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Eletrificação Ferroviária em São Paulo

SÉRGIO FELIX PIRES

Resumo

Esta comunicação tem como objetivo apresentar as considerações principais da pesquisa de


Mestrado: ELETRIFICAÇÃO FERROVIÁRIA: Debates da engenharia nacional acerca da
modernização ferroviária (1922-1951). A tese que guiou essa Dissertação, é que a eletrificação
ferroviária era encarada por parte da engenharia ferroviária nacional como uma modernização
do setor ferroviário, fundamental para garantir a sua viabilidade. A hipótese central é que essas
propostas eram parte de uma ideologia sobre o que seria moderno e progressista e que estaria
relacionada tanto com o contexto econômico da crise ferroviária, quanto com a posição histórica
do capitalismo brasileiro, de via colonial. Em síntese: (i) analisou-se o papel central ocupado
pelas ferrovias no complexo agroexportador brasileiro, (ii) a crise ferroviária causada pelas
contradições do próprio complexo agroexportador e, por fim, (iii) as propostas de eletrificação
como uma modernização capaz de sanar essa crise, além de ser um fator de desenvolvimento
econômico nacional.

Palavras-chave

Eletrificação, Ferrovia, Modernidade.


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). A Dissertação foi defendida em setembro de 2018 e
contou com a Bolsa de Mestrado concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq). Contato: serg.pires@yahoo.com.br.
2

Introdução.

O presente artigo tem como objetivo apresentar um breve resumo da minha pesquisa de
Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHS) e defendida em
setembro de 2018 nas dependências da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)1. Em resumo, o trabalho objetivou analisar as
relações entre o contexto econômico das ferrovias paulistas do início do século XX e a pesquisa
científica sobre eletrificação ferroviária nesse período, secundariamente buscou-se entender a
ideologia daqueles engenheiros sobre o que seria a modernidade, expressa inúmeras vezes
naqueles documentos para se referirem as possibilidades de progresso trazidas pela energia
elétrica. Levando-se em conta os limites deste artigo, optou-se pelo seguinte recorte do trabalho
realizado na Dissertação: escolha de um dos artigos científicos usados na pesquisa para realizar
sua análise, percorrendo o mesmo caminho metodológico para demonstrar – a título de exemplo
– como se deu a trajetória daquele trabalho. O artigo escolhido foi publicado em 1905 pela
Revista Politécnica, da Escola Politécnica de São Paulo, intitulado “A Electricidade e a hulha
branca em S. Paulo”, de autoria do engenheiro Francisco Ferreira Ramos.

A escolha desse artigo deve-se ao seu pioneirismo, visto que foi a primeira publicação
da Revista Politécnica que tratou da eletrificação das ferrovias paulistas. A análise dessa fonte
realizou o seguinte percurso: (a) contextualização da conjuntura econômica brasileira a partir
da segunda metade do século XIX até o primeiro quinquênio do século XX, (b) explanação dos
impactos desse contexto sobre as ferrovias, (c) demonstração de como a eletrificação era
considerada, nesse artigo, como uma solução viável e racional para sanar os problemas pelos
quais passavam as ferrovias. O artigo de Francisco F. Ramos é uma demonstração da possível
relação de causalidade entre a conjuntura econômica nacional naquele período, as

1
Para obter o trabalho completo: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-15032019-
135048/pt-br.php. Acessado em setembro de 2019.
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características geológicas brasileiras especialmente desfavoráveis às ferrovias (ausência do


carvão mineral em qualidade e quantidade suficiente) e as pesquisas de eletrificação ferroviária.

Panorama Histórico: Café e ferrovias em São Paulo.

