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T eatro e prisão: dentro da cena e da cadeia

T e a t rroo e p r i s ã o : d e n t rroo d a c e n a e d a c a d e i a

V icente Concilio

A
incursão de práticas teatrais em presídios tos humanos iniciava sua campanha pela repa-
tem início, como atividade aprovada pelas triação dos exilados ao mesmo tempo em que
unidades penais, em meados dos anos 70, questionava os valores e práticas dos órgãos de
período em que organizações difusoras de defesa pública, denunciando torturas e trazen-
políticas de direitos humanos e denuncia- do à tona discussão relativa aos desaparecidos
doras das torturas e abusos do governo militar políticos.
geraram um leve abrandamento da rigidez mo- Essas práticas teatrais, dotadas das parti-
delar das propostas de encarceramento. cularidades de cada contexto em que estavam
Esse movimento introduziu, ainda que de inseridas (tipo de presídio, grau de apoio ofere-
forma irregular e pouco integrada, algumas pro- cido pela direção da instituição etc.), possuíam
postas diferenciadas no trato com a população em comum o anseio de trazer para a sociedade,
carcerária. Surgem então iniciativas que atribu- com a mediação de um espetáculo teatral, te-
em à arte teatral relevância social e artística, mas importantes do universo carcerário a fim
defendendo sua presença em prisões como ins- de que se buscassem alternativas para aquelas
trumento capaz de proporcionar a homens e vidas todas inutilizadas pelo fracasso da prisão
mulheres presos uma experiência estética pro- em oferecer alternativas ao mundo do crime.
piciadora de uma tomada de consciência oriun- De forma trágica, e a despeito da reper-
da da convivência grupal e do desafio de cria- cussão que esses projetos atingiram, eles nunca
ção de um espetáculo. concluíram seu ciclo, expulsos que eram das uni-
Em São Paulo, experiências narradas por dades penais, na medida em que sua visibilidade
Frei Betto (Freire & Betto, 1986), Maria Rita trazia à tona a incompetência da prisão em rea-
Freire Costa (Costa, 1983) e Ruth Escobar lizar seu objetivo declarado, que é o de “ressocia-
(Escobar, 1982; Fernandes, 1985) são exemplos lizar” indivíduos através do encarceramento.
da variedade e da vitalidade das práticas cênicas Ruth Escobar precisou responder proces-
construídas no interior de instituições puniti- so criminal, acusada de incitar os presos, atra-
vas, em um momento extremamente delicado vés do teatro, a uma rebelião que irrompeu no
da política nacional, em que coexistiam a cen- dia de Natal de 1980, na Penitenciária do Esta-
sura e a “abertura” política, e a luta pelos direi- do, causada por uma briga durante o jogo de

Vicente Concilio é ator.

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futebol. E o Projeto “A Arte como Processo de glês e, na época, professor da Universidade de


