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Marginais, alternativos, independentes

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independentes/

Atualizado em 11 de setembro | 7:07 PM


Publicado originalmente no Caderno B, do Jornal do Brasil, em 19.09.1981.

Não sei bem se por coincidência ou provocação, a literatura emergente da última década
vem insistindo, obstinadamente, em se nomear, num primeiro momento, como marginal
e alternativa e, desde algum tempo, como independente. Ainda que se possa notar nessa
mudança certos sintomas de reavaliação daquilo que seria o papel da poesia, a ênfase no
eixo da autonomia de sua prática parece permanecer como ponto de honra no que diz
respeito aos novos poetas 70/80.
Nas mais variadas circunstâncias, a definição das noções alternativa-marginal-
independente vem carregada de sentido objetivo: o controle total da produção e a
distribuição do trabalho de poesia, o que traria consigo, entre várias vantagens, como
uma maior liberdade de criação, aquela de procurar redefinir o espaço e o alcance social
da literatura. Entretanto, à revelia da evidente clareza do argumento, invariavelmente,
mal se ouve a “colocação” dos novos poetas, instala-se uma incontrolável confusão: ”
qual a poesia que não é independente?”; “Carlos Drummond de Andrade não seria o
maior de nossos marginais?”; “Qual literatura que, em seu sentido profundo, não se
revela alternativa?”. Nada de estranho na confusão, se levarmos em conta que, pelo
menos desde Platão, o poeta é visto e sentido como excluído da República. Resta-lhe
trabalhar com paciência e paradoxalmente com certo encanto, essa situação de
marginalidade e exclusão. O escritor, abrigado em seu gueto, que hora se investe do
sentido de quilombo, hora se reveste com cores de marfim. A defesa radical da
independência e da marginalidade do poeta, em seu sentido mais geral, parece ter-se
consolidado como senso comum no terreno das representações sobre a imagem do
escritor, ficando lamentavelmente excluída da “república das letras” a discussão acerca
da ambigüidade fundamental da definição dessa imagem. O que sustentaria a fé na total
liberdade e independência da criação artística? A que tipo de ilusão e sentimentos
corresponde essa leitura? Qual o sentido efetivo dessa forma de representação da arte?
Foi assim, zonza, que me dirigi para o I Encontro Estadual de Escritores Independentes
do RJ, dia 26 de agosto último.
Reunidos no saguão (o preço da independência) da ABI, um bom número de autores e
representantes de grupos organizados espalhavam-se pelo chão frente à mesa composta
por Henrique Araújo (organizador do Encontro) e os convidados José Louzeiro, Carlos
Eduardo Novaes, Gema Benedickt, Ivan Cavalcanti Proença e eu – uma turma bem
pouco “independente” como se pode ver. Suponho que a escolha dessa composição
vincula-se à representatividade dos integrantes como membros do Sindicato dos
Escritores, União Brasileira de Escritores e Editora José Olympio, avalizadores do
Encontro. Não percebo bem, entretanto, além da ajuda que a tarimba de reuniões –
marca dos dependentes – traz, nosso papel de destaque nas várias chamadas
publicitárias do Encontro, bem como a ausência de escritores alternativos à mesa. Tudo
bem.
Aberta a sessão, Henrique Araújo expõe sua proposta central: a organização, a nível
nacional, de um movimento de produção cooperativista. Assim, sugere a criação da
Associação Carioca de Escritores e a ampliação das associações estaduais através da
Comissão Nacional de Escritores Independentes que teria seu primeiro encontro neste
mês, em Fortaleza. Em seguida, faz a crítica ao modelo individualista com que se agita a
produção alternativa e atenta para a urgência de se “unir-cooperativar-organizar”. E
depois de um breve histórico sobre as conquistas e a importância da produção
independente no Brasil (da qual o Centro de Cultura Alternativa da Fundação Rio,
coordenado por Maria Amélia Melo, é prova) adverte: “é preciso que o escritor não
esteja preocupado com sua exibicionista marginalidade e sim em como vender o seu
trabalho.” Um à parte da platéia propõe uma atuação ligada ao Sindicato dos Escritores
