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Revista Mídia e Cotidiano

Artigo Seção Livre


Volume 14, Número 3, set-dez de 2020
Submetido em: xxxxx
Aprovado em: xxxxx

Microempreendedor individual e a noção de cidadania empresarial

Individual microentrepreneur and the concept of corporate citizenship

Microemprendedor individual y el concepto de ciudadanía empresarial

Julia SALGADO1

Resumo:
Neste artigo, realizo uma análise de discursos midiáticos e institucionais sobre o
microempreendedor individual (MEI) com o objetivo de pensar no conceito de
cidadania empresarial, constantemente usado na promoção desta figura. Recorrendo a
um referencial teórico proveniente sobretudo das ciências sociais e dos estudos
culturais, reflito sobre as transformações do conceito de cidadania em um cenário
neoliberal. Distanciando-se de uma concepção tradicional, segundo a qual a cidadania é
pensada em termos coletivos e inclusivos, sugiro que a noção de cidadania empresarial
se fundamenta sobre valores individualistas, recorrendo à noção de mérito para
justificar seu restrito acesso.
Palavras-chave: MEI; Cidadania empresarial; Discursos midiáticos; Subjetividade;
Mérito.

Abstract:
In this article, I carry out an analysis of media and institutional discourses about the
individual microentrepreneur (MEI) with the objective of thinking about the concept of
corporate citizenship, constantly used in the promotion of this figure. Using a
theoretical framework derived mainly from sociology and cultural studies, I reflect on
the transformations of the concept of citizenship in a neoliberal scenario. Moving away
from a traditional conception, according to which citizenship is thought in collective
and inclusive terms, I suggest that the notion of corporate citizenship is based on
individualistic values, using the notion of merit to justify its restricted access.

1 Pós-doutoranda no PPGCOM-UFRJ, com auxílio FAPERJ. E-mail: prof.juliasalgado@gmail.com

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Keywords: MEI; Corporate citizenship; Media discourse; Subjectivity; Merit.

Resumen:
En este artículo realizo un análisis de los discursos mediáticos e institucionales sobre el
microempresario individual (MEI) con el objetivo de reflexionar sobre el concepto de
ciudadanía corporativa, utilizado constantemente en la promoción de esta figura.
Utilizando un marco teórico derivado principalmente de la sociología y los estudios
culturales, reflexiono sobre las transformaciones del concepto de ciudadanía en un
escenario neoliberal. Alejándonos de una concepción tradicional, según la cual la
ciudadanía se piensa en términos colectivos e inclusivos, sugiero que la noción de
ciudadanía corporativa se basa en valores individualistas, utilizando la noción de mérito
para justificar su acceso restringido.
Palabras clave: MEI; Ciudadanía corporativa; Discurso de los medios; Subjetividad;
Mérito.

Introdução
Em meados de setembro de 2020, matéria da seção Economia do Portal G1
atesta: "País ganhou quase 1 milhão de MEIs desde o início da pandemia" 2. Na
reportagem, testemunhos de novos microempreendedores individuais embasam o
argumento central do texto: com "o aumento do desemprego e maior flexibilização das
relações de trabalho, muitos brasileiros têm sido empurrados para o chamado
'empreendedorismo por necessidade' como uma forma de sobrevivência". De acordo
com dados do IBGE, trazidos pela própria matéria, 1,092 milhão de empregos formais
foram perdidos desde o início da pandemia, o que, de certa maneira, explicaria tamanha
procura pelo MEI no país.
Uma análise mais detalhada nos dados de adesão ao MEI, no entanto, nos
mostra que, embora o alto desemprego gerado pela pandemia tenha intensificado a
formalização de microempreendedores ao longo de 2020, a grande procura pela
categoria segue uma tendência crescente desde sua criação, em 2009 (ver Gráfico 1) 3.
Portanto, o que assistimos hoje pode ser visto como uma intensificação, no contexto da

2 Disponível em http://www.portaldoempreendedor.gov.br/. Acesso em 26/12/2019.


3 Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/09/19/pais-ganhou-quase-1-milhao-de-
meis - desde-o-inicio-da-pandemia-veja-relatos.ghtml. Acesso em 30/10/2020.

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pandemia, de uma tendência já estabelecida na sociedade brasileira de valorização e
engajamento à cultura do empreendedorismo.

Gráfico 1 - Crescimento MEI entre 2009 e 2020

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados do Portal do Empreendedor.

Mas como, e sob quais condições, foi possível que o empreendedor, figura
fortemente relacionada à cultura e à mentalidade anglo saxônica e protestante, se
tornasse tão popular em um país como o Brasil? Este questionamento norteou algumas
de minhas pesquisas mais recentes, dando, entre outros, origem a este artigo. Através da
análise de discursos midiáticos e institucionais, busquei compreender os sentidos e
significados atribuídos, ao longo desse período, a esta figura e percebi que a figura do
empreendedor vai progressivamente se diversificando.
Se, até a virada do século XXI, os modos de ser empreendedor estavam
fortemente associados à figura masculina, de meia idade, que desenvolve uma atividade
empresarial e pertence majoritariamente a uma classe média-alta; com o passar dos anos
tais formas vão se multiplicando, passando a incluir também figuras femininas, jovens
(e mesmo crianças), que pertencem a diversas classes sociais e desenvolvem variadas
atividades econômicas, não necessariamente ligadas a uma atividade empresarial. Como
profetizara Michel Foucault no final da década de 1970, “ser empreendedor” se torna
mais do que uma atividade econômica: é um modo de ser e estar no mundo, uma