Recriação em Presídios”, coordenado por Maria Manchester, Paul Heritage, além de diversas
Rita Freire Costa, responsável pela criação de entidades e órgãos públicos nacionais e inter-
cinco espetáculos teatrais com detentas da Peni- nacionais como a Unicamp – Universidade Es-
tenciária Feminina da Capital, é interrompido tadual de Campinas, o Ministério da Saúde e a
em 1983, acusado de propiciar a fuga de duas Secretaria da Administração Penitenciária.
integrantes, que conseguiram escapar da escolta Esse projeto possibilitou a abertura das
policial durante o transporte das detentas a um unidades a outras experiências no campo da arte
espaço de apresentação externo ao presídio. teatral, e é dentro desse panorama que o então
A despeito do reconhecido valor artístico monitor de unidade escolar e diretor teatral Jor-
e da repercussão favorável que ambas expe- ge Spínola dá início, em 1998, a um processo
riências atingiram em diversos setores da im- de ensaios que tem como objetivo a encenação
prensa e da crítica teatral, o corpo funcional dos de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna,
presídios preferia associar teatro à subversão, ao dentro do COC – Centro de Observação Cri-
desrespeito e à vadiagem. E por aproximada- minológica, ala de segurança máxima do então
mente quinze anos, a arte teatral ficava restrita existente complexo do Carandiru, onde ficavam
a iniciativas dos próprios presos em datas co- detidos presos “jurados de morte”, caso estives-
memorativas ou a iniciativas ligadas às escolas sem em contato com a massa carcerária: estu-
das unidades prisionais, sem contar com um pradores, policiais corruptos e justiceiros. Por
efetivo apoio de programa cultural para a po- essa razão, o COC era considerada uma das uni-
pulação carcerária. dades mais rígidas de todo o sistema carcerário
Esse panorama é alterado quando o TIPP paulistano, e a presença do teatro custou a ob-
Center1 e a FUNAP2 implantam o Projeto Dra- ter apoio da direção da casa.
ma em diversas unidades prisionais de todo o Mas uma vez conquistado o direito de
Estado de São Paulo. Este projeto começou em realizar o processo de encenação, mediante uma
1995, no Presídio Ataliba Nogueira, em Cam- apresentação prévia ao então diretor da casa, as
pinas, como projeto-piloto, e atingiu 34 unida- conquistas do grupo de teatro excederam as
des prisionais até seu encerramento, em dezem- melhores previsões iniciais. O espetáculo não só
bro de 2001. Sua metodologia utilizava técnicas foi apresentado dentro da unidade como obte-
consolidadas pelo Centro de Teatro do Opri- ve também o direito de ser representado em
mido, com o objetivo de propiciar à população outros presídios, abrindo um precedente que
prisional um aprendizado relativo à prevenção possibilitou uma série de apresentações públi-
de doenças sexualmente transmissíveis e, mais cas de O Auto da Compadecida, durante o ano
tarde, também sobre Direitos Humanos. de 1999, em espaços como o Teatro Sérgio Car-
Foi um projeto de grande repercussão, doso e o Tuca.
que envolvia personalidades de destaque como Sobre a montagem Suassuna escreveu, em
o próprio Augusto Boal e o diretor teatral in- sua coluna no jornal Folha de S. Paulo:

1 Theater in Prison and Probation, centro ligado à Universidade de Manchester, na Inglaterra, com o
objetivo de pesquisar a utilização de técnicas dramáticas em programas envolvendo população presa ou
em liberdade condicional.
2 A FUNAP – Fundação Professor Manuel Pedro Pimentel de Amparo ao Preso é um órgão ligado à
Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo cuja missão institucional é garantir
trabalho, educação e cultura à população encarcerada nos presídios do Estado.

