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Ruralidade Metropolitana

Cristina Maria Macêdo de Alencar1


Resumo
O texto articula perspectiva teórica apoiada no pensamento complexo, a evidências
empíricas buscadas na trajetória de pessoas que vivem em municípios da Região Metropolitana de
Salvador, no estado da Bahia – Brasil e que trabalham direta e/ou indiretamente com o mundo
rural. Qualifica o rural na contemporaneidade como decorrente da sua intensa relação com a
cidade metropolitana, donde advém a noção de ruralidade metropolitana.
A intensidade metropolitana tem gerado experiências diretas com o desemprego; a falta de
competitividade com a mão de obra qualificada da cidade; a desqualificação da cidadania rural com
a conseqüente omissão da identidade social no urbano; a exclusão social e governamental; a
violência urbana e a incorporação da crítica ambiental.

Introdução
A pretensão neste artigo é arrolar evidências empíricas em diálogo com reflexões teóricas
demonstrando a noção de ruralidade metropolitana. Empiricamente, essa noção emergiu de
experiências entre mundos rural e urbano em território considerado como região metropolitana; e,
teoricamente, de uma visão crítica sobre as antinomias campo e cidade herdadas como relações
unificadas pelo ordenamento social urbano. Se insere no debate contemporâneo sobre o rural, a
ruralidade e as novas realidades rurais.
No artigo “¿Nueva ruralidad? Un aporte al debate”, Gómez (2001) recupera momentos
expressivos da trajetória teórica do debate destacando a ruralidade tradicional que tem no enfoque
dicotômico o seu condicionante, a sociologia rural tradicional, o enfoque tipológico na América
Latina, as aproximações para uma nova ruralidade ( na qual inclui a produção da brasileira Maria
de Nazareth Baudel Wanderley), e chega a uma proposta de nova ruralidade constituída por três
dimensões, quais sejam a) o tipo de espaço e as atividades que realizam; b) as especificidades
que a distinguem, a exemplo do caráter pessoal das relações sociais numa determinada base
territorial, que em outra época foi lido como reacionário e contemporaneamente é compreendido
como uma condição de preservação da identidade frente à globalização; c) o alcance espacial da
ruralidade que atualmente é reconhecido como incluindo espaços urbanos e destacando a
necessidade de estudar as articulações entre o rural e o urbano como condição de entendimento
da economia e da política local. Conclui, em acordo com o rumo contemporâneo das pesquisas,
com a eliminação da noção de “setor rural” e adota o “mundo rural” ou o “rural”.