Escrever sobre a história ferroviária brasileira exige traçar uma contextualização do


papel central que o café ocupou na história econômica brasileira desde o século XIX até meados
do século seguinte. Na década de 1840 o produto se tornou o principal item de exportação no
país, representando sozinho cerca de 40% do valor total das exportações (SILVA, 1976: 40).
Com a alta de seus preços nos anos 1850, intensifica-se o processo de expansão dos cafezais e,
consequentemente, o aumento da produção de café; de acordo com os dados estatísticos
apresentados por Silva (1976: 49), a produção de café cresce de 1,7 milhão de sacas, entre 1841-
1850, para 5,3 milhões entre 1881-1890 e 7,2 milhões entre 1891-1900. O rápido crescimento
da produção é acompanhado da expansão dos cafezais e de seu deslocamento geográfico, as
fazendas se distanciam do litoral e ganham as “terras devolutas” do interior paulista, saindo do
Vale do Paraíba carioca para os planaltos de São Paulo.

O historiador Silva (1976: 49) analisou as relações entre a expansão cafeeira e as origens
da industrialização no Brasil. Ele argumenta que essa expansão foi fator determinante da
industrialização no estado de São Paulo, pelo fato do país, com o aumento das exportações,
conseguir atrair mais capitais externos. Essa captação de recursos se dava mediante a
remuneração direta graças à exportação e às novas demandas que surgiam como consequências
da produção cafeeira. O principal exemplo dessas novas necessidades foram as ferrovias,
contudo pode-se citar o surgimento das casas bancárias e de exportação, o desenvolvimento
urbano nas regiões produtoras, a crescente concentração populacional, o advento de um
mercado interno gerado com a tardia abolição da escravatura em 1888 e a imigração. Tais
demandas exigiram investimentos que em grande parte foram realizados pelo capital externo.
Mas graças ao aumento do comércio internacional realizado pelo Brasil, via a venda do café, o
país contou com uma burguesia capaz de realizar, também, os investimentos necessários a
manutenção e expansão do complexo cafeicultor paulista.
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Um dos grandes gargalos a expansão territorial dos cafezais eram os meios inadequados
de transporte. Na época, o modo principal de transporte era através das tropas de mula; uma
forma altamente dispendiosa de locomoção que inviabilizava a expansão cafeeira. Silva
menciona um estudo sobre o custo com o transporte de café por via férrea, comparado ao
realizado por tropas de mula; concluindo que as estradas de ferro eram capazes de reduzir em
até seis vezes aquele dispêndio; o que explica a rápida expansão das ferrovias no período,
seguindo de perto as fazendas de café em traçados que, do ponto de vista técnico, eram menos
eficientes por serem muito sinuosos, mas correspondiam às demandas dos cafeicultores por
estradas férreas próximas de suas terras, por facilitar a escoação da produção (SILVA, 1976:
57).

A primeira ferrovia em São Paulo ligava a cidade de Jundiaí à Santos, a São Paulo
Railway Co. Ltd. (SPR), implantada em 1867. Essa linha era de implantação mais urgente, pois
permitiria o escoamento do café vindo do interior rumo ao porto de Santos, vencendo a Serra
do Mar. Todavia, não sendo suficiente que essa ferrovia se limitasse a cidade de Jundiaí e diante
da falta de interesse dos investidores ingleses em prolongar a SPR para o interior, os principais
cafeicultores das cidades de Campinas, Rio Claro, Limeira e Araras se unem para fundar a
Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF) e fazer a ligação entre Jundiaí e Campinas,
em 1872. Outras companhias ferroviárias surgiram em São Paulo desde então, tais como a
Estrada de Ferro Mogiana (Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e Navegação: CMEF)
a partir de 1875. A Estrada de Ferro Sorocabana (EFS), que só começa a operar regularmente
a partir 1919, mas os primeiros assentamentos de trilhos ocorrem em 1875.

Segue o Gráfico 1, que possibilita observar a evolução ferroviária desde os anos 1885
até 1905 (MATOS, 1974):
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Gráfico 1 - Extensão da rede ferroviária em tráfego 1885-1905 (km)


18.000

16.000

14.000

12.000

10.000

8.000

6.000

4.000

2.000

0
1886
1887
1888
1889

1891
1892

1894
1895
1896
1897
1898
1899
1900

1902
1903

1905
1885

1890

1893

1901

1904
Fonte: Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais
de 1550 a 1988. 2. ed. rev. e atual. do v. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio
de Janeiro: IBGE, 1990. Disponível em:
https://seculoxx.ibge.gov.br/economicas/tabelas-setoriais/ Acesso em fev. de 2018.