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Um deles (referindo-se a um dos presidiários) sico e estudo coletivo para a elaboração das
chegou a declarar: “Em toda minha vida de cenas, tudo isso ganhava alto valor simbólico,
crime eu nunca senti emoção tão grande quan- visto que consolidava não só a credibilidade ar-
to a de trabalhar no teatro”. Pois posso garan- tística do grupo, como ampliava sua responsa-
tir, a ele e aos outros, que minha emoção não bilidade para com a própria manutenção do tea-
foi menor. Lembrado das palavras do Cristo, tro como atividade dentro da unidade penal.
o problema do castigo de uma pessoa huma- Neste sentido, é imprescindível atribuir
na sempre me angustiou; e, mesmo impoten- ao teatro o caráter agregador e coletivo inerente
te como seja, sempre foi profunda a compai- a seu exercício. Daí o peso de suas conquistas
xão que eu sinto por qualquer condenado. em um presídio, instituição total que prima pela
Assim, fiquei contente ao ver que minha peça massificação no trato dos indivíduos a ele sub-
tinha levado um pouco de alegria (e talvez al- metidos, promovendo o que Goffman define
guns momentos de reflexão) tanto aos atores como mortificação do eu (Goffman, 2001).
que a encenaram quanto ao público de de- A experiência do COC acaba quando o
tentos que assistiu ao espetáculo. Por alguns Complexo do Carandiru é desativado, e seus
momentos voltei a ser o menino que, na pe- presos são transferidos, em sua maioria, para a
quena cidade de Tapera, sertão da Paraíba, por Penitenciária do Tremembé, no final de 2001.
ordem da tia e da mãe ia, com outros irmãos, Mas durante todo aquele ano, o grupo
visitar os presos da cadeia local, numa tenta- constrói O Rei da Vela, de Oswald de Andrade,
tiva (também inócua, sei) de amenizar sua ter- texto escrito em 1933, mas que só conheceria
rível e dolorosa condição (Suassuna, 1999). os palcos em uma montagem histórica realiza-
da pelo Teatro Oficina em 1967, quando o con-
Diante da repercussão alcançada, o traba- texto político do país renovaria os significados
lho ganha continuidade, sob o título de Projeto de um texto que, definitivamente, é um dos
Teatro nas Prisões. O espetáculo seguinte con- mais instigantes já produzidos pela nossa dra-
tinuou a se aprofundar no universo farsesco e maturgia, e que conquista cada vez mais atuali-
popular da dramaturgia de Suassuna, com a dade na medida em que as estruturas políticas,
montagem de A Pena e a Lei, que iniciou suas sociais e econômicas do Brasil parecem pouco
apresentações em 2000, e seguiu o caminho tri- ter mudado ao longo de todos esses anos que
lhado pela montagem anterior: apresentações nos separam do autor modernista.
dentro da própria unidade, apresentações em Esta montagem representou a conclusão
outros presídios e apresentações em outros es- de um longo processo de construção de senti-
paços, chegando inclusive a levar a encenação dos para a possibilidade de inserção de práticas
para outras cidades que não a Capital Paulista, teatrais em presídios, ampliando justificativas
como Sorocaba. que estivessem vinculadas simplesmente ao ca-
Desta vez, entretanto, o grupo conseguiu ráter “ressocializador” da arte. O discurso da res-
permissão para contar com a presença de uma socialização invariavelmente promoveria um
atriz, o que representou uma enorme conquista julgamento das atitudes individuais de cada par-
para o processo, já que por se tratar de uma uni- ticipante do processo, desviando a atuação da
dade masculina, haveria considerável alteração prática teatral de seu eixo mais interessante: o
do material dramatúrgico, vez que os integran- de promover um exercício coletivo de constru-
tes se negavam a viver papéis femininos. ção artística, que se faz mais denso à medida em
A permissão, concedida pela unidade pe- que se amplia a discussão estética e que promo-
nal, para que uma jovem atriz fizesse parte dos ve melhores resultados quanto maior é o envol-
ensaios, considerando obviamente que ela rea- vimento dos integrantes em todas as camadas
lizaria atividades que pressupunham contato fí- da criação cênica.

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O Rei da Vela foi convidado, pelo próprio categoria de “posto de trabalho”, e não mais de
diretor do Teatro Oficina, Zé Celso Martinez “atividade cultural”, o que elevou sensivelmen-
Corrêa, a se apresentar no emblemático edifí- te a credibilidade da atividade artística em rela-
cio que serve de palco, há mais de trinta anos, ção aos apoios que vinha recebendo da direção
para as históricas encenações de um grupo que e dos funcionários da unidade penal.
é referência na trajetória das lutas de resistência Nos meses de setembro e outubro, foram
cultural do teatro brasileiro frente aos proble- realizadas doze apresentações do espetáculo
mas financeiros e estéticos que fazem parte da Mulheres de Papel, adaptação do texto Homens
identidade de nossos grupos teatrais. de Papel, de autoria de Plínio Marcos, cuja obra
A apresentação obteve grande repercussão sempre esteve voltada para a exposição das
e garantiu quase o dobro da capacidade do tea- mazelas sociais de nosso país e de suas persona-
tro, com o público lotando os três andares do gens marginalizadas.
espaço que compõe a área que lhe é destinada, A cena, tomada por um grupo de catado-
no arrojado teatro projetado pela arquiteta ita- ras de papel, decididas a promover uma greve
liana Lina Bo Bardi. Lá o público presenciou, contra os abusos que vinham sofrendo do com-
além do espetáculo, parte do trato dispensado prador do material por elas recolhido do lixo,
aos apenados, e que os muros da prisão escon- tem como conflito principal discussões na or-
dem: os atores, ainda recebendo aplausos calo- dem dos limites entre as expectativas individu-
rosos da platéia, foram algemados com brutali- ais e seu confronto com decisões de ordem co-
dade e, escoltados por dois policiais cada um, letiva, materializadas no embate entre o grupo
saíram correndo em direção ao porta-malas do e a personagem Nhanha, que não pretende ade-
camburão que os levaria ao presídio. rir à paralisação pela necessidade de conseguir
Em 2002 e 2003, a construção de um dinheiro para levar a filha ao médico.
novo espaço e de novos vínculos de reconheci- Essa complexa relação entre decisões co-
mento artístico aconteceria na Penitenciária Fe- letivas, por um lado, e opções individuais, por
minina do Tatuapé (PFT), ao lado da famige- outro, acabava por refletir o processo de cons-
rada unidade da Febem, famosa por promover, trução das regras que conduziam os ensaios e
junto a seus 1.600 adolescentes detidos, as mais que, portanto, definiram o próprio processo de
escandalosas rebeliões do sistema da Fundação construção do grupo. Tratava-se de um relacio-
Estadual para o Bem – Estar do Menor. namento diferente do habitual, para as presas,
Ali, durante dois anos, entre muitas lutas com o conceito de regras, que até então não se
por um lugar para ensaios, o projeto só conse- apresentavam a elas como um corpo orgânico,
guiu finalmente ganhar um espaço próprio e passível de alterações em fluxo dinâmico a fim
apropriado para o trabalho em uma sala do de atender às necessidades do grupo, e que só
segundo andar do pavilhão destinado às unida- teriam sentido se realmente fossem obedecidas
des de trabalho, em meados do segundo ano de não por medo de punição, mas por serem es-
processo. senciais ao pleno funcionamento dos ensaios.
Como isso foi conquistado? Pela boa O espetáculo foi visto por aproximada-
vontade do presídio, infelizmente, não foi. A mente mil pessoas, entre presas e público “de
FUNAP decidiu, pela primeira vez na história fora”, composto por muitas pessoas que entra-
da instituição, pagar uma bolsa-salário às par- vam em um presídio pela primeira vez, o que
ticipantes (este caráter de ineditismo acontece significava uma clara possibilidade de derrubada
porque o que está em jogo é uma ação cultural dos muitos muros que a sociedade erige em re-
e educativa, o que representou grande passo lação ao universo penal.
para a política educacional e cultural promovi- Entretanto, a despeito de toda a repercus-
da pela FUNAP). Assim, o teatro foi alçado à são obtida pelo trabalho, o presídio decidiu