1
Crismma@terra.com.br; cristinamm@ucsal.br

1
Entre os autores brasileiros eu acrescentaria Maria José Carneiro, José Graziano da Silva,
Silvana G. de Paula e Roberto José Moreira como autores que pensam sínteses contemporâneas
embora com diferentes focalizações. Eu diria que é comum a todos um avanço metodológico que
possibilita lidar com a diversidade e com a ambigüidade.
Graziano da Silva(1996), discutindo a nova dinâmica da agricultura brasileira, dá
centralidade à atividade produtiva na caracterização do novo rural brasileiro. Resumidamente, o
novo rural brasileiro seria composto por uma agricultura moderna baseada em commodities e
intimamente ligada à agroindústria, por atividades não-agrícolas ligadas à moradia, ao lazer e a
várias atividades industriais de prestação de serviço e a atividades agropecuárias localizadas em
nichos específicos de mercados. Considero que esta postulação se fundamenta no continuum
rural-urbano que gerou temáticas como desruralização, ruralização, desvalorização, revalorização
sociocultural ou intelectual da ruralidade. É sem dúvida uma referência intersetorial da economia
percebida a partir de uma metodologia que tomou a unidade familiar de produção como unidade de
referência, juntando-se à produção antropológica na inspiração de políticas para a agricultura
familiar.
Para Carneiro (1998), há um ponto de contato com a heterogeneidade produtiva na noção
de novo rural brasileiro através da noção de pluriatividade, mas há também distanciamento teórico.
A partir da reversão da anterioridade do abstrato em relação ao concreto na representação,
considera a ruralidade “não mais como uma realidade empiricamente observável, mas como uma
representação social, definida culturalmente por atores sociais que desempenham atividades não
homogêneas e que não estão necessariamente remetidas à produção agrícola”(Carneiro, 1998: p
72), na medida em que se observa dois conjuntos de fenômeno, quais sejam “o espaço rural não
se define mais exclusivamente pela atividade agrícola”, e ocorre “procura crescente de formas de
lazer e até mesmo de meios alternativos de vida no campo, por pessoas vindas da
cidade”(Carneiro, 1999: p 230).
De Paula (2001) examinando o country brasileiro em Presidente Prudente, cidade do
interior de São Paulo, estreita as relações entre o urbano e o rural considrando-o como “um estilo
de vida urbano que se inspira no tema da ruralidade. Isto significa dizer que o padrão country
brasileiro é uma experiência de sociabilidade urbana”. (Paula, 2001: p 40) A idéia que perpassa
essa compreensão é a de ambivalência de referências (rural-urbano; EUA-Brasil), “...porque estão
num trânsito incessante de cruzamento de fronteiras” (Paula, 2001: p 40), desse modo é “...uma
elaboração sobre a ruralidade que se caracteriza por ser uma narrativa em aberto, passível,
portanto, de criar e incorporar novos elementos e de ser apropriada em diversas direções”... “Trata-
se, portanto, do rural na cidade, do rural como experiência urbana”.(Paula, 2001: p 42)
Por fim, Moreira (2002) considera que “Falar de ruralidade é falar de uma especificidade
das relações humanas que se põe para a análise científica. Os mesmos processos que tensionam
o rural herdado tensionam as visões que cada uma das ciências sociais constrói sobre as relações
sociais que fazem emergir o rural e as ruralidades. ....a ruptura epistemológica necessária, porém

2
difícil de realizar, impõe conceber a unidade sujeito-objeto e ser humano-natureza. Conceber essa
unidade ou mesmo a sua dissolução significa reconhecer que a natureza é elemento fundamental
na identidade do ser humano. Nesse esforço, deslocar o foco analítico para o fenômeno da
vivência, do ser vivo e da vida humana parece-nos ser fundamental”.(Moreira, 2002: p 9).
Considera ainda que sob modos de globalização hegemônicos, os diferentes processos de
revalorização do mundo rural no Brasil “...consolidam atividades rurais e urbanas em cidades
interioranas, reduzem – podendo mesmo reverter – o processo de migração rural-urbana e estão
associados à consolidação de processos participativos de planejamento e gestão social nos
Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural”. (Moreira, 2002: p 22)
Retomando a Gómez e iniciando o meu percurso em direção a avanços teóricos e
evidências empíricas da ruralidade contemporânea, o que me parece mais relevante nesse debate
é o fato de que, conforme o autor, as conquistas sociais de melhoria da qualidade de vida das
populações rurais no Chile e o avanço da concepção que apóia as políticas de reversão das
carências das populações rurais, são indicadores da importância dos avanços teóricos que
conduziram à concepção de “mundo rural”, justificando assim que “..la polémica sobre la nueva
ruralidad deba continuar”.(Gómez, 2001:p 30).

Os fundamentos teórico-epistemológicos
Contribuições teóricas inspiradas no debate sobre novas ruralidades integram o movimento
geral de desenvolvimento científico direcionado para a reconexão entre sujeito e objeto, até então
apartados em nome da objetividade científica inspirada pela razão instrumental. A existência de
dicotomias nas formulações teóricas expressa aquela separação. A crítica à dicotomia já é
reconhecida como avanço teórico nas formulações contemporâneas sobre ruralidades,
estabelecendo nova direção epistemológica,2diante da realidade que é um campo de
coexistências. O fenômeno da vida e a cultura ganham voz nas interpretações científicas
incorporando a episteme interdisciplinar que avança para o pensamento complexo, o que tem
requerido revisitar as teorizações clássicas com recurso contemporâneos e considerar
conhecimentos filosóficos, religiosos, das culturas populares, etc. (Boaventura dos Santos, 1995,
2002; Morin, 1996, 2002; D’Ambrósio, 1999).
Nessa perspectiva se insere a formulação da relação campo e cidade como uma noção
inteira e aberta para pensar o desenvolvimento humano contemporâneo, como proposto por
Alencar &Moreira (2002), interpretação que
“...procura evidenciar as imbricações entre conhecimento científico e a experiência na vida
do sujeito do conhecimento, promovendo a reflexão sobre a ambiência da prática social
que produz o conhecimento. Científica ou não, essa prática social é permeada por aquilo

