Você está na página 1de 11

CAPÍTULO 7

Pierre Bourdieu e a
Noção de Campo Científico
Contribuições para o
estudo da prática científica e técnica

Airton Ferreira Moreira )r. e Thales Haddad Novaes de Andrade

I Introdução
Este texto discute as contribuições da Sociologia de Bourdieu e da
noção de campo científico cunhada por ele para o estudo da prática cien-
tífica e técnica. O conceito de "retradução" e a noção de "campo cien-
tífico", evidenciadas em algwnas das obras de Bourdieu (1983, 2001,
2004), representam a existência de um espaço relativamente autônomo
diante de instituições sociais externas à ciência, sem deixar, contudo, de
sofrer as pressões desse ambiente externo. O campo científico pode ser
visto, nesse sentido, como um campo de forças de agentes que atuam
tanto sob as pressões do restante da sociedade (como a ingerência polí-
tica e as demandas sociais e econômicas) quanto sob norn1as e padrões
de conduta especificamente científicos (as teorias científicas, a metodo-
logia de pesquisa, as disciplinas etc.). Do mesmo modo, os agentes que
compõem esse campo não são homogêneos entre si, mas sim ocupam
diferentes posições, logo, a ciência pode ser vista, como um mundo
social hierarquicamente organizado.
Confonne destacam Shinn e Ragouet (2008), é mais prudente
fa lar em "campos científicos", no plural, na medida em que cada disci-
162 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pi erre Bourdieu e a Noção de Campo Científico 163

plina (Agronomia, Física, Biologia, Sociologia etc.) ou instituição (labo- cialidade desta. Nos termos de Merton, a Sociologia da Ciência se dedica
ratórios, universidades, institutos públicos de pesquisa etc.) possui suas à investigação da
próprias tensões internas e pressões externas características.
interdependência dinâmica entre a ciência, como atividade social
Desse modo, a noção de "campos científicos" pode contribuir
que faz nascer produtos culturais e de civilização, e a estrutura
tanto para a compreensão sociológica tanto do relacionamento entre ciên-
social que a envolve. As relações recíprocas entre ciência e socie-
cia e sociedade, quanto das práticas das elites e lideranças que se formam dade constituem o objeto da pesquisa (Merton, 1970, p. 63 I).
nas instituições científicas, e sobre o papel para a dinâmica científica.
Em um primeiro momento, apresentam-se rapidamente os dife- Por mais que Merton tenha levado tal afirmação a sério, seus
rentes paradigmas da Sociologia da Ciência e da técnica, situando a trabalhos sobre as práticas científicas se tornaram conhecidos menos por
teoria bourdieusiana no contexto mais amplo do desenvolvimento de demonstrar a relação entre ciência e o restante da sociedade do que por
tal ramo da Sociologia. A seguir, analisa-se a visão de Bourdieu sobre analisar a estrutura institucional interna da ciência, em aspectos como
a Sociologia e o referencial teórico-metodológico proposto pelo autor, suas normas e seus sistemas de recompensa. 1
discutindo-se o modo como o utiliza para uma análise sociológica da Essa estrutura interna, por sua vez, seria homogênea e funcio-
prática científica. Bourdieu se baseia nos conceitos de campo cientifico nal, características que fizeram com que o principal conceito utilizado
e habitus para investigar as dinâmicas sociais que configuram as práticas por essa perspectiva para s~ referir à ciência fosse o de "comunidade
dos pesquisadores. Posteriorn1ente, serão debatidos ainda dois elemen- científica". Desse modo, tal comunidade é, antes de tudo, uma entidade
tos que interferem diretamente nas práticas dos agentes que compõem macrossocial. Desde os anos 1940 até o início da década de 1970, a abor-
um campo científico: as tensões internas e as pressões externas à dinâ- dagem mertoniana foi hegemônica na Sociologia da Ciência, no entanto,
mica do campo. Em seguida, apresenta-se uma breve discussão realiza- esses trabalhos não deram o mesmo destaque às práticas tecnológicas.
da por Bourdieu sobre uma instituição científica francesa que sintetiza Já a partir da década de 1970, a perspectiva mertoniana passa a ser cres-
os principais elementos da análise bourdieusiana. Por fim, apresentam- centemente questionada pelos sociólogos da ciência e da tecnologia mais
-se algumas considerações finais e os desenvolvimentos posteriores da contemporâneos, sendo lembrada muito mais por seus limites do que por
visão do Bourdieu acerca da atividade científica. suas reais contribuições ao avanço da disciplina.
A segunda perspectiva presente na Sociologia da Ciência, portan-
to, nasce da tentativa de superação da abordagem mertoniana, que passou
A trajetória da Sociologia da Ciência a ser denominada de "clássica" ou, mais pejorativamente, de "velha"
e seus principais paradigmas sociologia da ciência. Essa perspectiva se utiliza da teoria do filósofo
e historiador das ciências Thomas Kulm (2005) e das ideias do cons-
Podemos identificar três perspectivas teórico-metodológicas sobre trutivismo para afirmar que a ciência não se diferencia de modo algum
as práticas científicas e as práticas tecnológicas e, consequentemente, ao das outras atividades sociais hun1anas. Indo além, essa nova aborda-
menos três modos diferentes de se contar a história da disciplina.
A primeira perspectiva foi concebida pelo sociólogo norte- 1. Segundo a argumentação do próprio Merton, a estrutura interna da ciência (instituições,
-americano Robert Merton, considerado o fundador da Sociologia da normas, sistema de recompensas etc.) é funcional na medida em que sustenta sua auto-
nomia e sua estabilidade institucional diante das constantes pressões sociais externas
Ciência. Na visão de Merton (1970), ela teria nascido ao se diferenciar (Merton, 1970). Interdependência funcional e estabilidade institucional são, portanto,
da Sociologia do Conhecimento, ou melhor, ao se constituir como espe- elementos indi ssociáveis da análise mertoniana sobre a atividade científica.
164 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pierre Bourdieu e a Noção de Campo Científico 165

