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Mapa

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
O MUNDO ESTAVA um inferno.
Fumaça espessa. Cinzas. Calor escaldante.
Vhalla correu entre figuras feitas de sombras. Mais e mais
rápido, ela correu através da noite, de uma cena horrível para a
outra, como se estivesse correndo em direção ao fim do mundo. Os
espectros sombrios e sem rosto começaram a se aproximar dela,
impedindo-a, sufocando-a.
Lágrimas já manchavam suas bochechas quando ela estendeu a
mão para afastar o primeiro. A aparição soltou um grito de gelar o
sangue antes de ser dilacerada, dissolvendo-se em uma fumaça
que era semelhante ao vento. As pontas de seus dedos pousaram
na próxima - outro grito. Ela não queria continuar, mas seu coração
batia ao som de duas únicas palavras - mais rápido, mais rápido,
mais rápido..
Então Vhalla correu. Ela correu, e cada figura espectral com a
qual entrava em contato se dissolvia na escuridão que lentamente a
invadia. Nada podia impedir os gritos moribundos das pessoas das
sombras, gritos que ecoavam em sua própria alma - nem as palmas
das mãos pressionadas sobre seus ouvidos, nem mesmo seus
próprios gritos.
E de repente, silêncio.
Vhalla abaixou as mãos devagar, abrindo um olho e depois o
outro. Não havia nada atrás dela, nem aos lados; o caminho à sua
frente estava iluminado por uma única chama cintilante, que
consumia um edifício que desabou sobre si mesmo. Puxados por
uma força invisível, seus pés se arrastaram um centímetro após o
outro em direção aos escombros. Já era tarde demais. Ela chegava
tarde demais todas as vezes, todas as noites.
Vhalla começou a puxar os escombros para o lado, um grande
bloco de cada vez. As chamas lambiam suas mãos, mas não a
queimavam. Elas nem mesmo pareciam quentes. Ele estava lá
embaixo, esperando por ela, e Vhalla pegou nos braços o corpo
maltratado e ensanguentado de seu amigo morto, chorando até sua
garganta ficar ferida.
— Sareem, — ela soluçou no ombro sangrento dele. — Eu
prometo, na próxima vez serei mais rápida. Por favor, não espere
por mim.
As mãos dele ganharam vida, agarrando os braços dela. Com
uma força repentina, o homem inverteu as posições, batendo a
garota contra o chão, sua carcaça pressionando-a na rua de
paralelepípedos. Metade do rosto dele não passava de uma massa
nojenta e disforme que pingava sangue no ombro dela.
— Vhalla, — ele sibilou. Parte de sua mandíbula se foi e o osso
restante se moveu em uma inclinação estranha. — Por que você
não veio?
— Eu tentei! — Ela chorou, implorando. — Desculpe, Sareem,
desculpe!
— Você não estava lá. — O cadáver de seu amigo se inclinou
para frente, quase tocando seu rosto. — Você não estava lá, e eu
morri por sua causa.
— Eu sinto muito! — Vhalla gritou.
— Você estava com ele. — Seu aperto cortou a circulação do
sangue para os braços dela, e os dedos de Vhalla ficaram
dormentes. — Você estava com ele! — Ele a sacudiu. — Onde ele
está agora? Onde ele está agora? — Seu amigo de infância exigiu,
balançando seu corpo como uma boneca de pano, a cabeça dela
batendo no chão.

Vhalla lutou contra os braços que a seguravam, enquanto eles a


sacudiam novamente.
— Não, não! Eu tentei te salvar! — Ela soluçou.
— Vhalla, acorde! — Uma voz diferente ordenou, e os olhos de
Vhalla se abriram.
As mãos de Larel corriam para cima e para baixo nos braços de
Vhalla. Seus olhos escuros Ocidentais estavam repletos de
preocupação. Vhalla piscou em sua direção, tirando da mente a
imagem de seu amigo morto. A lembrança de Sareem fez seu
estômago revirar, e Vhalla rolou para o lado da cama, vomitando em
um urinol colocado ali de modo estratégico.
— Essa é a terceira noite consecutiva, — disse uma voz que
vinha da porta. A mesma voz que ela ouviu nas últimas duas noites.