do RJ. Mais uma vez, apesar da noção “independência” estar claramente definida como
“aquela não vinculada a qualquer patrocínio estatal ou bancada por empresas editoriais”,
o feitiço volta-se contra o feiticeiro Henrique Araújo. E o pau rola.
“Aspectos políticos aqui, não”; “A produção independente é livre, é um direito natural
do homem!”; “A independência foge a qualquer característica burocrática!”. E o poeta
Jesus lembra o sucesso da Feira de Poesia que, há um ano, reune-se na Cinelândia
prescindindo de qualquer tipo de associação. O grupo da Baixada Fluminense também
reage, acusando a proposta de não ter consultado as bases sendo, portanto, “não
orgânica”. Paulo, um dos poetas iguaçuanos, toma a palavra e declama um poema de
recorte trovadoresco e de incrível pique comunicativo. Jênesis, da Coomasp, levanta-se
e analisa o modo de encaminhamento da formação da Associação como reprodutor do
dirigismo cultural que a produção independente, por natureza, procura rejeitar. Acusa a
UBE de cabide de emprego e aponta o sindicato como modelo de associação de
interesses diversos (a profissionalização do escritor) e contrários àqueles dos escritores
independentes, cujo objetovo prioritário seria apenas o “de transar focos”. Qualquer tipo
de associação é, no mínimo “uma camisa de força”. O Sindicato promove ainda mais
uma dúvida: que se definam, na platéia, os escritores independentes como projeto e
aqueles que poderiam ser chamados de “independentes em trânsito”, ou seja, aqueles
que publicam desta forma por carência de interesse ou fechamento por parte das
editoras. Tumulto no auditório.
Como se pode ver, não se fala impunemente de matéria tão complexa e sutil. A cultura
alternativa-marginal-independente, no barato, apenas pelas discussões que provoca
(ainda que estranhamente assessorada pelas várias instituições solicitadas pelo
organizador do Encontro), revela seu potencial de tema desconfortável e mobilizante no
terreno precariamente problematizado do lugar do escritor no espaço das relações de
produção. O tumulto persiste, provavelmente não será hoje que os escritores
independentes chegarão a um consenso sobre a forma ideal de se “unir-cooperativar-
organizar”.
Como não me povoa o fantasma da marginalidade e da liberdade (muito pelo contrário,
meus phatos fundamental tendo sido sempre como trabalhar a dependência) não entro
no debate e me dedico a captar sintomas na categoria de Repórter. Em primeiro lugar,
em meio a confusão geral, salta aos olhos a mudança de eixo do debate da poesia
alternativa neste início dos 80. Desde o pique apaixonado do organizador do Encontro,
com o sonho de parques gráficos independentes e cooperativas nacionais, até a
inquietação sobre o contorno mais nítido do que seria a definição e o projeto do escritor
independente, ronda, no ar, a urgência de formas organizadas para a produção de
literatura. Já vai longe o poeta 70 em sua aventura individual de resistência. Deixa,
entretanto, o legado do humor e da paixão, pontos ainda saudavelmente valorizados na
novíssima safra poética, situada agora, basicamente, na periferia carioca. No Encontro
ainda a experiência de, pelo menos, três grupos importantes. A Feira de Poesia, mostra
aberta que absorve qualquer produtor independente, funciona no centro da cidade às
sextas-feiras à noite e neste mês comemora um ano de atividades. É nessa Feira – que
postula a recusa a qualquer tipo de controle sobre o material apresentado – que se
apresenta o polêmico movimento da Poesia Pornô. Pornôs, políticos, líricos, versos
livres ou rimados, o que parece interessar é a mobilização popular em torno da poesia. E
o saldo dos eventos na Cinelândia não tem sido decepcionante. Na área da periferia,
Paulinho Jordan, Moduan e Dejair batalham a poesia iguaçuana no grupo que editava a
revista Amplitude e que atualmente trabalham o projeto de ampliação do espaço cultural
da Baixada Fluminense. É do grupo a publicação Pedacinhos de Substâncias Essenciais
à Vida com a poesia de Moduan Matus e Dejair Esteves. Avisa Moduan na folha de
rosto: “Liberdade, solidariedade, humildade, união, força, progresso e o coração
batendo com toda a emoção.” Ao lado, a Coomasp (Cooperativa Mista de Artistas