2
Outros autores também têm sistematizado esses debates, entre os quais: Mingione, 1982; Durán, 1998;
Riella, 2000;

3
que a transcende como dupla imanência seja como contingências da prática, seja como
conseqüências políticas dela” (Alencar &Moreira , 2002: p 37).
Está exatamente nas conseqüências sociais do desenvolvimento humano, num contexto
em que globalização e localização expressam uma tensão geral no modo de desenvolvimento do
capitalismo contemporâneo, a inquietação científica que me possibilitou encontrar entre
expressões da ruralidade, a ruralidade metropolitana. Nesse contexto em que ela se insere,
“As transformações ocorridas nos espaços locais como decorrência de interações entre
espaços sociais, num movimento contrarrestante à tendência homogeneizadora da
expansão do capitalismo, têm constituído espaços mais complexos em termos das
diversidades econômica, social e cultural, formadoras de novas identidades locais em que
elementos antigos resistem, ou se redefinem ou ainda são extintos, numa continuidade
histórica não linear”. (Alencar &Moreira , 2002: p 49).

Em outro artigo, intitulado “Ruralidade: ponto em comum para reexaminar o ordenamento


metropolitano de Salvador,”3 reconhecendo por um lado, a diversidade da realidade e, por outro, a
necessidade de que exista algo em comum que justifique mudança de paradigmas para o
desenvolvimento, elegi a ruralidade como noção capaz de inspirar um reexame do atual
ordenamento urbano da Região Metropolitana de Salvador4 na medida em que esteja ancorada na
unidade homem-natureza. Para tanto, seria preciso reconhecer a coexistência do rural e do urbano
no metropolitano a partir da dimensão de ser natural humano como inerente aos habitantes desse
espaço social.

Nesse reconhecimento subjaz a perspectiva de inclusão social dos sujeitos e de suas


identidades, possível de ser objetivada em políticas de desenvolvimento favoráveis à qualidade de
vida metropolitana.
“Na qualidade de vida se inserem dimensões objetivas e subjetivas e, portanto,
condições de saúde, de educação, saneamento, renda, segurança, entre outras, mas
também convívio ambiental, acesso às conquistas científicas, respeito e valorização do ser
humano, dos valores culturais, coexistência na diversidade de modos de vida etc.. Trata-se
da desconstrução de um olhar científico que constrói fronteiras entre diversas dimensões
do ser humano e da construção de um olhar, também científico, que religa essas
dimensões, inclusive como ciência aplicada”(Alencar, 2003: p 9).
São inter-relações e interdependência internas ao campo científico em interação com os
interesses que estão em jogo na sociedade abrangente. Deste modo, é impossível examinar um

3
Este artigo integra o Projeto Desenvolvimento Rural Sustentável: registro de novas ruralidades, apoiado pelo Programa
Cientistas do Nosso Estado, da Faperj, sob a responsabilidade de Roberto José Moreira e está associado à pesquisa de
doutorado da autora.
4
A identidade de RMS para região onde se insere a cidade de Salvador data da década de 1970, sob a
vigência do governo militar, quando foi criada pela Lei Complementar nº 14 de 08 de junho de 1973, período
em que também o foram criadas as primeiras regiões metropolitanas do Brasil.

