Você está na página 1de 13

Esqueça tudo o que nunca soube

E
Me leia
Aqui onde moro, sempre choro, pela falta de estrelas, pela falta de
brilhos, pela falta de realce no céu. Aqui, querida leitora, sempre
chove e neve não há. Se aqui tivesse um nome de verdade, eu
chamaria de Lugar Nenhum, estamos abaixo de Londres, estamos
abaixo de tudo, literatura não há, os sonetos de Shakespeare, aqui,
não brilham, aqui há falta de poesia e de estrelas. Esses dias, foi meu
aniversário, eu não queria porra nenhuma pra comemorar, me sinto
sozinho quando as pessoas fingem se importar. A real, eu bem sei,
elas se importam, talvez isso que machuque mais. Não há dia que eu
chore mais como no meu aniversário, enfim, me chamaram pra uma
pizarria, essas de esquina, perto de um shopping, não tão longe da
minha casa, lugarzinho bonito, todo detalhado de guitarras e os
caralho a quatro, parecia até que não era daqui, lugar vindo de outro
lugar, outra cidade ou sei lá. Enfim, fomos pra lá, eu, mãe, minha
irmã, a bem da verdade não era mais meu aniversário, eu só queria
comer pizza, sinceramente, me amarro nisso, a crocância, nem tão
grande, bonita, simples, em suma: Pizza. O fato de não ser mais meu
dia, fazia aquilo ser mais triste, ela ligou pra mim dias antes, no dia
do meu aniversário, disse coisas lindas e tal, falou até sobre Van
Gogh, meu pintor favorito, eu sinto saudades dela, mas isso é outro
papo. Lá, cantaram parabéns, meus tios e tias, eu odeio isso, eu
odeio gente, todos eles parecem bem, e bem, eu pareço que não
mereço eles ou algo desse tipo. Os caras pagaram cinco pizzas, eu vi
minha prima, garota bonita, cabelos encaracolados, a única coisa que
pensei era no tempo de infância, a gente costumava brincar e tal, ela
com polly e coisa parecida e eu com meu max stell, pensei num
bagulho: ela tava linda, eu não. Ela mudou, eu continuava
praticamente o mesmo, se pá até pior. Ela não falou comigo, não me
importo, os tios e tias falaram, queria que tomassem a mesma
atitude que ela, as vezes eu fico assim, insuportável, eu sei, é
horrível, eu odeio ficar assim, mas enfim, naquela conversa chata de
vaivém sobre coisas que pouco importam mas fazem gente velha rir,
eu peguei um pano, esses de limpar a mão e coisa e tal, eu queria
escrever um poema ali, queria escrever algo que não perdure a
eternidade, não que nem essas palavras digitadas, talvez as coisas se
percam, talvez tudo um dia suma, mas as palavras digitadas de tão
falsas duram bem mais, aquele poema não duraria, eu nem sequer
lembro o que escrevi naquilo, mas peguei o pano e guardei no bolso,
ao chegar em casa escreveria algo. Lembrei dos caras da antiguidade
que escreviam em papiro, lembrei de quão fácil aquilo podia se
perder, o quão fácil um clássico de hoje em dia poderia ter se
perdido, em quantos clássicos já se perderam... Eu escrevi sobre ela,
disso eu lembro, eu passei uns dois meses com um caderno
escrevendo pra ela, eu disse pra ela “Se você for embora de vez, eu
vou te dar algo pra se lembrar de mim, algo pra te marcar, eu quero
te marcar” Como ela fez comigo, me marcando. Escrevi bastante coisa
aleatória, até sobre a irmã dela de alguns meses, coisa linda, cês
tinha que ver, o sorriso dela é pura poesia, bagulho incrível,
fenomenal, eu seria feliz olhando aquilo todo dia, é claro que eu
nunca vi ela presencialmente, só por foto. Isso me faz triste pra
caralho. Enfim, queria contar umas histórias, nunca sobre infância,
não tô afim de falar de infância, bagulho horrível, não tive uma, esse
é o motivo de que não vou falar sobre infância. A minha infância tá
sendo agora, talvez por isso eu seja tão fudido e com a
personalidade tão maleável, eu ainda moro com os pais e tal, eu
acho que talvez eu meio que odeie um pouco eles, coisa de rebelde
sem causa e coisa e tal, coisa de maluco frustrado, odeio isso, ter
ideias tão clichê, eh, eu escrevo também, tudo sobre ela, ela foi
embora, mas disso você já sabe, eu sei, eu sei, como assim tudo sobre
ela? Eu já escrevi sobre outras garotas, não entenda mal, já tive
relações nada legais com outras garotas, mas nada é como ela, tudo
que eu escrevo sobre ela saí límpido e puro, como se eu fosse
criança, como se toda minha infância perdida, a que eu nunca tive,
eu encontrasse nela, ela é minha infância, eu tô vivendo ela agora, eu
amo essa porra de garota, mas tá tudo bem fudido, enfim, e vocês
sabem, ela foi embora. Ah, meu nome é Charlie. Acho que sempre
vai ser Charlie.