gem propõe que o próprio conteúdo do conhecimento científico deve "nova ortodoxia" (Shinn; Ragouet, 2008), atacando a crescente - e sem
ser visto como uma construção social, o que possibilita que não só a dúvida impactante - "sedução" dos sociólogos pela abordagem constru-
organização da ciência, mas também os conhecimentos por ela produ- tivista sobre a ciência (Freitas, 2005). Isso não quer dizer que outros
zidos sejam descritos sociologicamente. Nas palavras de Bruno Latour, paradigmas estejam ausentes nas análises do tema, mas significa que, a
um dos mais conhecidos autores dessa perspectiva, entraremos em fatos e maior parte da produção acadêmica nos chamados "estudos sobre CTS"
máquinas enquanto estão em construção; não levaremos conosco preconceitos fundamenta-se nas correntes teóricas dessa perspectiva.
2000, p. 3 I). Ademais, com essa
relativos ao que constitui o saber (Latour, Existe ainda uma terceira possibilidade de se enxergar a trajetó-
afinnação percebe-se que aumenta o interesse pelas práticas tecnológi- ria da disciplina. Sua opinião é a de que é possível uma superação - ou
cas, logo, a tecnologia passa a ser vista como socialmente construída, de dialetização - da abordagem "clássica" mertoniana e das abordagens da
maneira idêntica à ciência. Por fim, alguns dos defensores dessa perspec- "nova" Sociologia da Ciência e da Tecnologia. O paradigma neoinstitu-
tiva afirmam que não apenas a ciência, mas a própria "sociedade" é uma cionalista da Sociologia da Ciência, pode ser visto como un1 meio de se
construção contingente, fazendo com que a ideia de uma realidade social incorporar tanto algumas contribuições do paradigma mertoniano quanto
objetiva deva ser desconstruída e desconsiderada. Justamente devido a do construtivista. Esse paradigma permite um olhar mais profundo sobre
esse esforço de desconstrução de algumas pré-noções relativas à dinâmi- a atividade científica contemporânea, un1a vez que enfatiza complexida-
ca científica e social, esse enfoque também foi taxado de "relativista" ou de interna à atividade científica e discute a inter-relação entre ciência e
"pós-moderno". sociedade sem implodir por completo suas ban·eiras.
Teve origem, desse modo, um novo olhar sobre a atividade De acordo com Terry Shinn ( 1999), wn dos teóricos vinculados à
científica e técnica, mais precisamente, surgiu un1a "nova" Sociologia perspectiva neoinstitucional, as investigações desse paradigma refletem
da Ciência e da Tecnologia. Ao invés de enxergar relevância na estru- de maneira implícita ou explícita o conceito de campo científico, fornm-
tura institucional da ciência, essa se dedica às dinâmicas contingentes lado pelo sociólogo Pierre Bourdieu. Passaremos, portanto, a discutir
de construção dos conhecimentos e das tecnologias, em uma aborda- mais detalhadamente tais conceitos da perspectiva bourdieusiana sobre a
gem mais microssocial. Essas dinâmicas se encontram, por exemplo, atividade científica.
nas "controvérsias" (Collins; Pinch, 2003), nos "laboratórios" (Latour;
Woolgar, 1997; Knorr-Cetina, 2005) ou na fonnação das "redes sociotéc-
nicas" (Callon, 1992; Latour, 2000). Por conta da variedade de corren- I A noção de campo na sociologia de Bourdieu
tes teóricas que compõem essa Sociologia, denominações diferentes
passam a ser atribuídas ao conjunto de dessas abordagens: Sociologia A noção de "campo" é, em parte, uma analogia extraída das ciên-
do Conhecimento Científico, Sociologia da Ciência pós-mertoniana, cias fisicas que, como grande parte dos esforços teóricos da Sociologia
Sociologia Construtivista da Ciência e das Técnicas, Sociologia da contemporânea, visa superar as dicotomias estabelecidas pelo pensamen-
Tecnociência ou simplesmente Science and Technology Studies. to sociológico clássico, como as existentes entre ação e estrutura, objeti-
A "nova" Sociologia da Ciência e da Tecnologia desenvolvida vidade e subjetividade, indivíduo e sociedade, conteúdo e contexto etc.
nesse contexto se constituiu em perspectiva hegemônica nos estudos Para Bourdieu (1989), um campo emerge a partir das práticas dos agen-
sociológicos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), tanto no que tes que o compõem, ao mesmo tempo em que práticas definem e inibem
diz respeito ao contexto acadêmico internacional quanto no caso especí- as possíveis condutas dos agentes. Dito de outro modo, por mais que os
fico do Brasil, a ponto de alguns críticos a chamarem pejorativamente de agentes construam o campo (a partir de ações que constituem estruturas
166 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pierre Bourdi eu e a Noção de Campo Científi co 167