4
campo científico apenas a partir de processos endógenos ao conhecimento científico como
pretende Karl Popper no neopositivismo. (Morin,1992; Moreira, 1996; Bensaïd, 1999; Oliva, 1999)

A trajetória para a formulação da noção de ruralidade metropolitana se deu na pesquisa


“Conhecimento científico e experiência de ruralidade na RMS” 5, em cujo âmbito foi formulada a
noção campo-cidade como uma reversão do pólo heurístico condicionado pelo ordenamento social
que vem da cidade (Alencar & Moreira 2002), e focalizado o ser natural humano 6como imanente à
ruralidade que não se anula na urbanidade.
.

A ruralidade metropolitana
A realidade empírica tomada como referência para a formulação da noção de ruralidade
metropolitana é a da Região Metropolitana de Salvador – RMS. Salvador, capital do Estado da
Bahia, Brasil. A compreensão que possibilitou essa formulação é a que considera necessário
pensar a realidade em termos de complexidade, tendo em vista que ela é complexa,
multidimensional.
Na condição metropolitana está o ambiente construído territorializando os modos de vida
sob a égide da modernidade. Nessa territorialidade, a intensidade de eventos constitutiva do
ambiente, teoricamente afastaria o rural por não acompanhar a modernidade. Contudo, é
justamente ela que faz emergir o rural como relação com a natureza, como modo de vida e como
potencial econômico, através de uma visão crítica sobre a qualidade de vida metropolitana.
Com essa perspectiva teórica, evidências empíricas buscadas na trajetória de pessoas que
vivem em municípios da RMS e que trabalham direta e/ou indiretamente com o mundo rural, nos
permitem qualificar o rural na contemporaneidade como decorrente da sua intensa relação com a
cidade metropolitana. Nessa territorialidade, em todos os municípios da RMS reconheço o rural
agrícola e não agrícola, tanto quanto reconheço o fato de o rural não ser contemplado na
constituição da identidade regional. O rural ora está invisível na região ora está desqualificado
como irrelevante enquanto indicador macroeconômico7. Como natureza é visível para o lazer, o
turismo e para a questão ambiental, aqui contemplados no rural não agrícola.

5
O principal produto desta pesquisa, até o momento, foi a tese de doutoramento da autora, pelo
CPDA/UFRRJ, intitulada “Campo e rural na metrópole: sinais de um padrão civilizatório”.
6
“Enquanto ser natural humano...“o homem é imediatamente ser da natureza”. De um lado, enquanto ser
natural vivo, ele é “provido de forças naturais, de forças vitais”. De outro lado, enquanto ser natural “de carne
e osso, sensível, objetivo, ele é tal como os animais e as plantas, um ser passivo, dependente e limitado.... O
fato de o homem pertencer à natureza ou, mais exatamente, seu “ser natural”, significa que sua força de
trabalho consumida no processo de produção é, originalmente, força vital. O ser natural é “um ser natural
humano”. Nessa humanidade, a determinação natural nega-se sem se abolir.”(Bensaïd, 1999: pp 434 e 435).

7
A RMS é a menor região econômica do Estado da Bahia em extensão, e a maior em densidade
populacional, volume de investimentos e PIB; dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais
da Bahia – SEI apontaram que em 1996, dos dez maiores PIBs municipais, Salvador respondia por 37%;