Crise cambial e superprodução cafeeira: causas e efeitos.

No final do século XIX os cafeicultores brasileiros precisaram enfrentar o problema da


superprodução e do subconsumo mundial de café, cujo efeito é a desvalorização dos preços
internacionais do produto. Em 1882 a produção mundial cafeeira ultrapassa o consumo, pouco
depois a crise mundial de 1893 (que foi particularmente prolongada nos EUA, principal
consumidor do café brasileiro) contribui para acelerar a desvalorização.

Segundo os dados elencados por Furtado (2007: 253), o preço da saca de café (60 kg)
se encontrava no patamar de 4,09 libras em 1893, sofre queda para 2,91 libras em 1896 e vai a
1,48 libra em 1899, em resumo: uma queda de mais de 60% entre 1893 e 1899. Nesse período,
a recém instaurada República inicia uma série de políticas inflacionárias que resultam na
depreciação do valor da moeda brasileira (mil-réis); uma das consequências de tal política foi
reduzir o impacto da desvalorização do preço internacional do café. Todavia, as outras
consequências de tais políticas foram o aumento do custo de vida da população, perdas no valor
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real dos salários e encarecimento do preço das importações em geral, especialmente itens
alimentares.

Diante da inquietação social causada por tal política econômica, o governo republicano
se vê forçado a sanear as contas públicas. Realiza em 1898 uma operação de funding-loan com
o grupo financeiro Rothschild & Sons e como uma das exigências do banco, o governo adota
uma política de austeridade visando manter o equilíbrio das contas públicas para garantir o
pagamento da dívida (SILVA, 1976: 63-4). Outra operação de saneamento financeiro é o
combate a depreciação cambial da moeda, obtendo como resultado a recuperação parcial de seu
valor monetário.

Segue o Gráfico 2 com a variação cambial de 1885 a 1905:

Gráfico 2 - Taxa de câmbio: mil-réis por libra esterlina (em pence)


30,000

25,000

20,000

15,000

10,000

5,000

0,000
1885
1886
1887
1888

1890
1891
1892
1893
1894
1895
1896
1897

1899
1900
1901
1902
1903
1904
1905
1889

1898

Fonte: Para 1822 - 1939: IBGE. Anuário Estatístico do Brasil, Ano V, 1939-40,
Apêndice - Séries Retropesctivas, p. 1333. Tabela II - Curso do câmbio na Praça do
Rio de Janeiro, 1822/1939. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/ Acesso em
fev. de 2018.

A permanência da superprodução cafeeira continuava sem solução. Em 1882, quando a


produção mundial de café ultrapassou o consumo pela primeira vez, o Brasil respondia por
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53,5% da produção mundial. De acordo com Silva (1976: 66), entre 1897-98 a produção foi de
7.250 milhares de sacas, se elevando em 1901-02 para 16.270.678 sacas, alcançando nesses
anos cerca de 82% da produção mundial. Entre 1906-1907 a produção ultrapassaria as 20
milhões de sacas! Essa superprodução comprime os preços do café; sem a contrapartida do
valor de câmbio baixo da moeda nacional, os cafeicultores se veem em apuros, com a
possibilidade de não obterem o retorno de seu investimento na produção.

Em 1906, a alta burguesia cafeeira se reúne na cidade de Taubaté (SP), para definir a
política de defesa do preço do café, que se resume em: (i) o governo deveria comprar os
excedentes pra evitar que esses fossem exportados, estabelecendo assim o equilíbrio (artificial)
entre oferta e demanda, (ii) financiamento dessas compras por empréstimos de bancos
estrangeiros, (iii) pagamento desses empréstimos com os recursos de um novo imposto sobre a
exportação do café e (iv) adoção de medidas pelo governo para desencorajar a expansão de
novas plantações de café (FURTADO, 2007: 253-4). Tal política buscava reduzir ao máximo
os impactos da queda de preços do café, garantindo a rentabilidade dos cafeicultores e
transferindo para o futuro uma solução efetiva para o problema da superprodução, que
continuaria ocorrendo. As políticas de defesa, em conjunto com as crises cambiais, teriam
impactos profundos nas ferrovias.