Suburbanos Panela de Pressão), que atua na área de Osvaldo Cruz, Vila da Penha,
Campo Grande, Bangu. A Coomasp (representada no Encontro pelos poetas Jênesis
Genúncio e Jorge de Almeida) traz como preocupação central a discussão de uma
política cultural de base junto às comunidades do subúrbio. Para tanto, trabalha
diretamente ligada às associações de moradores, clubes e teatros da região. A idéia da
publicação da poesia é ampliada no sentido de intervenção política no interior da
comunidade. Inegavelmente, a Coomasp é rica em artimanhas: promove noites de arte
em quintais particulares, cobrando ingressos a Cr$ 10, com venda de sopas e vinhos
durante os eventos, chegando até ao que chamam de “tática Robin Hood” – o
levantamento de fundos para publicação através da venda de espetáculos musicais para
os condomínios de classe média. Além da edição da coleção Parceiros ( dois autores), a
Coomasp promove vários projetos paralelos, como o Curso de Teatro, Jornal, Oficina
literária, Domingos musicais, segundo Jênesis, “uma estética que se vai descobrindo e
acompanhando os movimentos populares”. Outro ponto que chama atenção como tônica
das preocupações da Coomasp: a apreensão quanto ao tom populista ou paternalista em
que se podem incorrer os movimentos de arte popular.
Tumulto, conflitos e desordem à parte, o I Encontro de Escritores Independentes trouxe
consigo, em linhas gerais, uma certa novidade no que diz respeito aos caminhos e
tendências da poesia alternativa que prolifera sob os ventos da abertura. Ou como diz o
poema: “e a vontade do poeta/ de rearticular a vida com a política/ a política com a
amor/ o amor com a vida/ vidamor”. Inicialmente um fenômeno da classe média da
Zona Sul, com ênfase na crítica do comportamento e no projeto de resistência cultural, a
produção autofinanciada abre agora espaço para formas de intervenção política ligadas à
comunidade. No conjunto, uma produção bastante heterogênea, mais interessada em
abrir espaços a berro e a soco do que no trabalho mais direto sobre a linguagem. Agite
Poema repete,em modo contínuo, a apresentação da coleção Parceiros, a mais bem
realizada das produções de periferia. Aqui ainda seria oportuno chamar a atenção para
as publicações dos Cadernos do Núcleo de Cultura – PT/RJ, com a participação de
velhos Guerreiros como Samaral, Eudoro Augusto e Moacyr Cirne, com o
interessantíssimo Dois Projetos e uma Versão.
No debate mais explícito sobre poesia cresce o prestígio de termos como
“organicidade”, “poder do diálogo”, “democracia”, “desburocratização”, “direitos
humanos”, “piquetes”, “bases” & outros que parecem lembrar o vocabulário que rege o
discurso político pós-78. O recorte de um Lula, a reforma partidária, a novidade das
associações de base. E, sobretudo, a rejeição dos aspectos passivos (?) da opção
marginal. A independência a serviço de um projeto explícito de mobilização popular. O
namoro e o receio com a velha apaixonante experiência dos CPCs.
Ao sem-número de questões sugeridas pelo simples enunciar da bandeira da
independência no ardiloso terreno da produção cultural, acrescente-se agora o perigoso
xadrez das relações do artista com o povo e da eficácia da literatura como instrumento
de transformação social.
Dada a extensão e dificuldade do problema, proponho ao leitor um pequeno teste.
Responda a três das questões abaixo propostas por Glauber Rocha em seu último artigo,
publicado na revista Luz & Ação nº 1:
“Contradição: polityka kultural: qual é a cultura da revolução? A incultura subversiva
popular ou a cultura subversiva dos intelectuais? Até que ponto a incultura subversiva
popular se identifica à cultura subversiva dos intelectuais? Quem são os intelectuais:
operários da cultura? Produtores da cultura revolucionária que é a cultura desejada pela
incultura subversiva popular? A cultura subversiva popular é uma incultura? É acto
culto subverter o poder? A cultura é uma palavra de classe? A cultura é a filosofia de
uma civilização? Quem faz a filosofia de uma barbárie revolucionária? O povo
ignorante que faz a revolução? Mas quem dirige o povo no caminho revolucionário?”

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