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interromper as apresentações para o público ex- ao trabalho de criação dos atores e do encena-
terno, alegando impossibilidade do setor dis- dor a fim de produzir um forte discurso cênico
ciplinar em revistar, com a devida qualidade, to- cujo objetivo central era o de manifestar o valor
das as pessoas que adentravam a unidade a cada da resistência diante da opulência dos opresso-
apresentação. Em verdade, essa alegação é fruto res e da necessidade de se construir um apelo
do medo do corpo funcional do presídio diante contra as formas de tortura, seja as que se en-
da exposição de sua incompetência e de sua contram mascaradas em gestos assistencialistas,
incapacidade de lidar com uma platéia diferen- seja nas suas formas escancaradas e humilhan-
ciada, formada por um público diverso, incon- tes, como agressões físicas e manifestações de
formada com os maus tratos a que era submeti- força injustas, tão comuns no trato com os in-
da pelos responsáveis pela revista na entrada da divíduos encarcerados.
unidade prisional. Diante da possibilidade de realizar um
A conclusão recaiu de forma drástica processo teatral não mais submetido às regras
sobre o próprio trabalho, com a decisão da das unidades prisionais, mas fora delas, e envol-
FUNAP em retirar o projeto da Penitenciária ver homens e mulheres em regime semi-aberto
Feminina do Tatuapé, o que representou um e egressos do sistema penal, a construção do es-
golpe muito duro para as participantes do pro- petáculo conquistou a possibilidade de abordar
cesso. De qualquer forma, a decisão repercutiu determinadas questões com um grau de com-
em instâncias mais elevadas na hierarquia da plexidade que anteriormente precisava ficar su-
Secretaria da Administração Penitenciária, que bentendido, diante das limitações impostas pe-
derrubou a diretoria responsável pela saída do los presídios.
projeto da unidade, o que não deixa de revelar O conto de Sartre, O Muro, trata do
a importância atribuída ao teatro por figuras tema, tão caro ao existencialismo, da situação
importantes na implantação de políticas públi- limite. Um grupo de revolucionários é tor-
cas destinadas à população encarcerada. turado, das mais diversas formas, a fim de que
O que se seguiu foi a possibilidade, ofe- se revele o paradeiro do líder do movimento.
recida pela FUNAP, de realização do projeto Transplantado para a nossa complexa realidade
Teatro nas Prisões em um outro contexto. Em atual, quem seriam os revolucionários, quem
março de 2004, o Núcleo Panóptico de Teatro seriam os torturadores?
é fundado junto à Cooperativa Paulista de Partindo dessas indagações e aprofun-
Teatro, de forma a oficializar o vínculo de um dando debates e análises que se seguiam às im-
grupo de atores profissionais que foram se reu- provisações, que procuravam estabelecer a
nindo a Jorge Spínola ao longo de toda sua ex- aquisição dos códigos e princípios da linguagem
periência com teatro nas prisões. A esses artistas cênica e do trabalho de interpretação teatral, o
uniu-se um grupo de ex-presidiários e outro de grupo realizava instigante processo de elabora-
presos em regime semi-aberto, totalizando vin- ção de sentidos para as ações e diálogos do tex-
te pessoas. Em dezembro daquele ano, o grupo to, que conquistavam novas possibilidades a
realizou oito apresentações do espetáculo Mu- cada vez que iam para a cena.
ros no Pavilhão 2 do desativado (mas ainda vivo Passaram pelo processo aproximadamen-
na memória do sistema penal paulista) Caran- te cinqüenta pessoas, muitas das quais acabaram
diru, e seguiu em temporada, com apresenta- abandonando o trabalho à medida que conse-
ções gratuitas em diversos espaços da capital guiam um emprego, ou simplesmente não se
paulistana, durante o ano de 2005. identificavam com a natureza da prática teatral.
O espetáculo tomou como pontos de par- Com os presos em regime semi-aberto, a situa-
tida o conto O Muro, de Jean-Paul Sartre e ce- ção ficava bem mais complicada: suas vidas ain-
nas de O Balcão, de Jean Genet, que se uniram da estão submetidas à estrutura da prisão, e cada