A crise do setor ferroviário: o problema dos combustíveis.

As mudanças na política econômica impactaram de forma marcante as empresas


ferroviárias. Como o Brasil apresenta um solo pobre em carvão mineral, tanto em termos
quantitativos como de qualidade (o carvão nacional é majoritariamente de baixo valor
energético), as ferrovias desde o início de sua implantação eram forçadas a importar o
combustível usado por suas locomotivas. Diante da mudança da política cambial, que
depreciava o valor da moeda e encarecia as importações, o orçamento ferroviário sofria grande
impacto em virtude do aumento dos custos com o carvão estrangeiro.

Outro ponto é a desvalorização do valor real dos salários do pessoal empregado nas
ferrovias, forçando essas empresas a aumentarem os salários de seus funcionários. Essa
desvalorização era causada pela inflação gerada pelo aumento dos preços dos itens importados,
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causados, por sua vez, pela depressão cambial. Não bastasse isso, as empresas ferroviárias eram
impedidas de elevarem suas tarifas sobre o frete de transporte, pois como demonstrou Flávio
Saes (1981: 124), muitos proprietários não teriam condições de pagar por esses fretes em caso
de aumento. No caso da principal mercadoria transportada, o café, seus produtores
pressionavam contra o reajuste do frete, mantendo baixo os custos com a escoação do produto.
É importante ressaltar que muitos desses cafeicultores estavam entre os principais acionistas
dessas empresas.

Por todas essas razões, as empresas ferroviárias passam a enfrentar dificuldades


financeiras a partir da década de 1890. Tornando-se deficitárias conforme o tempo, uma vez
que mesmo com a autorização do reajuste das tarifas – graças a adoção da “tarifa móvel” a
partir de 1893 – essas nunca foram reajustadas na medida e no tempo necessário para compensar
os custos com a operação (SAES, 1981: 130). Esse ponto é importante, Saes (1981: idem)
demonstra como o gasto com pessoal empregado mais combustível representava cerca de 75%
da totalidade dos custos de operação nas ferrovias analisadas em seu trabalho. A importância
desse ponto reside em ele demonstrar a relação do difícil contexto econômico pelo qual
passavam as ferrovias nesse período e os diversos estudos técnicos da época que propunham a
eletrificação das ferrovias; uma solução nacional para reduzir o déficit dessas empresas com a
importação dos combustíveis. Como exemplo desse movimento, será apresentado um caso de
especial relevância, o primeiro estudo sobre a eletrificação ferroviária publicado pela Revista
Politécnica, da Escola Politécnica de São Paulo.

Uma possível solução: eletrificação ferroviária.

A eletrificação ferroviária data do final do século XIX. A primeira linha férrea


eletrificada foi aberta na Alemanha em 1881, mais tarde foram abertas as linhas de Brighton
(Reino Unido) e Viena (Áustria) a partir de 1883. No decorrer da década de 1920, foram criadas
linhas férreas eletrificadas em vários países da Europa, como Suíça, Inglaterra, Espanha, França
e Alemanha. No continente americano foram implantadas linhas nos Estados Unidos,
Argentina, México e Chile (OLIVEIRA, 2012: 200).
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Nas primeiras décadas, a eletrificação nesses países foi adotada devido à necessidade de
os trens passarem por extensos túneis nas áreas urbanas, o que causava problemas com a fumaça
e os ruídos gerados pelas locomotivas a vapor. Com o tempo, as vantagens do sistema elétrico
de tração foram sendo exploradas com outros fins, inclusive para a redução do custo com
combustível.

No Brasil, a eletrificação ferroviária tem início, de certa forma, com as operações de


bondes elétricos inauguradas pela The São Paulo Light and Power no início do século XX. No
entanto, os primeiros debates e estudos sobre a possibilidade de eletrificação ferroviária no
Brasil datam de 1904, nos anais do Club de Engenharia do Rio de Janeiro, quando se discutia
a viabilidade da eletrificação da ferrovia Madeira-Mamoré (MEMORIA DA ELETRICIDADE,
2001). Buscava-se uma solução alternativa ao carvão importado, que consistiria em aproveitar
o potencial hidráulico do rio Madeira para implantar uma hidrelétrica que pudesse abastecer a
ferrovia. Tal projeto não saiu do papel, mas já indica que o tema não era despercebido pelo
público especializado brasileiro.