Nasci no dia da mentira, o dia dos bobos de abril, sinceramente,
acho que amaria essa data com todo prazer, se, esse se não
aconteceu, eu não tivesse nascido nessa data. É o mês de
Shakespeare. Mês de abril, o mês de nossas vidas, o mês, onde, a
soma dos poetas de todos os meses do ano não se iguala aos de abril.
Isso não faz sentido, mas é bonito. Pouco importa a beleza. Tive uma
infância mixuruca, e já falei que não vou falar sobre isso. Mas vou
pular pra quando conheci ela, já te disse que amo ela. Coisa simples,
ela namora meu amigo, não é o que cê tá pensando, nunca é o que as
pessoas pensam, o enredo engana, a bem da verdade, o escritor
engana, enfim, meu amigo chegou pra mim, um dia bem estranho,
tudo tava bem estranho naquela época.
“Cara, eu tô apaixonado.”
Pensei em como ele se apaixonava fácil, em como arrumava alguém
fácil, sinceramente, queria ser desse jeito, mas não curtia, não curtia
o jeito que ele falava de mina, não curtia o jeito de ser desse jeito, eu
me odiava em todas as facetas, cada traço, mas amo o meu jeito de
amar, parece de verdade, é a única coisa que não vou modesto nem
fudendo, mas só as vezes, só as vezes porque:
a) Eu sou inseguro pra caralho
“Em quem?”
“Uma mina de óculos, Gabriele o nome, a mina é muito rabuda e
esses bagui.”
O nome dela saía bonito até na boca do filha da puta, eu me amarro
nesse nome, Gabriele, cheira a anjo. Eu conheci ela, depois dela ir
pra nossa escola. O cara, que tava “apaixonado”, nem sequer falava
com a mina mas tudo bem, ela era linda, isso veio na mente, coisa
simples, ali, havia uma pessoa, uma mina qualquer, que eu sabia
muito bem que sofria, todos sofrem, mas o sorriso dela era diferente,
eu não sei que porra, mas eu sei, eu sabia, no caso, que aquele
sorriso, tinha algum bagulho por trás, coisa de personalidade
angelical mesmo, aquele bagulho chato do palhaço, clichezão e tal, o
palhaço faz todo mundo ri, mas quem faz o palhaço ri? Eu nem
acredito que escrevi isso, mas, na falta de palavras, deixo assim
mesmo e pouco importa. Eu não me importei nenhum pouco com
aquilo, porque, você sabe, eu tava fudido e coisa e tal. Depois veio a
pandemia, doencinha de merda, comecei a conversar com ela, por
Whatsapp mesmo, ela era incrível. Não sei, talvez eu só tenha tido
tão pouco contato com gente. Mas hoje em dia sei, ela era incrível. A
gente se recomendava música. Eu nunca vi alguém com gosto
musical tão bom quanto aquela porra. E, olha, eu tinha o gosto
musical péssimo, ela me mudou, até no ouvir. Comecei a escrever só
por causa dela. Hoje em dia leio Shakespeare, banco o intelectual,
mas sinceramente, toda minha literatura tá nos símbolos do nome
dela. G a b r i e l e. Por você eu subiria altas torres. Enfim,
avançando mais um pouco, mudei de cidade, vim parar nessa
desgraça aqui, melhor que lá, mas aqui não tem ela, nem sequer tem
estrela, e sempre chove. Provavelmente o céu chora por não brilhar
como antes, homens filhas da puta. Eu odeio a humanidade. Eu sou
praticamente um comunista de iphone. Mas eu quero partilhar
minha vida com ela, quero ter fome ao lado dela. Isso não é nada
romântico. Aqui descobri que nem tudo se trata de tristeza, conheci
outras garotas, nenhuma gostei como gostei dela, nem sei, espero
que ela não tenha ciúme, mas eu não gostei de nenhuma, eu
sinceramente sou muito inseguro, penso que ela vai me trair e coisa
e tal, trair, Ela nem namora com você, cara. Foda-se. Que grande
merda. Talvez eu devesse ligar pra ela. Não, não. Deixa pra lá.