5
A desqualificação macroeconômica do rural na RMS antecipa e é seguida de destruição de
atividades produtivas que são substituídas por outras inovadoras 8. Portanto, desqualificação
seguida de inovação, como uma teleologia da modernidade que contém a separação
epistemológica entre sujeito e objeto, na medida em que separa o trabalho do trabalhador quer
esteja produzindo ciência ou agricultura ou indústria. Assim, desconsidera-se que é através do
trabalho que a humanidade se constitui como tal; que pelo trabalho, homens e mulheres
individualmente constroem suas vidas e o sentido delas compondo suas identidades individuais e
sociais. E isto se dá numa trajetória que constrói sentidos de vida expressos objetivamente na
produção material e social da existência.
Tomando o trabalho como centralidade entrevistei cinqüenta pessoas de todos os níveis de
escolaridade que trabalham desde a feira livre às chefias de órgãos públicos, em oito dos dez
municípios da região. Portanto, tomei o trabalho metodologicamente, como referencia amostral e
teoricamente, como categoria estruturante da condição de vida cada um, sendo as experiências
vividas as que dão sentidos a essa estruturação. Desse modo, assumo um conhecimento científico
cujo sentido é dado pelo fenômeno da vida e da cultura.
A trajetória de vida das gerações antecedentes à desses trabalhadores foi a principal
motivação para que eles permanecessem em atividades ligadas ao rural, e se mistura ao prazer da
vida no campo como motivação para trabalhar com o rural, para 40% dos entrevistados com essa
trajetória. Considerando todos os entrevistados esse percentual é de 52%. Para essa leitura das
entrevistas listei quatorze motivações declaradas9.
Nada há de especificamente metropolitano nessas motivações que são fortemente
subjetivas. Contudo, elas se encontram em meio a outras motivações objetivas como possibilidade
de acesso à escola, a emprego, e em decorrência da ascensão profissional para assumir cargos de
confiança. Essas são motivações com clara inspiração citadina, tendo em vista que órgãos
públicos e serviços se concentram nas cidades.

cinco municípios da RMS estão entre os dez maiores do Estado e totalizaram 59,5% do PIB desses
municípios; a arrecadação do Imposto Sobre Circulação de Mercadoria – ICMS, segundo a Secretaria da
Fazenda – SEFAZ, representava em 1996, 70,74% de toda a arrecadação do Estado.
8
O Brasil, enquanto tal é fruto desse processo como espaço colonizado. Onde apenas a relação direta com a
natureza dava sentido ao modo de vida, passa a existir a relação mediada pelo ambiente construído de modo
cada vez mais intenso. Na Região Metropolitana de Salvador, desde a década de 1950, acelera-se essa
intensidade e sua dinâmica é redefinida pela industrialização do petróleo e petroquímica. A trajetória da
CONDER, que nasce “Conselho de Desenvolvimento do Recôncavo” (Recôncavo é uma região geográfica
que incçuía o espaço da RMS), passa a ser “Companhia de Desenvolvimento da RMS” e chega em 2003 a ser
“Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia” institucionaliza a amplitude do urbano como
base da política de desenvolvimento econômico e social para todo o Estado da Bahia.
9
As motivações declaradas pelos entrevistados foram: opção prévia por gostar, decorrência da história de vida
dos antepassados e gostar do rural, modo de vida melhor para educar, atender a convite de órgão público,
dispor da terra, mais tempo para a família, complemento financeiro, imposição das circunstâncias, falta de
emprego na cidade metropolitana, falta de emprego no local de origem, falta de alternativa de escolas, visão
crítica a partir da formação profissional, ser a profissão do futuro, outras circunstâncias alheias ao rural..