Em que pese a existência das linhas de bondes elétricos, considera-se que a primeira
ferrovia a ser eletrificada foi a Estrada de Ferro do Corcovado, no Rio de Janeiro, em 1910
(MEMORIA DA ELETRICIDADE, 2001: 101). Entre 1914 e 1920 houve respectivamente a
eletrificação da Estrada de Ferro Morro Velho (EFMV) e Ramal Férreo Campineiro, mas essas
estradas eram de curta extensão e baixa densidade de carga; o verdadeiro marco da eletrificação
ferroviária no Brasil foi realizado pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF), com
as obras sendo executadas no trecho entre Jundiaí à Campinas (44 km) em 1922 (TASSI, 2015:
37).

Antes desses empreendimentos, já havia estudos entre os engenheiros brasileiros sobre


a viabilidade e a necessidade da eletrificação das ferrovias nacionais – principalmente em São
Paulo – estudos esses que possuem íntima relação com o contexto econômico das ferrovias na
época. A seguir, apresenta-se um caso, considerado marcante, de estudo sobre eletrificação
ferroviária no início do século XX.
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Hulha branca e autonomia

Antes de passar para a análise deste estudo de caso, é preciso contextualizar alguns
pontos. Em primeiro lugar, no ano em que foi publicado o artigo que será objeto de análise
(1905), o Brasil já possuía diversos centros de formação de engenheiros; como exemplos a
Escola Politécnica de São Paulo (1893), Escola de Engenharia de Pernambuco (1895), Escola
de Engenharia Mackenzie (1896), Escola de Engenharia de Porto Alegre e Escola Politécnica
da Bahia (1896) (MOTOYAMA, 2004: 196).

O segundo ponto a se contextualizar é a capacidade instalada de eletricidade no Brasil


no ano de 1905. Antes, cabe mencionar que a primeira utilização da energia hidrelétrica no país
se deu em 1883, em um local denominado Ribeirão do Inferno, localizado no estado de Minas
Gerais. Outro marco do uso da hidroeletricidade no Brasil é a usina Marmelos-0 (250 kW), em
Juiz de Fora (MG), implantada em 1889 e idealizada pelo industrial Bernado Mascarenhas para
a sua fábrica de tecidos (MAGALHAES, 2000: 48). Até o ano de 1905 cerca de 15 cidades
brasileiras já contavam com o serviço de energia elétrica, sendo São Paulo a quinta cidade a
contar com o serviço (Idem: 68). O ritmo de construção de centrais de geração elétrica foi
crescente desde 1890, quando foram construídas duas centrais. Em 1900 já eram quinze, na
década de 1910 mais treze entraram em operação (Idem: 55).

O Gráfico 3 permite visualizar a evolução da potência instalada de usinas de geração de


eletricidade no período selecionado (1900-1910), com o recorte inicial em 1900, quando o
Brasil já contava com 10 usinas:
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Gráfico 3 - Potência instalada das UHE 1900-1910 (Termoelétricas e


hidrelétricas) em MW.
50
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
1900 1901 1902 1903 1904 1905

Fonte: Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais


de 1550 a 1988. 2. ed. rev. e atual. do v. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio
de Janeiro: IBGE, 1990. Disponível em:
https://seculoxx.ibge.gov.br/economicas/tabelas-setoriais/ Acesso em fev. de 2018.

A breve contextualização realizada anteriormente, demonstra que no período em estudo


havia no Brasil um pequeno, porém nada desprezível, corpo de engenheiros. O país também
possuía experiências acumuladas em hidroeletricidade e uma crescente capacidade instalada de
usinas de geração elétrica. Sendo assim, ao menos no que diz respeito ao nível do conhecimento
científico e da capacidade técnica, havia potencial para se implantar a eletrificação nas ferrovias
existentes à época.