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deslize por eles cometido, seja por chegarem A relação entre um processo de criação
atrasados à unidade prisional, seja por tentarem teatral investigativo e propiciador de reflexão
entrar na unidade carregando qualquer produ- em contextos prisionais ganha diversas possibi-
to que lhes é proibido portar, como peças de lidades de sentido nos âmbitos pedagógico, ar-
roupa ou alimentos, acarreta o desligamento tístico e social, no que tange às relações entre a
automático do trabalho. cena e as possíveis repercussões de um processo
São pequenos deslizes que a prisão trans- criador, fundamentado em princípios da liber-
forma em grandes delitos, sobretudo porque um dade, em um regime punitivo baseado, justa-
indivíduo em regime semi-aberto vive metade mente, na privação de liberdade.
do tempo com a ilusão da liberdade, e briga por Essa contradição, fundamental entre as
manter o máximo dela durante o tempo em que muitas outras com as quais se lida ao promover
ainda ficará atrás das grades, provocando con- um exercício de criação teatral em uma prisão,
fusões por coisas que consideramos absoluta- está intrincada no cerne de todas as atividades
mente banais, como o direito de levar uma re- enquadradas nas propostas “reabilitadoras” pro-
vista para o quarto (no caso deles, para a cela). movidas pelo presídio. Embora a maior parte
De qualquer forma, o trabalho obteve re- dos esforços da instituição penal esteja voltada
percussão graças ao fato de haver se transforma- para o controle da massa encarcerada e para o
do no último evento que possibilitaria ao públi- combate a manifestações que abalem sua ordem
co conhecer parte da antiga Casa de Detenção, interna, o discurso defendido pela prisão é ou-
o Carandiru, o mais famoso dos presídios, alça- tro, o de que sua ação está voltada para a trans-
do a monumento da irresponsabilidade de nos- formação do infrator em cidadão responsável,
sos políticos para com o tratamento do preso, mediante cumprimento da pena.
quando cenário do famoso massacre em que Sobre esta questão, Foucault, no célebre
cento e onze homens foram assassinados pela Vigiar e Punir, erige elaborada explanação, de-
tropa de choque da Polícia Militar, sob ordem monstrando que, paralelamente à consolidação
do então governador Luiz Antonio Fleury Fi- da prisão como modelo punitivo que se sobres-
lho, no fim de 1992. saiu no mundo dito civilizado, organizaram-se
As oito apresentações tiveram lotação uma série de saberes a partir de discursos pro-
esgotada e o projeto, que recebeu o reconhe- duzidos pelas mais diversas ciências (a arquite-
cimento de instâncias públicas de financia- tura, a psicologia, o direito, a psiquiatria, a pe-
mento, através da aprovação do trabalho do dagogia etc.). A soma desses discursos terminou
Núcleo Panóptico pela comissão da Lei de Fo- elaborando a Criminologia, responsável funda-
mento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, mental para a construção do conceito moderno
Lei 13.279-02,3 hoje alia às apresentações a con- de delinqüência, que sobrepõe ao ato transgres-
tinuidade de seu aperfeiçoamento e consolida- sor, portanto criminoso, o impulso transgressor,
ção de sua pesquisa, iniciando uma nova inves- de tal forma que passa a se debruçar sobre o in-
tigação, desta vez dirigida pela integrante Lígia divíduo, agora envolvido em uma série de lau-
Borges e tendo como foco explorar a estrutura dos, exames e testes que vão ligá-lo eternamen-
e as falas do texto Marat-Sade, de Peter Weiss. te à sua atitude penalizada.