estruturantes), é este último uma força que retroage sobre suas próprias falar no campo político, no campo econômico, no campo artístico ou no
ações (ou seja, uma estrutura estruturada). Segundo o autor: campo científico, enfim, em diversos campos sociais que interagem, mas
conservam maior ou menor autonomia a partir do momento em que são
A cada momento, a estrutura do campo científico se define pelo
formados por lógicas e princípios específicos que devem ser seguidos
estado das relações de força entre os protagonistas em luta
pelos agentes (Bourdieu, 1989, 2001, 2004).
(agentes ou instituições); isto é, pela estrutura da distribuição do
capital específico, resultado das lutas anteriores objetivado nas
instituições e disposições e que comanda as estratégias e chances
objetivas dos protagonistas. Basta perceber a relação dialética I As tensões internas aos campos científicos
entre as estruturas e estratégias utilizadas por meio das dispo-
sições para fazer desaparecer a antinomia entre a sincronia e a Em um primeiro momento, pode-se pensar que a visão bourdieu-
diacronia, a estrutura e a História. A estrutura da distribuição do siana sobre o campo científico seria a mesma de Merton (1970) sobre
capital científico está na base das transformações do campo e se
o ethos da comunidade científica. Contudo, o fundamental da noção
manifesta por intermédio das estratégias de conservação (ou de
de "campo", que a diferencia da noção mertoniana de "comunidade" é
subversão) da estrutura que ela mesma produz. Por um lado, a
posição que cada agente singular ocupa em um dado momento que os agentes que a compõem não são vistos como homogêneos, visto
na estrutura do campo científico é a resultante (objetivada nas que ocupam diferentes posições na estrutura hierárquica na qual estão
instituições e incorporada nas disposições) do conjunto de estra- inseridos e que contribuem para reproduzir (ou transformar) através de
tégias anteriores desse agente e de seus concorrentes (as quais práticas cotidianas. As relações hierárquicas entre agentes dominantes
dependem da estrutura do campo, pois resultam das proprie- e agentes dominados definem o leque de ações disponível aos agentes,
dades estruturais da posição a partir da qual são engendradas). pois, nas suas práticas cotidianas, os dominantes lutam para conservar a
Por outro lado, as transformações da estrutura do campo são
sua posição, enquanto os dominados procuram "ascender" na hierarquia
o produto de estratégias de conservação ou de subversão cujo
(Bourdieu, 1989). De acordo com Bourdieu, as diferentes posições dentro
princípio de orientação e eficácia situa-se nas propriedades da
posição ocupada por aqueles que as produzem no interior da de um campo são o resultado da distribuição desigual de diferentes espé-
estrutura do campo (Bourdieu, 1983, p. 123). cies de capital entre os agentes que o compõem. Cada campo possui seu
conjunto específico de capital, uma vez que são os diferentes capitais que
O campo, portanto, não é fruto do simples conjunto das interações constituem os instrumentos das práticas dos agentes (Bourdieu, 1989).
dos indivíduos, nem reflexo direto da estrutura macrossocial (Bourdieu, A estrutura das relações objetivas entre os agentes de un1 campo e
I 989). Sendo assim, é a estrutura das relações objetivas entre os agentes que a sua consequente diferenciação hierárquica definem as disposições espe-
determina o que eles podem e o que não podem fazer (Bourdieu, 2004, p. 23). cíficas para a agência. Essas disposições constituem o interesse incorpo-
Isso significa que um campo é relativamente autônomo do espa- rado pelos agentes em agir de alguma forma, ou seja, em desempenhar
ço social global em que se insere. Por mais que estejam em constante detem1inadas estratégias para atingir seus fins. Isso resulta em princípios
interação com os outros campos sociais, e por mais difícil que seja dife- de agência e concorrência específicos para cada campo. A intemalização
renciar aspectos de origem interna ao próprio campo e aspectos externos das disposições de um campo ou do espaço social geral é abordada por
relativos ao espaço social em que se inserem, os agentes pertencentes a Bourdieu (1989) a partir do conceito de habitus, que remete ao conjunto
um campo tendem a empreender suas atitudes com base nas particula- de saberes tácitos na agência de um campo, os quais se mantêm implíci-
ridades do microcosmo social que confonnam. Desse modo, é possível tos nas práticas dos agentes. Esse habitus é adquirido através de vários
168 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pierre Bourdi eu e a Noção de Campo Científi co 169