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característica subjetiva cada vez mais positivada e requerida. E isto também seria (cada
vez mais) válido para o cenário brasileiro.
Sintoma dos tempos, a disseminação de múltiplos modos de ser empreendedor
hoje reflete uma mudança mais ampla e estrutural no mercado laboral, que não se baseia
mais essencialmente no trabalho estável e assalariado, mas confere cada vez mais
importância e espaço ao trabalho autônomo e sem vínculo empregatício. Numa
autotransformação necessária à sua perpetuação e disseminação, o empreendedorismo,
enquanto modelo de atuação econômica, diversifica-se para conseguir dar conta de todo
contingente de trabalhadores que passaria a englobar.
Aqui, trago reflexões sobre um dos modos atuais de ser empreendedor: o
microempreendedor individual, ou o MEI, como é mais conhecido hoje no país. A
figura jurídica foi criada pelo governo brasileiro em 2009, com o objetivo de formalizar
cerca de 10 milhões de trabalhadores informais. A meta foi alcançada em pouco mais de
dez anos, em Abril de 2020. No Portal do Empreendedor, plataforma de informação
sobre a categoria e de onde o processo de formalização é realizado, chama a atenção a
frase ao lado do link que imperativamente conclama: “Formalize-se”. Ali, lê-se: “Ao
abrir sua empresa, você MEI terá cidadania empresarial [grifos meus]: CNPJ, direitos e
benefícios”4.
Sendo a figura jurídica de uma nova – e mais baixa – faixa de tributação do país,
os trabalhadores autônomos que atuam em quase quinhentas atividades podem
formalizar seu negócio e, pagando atualmente (2020) cerca de 58 reais ao mês, obter
benefícios previdenciários e mercadológicos. Com a nítida finalidade de trazer à
legalidade (e, consequentemente, à tributação) milhões de pessoas que estão no
mercado submerso, o MEI vem sendo descrito não apenas como uma inovação jurídico-
tributária, mas também como um passaporte de acesso a produtos e serviços intangíveis
a esse público, como concessões de crédito, cobertura previdenciária, apoio técnico e
mesmo cidadania.
O processo de formalização é apresentado em termos de facilidade: todo feito
online através do Portal do Empreendedor, é possível se tornar um MEI em alguns

4 Com a exceção do ano de 2008, em que a taxa de adesão sofreu uma retração de 2%, as adesões ao MEI
seguem uma tendência de constante crescimento, com taxa média de 20% ao ano nos últimos 12 anos.

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instantes, após o preenchimento das informações solicitadas. As condições de tal
legalização são que o novo empresário tenha um faturamento anual de no máximo 81
mil reais; não tenha participação em nenhum outro empreendimento como sócio e tenha
no máximo um empregado contratado com o salário mínimo. Os benefícios são: possuir
um CNPJ, o que facilitaria a abertura de contas bancárias, pedidos de empréstimos e a
emissão de notas fiscais; isenção de tributos federais e contribuição reduzida ao INSS, o
que garante ao MEI acesso a benefícios como auxílio maternidade, auxílio doença e
aposentadoria, entre outros.
No livro “5 anos: Microempreendedor Individual – MEI: um fenômeno de
inclusão produtiva” (SEBRAE, 2015), que trata o MEI como um “fenômeno de inclusão
produtiva”, somos informados de que 27% do PIB brasileiro é gerado por pequenos
negócios, o que faz com que o estímulo a programas como o MEI seja essencial por
contribuir para a economia nacional. Ao contrário da progressiva diminuição de postos
de trabalhos nas médias e grandes empresas, especialmente no setor industrial, o texto
alerta que os pequenos negócios do país respondem “pela maioria dos empregos com
carteira assinada abertos nos 10 anos mais recentes. Em 2014, foram registradas 717 mil
vagas nos pequenos negócios frente a um saldo negativo de aproximadamente 45 mil
nas empresas maiores” (SEBRAE, 2015, p. 7). Nesse contexto, a participação do novato
MEI não seria nada desprezível na visão dos autores do livro:
O Brasil levou praticamente 514 anos para ter hoje 9,5 milhões de empresas de todos
os portes. Em apenas cinco anos, os microempreendedores individuais, os chamados
MEIs, já atingiram 4,7 milhões. Um fenômeno de inclusão produtiva jamais registrado
no País, e provavelmente no mundo. (Ibid., p. 11).

Representando então praticamente metade das empresas registradas no país, o


MEI pode ser pensado como a materialização mais elementar do homo oeconomicus
neoliberal estudado por Foucault (2008a): sob a égide do capitalismo pós-industrial, o
trabalhador se transformaria necessariamente em uma empresa. Possivelmente, ao
propor suas ideias no final da década de 1970, o filósofo francês não imaginava que a
capilarização da empresa até o nível mais unitário da sociedade – o indivíduo – se daria
do modo formal como acontece com o MEI, ou seja, pela transformação legal da pessoa
física em pessoa jurídica. Foucault pensava na empresarização dos indivíduos em