Deitei na grama, porque tava cansado de tudo, e nada, nada fazia
sentido. Só tinha um sentido, seguir a rua, mas eu parei pra olhar
um gato, ele tinha olhos azuis e era meio siamês, eu me amarro em
gato, ele fugiu, eu tava chorando, naquele dia, tinha estrelas no céu,
até que enfim a porra de uma estrela, eu chorei, deitei na grama,
olhei pro céu, reconheci Vênus, pra quem não sabe, ela brilha pra
porra, se tu tiver chorando por aí e olhar pro céu, ver uma bagulho
brilhando pra caralho, é Vênus, ela brilha pra caralho, é incrível,
surreal, eu amei, mas não parei de chorar, continuei deitado na
grama, lembrei de uma mina, uns meses antes, deitei na grama com
ela, eu também tava cansado, faltava dois dias pro natal, eu deitei na
grama, na véspera da véspera do natal, ela deitou comigo, o irmão
dela tava lá, mas não me importava, eu nem gostava dela, e ela não
gostava de mim, eu olhei pra ela, falei sobre algo que li.
“Queria viver uma vida que eu lembre dessa.”
“Eu queria ser ninguém.”
“Ser ninguém.”
“É um bom epitáfio.”
“Sabe, viver verdadeiramente, perder o rosto, ser ninguém, cansei
de ser eu, até porque nem sei que porra eu sou.”
“A gente nem se conhece de verdade, só finge, eu tô fingindo muito
bem, acho que geral finge muito bem.”
“Provavelmente.”
Eu taquei folha nos cabelos dela, só de zoeira. Hera venenosa,
pensei.
O ônibus chegou, a gente se levantou, minha calça deveria tá cheia
de grama.
“Minha bunda tá suja?”
“Tá, e muito.”
“E a minha?” Perguntei.
“Que bunda?”
Eu ri, ela riu, um bom dia, simples.
Entrei no ônibus com ela e cantarolei algo nada muito bom, minha
cabeça doeu. Franzi o cenho, fechei os olhos.
“Cabeça tá doendo?”
“Você já até sabe.”
“Você fica estranho quando fica com dor de cabeça.”
Todos riem, fecham as cortinas, aplaudem.
Eu choro.
Sabem uma coisa triste? É que quando você ama, gostar de outro
alguém parece tão mais difícil, cansativo, ela foi embora. Ela foi
embora. Tudo que eu queria, naqueles momentos. Ela foi embora.
Era que fosse ela. Que eu dissesse as mesmíssimas para ela. Ela foi
embora. Ela foi embora. Mas não era. Eu chorei. Todos choraram,
ergam os panos emudecidos de lágrimas, taquem ao vento.
A cortina fecha, os murmúrios são de soluços.
b) Já disse que sou inseguro?
Um dia desses, a depressão bateu, tava chorando, pensando nela,
liguei pra ela.
“Eu não sei o que tá acontecendo comigo, eu só tô com saudades, eu
preciso de você aqui, por favor.”
Eu me matei ali, nunca digam por favor, é broxante no âmbito da
felicidade, por favor, não façam isso.
“Tenta dormir, não tem como, você sabe que não tem como, não dá
pra eu simplesmente ir morar aí, é difícil, Charlie, você sabe disso.”
Eu sabia muito bem, a verdade é que todo mundo anda sabendo
muito bem nesses tempos, só fingem que não. Eu só tava em
depressão, as vezes fico desse jeito, começo a pensar bobeira mesmo,
até no ex dela, antigo meu amigo, penso quê não sou porra
nenhuma e que ela deveria me abandonar, que eu deveria ficar
longe dela, de verdade, nesses momentos eu me mato, me mato
mesmo. Eu desliguei, precisava chorar, não me entenda mal, nem
cem porcento do tempo eu sou inseguro, sempre depois desses
momentos completamente menina adolescente de 16 anos, começo a
amar de novo, sou desse tipo, amo e quando não amo choro, vivo
entre extremos, mas se choro, eu quero morrer, se eu amo, eu quero
matar. Depois de três dias liguei pra ela, falei o quanto amava ela e
que sentia orgulho desse sentimento, era tudo verdade, sempre será.