É vasta a literatura especializada, especialmente após a década de 1920, sobre o assunto


da eletrificação ferroviária. Para os fins e limites desse artigo escolheu-se, em caráter amostral,
uma publicação da Revista Politécnica aqui considerada como um marco no assunto em
questão, devido ao seu pioneirismo em tratar desse tema em São Paulo; pelo menos nos meios
especializados da engenharia nacional. A publicação na Revista Politécnica, em 1905, do artigo
A Electricidade e a hulha branca em S. Paulo, de autoria do engenheiro Francisco Ferreira
Ramos, chama a atenção por demonstrar que já nessa época os engenheiros tinham a segura
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dimensão do potencial hidráulico dos rios localizados no Estado de São Paulo (RAMOS, 1905).
Tal potencial era, na época, denominado de “hulha branca”, em um claro paralelismo com a
“hulha negra”, o carvão mineral.

Francisco F. Ramos, de início, menciona uma característica sempre lembrada da energia


elétrica: ela é uma forma de energia “limpa”. Em um trecho interessante, ele destaca que:

Na opinião de pranteado amigo e colega dr. Adolpho Aschoff, a Light and Power
estabelecendo as inúmeras linhas de tranways que cercam a cidade [...], acabava de
resolver um dos múltiplos problemas do saneamento da capital [São Paulo].
De facto, a eletricidade não só não consome o oxigênio [...], como não produz o gás
carbônico, o maior viciador do ar (RAMOS, 1905: 107).

Observe-se que esse comentário, escrito por Ramos no início do século XX, se mantêm
atual. Principalmente quando se trata de uma metrópole como São Paulo, em que uma malha
metroviária mais extensa aliviaria os problemas relativos à poluição emitida por veículos
automotivos.

Também chama a atenção, a descrição que o autor faz do potencial energético dos rios
próximos da capital paulista. Por exemplo, o rio Tietê ao se aproximar do Salto de Itu
acumularia, em seu desnível, uma força de 75 mil cavalos-vapor; o engenheiro também
apresenta o cálculo dos saltos “quase unidos” de Itapura e Urubupungá, que poderiam chegar a
6 milhões de litros, um volume quase igual ao “grande Niágara” dos Estados Unidos e capaz
de gerar mais de um milhão de cavalos-vapor, energia que, segundo Ramos, representaria o
quadruplo de toda a energia consumida no estado de São Paulo naquele período.

Especificamente sobre a viabilidade da eletrificação das ferrovias:

Nessa ocasião as quedas do Tietê entre a Capital [São Paulo] e Salto de Itu e as
vizinhas do Rio Piracicaba, auxiliadas por algumas do Rio Paraíba, somando todas
mais de 100.000 cavalos-vapor de potência, poderiam fazer a tração: de toda a E. de
Ferro Inglesa (de Santos a Jundiaí), de todo o trecho da bitola larga da Companhia
Paulista e seus tributários laterais, de toda a Ituana e Estrada de Ferro do Norte (hoje
Central), situadas em raio inferior a 300 quilômetros desses centros de energia e
absorvendo um total de menos de 50.000 cavalos-vapor (RAMOS, 1905: 109).
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Ao trecho selecionado, seguem outros que se resume a seguir: as quedas do rio Jaguari,
as cachoeiras do rio Mogi, as quedas do rio Pardo até sua junção com o Rio Grande, somadas
resultam em um potencial energético de mais de 100 mil cavalos-vapor e poderiam fazer a
tração de toda a “futurosa Mogiana, de Campinas a Araguari” (RAMOS, 1905: 109),
necessitando de apenas 25 mil cavalos-vapor de força; Ramos conclui a lista com os Saltos de
Itupararanga, em Sorocaba, e do baixo Tietê (Porto Feliz), que somados teriam potencial
energético de 60 mil cavalos e seriam suficientes para fazer a tração da Estrada de Ferro
Sorocabana e das linhas de bitola estreita da Companhia Paulista de Estradas de Ferro.