Vhalla olhou para cima, limpando a saliva do queixo. Um
feiticeiro estava lá, e ele não parecia exatamente contente.
— Dê um tempo a ela. — Larel não achou graça.
— Me dê um tempo. — A pessoa bocejou, mas ouviu os tons de
aviso na voz de Larel e deu um olhar aguçado na direção de Vhalla.
O bater da porta pontuou sua partida.
Vhalla tossiu uma última vez, sua estabilidade mental e física
retornando à medida que o tempo passava e ela percebia que
estava fora do sonho. Erguendo-se numa posição sentada, Vhalla
esfregou as palmas contra os olhos e, com isso, afastou os últimos
vestígios de seu sonho.
— Vhalla, — Larel sussurrou baixinho, colocando a mão no topo
da cabeça de Vhalla. A outra mulher sentou na cama e puxou Vhalla
para os seus braços.
— Está tudo bem. Estou bem, estou bem, — murmurou Vhalla
no conforto suave da amiga.
— Eu vou ficar aqui.
— Não, você não pode ficar todas as noites. — Vhalla balançou
a cabeça, mas não se afastou da mão relaxante que acariciava a
bagunça emaranhada de seus cabelos castanhos.
— Quem disse? — A mulher assumiu sua posição entre Vhalla e
a parede. Ficava apertado com as duas, mas Vhalla estava exausta
demais para se opor.
Elas deitaram uma de frente para a outra, com as mãos
entrelaçadas firmemente. Vhalla estreitou os olhos na escuridão,
usando a fraca luz da lua para distinguir o rosto de Larel. A outra
mulher a encarou de volta. Como Domadora de Fogo, Larel podia
conjurar uma chama com um simples pensamento e iluminar o local,
mas ela não o fez.
— Larel, — Vhalla choramingou suavemente.
— Você deveria dormir um pouco. — Larel sabia do colapso
iminente de Vhalla apenas pelo tom de sua voz.
— Amanhã é o último dia. — Depois do sonho, suas emoções
eram como uma avalanche correndo em direção à borda de um
precipício. Vhalla não tinha esperança de fazer outra coisa senão
sobreviver à ela. Ela não tinha mais esperanças em relação a nada
desde o julgamento, cinco dias atrás.
— É, e a Major Reale irá pegar mais pesado com você. — A voz
de Larel era uma extensão de sua determinação, inabalável como
uma montanha. Ela era a única base sólida que Vhalla ainda tinha.
— De que adianta? — Vhalla sussurrou através dos lábios
trêmulos. — Estou morta no momento em que entrarmos num
combate real. — Originalmente, Vhalla havia fantasiado sobre o que
encontraria no Norte - a terra devastada pela guerra onde foi
ordenada a marchar como soldada recrutada do Império. Mas os
sonhos e a culpa haviam desgastado sua determinação até restar
apenas uma casca.
— Não está, — insistiu Larel.
— Eu mal consigo fazer qualquer coisa! — Sua voz era patética,
até para seus próprios ouvidos. Mas Vhalla já nem se importava. Ela
tinha reunido uma falsa força para passar por seu julgamento, mas
todo o sentimento havia sumido agora.
— Sossegue, — ordenou Larel. O assunto não estava mais em
discussão. — Você precisa dormir.
Vhalla apertou os lábios. — Você vai me acordar? — Ela
perguntou finalmente.
— Vou, — respondeu Larel, como fazia todas as noites.
— Não sei como vou dormir sem você na marcha, — murmurou
Vhalla.
— Não se preocupe com isso agora, apenas descanse.
Larel beijou as juntas de Vhalla suavemente, e Vhalla finalmente
cedeu, fechando os olhos.
O sono foi curto, mas pelo menos ela dormiu. Larel só acordou
Vhalla mais uma vez. O que era uma melhoria em relação às quatro
noites anteriores.
À luz do dia, Larel teve a cortesia de não dizer nada sobre os
terrores noturnos de Vhalla. Com a chegada do amanhecer, ela saiu
do quarto de Vhalla em silêncio, deixando a mulher Oriental se vestir
e se preparar para o dia.