6
A realidade, entretanto, não é um quadro linear nem mesmo quando traduzida
quantitativamente, até mesmo porque as motivações não são exclusivas e apresentam
combinações diferenciadas. Para dar tratamento quantitativo pontuei as motivações como
exclusivas e atribuí freqüência a elas considerando o total de entrevistados. Foi possível observar,
por exemplo, que alguém com escolaridade técnica, mas sem estabilidade de emprego opta por
ser pequeno agropecuarista porque já tem terra disponível com propriedade privada
regulamentada e pode assim manter relações mais diretas e constantes com seus familiares, na
educação dos filhos. A falta de estabilidade de emprego foi superada por outras motivações que
considerei como qualificativos positivos, que se agregam à trajetória e ao prazer compondo 26,0%
das motivações. Considerei qualitativamente negativas, motivação como não ter outra opção quer
por falta de emprego, ou de escola ou incapacidade individual de estabelecer alternativas, frente,
por exemplo, ao analfabetismo, o que totalizou 38,0% das motivações. Configura com isso uma
situação de falta de competitividade com a mão de obra qualificada que está na cidade.
Em se tratando do mundo rural imerso no mundo urbano metropolitano, e subalterno
econômica, social e culturalmente, chama-me a atenção o alto percentual de motivações positivas
(52% das trajetórias e 26% de outras motivações) incluindo-as em torno do modo de vida rural
mais integrado ao modo de vida urbano. Para por em xeque a verificação estabeleci uma base de
cálculo fictícia transformando em exclusivas as motivações e em amostra o universo de
motivações. Mantendo a mesma agregação utilizada para os cálculos com amostra real, a
freqüência é de 32,2% para as motivações decorrentes da trajetória dos antepassados assumida
com prazer, 30,6% para as motivações que considerei qualitativamente negativas e 30,6% para as
motivações que considerei qualitativamente positivas, independente da trajetória de vida
consentida, o que sendo considerado agregadamente, elevaria para 62,8% a freqüência positiva.
No cálculo considerando os entrevistados esse percentual é de 78%.
Há ainda, no cálculo não fictício, um percentual de 14% relativo àqueles que passaram a
trabalhar em atividade ligada ao rural por força das circunstâncias, sendo que entre esses há os
que, a partir daí, assumiram o gostar do que faz resignificando o sentido de estarem em atividade
profissional vinculada ao mundo rural. Nesse caso, considerando o quadro de motivações
objetivas, esse percentual se inclui entre os 38% de motivações negativas e subjetivamente
resignificadas estaria entre os 78% de motivações positivas.
Lembrando que estou tratando o rural e a ruralidade tomando a relação com a natureza
como lhes sendo imanente, na condição metropolitana a questão ambiental se configura como uma
evidência constitutiva da ruralidade metropolitana. Na Região Metropolitana de Salvador, banhada
por águas salgadas e doces, margeando e penetrando o espaço da cidade, o rural não agrícola da
vida praiana, fica subalterno à representação do lazer que é um cartão postal da cidade do
Salvador, mas se explicita quando o que se privilegia é a sutentabilidade do desenvolvimento; ou
seja, as condições de vida no ambiente construído, particularmente quando se trata de
balneabilidade das praias.

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Nesse contexto, em sua tese de doutoramento, Santos (1999) recupera a história narrada
por Ítalo Calvino em Marcovaldo e as Estações da Cidade, na qual Marcovaldo tenta pescar um
peixe e para isso, por vários dias, procura obstinadamente um rio nos arredores da cidade, até que
encontra num alargamento de rio uma bacia com grande cardume, e pesca. Contudo, retornando
para casa logo se depara com um guarda municipal que o aborda perguntando em que lugar do rio
ele havia pescado. Isto porque, caso houvesse pescado na parte baixa do rio, o peixe estaria
envenenado com os resíduos da fábrica de tintas acima do rio; se houvesse sido na parte alta,
haveria uma multa porque ali havia uma reserva de pesca. Marcovaldo resolveu dizer que a vara
de pescar era apenas para mostrar aos amigos, mas que o peixe havia sido
comprado numa peixaria da cidade. Diante disso, o guarda informou que ele
teria apenas que pagar o imposto para levar o peixe para a cidade, porque
ali estava fora do perímetro urbano. Marcovaldo, então, devolveu os peixes ao rio.
"Marcovaldo é um triste exemplo da tentativa de reencontro com a natureza
neste artefato humano que é a cidade".(Santos, 1999: p 14).
Na pesquisa que desenvolvi, pude observar que as relações estabelecidas com a natureza,
pelos trabalhadores entrevistados, se situam mais no âmbito da qualidade natural, expressa como
atenção ao uso conservacionista dos recursos naturais (32,33%). Reafirma-se quando o que
motiva a declaração dos entrevistados é a percepção sobre a cidade; a cidade é identificada como
geradora de problema ambiental em 38% das qualificações que lhes são atribuídas. Perceber a
cidade como lócus de economia monetarizada e excludente do rural pelo poder público representa,
cada uma, 15,5%; na verdade, o poder público está também na qualificação de economia
monetarizada, uma das primeiras expressões de intervenção do Estado na economia, pela
emissão e controle da moeda de cada país. De todo modo, quase a totalidade das qualificações
remete ao padrão de desenvolvimento socioeconômico, tecnológico, cultural. Na identificação do
que é o rural predomina (36%) a sua possibilidade produtiva; e na identificação da natureza o que
predomina é aquilo que transcende à condição material (34,4%), pelo que tem de divino, de
imaterial, de uma ordem natural.
Buscando o sentimento dos entrevistados para entender as relações estabelecidas entre o
rural e o urbano, se reafirma em 54% das sensações enunciadas sobre a cidade, o do padrão de
desenvolvimento como originando esses sentimentos, para o bem e para o mal, sob a égide da
monetarização das relações econômicas e sociais. Essas sensações são de cansaço, de excesso
de trânsito, de agitação, de estresse, de aprisionamento pela violência, de poluição, tensão e
rotina, de segregações sociais, de ser boa apenas para o comércio, menos livre devido à
monetarização, mais difícil devido à monetarização, onde o dinheiro é o valor maior, assim como
sendo o lugar onde se viabiliza moradia, com condições normais de vida desde que se observe
cuidado em quanto a possíveis violências.
Considerando que a cidade inspira também a sensação de ser o lugar da diversidade de
eventos e de serviços, entre os quais se inclui a educação formal, associei a isto, em interface,

