acumula: a filha da retirante nordestina que trabalha de empregada
tem computador, aula de inglês e provavelmente não será doméstica quando crescer.
É assim que as sociedades enriquecem. Não é de uma hora para outra, e não tem nada a ver com a
crença ingênua de que a renda é ou deveria ser proporcional ao mérito.
Nada é garantido. Às vezes o setor em que o sujeito trabalha fica obsoleto, e o valor produzido pela
dedicação de uma vida cai abruptamente. Havia gente muito dedicada entre os técnicos de vitrola
de meados dos anos 1990; e mesmo assim…
Meritocracia é um conceito que se aplica ao interior de organizações. Promover membros com base
no mérito (em geral medido por algum indicador) pode ser melhor do que fazê-lo por tempo de
serviço, pela opinião subjetiva de um superior etc. Meritocracia é um modelo de gestão. Até mesmo
o governo, por exemplo, poderia se beneficiar dela, reduzindo suas ineficiências. Não é um modelo
sem falhas: a necessidade de mostrar resultados cria uma pressão interna muito grande e pode minar
a cooperação, a manipulação dos indicadores pode viciar o sistema de avaliação.
Encontrar o sistema mais adequado a cada contexto é uma questão de administração, de
funcionamento interno de organizações, que nada tem a ver com o mercado. Mercado é o processo
(sim, memorizem isso: o mercado é um processo) no qual algumas organizações existem e operam.
Às vezes organizações nada meritocráticas prosperam no mercado, e organizações meritocráticas
podem existir fora dele.
Satisfaça as necessidades dos outros, e as suas serão satisfeitas. Não importa se é por mérito, por
sorte ou por talento. O cara mais esforçado e bem-intencionado do mundo, se não criar valor, ficará
de mãos vazias.
Achou injusto? Então aqui vai um segredo: é você quem perpetua esse sistema. Se sua geladeira
quebra, você vai querer um técnico esforçado e que dê tudo de si, ou vai querer um que faça um
ótimo serviço, com pouco esforço e a um baixo custo? Quer um restaurante ruim mas com
funcionários esforçados ou quer comer bem? O mundo reflete o seu código de valores e, veja só, ele
não é meritocrático.
A vida não é e nem deve ser uma corrida que parte de condições iguais e na qual, no fim do jogo,
vencem os melhores. Na medida em que esse sonho meritocrático é sequer possível (estamos muito
longe de corrigir desigualdades genéticas, por exemplo), ele exigiria um investimento enorme só
para produzi-lo; sacrificaríamos valor para criar condições artificiais que se adequem a esse ideal
abstrato. Todos ficariam mais pobres para realizar esse sonho moral.
Mas quem disse que a igualdade é moralmente superior à desigualdade? Se um meteorito cai na
minha casa e não na sua, isso é injusto? É imoral?
O sistema de mercado não premia a virtude; ele premia, e portanto incentiva, o valor. É feio dizê-lo?
Pode ser, mas ele tem um lado bom: é o sistema que permite que a vida de todos melhore ao mesmo
tempo. Que todo mundo que quer subir tenha que ajudar os outros a subir também. Ele não iguala
o patamar de todo mundo, mas garante que a direção de mudança seja para cima.
O ideal da meritocracia tem o seu apelo, mas ele depende de meias-verdades: a ideia do mérito que
é só meu e de mais ninguém, a de que meu suor justifica o que eu ganhei. Sem suor ou inteligência,
o ganho é sujo, indevido. Mas o outro lado dessa moeda é feio: implica dizer que quem não chegou
lá não teve mérito; que a pobreza é culpa do pobre.
A lógica do mercado é outra: você criou valor, será recompensado. Sua riqueza não diz nada sobre o
seu mérito; ela não justifica e nem precisa ser justificada. O resultado desse foco no valor é que mais
valor é criado. Você recebe aquilo que entrega e todos ganham.
[Nota do IMB: por que Faustão, Gugu, jogadores de futebol e artistas globais ganham mais de R$ 1
milhão por mês ao passo que um professor realmente bom ganha apenas uns R$ 5 mil? Um bom
professor pode realmente gerar valor, mas ele gera valor para uma quantidade ínfima de pessoas ao
ano. Quantos alunos diferentes ele tem? Provavelmente, não mais do que 200 (um número bem
exagerado). Portanto, ele cria valor para 200 pessoas por ano. É uma produtividade extremamente
baixa. Já os indivíduos supracitados têm alcance nacional (alguns, mundial), milhões de pessoas
consomem voluntariamente seus serviços, e eles geram retornos — goste você ou não deles — para
seus empregadores semanalmente, que estão satisfeitos em lhes pagar salários milionários. Se não
gerassem valor, seria simplesmente impossível terem esses salários.]

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