fatores, como a origem social, a formação escolar e o gênero, no espaço os ganhos econômicos, por exemplo -, mas que, mesmo assim , não há
social geral, e as disciplinas ou trajetórias científicas, no caso específico como negar que haja intencionalidade nas ações dos pesquisadores e
do campo científico. técnicos. O que é específico do campo científico é chamado pelo autor
Outra característica da noção de campo é que pode ser aplicada de interesse desinteressado, isto é, um interesse consciente dos agentes
a diferentes realidades. No caso da ciência, um campo pode ser tanto a desse campo em fazer parecer que suas ações são desinteressadas, moti-
ciência como um todo quanto os seus "subcampos" científicos (laborató- vadas tão somente pela busca de novos conhecimentos.
rios, disciplinas, universidades, áreas do conhecimento etc.). Do mesmo Entretanto, por mais que os cientistas se esforcem- portanto, inte-
modo, o "agente" de um campo não é, necessariamente, um único indi- ressem-se - em fazer suas ações parecerem desinteressadas, Bourdieu
víduo, podendo ser também, por exemplo, uma instituição de pesquisa. (1983 , 2001) identifica um interesse particularmente importante para os
O referencial teórico-metodológico propiciado pelas noções de agentes do campo científico: a vontade de adquirir reconhecimento, pres-
"campo" e "habitus" possibilitou novas abordagens sobre a atividade tígio e crédito diante de seus pares. Para comprovar essa constatação,
científica, uma vez que focalizam a análise na complexidade das práti- lembra que todos os pesquisadores procuram antes que seus concorrentes
cas internas ao campo científico e das incorporadas por seus agentes, ao publicar uma nova descoberta ou patentear um novo produto, pois é a
mesmo tempo em que levam em conta as pressões de ordem externa. novidade que garante o reconhecimento.
Tal abordagem constitui a base dos trabalhos de Bourdieu (1983, 2001, Uma segunda especificidade diz respeito ao conteúdo da concor-
2004) sobre a ciência. Em tais trabalhos, o olhar de Bourdieu sobre a rência no campo científico, ou seja, àquilo que está em jogo nas lutas
ciência se baseia na análise das especificidades do campo científico, a entre os agentes desse campo. De acordo com Bourdieu (1983, 2001 ),
partir do qual os cientistas, assim como os agentes de outros campos, como em todo o campo social, o que está em jogo, no campo científi-
atuam de acordo com suas posições e disposições. Nesse sentido, com co, são as próprias regras do jogo, os próprios princípios que regulam
base na teoria dos campos sociais, o autor sintetiza sua visão sobre a a concorrência entre os pesquisadores e, portanto, sua própria dinâmi-
atividade científica nas seguintes palavras: ca. Mais precisamente, o principal objeto da disputa entre os cientistas
é a representação daquilo que cada agente considera como "boa ciên-
A sociologia da ciência baseia-se no postulado de que a verdade
cia". Isso significa que as tensões entre os cientistas em seu cotidiano se
do produto - mesmo desse produto particular que é a verdade
científica - reside numa espécie particular de condições sociais
referem ao que esses agentes consideram como a boa prática científica
de produção, num estado determinado da estrutura e do funcio- - as técnicas, os argumentos válidos, os métodos, os critérios de avalia-
namento do campo científico. O universo "puro" da mais "pura" ção etc. - , ou seja, aos princípios e às trajetórias que todos os cientistas
ciência é um campo social como outro qualquer, com suas devem seguir para se legitimarem no campo.
relações de força e monopólios, lutas e estratégias, interesses Logo, para Bourdieu (1989), na dinâmica da ciência as represen-
e lucros, mas no qual todas essas invariantes assumem formas tações quanto à atividade científica não são consensuais, ao contrário do
específicas (Bourdieu, 1983, p. I 12).
que faz crer a abordagem comunitária do "ethos" científico mertoniano
e da "ciência nonnal" kulmiana. Em suma, um campo é um espaço de
O primeiro aspecto que remete às lutas específicas do campo
disputa justamente porque o que está em jogo são os pontos de vista dos
científico diz respeito ao interesse que motiva as ações dos cientistas.
agentes sobre suas atividades, que repercutem em diferentes estratégias
Bourdieu (1983, 2001, 2004) lembra que esses podem parecer desinte-
para legitimá-los.
ressados com relação a interesses presentes em outros campos - como
170 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pierre Bourdieu e a Noção de Campo Científico 171

Mas, a partir do momento em que o Estado retira sua responsa-


I As pressões externas aos campos científicos
bilidade quanto ao desenvolvimento da produção científico-tecnológica,
Outro fator que na visão de Bourdieu interfere na atividade cien- 0 campo científico passa a depender cada vez mais da entrada de recur-

tífica, inclusive nas disputas pela representação legítima da boa ciên- sos financeiros não estatais para a manutenção de suas atividades. As
cia, são as pressões externas ao campo. A dinâmica do campo científico implicações desse fenômeno, estão entre os novos aspectos da atividade
tende à autonomização das práticas dos cientistas, isto é, à eliminação de científica mais investigados pelo paradigma neo-institucionalista. Sobre
qualquer interferência que se sobreponha aos padrões especificamente isso, afimam Shinn e Lamy (2006):
científicos de concorrência. No entanto, nem sempre essa autonomização
Depois de mais de vinte anos, os sistemas nacionais de pesquisa e
tem sucesso, seja na ciência como um todo, seja em subcampos científi-
de inovação sofreram profundas mutações, que coincidiram com
cos (disciplinas, laboratórios, universidades etc.). Para Bourdieu (200 1, um relativo afastamento do Estado sobre a pesquisa acadêmi-
2004), muitas vezes, agentes e lógicas externas pertencentes a outros ca e uma pluralização dos agentes da pesquisa e da inovação. À
campos interferem na dinâmica da ciência, chegando a se sobrepor a seus procura de novas formas de financiamento, e submissas à pres-
princípios- produzindo, com isso, o que o autor chama de heteronomia. são das demandas econômicas e sociais, as instituições científicas
Campos não científicos procuram impor suas representações acerca da evoluíram na direção de modelos mais próximos da indústria.
Elas se mercantilizaram, tendendo a se submeterem aos inte-
atividade científica de acordo com seus princípios e interesses, anulando
resses comerciais e a se inscreverem em uma lógica de oferta
as tentativas de representação dos agentes do próprio campo científico. O
econômica substituindo ou se associando, dependendo do caso,
mesmo vale para subcampos científicos, como laboratórios e disciplinas,
a uma lógica de oferta científica (p. 23) .
em que algumas são mais autônomas que outras, o que significa dizer
que, em certas instituições ou áreas, as pressões externas são mais difi- Desse modo, graças à dependência financeira do campo científico
ceis de se impor, enquanto outras recebem maior interferência. para manter suas atividades, as necessidades imediatistas e utilitárias do
Exemplos desse fenômeno são as fonnas diferenciadas de intera- setor produtivo industrial passam a interferir em diversas características
ção entre o campo científico e o campo político, ou entre o campo cientí- do campo - como na definição de problemas relevantes, em critérios de
fico e o campo econômico. De acordo com Bourdieu (2004), o poder de seleção e avaliação de projetos, no prestígio e no reconhecimento dos
investimento e nomeação burocrática do Estado garante uma espécie de pesquisadores, no direcionamento das atividades de pesquisa e desen-
independência dependente ao campo científico, pois se, por um lado, as volvimento (P&D), nas políticas de fomento à Ciência, Tecnologia e
atividades de pesquisa dependem fortemente da entrada de recurso finan- Inovação (CT&I) etc. Com a crescente mercantilização das atividades
ceiros públicos, por outro, o mesmo Estado garante certa independência de pesquisa, agentes e princípios especificamente científicos passam
às práticas dos cientistas através de contratos estáveis de longo prazo, a concorrer com aqueles econômicos dentro da dinâmica de produção
concursos públicos e títulos, gerando uma estabilidade relativa muitas científico-tecnológica. 2 Tal perspectiva define, o olhar do paradigma
vezes utilizada pelo campo científico para se contrapor a ingerências. neo-institucionalista sobre a questão da inovação tecnológica.
Todavia, a lógica universalista do Estado muitas vezes entra em choque
com os princípios estritamente científicos, gerando tensões quanto à 2. Com base no paradigma neo-institucionalista, os sociólogos Terry Shinn e Envan Lamy
têm pesquisado as mudanças recentes na atividade científica diante da mercantilização da
representação da atividade científica que interferem no relacionamento
ciência. Esses autores tomam por objeto um novo tipo de agente, chamado de pesquisa-
dos agentes desses campos. dor-empreendedor, constituído pelos pesquisadores que extrapolam o ambiente acadêmi-
co para abrir suas próprias empresas. O estudo das práticas desse agente possibilita wna
172 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pierre Bourdieu e a Noção de Campo Científico 173