8
sensações já relacionadas com o padrão de desenvolvimento como o excesso de ritmo, a rotina e
a viabilização da moradia e qualifiquei como decorrentes do avanço do conhecimento científico,
donde obtive uma freqüência de 33,2% das sensações percebidas. Com esse critério de
quantificação há uma interseção entre sentimentos que considerei como inspirados pelo padrão de
desenvolvimento e pelo avanço do conhecimento. Há sentimentos que incidem de mais de uma
maneira sobre os indivíduos; por exemplo, os 50 entrevistados registraram 67 vezes diferentes
sentimentos em relação à vida na cidade, que traduzi como tendo origem no padrão de
desenvolvimento: é a única origem de sentimentos que excede o número de entrevistados.

Entre os sentimentos que o campo inspira, onde as ocorrências são mais dispersas, as
sensações predominantes vêm da relação com a cidade (27,9%), ou seja: mais livre devido à não
monetarização, sem agitação, com pertencimento, em transformação a partir das relações com a
cidade e de onde se quer sair para buscar conforto. Em seguida vem a satisfação subjetiva da vida
rural (25,8%): felicidade, lazer, relaxamento, higiene mental, prazer, relações mais humanas, sem
causar prejuízo a outrem, com felicidade na contradição. As inspirações desses sentimentos são,
em sua maioria, positivas, dando uma predominância de 53,7% dos sentimentos favoráveis à vida
no campo.

A relação com a natureza vem em seguida, com 21,6%, inspirando sensações de vida
saudável, renascimento, oportunidade viver sem agrotóxicos, de pertencimento e de fonte da vida
para o campo e para a cidade. Só depois, com 17,5%, vêm as sensações que classifiquei como
decorrentes do padrão de desenvolvimento, como uma vida cansada pela intensidade e peso do
trabalho direto na atividade primária, excluída dos benefícios sociais, produtivos e das conquistas
da humanidade, sem condições de sobrevivência, concorrendo em condições desiguais com os
grandes, morrendo por poluição.

As sensações que agreguei como sendo decorrentes do avanço do conhecimento são


todas socialmente excludentes e estão associadas ao padrão de desenvolvimento e às inspirações
da cidade como a dificuldade de usufruir as conquistas da humanidade, a exclusão dos benefícios
sociais e produtivos, o morrendo pela poluição por grandes empresas e de onde se quer sair para
buscar o conforto.

A partir dos sentimentos inspirados pela vida urbana e pela vida rural, em pessoas que
trabalham com o rural é possível, então, perceber as insatisfações e as satisfações que marcam
essas pessoas como seres humanos. Desse modo, é preciso reconhecer que tanto o campo como
a cidade, ou tanto o rural como urbano, carregam em si condição de possibilidades como espaços
em que a espécie humana promove seu desenvolvimento e que nos modos de vida rural e urbano
há ensinamentos do que é favorável e do que é desfavorável ao ser humano. A dicotomia que
considera o desenvolvimento humano como exclusivamente inerente à vida na cidade aparece,
nessa reflexão, carente de fundamentos quer seja porque o ser natural humano está tanto no

9
indivíduo rural quanto no urbano, quer seja porque é passível de crítica civilizatória um padrão de
desenvolvimento que se estabelece promovendo desqualificação de indivíduos por demarcação de
fronteiras entre modos de vida.