3 A Lei de Fomento ao Teatro destina à produção teatral da cidade de São Paulo 6 milhões de reais,
distribuídos em dois processos de seleção realizados no decorrer de cada ano. Os critérios de avaliação
compreendem a análise da importância de se viabilizarem propostas cênicas que não pretendem se
submeter a leis do mercado e que se preocupem em multiplicar e difundir a arte teatral por toda a
cidade.

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Dessa forma, não resta ao indivíduo pe- cluindo com apresentações que sirvam apenas
nalizado, objeto da ação de todo aparato técni- aos intuitos da instituição penal em se mostrar
co-científico elaborado pelo saber penitenciário, apoiadora de atividades culturais, ainda que de
alternativa que não carregar eternamente o es- pouco valor artístico e educacional.
tigma de ter sido preso, e sua vida será tolhida O projeto Teatro nas Prisões e o Núcleo
de toda sorte de possibilidades oferecidas aos Panóptico de Teatro defenderam, inicialmente de
“normais”, de tal forma que não restem muitas forma sutil, a partir de textos que criticavam as
alternativas que não o retorno ao mundo do cri- estruturas que mantêm as desigualdades sociais
me. É por essa razão que no Brasil os índices de de nosso país, e atualmente de forma mais escan-
reincidência penal chegam ao número alarman- carada, ao fazer uso de um texto que revela as
te de 70%. Trata-se de um número assustador, estruturas de manutenção da ordem injusta que
sobretudo se levarmos em consideração que a permanece embasando a política e a manutenção
grande maioria (65%) cumpre pena por peque- das mazelas nacionais, a possibilidade de realiza-
nos furtos e roubos. Não são os violentos assas- ção de espetáculos que construam notável quali-
sinos que a mídia insiste em construir, não são dade artística e envolvimento real de todos os
os perigosos mentores do crime organizado a participantes na produção de um discurso cêni-
maior parte dos condenados. co que irradie questionamento e sentidos diver-
A trajetória do projeto Teatro nas Prisões sos aos que tiverem possibilidade de apreciá-lo.
e do trabalho do diretor teatral Jorge Spínola, à Para além do próprio processo teatral, e
frente do Núcleo Panóptico de Teatro, faz parte de todos os problemas que envolvam a produ-
dessa história, que ainda permanece marginali- ção de uma encenação dentro de presídios, ten-
zada e pouco debatida por instâncias mais am- do na população carcerária seus principais pro-
plas da sociedade. tagonistas, interessa ao Núcleo Panóptico o
Perdida entre discussões concernentes à momento do encontro com o público, quando
promoção da reabilitação, portanto centradas este, normalmente surpreendido pelo poder
em questões da própria promoção da ressociali- transformador da arte, reage emocionado à que-
zação, e temas relacionados a uma proposta de bra da expectativa de assistir a um espetáculo
integração entre arte teatral e processos educa- com presos, e conhece uma face que não costu-
tivos em prisões, a prática teatral em universos ma associar a esse universo: a beleza e o prazer
carcerários corre o risco de se perder na inge- da fruição de uma arte de resistência, que der-
nuidade de propostas que não promovam o ruba preconceitos e constrói novas conotações
envolvimento crítico de seus participantes, con- a essas vidas encarceradas.

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Referências bibliográficas

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