Por fim, talvez a mais importante especificidade a ser notada na (1983, 2001) pelo conceito de capital. Nesse sentido, as estratégias
dinâmica da ciência seja a existência do capital científico, uma espécie empreendidas pelos cientistas na dinâmica científica são tratadas pelo
particular de capital simbólico que constitui o princípio de hierarquiza- autor como "investimentos de capital", tendo em vista sua maior acumu-
ção da atividade científica, definindo as posições a partir das quais os lação.
pesquisadores agem. Para Bourdieu (2001, 2004) existem dois tipos de As duas diferentes fom1as de capital científico possuem estratégias
capital científico: o "puro" e o "institucional". O primeiro diz respeito ao de acumulação distintas. O capital científico "puro" adquire-se através
prestígio e reconhecimento de um agente ou uma instituição do campo das contribuições ao progresso do conhecimento científico reconhecidas
diante dos demais. Tal reconhecimento cresce na medida em que um pelos pares, podendo se tratar de invenções teóricas ou técnicas, fruto das
pesquisador ou um laboratório tem sucesso na atividade científica, como práticas de P&D ou das publicações. Já o capital científico "institucional"
diante da descoberta de novos conhecimentos ou tecnologias, quando é acumulado a partir de estratégias políticas nas instituições científicas.
se adquire o respeito dos outros pesquisadores. Já o capital científico Cabe lembrar que tais estratégias têm um sentido "político" específico
institucional diz respeito à ocupação de cargos formais importantes para para o campo- como a participação em bancas de concursos, comissões,
as atividades do campo, em geral ligados à administração científica, ao defesas, seminários, congressos, premiações, formação acadêmica em
poder de distribuição dos recursos financeiros ou títulos de prestígio, à instituições de maior prestígio ou mesmo a quantificação das publicações
avaliação das atividades de P&D etc. Em outros termos, o capital institu- -, não devendo ser confundidas com as mesmas estratégias do campo
cional é político- com o tenno "político" se referindo ao poder específi- político. Compreender essa distinção é fundamental para se distinguir a
co do campo científico. fonna como Bourdieu (1983, 2004) aborda as estratégias políticas dos
Por ser de natureza simbólica, o capital científico se baseia no cientistas da forma como o paradigma construtivista as trata.
conhecimento e no reconhecimento do agente que o controla. Isso quer Através dessa perspectiva, o problema da concorrência científica
dizer que um pesquisador ou uma instituição que queira impor suas e sua consequente distribuição desigual de capital podem parecer bem
práticas deve fazê-lo seguindo os princípios reconhecidos pelos demais distantes das abordagens construtivistas apresentadas no item anterior,
agentes- ou seja, os princípios cientificamente aceitos. A complexidade pois privilegiariam apenas os aspectos sociais da atividade científica,
das relações entre os agentes do campo científico reside nesse caráter sem levar em conta seus aspectos cognitivos. No entanto, com base na
ambíguo da sua concorrência: os pesquisadores ou as instituições domi- teoria dos campos de Bourdieu, a tentativa do paradigma neo-institu-
nantes o são porque os agentes dominados tendem a aceitar os princípios cionalista é justamente analisar como tal contexto social das pesquisas
e as representações legítimas do campo, a saber, aqueles impostos pelos científicas se relaciona com o conteúdo cognitivo dessas práticas.
dominantes. Shinn (1988) analisa de que modo os diferentes capitais cien-
Logo, a concorrência entre os agentes científicos se trata da dispu- tíficos, o "puro" e o "institucional", produzem padrões heterogêneos
ta por acumulação dos capitais específicos do campo. A luta pela legi- de atividade científica dentro de um mesmo laboratório. Existe nesse
timidade da representação acerca da boa ciência e os seus consequentes ambiente uma marcante hierarquia social dos pesquisadores, relativa
padrões de conduta teórica e de avaliação nada mais é do que a luta pela às suas trajetórias de fonnação e profissionais: pesquisadores juniores,
autoridade e pela competência, algo representado na teoria de Bourdieu seniores, professores universitários e diretores do laboratório. Cada um
desses agentes baseia suas práticas em capitais distintos, ocupando, desse
discussão crítica sobre as mudanças da ciência, uma vez que circula constantemente entre modo, um espaço bem definido dentro da dinâmica de produção científi-
as lógicas e estruturas do campo científico e econômico. Os autores identificam múltiplas
estratégias pelas quais se opera tal circulação (cf. Shinn; Lamy, 2006). co-tecnológica. No cotidiano do laboratório os agentes com maior capital
174 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pierre Bourdieu e a Noção de Campo Científico 175