O corpo inteiro de Vhalla parecia rígido e dolorido, o que fez com
que o processo de se vestir levasse o dobro do tempo normal. Ela
alongou os ombros e inclinou a cabeça de um lado para o outro
enquanto estremecia em sua túnica preta. Seu reflexo chamou sua
atenção: olhos castanhos escuros salpicados de dourado em um
rosto magro e acentuados por olheiras. Até o habitual tom
amarelado Oriental de sua pele tinha ficado pálido. Vhalla levou a
mão ao cabelo curto, lembrando-se da tarde seguinte ao veredicto,
quando ela o cortou todo.
— Eu odiei, — declarou Vhalla, sem saber se estava falando
sobre o cabelo ou sobre o reflexo como um todo.
Seus pés a carregaram contra o fluxo de pessoas que se
dirigiam para as cozinhas. Ela não estava com fome. Vhalla não
achava que conseguiria dar sequer uma mordida hoje. Ela tinha um
dia antes de marchar para longe de tudo o que já conheceu. Seu
apetite geralmente pequeno havia encolhido para um grão de areia.
Ela entrou nas salas de treinamento da Torre, que abrangiam o
centro de um andar inteiro. O espaço circular era alinhado com uma
parede externa baixa que agia como uma barreira para os
espectadores e os aprendizes em espera.
Uma mulher já estava na sala, atrás de uma mesa alta
— Major, — Vhalla chamou quando entrou.
— Yarl. — A Major Reale era uma mulher Sulista, que foi forjada
em aço e era tão calorosa quanto o mesmo. Um tapa-olho de metal
havia sido derretido diretamente no osso, cobrindo seu olho
esquerdo. — Você chegou cedo.
— Estava com saudades, — respondeu Vhalla num tom
sarcástico, tom esse que estava começando a se infiltrar
permanentemente entre suas palavras. Vhalla não sabia de onde
vinha, e estava cansada demais para se importar.
— Bem, você não vai treinar comigo hoje. — A Major ergueu os
olhos brevemente antes de voltar a rabiscar os papéis sobre a
mesa.
— Não vou? — Vhalla não sabia para onde mais iria. Ela não
podia deixar a Torre por ordem do Senado. Ela ainda era
propriedade da coroa até que a guerra do Norte fosse concluída - ou
que ela morresse.
— O ministro quer vê-la.
Vhalla conhecia uma dispensa quando ouvia uma, e a Major
Reale não era exatamente a mulher mais amigável que havia por
perto.
Com o café da manhã em andamento, o corredor da Torre
estava vazio. A maioria dos residentes lotavam as cozinhas alguns
andares acima. Ao passar pelo refeitório, o barulho a atingiu com
força total, mas Vhalla estava entorpecida demais para ouvi-lo.
Depois do seu quarto e quase no topo da Torre, ficava o
escritório e os aposentos do Ministro da Feitiçaria. Todas as outras
portas continham uma placa com o nome do residente. Mas a que
estava à sua frente tinha o símbolo da Torre dos Feiticeiros fundida
em prata, um dragão enrolado em si mesmo dividido em dois: a Lua
Quebrada.
Os olhos dela seguiram adiante.
Havia mais uma porta, visível somente na curva do corredor
inclinado. Era completamente não identificada. E, embora ninguém
pudesse confirmar com certeza, Vhalla só podia suspeitar a quem
pertencia. Ela não via ou ouvia falar de seu fantasma há dias e não
tinha como contatá-lo, não importava o quanto sua insensatez a
implorasse para fazer isso. Vhalla engoliu em seco e bateu na
madeira à sua frente antes que a péssima ideia de avançar para a
porta seguinte pudesse dominá-la.
— Só um momento, — uma voz chamou de dentro. A porta se
abriu e um homem Sulista com cabelos loiros curtos e olhos azuis
como gelo a cumprimentou, o cavanhaque em volta da boca se
curvando em um sorriso. — Vhalla, entre, entre, — anunciou o
ministro Victor.
Ela entrou no luxuoso escritório; era um nível de riqueza que ela
ainda não estava acostumada. O carpete macio azul cerúleo sob
suas botas a fazia se lembrar da Biblioteca Imperial de uma maneira
fisicamente dolorosa. Vhalla sentou-se rapidamente em uma das
três cadeiras situadas diante da mesa.
— Eu estava terminando meu café da manhã. Está com fome?
— Ele apontou para um prato cheio com uma variedade de bolos.
