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Julia SALGADO1
Resumo:
Neste artigo, realizo uma análise de discursos midiáticos e institucionais sobre o
microempreendedor individual (MEI) com o objetivo de pensar no conceito de
cidadania empresarial, constantemente usado na promoção desta figura. Recorrendo a
um referencial teórico proveniente sobretudo das ciências sociais e dos estudos
culturais, reflito sobre as transformações do conceito de cidadania em um cenário
neoliberal. Distanciando-se de uma concepção tradicional, segundo a qual a cidadania é
pensada em termos coletivos e inclusivos, sugiro que a noção de cidadania empresarial
se fundamenta sobre valores individualistas, recorrendo à noção de mérito para
justificar seu restrito acesso.
Palavras-chave: MEI; Cidadania empresarial; Discursos midiáticos; Subjetividade;
Mérito.
Abstract:
In this article, I carry out an analysis of media and institutional discourses about the
individual microentrepreneur (MEI) with the objective of thinking about the concept of
corporate citizenship, constantly used in the promotion of this figure. Using a
theoretical framework derived mainly from sociology and cultural studies, I reflect on
the transformations of the concept of citizenship in a neoliberal scenario. Moving away
from a traditional conception, according to which citizenship is thought in collective
and inclusive terms, I suggest that the notion of corporate citizenship is based on
individualistic values, using the notion of merit to justify its restricted access.
Resumen:
En este artículo realizo un análisis de los discursos mediáticos e institucionales sobre el
microempresario individual (MEI) con el objetivo de reflexionar sobre el concepto de
ciudadanía corporativa, utilizado constantemente en la promoción de esta figura.
Utilizando un marco teórico derivado principalmente de la sociología y los estudios
culturales, reflexiono sobre las transformaciones del concepto de ciudadanía en un
escenario neoliberal. Alejándonos de una concepción tradicional, según la cual la
ciudadanía se piensa en términos colectivos e inclusivos, sugiero que la noción de
ciudadanía corporativa se basa en valores individualistas, utilizando la noción de mérito
para justificar su acceso restringido.
Palabras clave: MEI; Ciudadanía corporativa; Discurso de los medios; Subjetividad;
Mérito.
Introdução
Em meados de setembro de 2020, matéria da seção Economia do Portal G1
atesta: "País ganhou quase 1 milhão de MEIs desde o início da pandemia" 2. Na
reportagem, testemunhos de novos microempreendedores individuais embasam o
argumento central do texto: com "o aumento do desemprego e maior flexibilização das
relações de trabalho, muitos brasileiros têm sido empurrados para o chamado
'empreendedorismo por necessidade' como uma forma de sobrevivência". De acordo
com dados do IBGE, trazidos pela própria matéria, 1,092 milhão de empregos formais
foram perdidos desde o início da pandemia, o que, de certa maneira, explicaria tamanha
procura pelo MEI no país.
Uma análise mais detalhada nos dados de adesão ao MEI, no entanto, nos
mostra que, embora o alto desemprego gerado pela pandemia tenha intensificado a
formalização de microempreendedores ao longo de 2020, a grande procura pela
categoria segue uma tendência crescente desde sua criação, em 2009 (ver Gráfico 1) 3.
Portanto, o que assistimos hoje pode ser visto como uma intensificação, no contexto da
Mas como, e sob quais condições, foi possível que o empreendedor, figura
fortemente relacionada à cultura e à mentalidade anglo saxônica e protestante, se
tornasse tão popular em um país como o Brasil? Este questionamento norteou algumas
de minhas pesquisas mais recentes, dando, entre outros, origem a este artigo. Através da
análise de discursos midiáticos e institucionais, busquei compreender os sentidos e
significados atribuídos, ao longo desse período, a esta figura e percebi que a figura do
empreendedor vai progressivamente se diversificando.
Se, até a virada do século XXI, os modos de ser empreendedor estavam
fortemente associados à figura masculina, de meia idade, que desenvolve uma atividade
empresarial e pertence majoritariamente a uma classe média-alta; com o passar dos anos
tais formas vão se multiplicando, passando a incluir também figuras femininas, jovens
(e mesmo crianças), que pertencem a diversas classes sociais e desenvolvem variadas
atividades econômicas, não necessariamente ligadas a uma atividade empresarial. Como
profetizara Michel Foucault no final da década de 1970, “ser empreendedor” se torna
mais do que uma atividade econômica: é um modo de ser e estar no mundo, uma
4 Com a exceção do ano de 2008, em que a taxa de adesão sofreu uma retração de 2%, as adesões ao MEI
seguem uma tendência de constante crescimento, com taxa média de 20% ao ano nos últimos 12 anos.
Conclusão
O exame de alguns discursos institucionais e midiáticos permitiu perceber que a
subjetividade do MEI ali construída está longe de ser específica. Ao contrário, engloba
desde os mais excluídos dos brasileiros (como aqueles que dependem do auxílio do
Bolsa Família), passando por “batalhadores” que garantem “sua sobrevivência por meio
de muito trabalho e de criatividade” e chegando até os integrantes de uma classe média
instruída e com amplo potencial para decidir sobre seus destinos profissionais. Em
comum, tais brasileiros teriam, segundo os discursos, o sonho de “tomar as rédeas da
vida” e ter o próprio negócio, algo que se torna acessível à grande parte da população
com uma nova legislação, através da qual o Estado brasileiro expurga parte de seus
pecados e se redime aos olhos do mercado.
Há, no entanto, uma outra característica comum entre os MEIs que não é
destacada pelos discursos midiáticos ou institucionais. Trata-se de uma nítida
associação desta figura à racionalidade neoliberal, que prevê a privatização das relações
e uma guinada individualista na sociedade, valorizando conquistas particulares através
do discurso do mérito. Assim, para além de uma inédita faixa tributária e uma nova
categoria de atuação mercadológica, o MEI promove e populariza uma renovada
acepção de cidadania, a “cidadania empresarial”. Lastreada no fundamento da livre
concorrência, a cidadania empresarial – entendida no caso do MEI não como direitos,
mas como possibilidade de acesso – se torna efetiva apenas para aqueles indivíduos
adequados à lógica empresarial, ou seja, para os sujeitos ajustados, corpórea e
mentalmente, à racionalidade empreendedora.
Debruçar-nos, ainda que brevemente, sobre algumas diferentes conceituações é
um exercício fértil para refletir sobre as moralidades e normatividades que nos regem
em cada momento histórico. A versão hodierna da cidadania, ajustada à lógica
empresarial, nos indica com bastante clareza a primazia da racionalidade neoliberal e
individualista sobre nossos modos de pensar e conceber a nós mesmos enquanto
sujeitos. Não se trata de determinar qual “versão da cidadania” é melhor ou pior, nem
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