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termos de lógica norteadora: se, com a proeminência da Teoria do Capital Humano, o
indivíduo passa a ser entendido como seu próprio produtor, seu próprio investidor, sua
própria fonte de renda; então nada mais razoável do que pensar nesse sujeito como
sendo ele mesmo uma empresa. Tal visão abrangente nos modos a partir dos quais o
homem ocidental é instado a encarar seu comportamento e seu modo de ser e estar no
mundo a partir da segunda metade do século XX – como o solitário investidor dele
mesmo, sua empresa individual – ganha, com o MEI, sua mais objetiva materialização.
Se, como objeto de estudo, o empreendedor é mais comumente encontrado em
áreas como a Administração e a Economia, não deveria causar espanto que tal objeto se
torne privilegiado também na Comunicação. Isso porque, enquanto campo de estudo,
nos cabe atentar para as transformações nos modos através dos quais os sujeitos são
instados a se subjetivar, se socializar e a produzir e consumir novas estéticas e retóricas.
Com a crescente preponderância da mentalidade neoliberal em nossa sociedade,
especialmente nas duas últimas décadas, assistimos ao proliferar do empreendedor
como subjetividade privilegiada, ou "o homem ideal" como afirmou Sennett (2010) no
fim do milênio passado. Neste milênio, não apenas ideal, o empreendedor se torna
subjetividade normativa, que se diversifica em seus formatos e ganha crescente
destaque na mídia (SALGADO, 2020).
Atentos a este crescente destaque midiático conferido à figura do empreendedor,
diversos pesquisadores do campo da Comunicação se debruçaram sobre o tema. Vander
Casaqui problematiza o ainda turvo conceito de empreendedor social, “um ator
relativamente recente, que representa a lógica cultural do capitalismo contemporâneo”
(Casaqui, 2013a, p. 868) e que promoveria uma prática paradoxal à medida que concilia
a busca pelo bem comum e, ao mesmo tempo, o culto por uma performance lastreada no
individualismo, na eficácia e na concorrência (Casaqui, 2013b). O autor, inclusive,
coordenou por vários anos o GT "Cultura Empreendedora e Trabalho", no Congresso
Internacional Comunicação e Consumo, da ESPM, que se tornou um espaço fecundo
para pesquisadores interessados no tema. Dentre eles destaco, somente a título de
menção, os trabalhos de Rafael Grohmann (entre outros, ver ROXO & GROHMANN,
2015) sobre a influência do empreendedorismo no âmbito da atuação profissional
jornalística, marcada pela flexibilização e precarização; de Marianna Ferreira Jorge

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(entre outros, ver SALGADO & JORGE, 2019) sobre os desdobramentos do espírito
empresarial na sociedade contemporânea; e Patrícia Matos (entre outros, ver MATOS,
2016), sobre trabalho móvel, juventude e o ethos empreendedor.
A partir de um olhar atento a este objeto, intenciono discutir algumas
transformações contemporâneas no conceito de cidadania, realçando as conexões entre
a emergência de uma figura como a do MEI (e seu correlato conceito de “cidadania
empresarial”) e a crescente preponderância de uma racionalidade neoliberal e
individualista. Em outras palavras, este trabalho tem como objetivo pensar de que
maneira a criação de um novo “tipo de pessoa” (HACKING, 1985), afinado à
mentalidade capitalista contemporânea, pode contribuir para a transformação do senso
comum sobre os significados de um conceito tão caro à democracia, como o de
cidadania. E como essa transformação pode representar novas formas de desigualdade
que atualmente se revestem sob o discurso da “meritocracia”.
Para buscar responder essa questão, examino aqui discursos sobre o MEI
encontrados na Folha de S. Paulo entre 2009 e 2015, além de discursos institucionais
retirados de materiais do Sebrae, principal entidade de promoção da categoria. Sugiro
ser possível, através da análise de discurso, depreender alguns dos sentidos e
significados que lhe são associados, assim como também as resistências a esses
processos de significação. É estruturante para este trabalho o arcabouço teórico e
conceitual proveniente do trabalho de Michel Foucault, seja em termos metodológicos -
a partir da perspectiva da análise de discurso (2019) -, seja nas suas contribuições
conceituais sobre o neoliberalismo e o homo oeconomicus contemporâneo como o
“empreendedor de si mesmo” (2008a).

Os discursos sobre o microempreendedor individual


A primeira percepção ao analisar as diversas matérias e colunas opinativas sobre
o MEI na Folha de S. Paulo é a racionalidade instrumental presente nos discursos,
traduzida em dados numéricos e estatísticos. Em praticamente todas aparições do termo
faz-se recurso aos números para justificar a importância do MEI na atualidade e para
demonstrar seu crescimento e seu sucesso. Em coluna opinativa assinada em setembro
de 2009 pelo então ministro da Previdência Social, José Pimentel, a nova figura é
apresentada em termos quantitativos: “Onze milhões de homens e mulheres que

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trabalham por conta própria no comércio, na indústria e na prestação de serviços
começam a ter as suas atividades formalizadas em todo o país graças ao Programa do
Empreendedor Individual” (PIMENTEL, 2009, p. A3). Após expor as características da
modalidade e as vantagens de adesão, o político recorre novamente à precisão dos dados
numéricos para atestar a importância do programa: "Para ter uma ideia da importância
dos empreendedores individuais, as micro e pequenas empresas geraram mais de 450
mil empregos em todo o Brasil somente no primeiro semestre de 2009. Os dados são do
Ministério do Trabalho e Emprego." (Ibid.)
Alguns anos depois, os números são novamente acionados, agora para
comprovar o sucesso do programa, que partiu de 49 mil inscrições em 2009 e chegou a
2,1 milhões em 2012. O crescimento exponencial continuaria, segundo estudo do
Sebrae: “Hoje, o Brasil tem 2,1 milhões de MEI, mas deve chegar a 4,3 milhões em
2014, quando as MPE serão 4,2 milhões” (GOMES, 2012, p. B6). O “fetiche dos
números”, que revela o “espírito (quantitativo) da [nossa] época” (SOUZA, 2009, p.
16), reaparece em praticamente todas as menções ao MEI na Folha. Para Jessé Souza
(2009), a valorização de dados numéricos e de estatísticas reflete uma visão de mundo
economicista e redutora, segundo a qual se crê que cifras seriam capazes de traduzir a
realidade social. Jerôme Gautié, cientista social e economista, compartilha da mesma
opinião – ainda que através de argumentos mais pragmáticos. Segundo ele, embora as
abordagens que privilegiam as estatísticas macrossociais tenham sido importantes no
passado, por permitirem ao Estado formar “os instrumentos de uma boa intervenção
pública” (GAUTIÉ, 1998, p. 67), atualmente tais enfoques seriam inadequados ao
entendimento de uma realidade social cada vez mais complexa e impregnada de
múltiplas individualidades – o que faz com que as estatísticas sejam abstrações
totalizadoras e distantes do indivíduo.
Nas poucas vezes em que o “economicismo” compartilha espaço com um
tratamento mais “humanizado” do tema, trazendo, para além dos números, o
testemunho de indivíduos que se tornaram MEIs, percebe-se o privilégio em relatar
casos de sucesso, geralmente de indivíduos de classe média (ainda que média-baixa).
Assim, os exemplos de insucesso do MEI são silenciados ou minimizados, como no
Caderno Negócios de 19/08/2012, que promete contar as receitas de MEIs que elevaram