institucional se dedicam às atividades mais importantes: os diretores do cia definem o modo como as pressões externas ao campo se refletem nas
laboratório são responsáveis pelas generalizações teóricas dos resulta- atividades dos pesquisadores.
dos das pesquisas, enquanto os professores integram diferentes modelos Para Bourdieu (2001, 2004), o crescente aperfeiçoamento geren-
teóricos e resultados de práticas distintas. Aos pesquisadores fonnados cial das instituições científicas representa um desafio a ser enfrentado à
ou em fonnação, restam os experimentos pontuais, os testes e a atenção medida que gestores e administradores científicos acumulem um capital
às anomalias encontradas nas pesquisas. Na análise do autor, mesmo que de prestígio no interior das instituições de pesquisa. Segundo o autor, em
muitas vezes esses agentes partam de atitudes e valores bem diferentes, alguns casos esses agentes são responsáveis pelo engessamento e pela
é o respeito a essa espécie de divisão do trabalho científico que contribui padronização das atividades de técnicos e pesquisadores, visto que os
para o sucesso da P&D realizada no laboratório. Dessa maneira, percebe- últimos não detêm o mesmo capital de prestígio no plano institucional,
-se uma relação entre as hierarquias científicas e as práticas de pesquisa não sendo capazes de resistir às detenninações institucionais que afetam
dos seus agentes, embora não seja possível confundir esses dois aspectos. suas atividades. Nas palavras do sociólogo:
Por sua vez, cabe lembrar que a ênfase dada pelo paradigma neo-
[ ...) alguns pesquisadores, às vezes convertidos em administrado-
-institucionalista ao capital especificamente científico não indica que
res científicos (mais ou menos diretamente associados à pesqui-
inexistam interferências políticas ou econômicas na dinâmica do campo
sa), podem, por intermédio do controle dos recursos que lhe
científico. A questão das estratégias de acumulação de capital se relaciona assegura o capital social, exercer sobre a pesquisa um poder que
com o problema da autonomização e da heteronomia do campo cientí- se pode chamar de tirânico [ ... ), uma vez que não encontra seu
fico. Graças à dependência de recursos que passam por outros campos, princípio na lógica específica do campo (Bourdieu, 2004, p. 41 ).
algumas das estratégias que carreguem princípios não científicos podem
se impor ao campo científico. No caso do campo político, por exemplo,
o poder de financiamento e de nomeação pode fazer com que a ocupação
de cargos burocráticos interfira na concorrência científica. Além disso, Um exemplo de análise bourdieusiana
o campo científico não é visto por Bourdieu como isolado do restante sobre a ciência: o caso do INRA
do espaço social, fatores como origem familiar, classe social e gênero
também interferem nas estratégias de seus agentes. O estudo de caso realizado por Bourdieu em uma instituição
Em suma, a abordagem de Bourdieu sobre a atividade científica pública de pesquisa (IPP), o Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola
envolve diversos elementos da ciência, como a autoridade e as hierarquias (INRA), exemplifica alguns aspectos de sua abordagem sobre a ativida-
dentro do campo científico, as estratégias de concorrência e legitimação de científica (Bourdieu, 2004). O autor afinna que, para se compreender
dos agentes científicos, a gestão e a avaliação, os critérios de avaliação a dinâmica da atividade científica no INRA, é necessário analisar:
da ciência e a relação do campo científico com os demais campos sociais. a) as principais disputas, representações e pontos de vista que
Na visão do autor, todos esses aspectos da atividade científica estão inter- norteiam as concorrências dos cientistas dentro da instituição;
ligados. Por exemplo, muitas vezes os critérios de avaliação da ciência b) a relação entre o INRA e os agentes dos outros campos, como
correspondem aos critérios que interessam aos agentes mais bem posi- o econômico e o político;
cionados no campo, os quais legitimam seu poder diante dos demais; da c) a posição dessa instituição no campo científico como um todo,
mesma fonna, ocorre que as diferentes posições hierárquicas dos agentes isto é, diante dos outros agentes que o compõem.
científicos e seus subsequentes pontos de vista e representações da ciên-
176 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pierre Bourdieu e a Noção de Campo Científico 177