A possibilidade de vivenciar os contrastes entre o mundo rural e o mundo urbano


metropolitano de modo tão próximo em suas conseqüências favoráveis e desfavoráveis à espécie
humana, fez com que os entrevistados, com grau de escolaridade a partir do nível superior
incompleto revissem as concepções transmitidas pelo conhecimento científico sobre qual seria a
contribuição mais favorável à melhoria da qualidade de vida no mundo rural. Assim é que a difusão
de tecnologia, ícone da urbanidade no que tem de artefato humano, perde sua condição de
verdade universal e passa a dividir espaço, em desvantagem, com a ação pública, curiosamente
em plena hegemonia do capitalismo neoliberal globalizado, e como força contrarestante10.

A ciência positiva apropriada em todo o seu potencial instrumental liderou a formação


desses profissionais no âmbito tecnológico e no âmbito intelectual para dar organicidade a esse
processo. Tudo parecia estar sob controle a partir das certezas que as diferentes áreas da ciência
produziam para intervir na realidade.
Estava-se convencido de que o continuum rural urbano performaria a realidade e
constituiria sua história. Mas, “a realidade parece ter tomado definitivamente, a dianteira sobre a
teoria” (Santos, 1995: p 18), e no reordenamento territorial não se processou a superação do rural
pelo urbano, mesmo considerando a intensidade com que se constrói ambientes, o que é marca de
toda a história do Brasil.
O rural reaparece porque ocupou brechas materiais e imateriais. Permaneceu presente dos
recursos da natureza, apropriados produtivamente, aos valores culturais, que permitem vislumbrar
dimensões transcendentes que religam o ser humano a essa mesma natureza que é a biodiversa.
Homogeneizar a diversidade da realidade social como se transformou policultura em
monocultura imprimindo à estrutura pluriativa do rural a estrutura monoativa da indústria, foi um
processo que fugiu ao controle instrumental da ciência.
Nesse contexto de conhecimentos, percebo, então, o rural e o urbano em coexistência no
mesmo território onde o urbano é metropolitano, fazendo surgir a representação do rural
metropolitano. É, por certo, um novo olhar; possível na perspectiva da complexidade.
Com essa perspectiva, além da não dicotomização do campo e da cidade, outros
significados podem ser buscados na representação do rural metropolitano. Entre esses

10
Por ordem de freqüência estatística, as contribuições para um mundo rural melhor viriam de: ação pública;
disponibilizar recursos materiais e organizacionais ao pequeno produtor; ter respeito humano, cultural e
compromisso; sustentabilidade ambiental; difusão de tecnologia em geral, para o Brasil, para a agricultura
familiar e orgânica; disponibilizar serviços urbanos; requalificar a capacitação profissional com artes, respeito
humano, cultural, teoria e prática; considerar a realidade como um todo social, psicológico, espiritual e
político; ter cidadania política e comprometimento político; considerar a lógica de mercado.

10
significados, está a busca de indicadores necessários a um reordenamento territorial que suponha
um novo padrão civilizatório.
Em suma, a cidadania, mas também a condição humana está no cerne dessa busca de
melhores condições de vida através da compreensão da ruralidade metropolitana na RMS. É
possível assim evidenciar a desqualificação da cidadania rural com as conseqüências de: omissão
da identidade social, exclusão social e governamental e, em decorrência disto, o não registro
estatístico da existência de sujeitos rurais no urbano que justifique medidas específicas de
políticas. Possibilita também agregar à compreensão da violência urbana e da crise ambiental,
elementos explicativos da realidade social enquanto “...um excesso de urbanidade excludente da
ruralidade”.(Alencar, 2002: p.11).

Referências
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