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seu faturamento após registro formal. A reportagem especial traz os relatos dos dez
primeiros cadastrados no MEI, que “revelam os desafios e benefícios da categoria”
(GUTIERREZ, 2012). Três deles teriam prosperado tanto que mudaram de faixa
empresarial, deixando de ser MEIs e se tornando microempresas. Outros cinco falam de
“benefícios” do programa, como o acesso ao crédito e a formas de pagamento como o
cartão de crédito; a possibilidade de emitir notas fiscais e de conquistar novos
mercados.
Os principais obstáculos do programa (apresentados não como “malefícios” em
contraponto aos “benefícios”, mas sim “desafios” a serem superados) seriam o baixo
teto de faturamento e a impossibilidade de contratar mais de um funcionário, fatores que
teriam, inclusive, levado três deles a virar microempresas. Dos dez exemplos, apenas
dois não teriam prosperado: a cozinheira Elaine Souza, que ao final de um ano desistiu
de ser MEI quando percebeu que as despesas eram maiores do que as receitas. E o
cabeleireiro David Soares, que não conseguiu empréstimos em bancos e, com isso, não
atingiu sua expectativa de crescimento. Ao contrário dos exemplos bem-sucedidos,
destacados na matéria com fotos e posição no alto da página, Elaine e David ocuparam
a parte de baixo da página, sem grandes destaques.
A valorização, pela Folha, dos casos de MEIs bem-sucedidos traz um outro dado
importante: em geral os testemunhos são de indivíduos cuja opção pelo
empreendedorismo não se dá tanto em termos de necessidade, mas sim de oportunidade.
Em dezembro de 2015 o Caderno Negócios apresenta dicas para profissionais
autônomos, modalidade que graças ao MEI prosperava no Brasil. Títulos como
“Independente S.A.” e “Carreira solo” sintomaticamente apresentam a guinada
individualista do mercado de trabalho, no qual,
Seja por opção ou por necessidade, o trabalho autônomo vem crescendo no Brasil.
Entre dezembro de 2014 e de 2015, o número de microempreendedores individuais
(MEIs) aumentou 21,3%. Independência profissional e flexibilidade de horários são as
principais vantagens apontadas por quem trabalha nessa modalidade. A autonomia,
porém, traz consigo alguns problemas. Definir o preço do serviço oferecido e fazer o
controle financeiro são algumas das dificuldades que a modalidade impõe. (PERRIN,
2015, p. F54)

Apesar de mencionar a necessidade como possível fator na decisão de ser


autônomo, os exemplos dados na matéria são todos de pessoas que optaram, de forma

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voluntária, por sair de seus empregos – para ter mais tempo, mais flexibilidade, menos
estresse: “‘Eu estava estressado e descontente. Busquei qualidade de vida. Hoje tenho
uma remuneração que entendo como ideal para mim trabalhando menos’, afirma o
engenheiro ambiental Raoni Santos”; “‘Nenhum benefício paga o fato de ter tempo’,
afirma a maquiadora Bárbara Zacarias” (Ibid.). Ou seja, o ponto de vista escolhido pelo
jornal para abordar o crescimento do trabalho autônomo – sendo o MEI a sua grande
exemplificação – privilegiou um perfil profissional com mais recursos e menos
necessidade materiais, de onde decorre que os “problemas” enfrentados são de ordem
operacional (precificação e controle financeiro, por exemplo), e não estrutural (como
insegurança e precariedade econômicas ou falta de entrada no mercado).
Enquanto a Folha, em suas reportagens, prioriza uma representação do MEI
através de personagens que decidiram livremente pelo empreendedorismo, sem grandes
constrangimentos socioeconômicos, o discurso de autoridades no jornal (como
ministros, deputados e gestores de autarquias e confederações) apresenta o MEI como
sendo uma ferramenta de inclusão socioeconômica e, portanto, eminentemente
destinada àqueles em estado de exclusão. É o caso de Guilherme Afif Domingos, que
junho de 2015 assina coluna na seção Opinião intitulada “Batalhadores do Brasil”. Com
clara referência ao livro organizado por Jessé Souza, Os batalhadores brasileiros
(2012), Domingos anuncia, em tons comemorativos, a marca de “cinco milhões de
brasileiros formalizados, que passaram a contar com a segurança do Estado e o acesso a
direitos previdenciários”, o que constituiria “uma vitória da classe batalhadora de nosso
país” (DOMINGOS, 2015, p A3). O MEI é apresentado como política pública
inovadora e grandiosa, capaz de tirar da marginalidade mais de 10 milhões de pessoas
que, apesar de terem sempre procurado “garantir sua sobrevivência por meio de muito
trabalho e de criatividade” (idem), ainda eram privadas do status de cidadania.
O MEI é hoje, no mundo, o maior programa de inclusão econômica e social. Quando
levamos a ideia do projeto para o presidente Lula, em 2003, falávamos em dar
cidadania a mais de dez milhões de trabalhadores informais. Em seis anos de trabalho
(2009-2015), chegamos aos cinco milhões – e vamos formalizar o restante nos
próximos cinco anos. Estamos falando de cidadania e formalização que tiraram
cidadãos da marginalização, da informalidade, garantindo a eles o acesso a benefícios
sociais que todo brasileiro deve ter. Acreditando na importância dessa inclusão,
batizamos o carnê enviado ao MEI de Carnê da Cidadania. (Ibid., grifos meus).