— Não. — Vhalla balançou a cabeça, juntando as mãos e
torcendo os dedos.
— Não? — O ministro inclinou a cabeça. — Não tem como você
já ter comido.
— Não estou com fome.
— Ora, Vhalla, — ele repreendeu em um tom familiar. — Você
precisa manter sua força.
Ela olhou para o pequeno bolo na mão estendida dele. Seu
treinamento falou mais alto e Vhalla deu ouvidos ao homem que era
seu superior. Ela o pegou apática, mas isso parecia suficiente para o
ministro.
— Então, amanhã é o dia, — afirmou ele de forma óbvia.
— É, sim. — Vhalla assentiu.
— Eu gostaria de discutir uma ou duas coisas com você, antes
de marchar. — Vhalla continuou a beliscar sua comida enquanto ele
falava. — Antes de tudo, quero que saiba que ninguém sob a tutela
da Torre nutre nenhuma desavença contra você.
Vhalla tinha algumas contusões do treinamento da Major Reale
que poderiam dizer o contrário, mas ela ocupou a boca com um
pedaço de bolo.
— Eu informei a toda a Legião Negra que você deve ser mantida
sob vigilância e defendida a todo momento, — continuou Victor. —
Como a primeira Andarilha do Vento em quase cento e cinquenta
anos, gostaria de vê-la viver tempo o suficiente para estudar na
Torre.
— Você informou o Senado desta decisão? Tenho quase certeza
de que eles me querem morta, — respondeu Vhalla, entorpecida.
— Ressentimento não combina com você. — O ministro
recostou-se na cadeira, pressionando as pontas dos dedos juntas.
— Perdão, — Vhalla murmurou um pedido de desculpas sem
entusiasmo e colocou o pequeno bolo parcialmente comido de volta
ao prato do ministro.
— Você precisa voltar viva, Vhalla. — O Ministro Victor a
encarou, pensativo. — Eu preciso que você acredite que será capaz
de fazer isso.
Vhalla não sabia como todo mundo esperava que ela se
mantivesse viva quando mal conseguia controlar a própria magia.
Pela Mãe, ela mal conseguia fechar os olhos por mais de alguns
poucos minutos sem que os horrores a assombrassem. — Certo, —
Vhalla fingiu concordar.
O ministro apenas suspirou diante de sua resposta. — Será que
ajuda se eu der um propósito aos seus dias? — Ministro Victor
inclinou-se para a frente, os cotovelos sobre a mesa, como se fosse
contar um grande segredo a ela. — Há algo que eu preciso... e
somente você, como Andarilha do Vento, pode ir buscá-lo.
Vhalla instintivamente se sentou mais ereta. — O que? — Ela
finalmente perguntou quando as palavras foram deixadas pairando
no ar.
— Há algo muito poderoso escondido no Norte. Quanto mais
tempo fica sem vigilância, maior a probabilidade de cair em mãos
erradas ou ser usado contra nossas forças, caso os clãs Nortenhos
entendam o que possuem.
Vhalla se perguntou como isso supostamente deveria ajudá-la.
— O que é? — Curiosidade venceu a guerra entre suas emoções.
— É uma arma antiga de uma época diferente, uma época em
que a magia era mais selvagem e mais divina. — Ele fez uma
pausa, refletindo sobre suas próximas palavras. — É um machado
que dizem ser capaz de cortar qualquer coisa, até mesmo uma
alma.
— Por que tal coisa existiria? — Vhalla teve dificuldades para
pensar em uma razão.
— Bem, os últimos registros sobre ele são interpretados tanto
como fatos quanto ficção. — O ministro esfregou o cavanhaque
pensativamente.
— Como você tem certeza de que ele é real?
— Tenho fé de que estou certo. — O ministro voltou ao ponto: —
Preciso que você o recupere e o traga até aqui. — Ele deu um
tapinha na mesa.
— Mas se é tão perigoso… — Vhalla ponderou em voz alta. Ela
sentiu que não estava recebendo uma importante parte da
informação, mas o ministro não parecia interessado em compartilhar
com ela.