O INRA traz uma dualidade de funções em seus arranjos institu- agentes, possuem representações distintas de suas práticas. Bourdieu,
cionais que está presente na maioria das IPPs: a convivência por vezes porém, é cético quanto à capacidade e a boa vontade dos administradores
problemática da lógica empresarial e da lógica científica. Isso se refle- científicos em incorporar critérios e mecanismos de avaliação diferentes
te nas duas lógicas da atividade científica da instituição, que, segundo dos seus:
Bourdieu (2004 ), encontram-se por demais afastadas e desintegradas
Se penso que medidas administrativas visando melhorar a avalia-
nessa instituição em particular: a pesquisa aplicada- aliada da lógica
ção da pesquisa e colocar em prática um sistema de sanções [ ... ]
empresarial, voltada para a aplicabilidade socioeconômica dos resulta-
próprias para favorecer as melhores pesquisas e os melhores
dos científicos -e a pesquisa básica -ligada à lógica "puramente" cien-
pesquisadores seriam as mais ineficazes e teriam como efei-
tífica, voltada para a criação de novos conhecimentos, independentemen- to, mais provavelmente, favorecer e reforçar as distinções que
te de suas finalidades. Essas duas lógicas de pesquisa, nada mais são do aparentemente deveriam ser reduzidas, é porque tenho sérias
que formas diferenciadas de atuação no campo científico, dois pontos de dúvidas e seriamente fundadas sobre a capacidade das instâncias
vista acerca da atividade de pesquisa que implicam em diferentes estra- administrativas para produzirem avaliações realmente objetivas
tégias de atuação, ou melhor, em diferentes padrões de prática científica. e inspiradas. E isso, fundamentalmente porque o fim real de suas
operações de avaliação não é a da própria avaliação, mas o poder
Ora, na abordagem bourdieusiana, todos esses aspectos se vincu-
que ela permite exercer e acumular controlando a reprodução
lam diretamente à questão das diferentes posições hierárquicas dos
do corpo (especialmente mediante a composição de bancas
cientistas no campo. Segundo Bourdieu (2004), o incremento da lógica
examinadoras) (Bourdieu, 2004, p. 62-63).
administrativa e gerencial da instituição tem prejudicado o exercício do
diálogo entre os pesquisadores. Para ele, o que ocorre no INRA é que Logo, Bourdieu (2001, 2004) argumenta que a real função das
os administradores científicos estão de tal modo preocupados em tentar avaliações é a manutenção dos princípios de hierarquia do campo, os
integrar as lógicas de pesquisa básica e aplicada que acabam por indi- quais visam o acúmulo de capital institucional e a consequente definição
ferenciá-las: na visão dos gerentes, todo pesquisador deve se preocupar das "regras do jogo" tal qual se apresentam.
com pesquisas ao mesmo tempo puramente científicas e produtivamen- O resultado da análise de Bourdieu é uma possibilidade de crítica
te aplicáveis. Uma vez que os administradores científicos possuem um ao que tem ocorrido no INRA ao longo dos últimos anos. O que Bourdieu
poder excessivo para a atribuição de cargos no instituto, a definição das (2004) faz, identificados os pressupostos e as articulações dos agentes
políticas de P&D, a distribuição de recursos e, enfim, a escolha dos crité- dentro de uma estrutura objetiva, é estimular a reflexão sobre aqueles
rios de avaliação das pesquisas, a verticalização das posições, no caso do procedimentos e seus efeitos na dinâmica dos campos. A proposta de
INRA, acabaria por contribuir para a ausência de papéis bem definidos a Bourdieu para o caso do INRA caminha nesse sentido.
cada agente, o que, segundo Bourdieu (2004 ), seria um fenômeno preju-
dicial para a produção de conhecimento. Uma política que visa desenvolver as vantagens competitivas
potenciais da instituição ou, o que vem a dar na mesma, sua
Do mesmo modo, criam-se critérios de avaliação pouco efica-
justificação social [ ... ] deveria trabalhar ao mesmo tempo, e sem
zes, não condizentes com os dois tipos de prática de pesquisa. Como já
contradição, para acentuar a diferenciação das funções e das
apresentado, se um campo é um espaço de concorrência onde os agentes
estruturas que, supostamente, as servem [ ...] e para a integra-
disputam os pontos de vista e as representações legítimas de suas práti- ção dos diferentes agentes e instituições num projeto coletivo
cas, seus critérios de avaliação também estão em disputa. Isso significa comum, mediante uma organização sistemática da circulação da
que nem sempre os mesmos princípios podem ser aplicados a todos os informação. [ ...] É evidente que para ser um verdadeiro fator de
178 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pierre Bourdieu e a Noção de Campo Científico 179

integração numa definição clara e claramente aceita por todos, contraponto crítico à perspectiva administrativa, que submete ciência e
portanto cientificamente eficaz e politicamente democrática da tecnologia aos imperativos econômicos, criticando efeitos na lógica cien-
divisão do trabalho científico, o reforço consciente da diferen- tífica; possibilitando outros aspectos do estudo sociológico sobre a CT&I,
ciação das funções [... ] supõe uma profunda desierarquização que, mesmo incorrendo no erro de enxergar coesão e universalidade entre
dessas funções que deve ser operada por todos por todos os
os agentes científicos, não se afasta da discussão dos seus condicionantes
meios e de início, nos cérebros (Bourdieu, 2004, p. 60).
e das suas implicações e, além de considerar seu relacionamento com a
Nesse sentido, as "inovações organizacionais" propostas por sociedade de forma mais critica - como vem a ocorrer no caso da teoria
Bourdieu defendem a horizontalização da prática de pesquisa, o que ator-rede; pennitindo uma perspectiva mais ampla e crítica sobre o aper-
pennitiria um diálogo mais direto entre pesquisadores. A distinção entre feiçoamento gerencial em uma instituição de pesquisa.
as competências de invenção e de inovação, não deve ser o centro do Em todos esses tópicos, identificam-se as distinções do paradig-
debate institucional, mas sim as melhores formas de organização que ma neo-institucionalista quanto ao construtivista. Na conferência diante
permitam potencializar essa distinção de forma a privilegiar essa situ- dos pesquisadores do INRA Bourdieu fez uma crítica direta ao construti-
ação ímpar, qual seja, a oportunidade de se conter as duas lógicas ao vismo e à teoria ator-rede3 :
mesmo tempo em seu interior. Além disso, Bourdieu argumenta que
[ ...] contrariamente ao ,que leva a crer num construtivismo idea-
uma instituição científica que estimule o diálogo entre seus agentes seria
lista, os agentes fazem os fatos científicos e até mesmo fazem,
capaz de responder melhor às pressões externas e desenvolver padrões em parte, o campo científico, mas a partir de uma posição nesse
mais autônomos de trabalho (Bourdieu, 2004). campo - posição essa que não fizeram - e que contribui para
O modo como se avalia ou se mensura as pesquisas também definir suas possibilidades e suas impossibilidades. Contra a
se alteraria a partir da proposta reflexiva do autor. Segundo Bourdieu, ilusão maquiavélica à qual alguns sociólogos da ciência sucum-