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Os benefícios aos quais o então ministro se refere são: o direito à Previdência
Social; o registro formal do empreendimento, com a obtenção de CNPJ, o que
possibilita emitir notas fiscais e ampliar o acesso a mercados (inclusive o mercado
governamental) e a possibilidade de pleitear crédito subsidiado em instituições
bancárias. O acesso a esses benefícios, que se dá por meio do registro (a
“formalização”), chegaria mesmo àquela parcela da população mais carente, como os
cadastrados no maior programa de redistribuição de renda do país, o Bolsa Família:
“Um fato importante é que cerca de 500 mil pessoas cadastradas no Bolsa Família
fizeram do MEI a alternativa para buscar o seu sustento” (Ibid.). Longe, portanto, de
representar apenas aqueles com absoluto livre-arbítrio na decisão pelo seu destino
profissional, o MEI abarcaria também indivíduos situados na posição mais baixa da
pirâmide social.
De acordo com Afif Domingos, o denominador comum a todos os cadastrados
no MEI, independentemente de sua situação socioeconômica, seria o famoso sonho do
negócio próprio: “O sonho do brasileiro de trabalhar por conta própria tem no MEI a
sua maior expressão – e o seu ponto de partida para a autossustentação. Todos sonham
em crescer” (Ibid.). Destacando a prática empreendedora como um desejo comum a
todos os brasileiros, algo que agora estaria ao alcance de qualquer um através da figura
do MEI, percebemos no discurso uma dupla naturalização: de um lado, a crença de que
o empreendedorismo é a mais eficaz (ou mesmo a única) arma de combate à falta de
renda e ao pauperismo; do outro, um senso comum, cada vez mais disseminado, de que
todos os brasileiros têm um “espírito empreendedor” ou uma “vocação natural a
empreender”. O texto escrito por Domingos traz certo número de elementos sobre os
quais podemos refletir e que aparecem na maioria dos textos sobre o MEI assinados por
autoridades públicas e institucionais, como demonstro a seguir.
A primeira marca significativa é a implícita “redenção” do Estado. Na coluna de
Domingos, mas também em muitos outros textos opinativos sobre o MEI, o Estado
brasileiro, que sempre foi acusado pela sua ineficiência, burocracia e indevida
apropriação da renda nacional (SALGADO, 2020), é exaltado pela capacidade de ter se
modernizado e criado leis mais eficazes e que libertam os empreendedores de amarras
burocráticas e tributárias. Enquanto em 2006 o próprio Afif Domingos acusava, na

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Folha, o Estado de distribuir “benesses à custa de enormes déficits públicos e da
estagnação das empresas e da iniciativa privada”, e duvidava da sua aptidão em
“assegurar o bem-estar de todos” (2006, p. A3 apud SALGADO, 2020, pg. 86), a partir
de agora o Estado seria aquele que provê segurança e acesso a direitos aos
“Batalhadores do Brasil”.
Os avanços socioeconômicos promovidos por uma figura como a do MEI são
algumas vezes equiparados àqueles conquistados com a legislação trabalhista instituída
por Getúlio Vargas, o que não deixa de ser ao mesmo tempo um dado irônico e bastante
sintomático de cada momento histórico: se, no início do século XX, a Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT) espelhava as demandas e a estrutura do mercado laboral
daquele período; menos de cem anos depois tal modelo mostra seu declínio, sendo o
trabalho autônomo e empreendedor seu mais cotado sucessor. A ambiguidade contida
na figura do MEI – que podemos entender como transitória entre o “trabalhador CLT” e
aquele totalmente autônomo – está numa certa tentativa de assegurar um mínimo de
garantias conquistadas pelos trabalhadores (como aposentadoria, auxílios maternidade e
doença, entre outros) em uma nova atuação mercadológica, não mais marcada pelo
assalariamento. Tal busca pela conciliação de segurança e autonomia reflete, de certa
maneira, a ambiguidade nos anseios individuais contemporâneos. Se, como afirmam
diversos discursos da mídia, existe o difuso sonho do negócio próprio; não se pode
ignorar a ânsia por segurança, refletida na busca pela carreira de serviço público. Dessa
maneira, falas que atestam a ubiquidade do “sonho de ser o próprio chefe” operam uma
naturalização seletiva e totalizante, que se presta a justificar o empreendedorismo como
a única alternativa possível.
A inclusão econômica e social possibilitada pelo acesso a serviços e direitos que
transformam o sujeito marginalizado em cidadão formalizado se faz através de um
cadastramento, uma visibilidade formal do indivíduo perante o Estado. Ora, tal registro
nada mais é do que uma tecnologia de poder governamental, capaz de gerar um saber
(informações, dados, estatísticas) sobre uma população determinada (trabalhadores
autônomos). Sabemos, com Foucault (2008a), que a racionalização de um saber ligado a
uma população é justamente o que o autor chamou de biopolítica. O MEI, portanto,

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deve ser visto como uma biopolítica que visa organizar, cultivar, proteger e fazer
multiplicar sujeitos empreendedores.
O interessante, no entanto, é perceber que a racionalização sobre tal população
empreendedora não é apenas desenvolvida pelo Estado, mas de forma crescente por
outro importante agente social: as instituições financeiras. Através da ideia de
“cidadania empresarial”, algo que compreenderia o acesso a serviços financeiros como
contas bancárias, máquinas de cartão e acesso a crédito, entre outros, cria-se
progressivamente uma massa de informações sobre indivíduos cada vez mais
dependentes (e em dívida) com o sistema financeiro. Mais adiante, refletiremos sobre a
atual dominação financeira dos mercados e os discursos sobre o MEI, que
incessantemente valorizam o acesso ao crédito como um dos grandes benefícios da
categoria. Antes, porém, é preciso entender como foi possível que a ideia de cidadania
tenha sido despedaçada e hoje se fale em uma “cidadania empresarial”.

