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Há um tinir que anuncia a manhã...

(Francis Duarte)

Há um tinir que anuncia a manhã,


o sol entra pela fresta da janela e recobre
as louças silenciosas do armário...
É inverno, mas poderia ser até primavera,
o tempo já não importa entre os dedos
que reescrevem os dias.
Penso na alma quilômetros distante,
três homens se debatem num corpo:
o homem sério e comprometido com as responsabilidades,
o outro que se desmancha entre veredas, versos e livros
e um quase menino a ecoar uma risada que brilha no céu da boca.
Olho a vida entre telas:
do computador, do telefone e das janelas...
as retorcidas faces que se confundem
no fundo da rua que avisto cotidianamente.
O som do sorriso sob a máscara
se dissipa entre telhados que somem no horizonte.
“Como se palmilhasse vagamente uma estrada” (...)
Os versos do mestre abrem, “majestosa e circunspecta”,
a “máquina do meu mundo perdido”.
Algo entre Drummond e Milton?
Apenas o tempo ainda superior ao quase-pensar-sentimento.
As horas pendem sobre mim... sobre meu corpo
e sobre a mesa, os infinitos cadernos abrem e fecham incessantemente.
Ficções brotam da mente que arde
e intensa, dobram sob a sombra da morte que assola o mundo
tão partido quanto a carne que tremula com receio
de anos de solidão....
Hoje, junto de outros mascarados,
o amor vagueia entre histórias mal... ditas
e que se completam numa realidade paralela
onde milhares de mãos, sem sorte,
tentam se agarrar, mas apenas vagueiam.
Aos poucos os dias tomam consciência do possível ou não.
Será que em algum lugar ou tempo existiremos?
Da janela, ainda ouço o som do movimento das ruas.
Aos pedaços, pessoas, carregam “todos os sonhos do mundo”
entre transportes “pseudo-públicos” e vozes que escorrem
pelas palmas das mãos encardidas de miséria humana.
Respiração. Sinto o cheiro da pele que desconheço
sinto o poeta que insiste no amor, certo de certas certezas,
mas sem paciência de se apropriar do real.
“As paixões, os impulsos e os tormentos”
E novamente a máquina do meu “mundo perdido” e
submerso, tal como as cidades,
é alimentada por sonhos que se envergam
entorno da civilização que me habita.
Imagens difusas e ligeiras
feito carne, pele e mais ficções.
Ainda penso nas telas que me servem de anteparo,
mas que arranco milhares de vezes ao dia
para que meus dedos possam tocar o infinito.
A vida que nos é arrancada enquanto idealizo,
mas sinto as dores do tempo a correr pela história e
sinto medo das flores que dormem no silêncio vazio.
Novamente respiro e sinto o amor que resiste junto ao prematuro...
Ele dança como menino entre chamas. Flerta com o perigo.
Dos meus olhos, boca e cabelos brotam mil outras histórias
que se enroscam em meu corpo e se multiplicam em eus que
me abraçam desesperadamente.
O incerto, o duvidoso, o tempo
os homens, os eus, a “máquina do mundo”,
os poetas, os livros e os cadernos sobre a mesa,
a vida incerta e sob o cheiro da morte. Pulsão.
E o tinir que anuncia outra e outra e outra manhã,
e novamente o sol a entrar pela fresta da janela e recobre
as louças silenciosas do armário.

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