Não digo mentiras quando digo que amo-a. Enfim, vocês já
comeram mousse de cupuaçu? É maravilhoso, eu chamava ela
assim, no início de tudo, não de tudo literalmente, mas de tudo, meu
tudo, ela e eu, esse início de tudo. Eu disse que minha mãe, quando
eu era mais novo, resolvia meus problemas com mousse de cupu, fiz
a analogia, ela era o próprio cupu com a capacidade de deixar-me
extremamente bem, mas lembre-se, não lembro quem disse, não há
prazer que não tenha o contrapeso, a medida que tu comes 15
mousses de cupuaçu, terás 15 anos de dor. É o contrapeso. A
felicidade é assim. Mas não se engane, o problema todo vem
parcelado. Por enquanto minhas parcelas são a distância, o tempo.
Duas medidas extremamente burocratas. Eu, que sempre fui de
odiar burocratas.
Com amor,
Me chame do que quiseres

Algum tipo de apêndice.


Eu acabei de ter um papo sobre abuso sexual e tal, você sabe o que
eu acho disso, mas nunca descrevi a cena, nunca transformei o que
sinto em algo, então vou só tentar dar um ar e me deixar sem
respirar por um momento, espero que isso se vá. Dói no peito ainda.
Ela morreu. Eu não sei direito em que dia, nem como, nem por quê.
Bom, o porquê, eu sei, pessoas morrem, perguntei pra minha mãe,
um dia, quando eu sabia que Deus existia, me carregaram nos
braços, olhei ela, as pálpebras fechadas, o olhar de descanso, o
sorriso... O defunto sempre tem um sorriso, a aura de paz. Eu falei,
Papai, é estranho não é, ela se encarar, ela deve tá se vendo agorinha
mesmo, papai, num é estranho? Imaginei ela —
fantasmagoricamente — ali, parada, sorrindo, de vestido branco, por
algum motivo, naqueles tempos, existiam fantasmas de vestidos
brancos, talvez anjos, eu não sei, eles existiam, disso eu sabia. Sentia
também.
Na segundo avó, não teve poesia.
Ela morreu, acontece, aconteceu. De quê? Eu também não sei. Boa
pergunta, eu não senti nada. Ela tinha um expressão feia. E paz, ah,
a paz não existia. Parecia morte. Parecia que ela tinha morrido. E
morreu, não morreu? Ah, todos chorando, e eu, que até sorri, não
senti nada. Não sorri por ela. Sorri porque o dia estava engraçado,
minha irmã dizia coisas engraçadas, nunca riria dela, não a amei,
não a verei de novo para tentar ama-la, acho que tudo bem. O
enterro prosseguiu-se de maneira solene, todos carrancudos e
derramando lágrimas, filhos órfãos de mãe. Viajamos com um corpo
jazido morto. Eu achava engraçado. O carro da funerária. O tempo.
A modernidade carregando cabelos velhos. Eu achava uma piada
boa. Chegando na cidade, fazia sol quente, um sol para cada corpo,
fazia sol demais. O enterro. Tinha no mínimo 20 pessoas. As terras,
as flores, o guardinha olhando todos entrarem, será tão funesto esse
seu emprego? Que azar o seu, pensei. Um tio meu chega. Óculos
escuro, o filha da puta sempre tá de óculos escuro, peito estufado e
abraça sua esposa. Eu odeio-a quase como odeio ele, mas não tanto,
por um momento odeio toda aquela família. Abraçar um homem
que eu odeio. Eu sou criança, e como criança quis chorar. Cheguei
para meu pai, eu amei vê-lo, gaguejei quando disse algo como, Por
quê ele está aqui papai? Eu queria que ele fizesse algo, não sei o quê,
eu mesmo queria fazer algo, o filha da puta que estuprou sua filha,
ele tá bem ali, chorando com a morte da avó da mesma filha, tios,
estupraram sua sobrinha, o estuprador está bem ali, ninguém vai
fazer nada? Avó, você que está morta, você também abraçou o
estuprador da sua neta, você vai amaldiçoa-lo? Eu estou farto de
gente. Meu pai me leva embora, simples assim, vejo meu avô que
não parece me ver. Choro e ando pela cidade, ando pelo mundo, que
mal há em ser nefasto. Que mal há em tantos pecados. Lágrimas
vacilam, o coração desmente. Eu, sozinho, sente.

Você também pode gostar