Neoliberalismo e “cidadania empresarial”


Assim como grande parte dos conceitos da Sociologia, cidadania não tem uma
definição única e estanque, invariável ao longo do tempo. Certamente, não poderia ser
diferente: como seria possível solidificar a noção de cidadania, se a própria sociedade
sobre a qual ela se baseia mudou (e muda) com o passar dos anos? Aqui,
apresentaremos as conceituações mais correntes a seu respeito, fornecendo o referencial
básico que nos permita refletir sobre a atual proposição de uma “cidadania
empresarial”.
Segundo o sociólogo britânico TH Marshall (1967, p. 62), a cidadania seria um
processo através do qual uma determinada sociedade atingiria uma igualdade qualitativa
e substantiva entre seus indivíduos, que seriam “admitidos como membros completos da
sociedade, isto é, como cidadãos”. Progressivamente, a associação dos indivíduos na
comunidade teria possibilitado formas de participação e conquistas de direitos que
partiria das noções modernas de propriedade privada e liberdades individuais (cidadania
civil), passando pelo avanço no exercício do poder através do voto (cidadania política) e
chegando à aquisição coletiva de bem-estar e seguridade (cidadania social). Fazendo
parte do projeto de sociedade moderna e industrial, a noção de cidadania como
igualdade de direitos civis, políticos e sociais entre os cidadãos compensaria uma

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inevitável desigualdade econômica entre eles, algo entendido como inerente ao sistema
capitalista. Assim, “a desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável
desde que a igualdade de cidadania seja reconhecida” (Ibid.). O reconhecimento de tal
cidadania caberia ao Estado, de modo que, dentro do pensamento moderno (ou liberal)
apresentado por Marshall, a cidadania lhe está intrinsecamente associada. Ou seja, o
Estado seria a instância competente na comunhão dos indivíduos a partir de valores
comuns e no reconhecimento de seu status de cidadãos, permitindo o acesso a
determinados direitos concebidos a priori – direitos estes regulados e gerenciados pelo
Estado.
Esse, claramente, é o caso do direito à Previdência Social acessível ao MEI.
Trata-se de um direito social definido a priori, que busca proporcionar “um mínimo de
bem-estar econômico e segurança” ao cidadão, possibilitando-o “participar, por
completo, na herança social e levar a lida de um ser civilizado de acordo com os
padrões que prevalecem na sociedade” (Ibid., p. 63-64). O direito a um CNPJ também
pode ser pensado em termos de uma cidadania tradicional se o enquadrarmos como um
direito civil, “necessário à liberdade individual” para, entre outras coisas, “concluir
contratos válidos” e defender sua propriedade (Ibid., p. 63). Ambos os direitos são
permitidos única e exclusivamente pelo Estado, instituição com poder de conferir
benefícios aos indivíduos e criar um número (o CNPJ) que assume identidade e poderes
mercadológicos.
Por outro lado, numa concepção mais contemporânea da cidadania (HOLSTON
& APPADURAI, 1996; CANCLINI, 2006; PORTILHO, 2010), a relação dual e
hierárquica entre Estado e indivíduos seria questionada, dando margem para que outros
atores (como segmentos da sociedade civil, empresas do 2º setor, organizações do 3º
setor e grupos de mídia) façam parte do processo de constituição e reconhecimento de
novos direitos, não mais determinados a priori pelo Estado, mas construídos
cotidianamente em práticas e discursos que se referem às particularidades, crenças e
necessidades de cada indivíduo. Para Canclini (2006), com a modernidade tardia e a
globalização emergiria uma nova relação entre indivíduos, Estados e comunidades,
mudando, portanto, a noção de cidadania, que deixa de estar restrita exclusivamente a
um campo jurídico de direitos à igualdade civil e política, passando também a

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comportar aspectos culturais e sociais que clamam pelo direito à diferença e pela
possibilidade de participação na construção daquilo que, para cada um, representa ser
cidadão. Em resumo, seria a passagem de uma noção pré-estabelecida de cidadania, que
tinha a pretensão de englobar a todos sob a grande crença de se construir uma sociedade
igualitária e justa, para a possibilidade de se ter (e aceitar) múltiplas formas de exercício
de cidadania, como “uma cidadania cultural, e também uma cidadania racial, outra de
gênero, outra ecológica, e assim podemos continuar despedaçando a cidadania em uma
multiplicidade infinita de reivindicações” (Ibid., p. 37). Nessa passagem, o valor
referencial antes exercido pelo Estado migraria para o mercado, atual instituição
modelar de regulação das condutas individuais.
É possível perceber um claro deslocamento entre os projetos tradicional e
contemporâneo de cidadania. Dentro da concepção moderna, a cidadania foi idealizada
como devendo ser homogênea entre os sujeitos, já que baseada nos princípios morais da
igualdade. Seu propósito era produzir cidadãos dóceis, produtivos e incluídos no
sistema capitalista através da noção de participação. No atual contexto neoliberal é
possível pensar que a racionalidade imperativa é aquela mercadológica, a partir da qual
a participação cidadã passa a ser segmentada em diversos nichos de consumo e quando
o que vale é o mérito individual e não mais a igualdade social. O bom cidadão é aquele
capaz de consumir e ser reconhecido pelas suas conquistas. Isso permite que alguns dos
atuais “direitos de cidadania” sejam seletivamente distribuídos, não estando ao alcance
de todos. Refiro-me, particularmente, ao acesso ao crédito e aos novos mercados,
recorrentemente mencionado nos discursos sobre o MEI como vantagem de uma
“cidadania empresarial” conquistada por essa nova figura jurídica.
Mas, afinal, o que seria uma “cidadania empresarial”? No círculo administrativo
(seja acadêmico ou corporativo) a ideia de uma “cidadania empresarial” vem sendo
pensada como “um conjunto de princípios e sistemas de gestão [na empresa] destinados
à criação ou preservação de valor para a sociedade” (ALVES, 2001, p. 81). Trata-se da
noção de que uma empresa, enquanto participante da sociedade, deve ter seus direitos
reconhecidos (como liberdade de expressão ou reconhecimento social) e tem deveres a
cumprir, sendo estes últimos ligados à responsabilidade ética e socioambiental.