Diante dos dados expostos, fica claro que já em 1905 era de conhecimento da engenharia
paulista o potencial energético dos rios, inclusive aqueles próximos da capital do estado.
Também se verifica que não passou despercebido entre o meio especializado nacional a
viabilidade de se usar esse potencial para a tração elétrica ferroviária. Para além da eletrificação
das vias férreas, o artigo menciona a importância da energia elétrica para a nascente indústria
de São Paulo, demonstrando que a “hulha branca” nacional já era considerada um importante
fator da futura industrialização.

O trecho final do documento tem especial relevância para a presente análise, diz Ramos:

[...] Muitas vezes ouço esta pergunta: por que é que a tração elétrica nos Estados
Unidos e Europa não está tão desenvolvida? A razão é simples: lá uma tonelada de
carvão custa cerca de 8 a 10$000 enquanto que aqui e no interior do Estado [de São
Paulo] fica em mais de 50$000. É nesta diferença que há de repousar o sucesso da
hulha branca entre nós (RAMOS, 1905: 111).

O trecho apresentado é de fundamental importância para o argumento que se sustenta


nesse artigo, qual seja: a relação de causalidade entre o contexto econômico das ferrovias no
início do século XX e esse estudo sobre a eletrificação ferroviária no Brasil. Ramos afirma
claramente que é a discrepância do preço do carvão, mais barato na Europa e nos EUA em
relação aos preços praticados no Brasil, que reside a sua confiança de que a “hulha branca” –
ou mais precisamente o potencial hidrelétrico dos nossos rios – teria sucesso em substituir o
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carvão estrangeiro; tornando-se ela o principal insumo energético para a industrialização e para
a substituição da tração a vapor pela tração elétrica nas ferrovias paulistas.

Foi mencionado anteriormente que nesse ano, 1905, as ferrovias enfrentavam as


dificuldades financeiras impostas pelas políticas cambiais. Tais encargos pesavam sobre as
ferrovias principalmente devido à importação do carvão (além de material rodante). Ramos
propõe justamente uma solução tecnológica (o uso da hidroeletricidade) para sanar ou mitigar
um problema causado por razões econômicas que, por sua vez, estavam intimamente ligadas
com os problemas pelos quais passava a produção cafeeira no período.

Para os objetivos e limites deste artigo, pode-se resignar em afirmar que propostas e
estudos para superar os problemas dos altos preços do carvão importado para as ferrovias
existiam e eram do conhecimento da engenharia da época. Havia, portanto, condições de se
implantar a eletrificação ferroviária. As razões da não generalização de uma política de
eletrificação ferroviária escapam ao escopo deste artigo, mas permanecem uma lacuna na
história da infraestrutura nacional de transportes.

Considerações finais.

Para além das questões relacionadas à tecnologia, é interessante observar no artigo de


Ramos a sua busca pela autonomia energética brasileira. A sua pesquisa sobre a hulha branca,
listando o potencial hidráulico dos rios paulistas e indicando o seu uso nas ferrovias e na
indústria paulista, colocam em evidência a luta desse engenheiro contra a dependência brasileira
do carvão mineral; luta essa que Ramos deixa claro na última citação, ao comparar os preços
do carvão mineral praticados no exterior e no Brasil. Em resumo, Ramos defendia a substituição
da importação da hulha negra pela hulha branca como um fator fundamental para a
industrialização do país e para a recuperação financeira do setor ferroviário.

Referências

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MAGALHÃES, Gildo. Força e luz: eletricidade e modernização na República Velha. São


Paulo: Editora Unesp: FAPESP, 2000.
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MATOS, Odilon Nogueira de. Café e ferrovias: a evolução ferroviária de São Paulo e o
desenvolvimento da cultura cafeeira. São Paulo, Alfa-Ômega. 1974.

MEMÓRIA DA ELETRICIDADE. Energia elétrica em questão: debates no Clube de


Engenharia. Centro da Memória da Eletricidade no Brasil; coordenação Paulo Brandi de Barros
Cachapuz. Rio de Janeiro, 2001.

MOTOYAMA, Shozo (org.). Prelúdio para uma História: Ciência e Tecnologia no Brasil.
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