avaliações cientométricas ou bibliométricas são formas tecnocráticas bem, talvez porque tomem emprestado aos eruditos sua própria
visão "estratégica", para não dizer cínica, do mundo científico,
de avaliação que não servem para avaliar a ciência em si, mas apenas
é preciso, primeiramente, lembrar que nada é mais difícil e até
acumulam o exercício de poder nas mãos dos administradores institu-
mesmo é impossível de 'manipular' do que um campo. É preciso
cionais. É preciso que o próprio campo tenha capacidade de julgar quem dizer, por outro lado, que, por muito versado que possa ser na
seria legítimo para avaliar a pesquisa, pois só assim critérios de avalia- 'gestão das redes' (com que tanto se preocupam aqueles que
ção autônomos e reflexivos seriam capazes de formar juízo acerca da julgam servir-se de sua 'ciência' da ciência para promover suas
prática científica ao mesmo tempo em que respeitariam as especificida- teorias da ciência e afirmar seu poder de especialistas no mundo
des democráticas do campo. Essa proposta passa por uma reformulação da ciência), as oportunidades que um agente singular tem de

do agente administrador, o qual também deve se submeter às avaliações submeter às forças do campo aos seus desejos são proporcio-
nais à sua força sobre o campo, isto é, ao seu capital de crédito
sobre o caráter da inovação organizacional (Bourdieu, 2004).
científico ou, mais precisamente, à sua posição na estrutura da
distribuição do capital (Bourdieu, 2004, p. 25).

Considerações finais
3. Levando em conta que, tempos antes, Latour havia se apresentado diante da mesma
Em suma, percebeu-se que a perspectiva de Bourdieu pode contri- pl ateia de pesquisadores, defendendo perspecti vas da Teoria Ator-Rede na análi se do
buir de três modos para os objetivos dessa revisão: estabelecendo um INRA.
180 Airton Ferreira Moreira Jr. e Thales Haddad Novaes de Andrade Pierre Bourdieu e a Noção de Campo Científi co 181

Evidencia-se que, enquanto a teoria ator-rede não leva em conta . Prólogo. In : KREIMER, P. De probetas. computadoras y ratones:
Ia construcción de una mirada sociológica sobre la ciencia. Buenos Aires:
formas mais duráveis de dominação (quando o faz, têm-se essas reJa-· Universidad Nacional de Quilmes, 1999.
ções como efêmeras, pontuadas na especificidade de uma associação), o
.; LAMY, E. L'autonomie scientifique face à la mercantilisation: formes
paradigma neo-institucionalista é capaz de identificar fonnas de hierar- d'engagement entrepreneurial des chercheurs em France. Actes de la recherche
quização (e, consequentemente, de desigualdade de condições) dentro do en sciences sociales, n. 164, p. 22-49, 2006 .
campo científico. Essas relações, para Bourdieu (1983, 2004), são muito .; RAGOUET, P. Controversias sobre a ciencia: por uma Sociologia da
mais presentes e perpetuáveis do que a abordagem construtivista permite transversal idade científica. São Paulo: Ed. 24, 2008.

perceber.

Referências
BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu:
Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
___ . O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
___ .Para uma Sociologia da Ciência. Lisboa: Edições 70, 2001.
___ . Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo
científico. São Paulo: Unesp, 2004.
CALLON , M. The dynamics of techno-economic networks. In: COOMBS,
R.; SAVIOTTI, P.; WALSH, V. (Eds.). Technological change and company
strategies. Londres: Academic Press, 1992, p. 72-102.
COLLINS. H. M.; PINCH, T. J. O GoZem: o que você deveria saber sobre ciência.
Trad. de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
FREITAS, R. S. D. A sedução da etnogra-fia da ciência. Tempo Social, v. 17,
p. 229-253 , 2005.
KNORR-CETINA, K. La fabricación dei conocimiento: un ensayo sobre el
carácter constructivista y contextual de la ciencia. Trad. Maria Isabel Stratta.
Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2005.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. 9. ed. São Paulo: Perspectiva,
2005.
LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade
afora. São Paulo: Unesp, 2000.
___ .; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.
MERTON, R. K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
SHINN, T. Hiérarchies des chercheurs et fonnes des recherches. Actes de la
Recherche en Sciences Sociales, v. 74, n. I, p. 2-22, 1988.

Você também pode gostar