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Esta, no entanto, está longe de ser a concepção de “cidadania empresarial”
utilizada nas matérias da mídia e nos materiais oficiais que tratam do MEI. O recorrente
uso desta expressão a relaciona ao processo através do qual o trabalhador autônomo,
antes irregular, formaliza-se e entra no mercado, podendo “usufruir de todas as
vantagens do mundo formal”, entre as quais estão “a possibilidade de participar das
compras governamentais” e “a possibilidade de obter linhas de crédito em instituições
financeiras privadas e públicas de forma mais facilitada” (SEBRAE, 2009). Trata-se,
como se percebe, de possibilidades que se abrem a partir do momento em que o
individuo pessoa física é transformado em empresa, e não exatamente de direitos
garantidos, uma vez que tal “cidadania empresarial” se inscreve nas lógicas
concorrenciais do mercado, e não numa lógica de igualdade de direitos em processo de
extinção. Se, como vimos, os benefícios da Previdência Social e do registro empresarial
(CNPJ) são assegurados pelo Estado através da adesão ao programa; os benefícios do
crédito e de entrada nos mercados não são colocados em termos de direitos garantidos,
mas sim de possibilidade de acesso. O MEI, devidamente regularizado, seria o sujeito
autorizado a participar de um mercado que se baseia na “justa competição”
(EHRENBERG, 2010), o que não pressupõe a conquista obrigatória de determinados
benefícios como crédito ou novos clientes, mas apenas sua colocação como postulante,
como concorrente. A captação de mercados dependeria do aval de empresas e governos,
potenciais fregueses de um MEI, enquanto a decisão sobre a cessão ou não do crédito
cabe a uma das mais poderosas instituições hodiernas, a bancária. Dessa forma, o
sucesso em transformar um potencial benefício em direito efetivo dependeria do próprio
indivíduo, da sua eficiência em modos de agir tipicamente empresariais.
Este parece ser o pressuposto da já mencionada matéria “Primeiras receitas”,
que relata histórias de sucesso dos primeiros MEIs inscritos no programa. Dentre os que
prosperaram, destaca-se a história do vendedor de bijuterias Adalberto Oliveira dos
Santos, uma espécie de celebridade do universo MEI por ter sido o primeiro inscrito na
categoria. Descrevendo-se dentro daquilo que Ehrenberg (2010) chama de “aventura
empreendedora” do “indivíduo-trajetória”, o acreano de origem simples que realizou a
“façanha de tornar-se alguém” (Ibid., p. 172) afirma que “Ser desbravador tem
vantagens (...) Dei mais de 500 entrevistas” (GUTIERREZ, 2012, p. EM 21). Sua

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“receita de sucesso” seria um misto de trabalho duro e sorte, já que o acesso a
empréstimos que lhe possibilitaram prosperar não é uma garantia para todos: "Santos
afirma que aderir ao programa o ajudou a conseguir empréstimos. Depois de honrar os
pagamentos como pessoa jurídica, conseguiu crédito para comprar um apartamento."
(Ibid.). Dos mais de 15 amigos e colegas de Adalberto que se tornaram MEI, nenhum
conseguiu acesso a crédito.
A constante menção à sorte (ou falta dela) na obtenção de crédito atesta uma
visão seletiva e excludente do acesso a esse benefício, tão propalado pelos diversos
discursos sobre o MEI como uma de suas vantagens. Assim, o crédito, mais novo item
de uma noção de cidadania mercantilizada, disponível em teoria a todos que pagarem
em dia o “Carnê da Cidadania”, é na prática acessível somente a uma pequena parcela
de indivíduos com destreza empresarial e sorte.
A “cidadania empresarial” dos MEIs pode, nesse sentido, ser pensada seguindo
o raciocínio visto em Canclini (2006): trata-se de um fragmento de cidadania que
confere sentido de pertencimento àqueles que a conquistam, satisfazendo-lhes certas
necessidades (mercadológicas). Longe de ser igualitária e acessível a todos, a
“cidadania empresarial” seria excludente não apenas por existir para alguns como
objeto de consumo e para muitos como espetáculo (conforme atestam os discursos sobre
o MEI), mas principalmente por deixar os indivíduos fora do processo decisório sobre o
que efetivamente deveria ser uma cidadania empresarial, seus termos, condições e
alcances… Ou seja, ao contrário de sua versão moderna, quando a cidadania
supostamente significava um caminho democrático de participar nas tomadas de decisão
da comunidade em que se está inserido, a atual versão empresarial da cidadania é
duplamente excludente: para aqueles que não são capazes de ter acesso a ela e também
para os que têm acesso, mas não podem deliberar sobre seu conteúdo ou condições. Ou
alguém acredita que um MEI que toma um empréstimo tem alguma voz para opinar
sobre os juros ou tarifas bancárias cobrados? Não nos esqueçamos que, ao falar em
acesso ao crédito, estamos nos referindo necessariamente ao complexo bancário-
financeiro, um dos mais poderosos mecanismos do sistema capitalista e, de acordo com
muitos economistas, o principal responsável pela crescente desigualdade social que o
mundo enfrenta hoje (DOWBOR, 2017; PIKETTY, 2014).

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O capitalismo, porém, é engenhoso em seus argumentos de justificação e
legitimação de valores. O alarmante abismo entre os mais ricos e os mais pobres, fato
que hoje se manifesta em praticamente todos os países capitalistas do mundo,
atualmente se reveste sob os discursos (midiáticos, institucionais, sociais) da
“meritocracia”. No atual contexto neoliberal, em que estruturas de protecção social
criadas a partir do século XIX e legitimadas no século XX desmoronam, vemos
prevalecer uma mentalidade que privilegia a performance individual e a concorrência
interpessoal. Tal perspectiva endossa a meritocracia como um conjunto de valores que
refuta privilégios hereditários ou corporativos e que avalia os indivíduos
“independentemente de suas trajetórias e biografias sociais” (BARBOSA, 2003, p. 22).
Para a antropóloga brasileira Lívia Barbosa, tal modo de pensar vem servindo de base à
democracia desde a Revolução Francesa. No entanto, há nesse conceito um aspecto
perverso, muitas vezes invisível nas análises mais superficiais: desconsidera-se as
condições sociais objetivas enfrentadas pelos sujeitos em prol da apreciação da
capacidade subjetiva de se destacar dos demais. Dessa forma, segundo Barbosa, o
problema não é a avaliação de desempenho por si própria, mas sim a discordância sobre
os critérios que mensuram os atributos individuais. Com isso, a meritocracia perde a sua
eficiência enquanto mecanismo de combate à discriminação social inquestionável,
passando a ser um critério de diferenciação, classificação e exclusão.
Diversos estudos atuais (FREIRE FILHO, 2010, 2011; CASTELLANO, 2018;
JORGE, 2020) demonstram como os imaginários contemporâneos de sucesso e de alta
performance estão profundamente associados à lógica meritocrática, ou seja, a um
conjunto de valores segundo os quais as posições sociais e os ganhos dos mais variados
sujeitos devem ser consequências de seus méritos e esforços individuais. Assim como
outros objetos anteriormente analisados e que vêm progressivamente sucumbindo à
lógica da performance e do mérito, sugiro estarmos diante de mais um caso: o MEI.
Trata-se do indivíduo habilitado a performar como empreendedor e que, com mérito e
resiliência, tem chances de prosperar, ainda que suas condições objetivas e subjetivas
lhes sejam desfavoráveis ao combate mercadológico. Essa versão solitária e
capilarizada do empreendedorismo contemporâneo reforça a construção de uma

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sociedade cada vez mais individualista, na qual até a noção de cidadania se
“empresariza”...

Conclusão
O exame de alguns discursos institucionais e midiáticos permitiu perceber que a
subjetividade do MEI ali construída está longe de ser específica. Ao contrário, engloba
desde os mais excluídos dos brasileiros (como aqueles que dependem do auxílio do
Bolsa Família), passando por “batalhadores” que garantem “sua sobrevivência por meio
de muito trabalho e de criatividade” e chegando até os integrantes de uma classe média
instruída e com amplo potencial para decidir sobre seus destinos profissionais. Em
comum, tais brasileiros teriam, segundo os discursos, o sonho de “tomar as rédeas da
vida” e ter o próprio negócio, algo que se torna acessível à grande parte da população
com uma nova legislação, através da qual o Estado brasileiro expurga parte de seus
pecados e se redime aos olhos do mercado.
Há, no entanto, uma outra característica comum entre os MEIs que não é
destacada pelos discursos midiáticos ou institucionais. Trata-se de uma nítida
associação desta figura à racionalidade neoliberal, que prevê a privatização das relações
e uma guinada individualista na sociedade, valorizando conquistas particulares através
do discurso do mérito. Assim, para além de uma inédita faixa tributária e uma nova
categoria de atuação mercadológica, o MEI promove e populariza uma renovada
acepção de cidadania, a “cidadania empresarial”. Lastreada no fundamento da livre
concorrência, a cidadania empresarial – entendida no caso do MEI não como direitos,
mas como possibilidade de acesso – se torna efetiva apenas para aqueles indivíduos
adequados à lógica empresarial, ou seja, para os sujeitos ajustados, corpórea e
mentalmente, à racionalidade empreendedora.
Debruçar-nos, ainda que brevemente, sobre algumas diferentes conceituações é
um exercício fértil para refletir sobre as moralidades e normatividades que nos regem
em cada momento histórico. A versão hodierna da cidadania, ajustada à lógica
empresarial, nos indica com bastante clareza a primazia da racionalidade neoliberal e
individualista sobre nossos modos de pensar e conceber a nós mesmos enquanto
sujeitos. Não se trata de determinar qual “versão da cidadania” é melhor ou pior, nem

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mesmo de entrar num discurso saudosista, visto que mesmo em sua versão tradicional a
cidadania guardava seus problemas. Trata-se de refletir sobre as atuais condições para
poder, como afirma Portilho, “participar efetivamente da própria definição desse
sistema e [realizar nosso] direito de definir aquilo no qual queremos ser incluídos”
(PORTILHO, 2010, 192).

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