— Como eu disse, queremos evitar que ele caia em mãos
erradas. Além disso, o machado tornaria o portador quase
invencível. — O ministro Victor deixou a informação pairar entre
eles, e Vhalla foi inteligente o suficiente para entender o que ele
estava tentando lhe dizer. Se o portador fosse quase invencível e
ela conseguisse encontrar o objeto, talvez conseguisse sobreviver
ao Norte. — Você vai me ajudar com isso, Vhalla?
Ela hesitou por um único e longo momento. Vhalla olhou nos
olhos azuis cor de gelo do ministro, os olhos do homem que a
sequestrou quando se conheceram. Mas aqueles também eram os
olhos de um homem que a abrigou, a curou e a protegeu quando o
mundo estava pronto para rasgá-la membro a membro. A Torre era
um lugar misterioso, mas ela conhecia sinceridade quando a via.
— Claro, ministro, — disse Vhalla obedientemente.
A Torre cuida dos seus.
V HALLA NÃO dormiu naquela noite. Ela ficou acordada, lutando
durante as horas difíceis com um livro que ela rapidamente
percebeu que nunca terminaria. Fechando-o com um suspiro suave,
Vhalla o enfiou no guarda-roupa quando o céu começou a clarear.
Duas grandes esquadrias de vidro serviam tanto como janelas
quanto portas, abrindo-se para a pequena faixa de pedra com
parapeito que era sua passagem secundária para o mundo - o que
seria generosamente chamado de varanda. O início de um inverno
rigoroso fluía pela cidade ao final de cada brisa. Vhalla deixou o frio
entorpecer suas bochechas enquanto observava a borda do
horizonte lentamente ficar carmesim com o despertar da Mãe Sol.
Uma batida na porta retornou as atenções de Vhalla para o
cômodo. Larel havia lhe dito que iria trazer sua armadura e a
ajudaria a colocá-la pela primeira vez. Vhalla respirou fundo,
tentando reunir os restos de coragem que havia buscado na noite
anterior.
O ar desapareceu de seus pulmões com um suave ruído de
engasgo diante da pessoa que a esperava.
Seu cabelo era preto como a meia-noite. Seus olhos eram de
uma escuridão penetrante e estavam situados acima de maçãs do
rosto pronunciadas, esculpidas numa pele impecável de alabastro.
Ele usava roupas meticulosamente elaboradas e primorosamente
engomadas - nem uma única costura fora do lugar. Ele era o oposto
da mulher abatida cujas roupas pendiam cada vez mais frouxas a
cada dia que se passava. Mas isso era esperado, já que ele era o
príncipe herdeiro.
Vhalla ficou parada impotente diante dele, e ele parecia
igualmente perdido ao vê-la. Nenhum dos dois falou nada.
Vhalla percebeu, de modo muito consciente, que aquela era a
primeira vez que ele a via desde que ela cortou o cabelo. Cabelo
curto ou não, ele ainda conseguiria suportar vê-la por mais tempo?
— Eu trouxe sua armadura. — A voz baixa dele ressoou
suavemente em sua mente inquieta.
Vhalla ouviu a demanda na frase, afastando-se para que ele
pudesse manobrar desajeitadamente um pequeno suporte de
madeira que comportava uma armadura para dentro do quarto dela.
O som da porta se fechando atrás dele enviou um tremor de
nervoso para sua espinha. A última vez que Vhalla esteve sozinha
com o príncipe foi no dia de seu veredicto. A última vez que o viu,
estava sendo escoltada para fora do tribunal por dois guardas
armados, e sua sentença foi lida - uma sentença que dava ao
príncipe o direito de matá-la se ela desobedecesse.
Mas Aldrik não a mataria. A maneira como ele a olhava revelou
essa certeza. Ele não poderia matá-la, se a força mágica - o Vínculo
- entre eles fosse real.
— Onde está Larel? — Vhalla queria esmurrar o próprio rosto
contra a parede. Foi isso que ela decidiu dizer?
— Eu pensei que poderia ajudá-la eu mesmo. — Era estranho,
tudo entre eles parecia estranho. Era como se cinco anos, não cinco
dias, tivessem passado.
Tudo havia mudado.
— Eu não posso negar você, meu príncipe. — Vhalla juntou as
mãos, torcendo os dedos.
Em vez da repreensão habitual sobre seu tique nervoso, o
príncipe pegou os dedos dela nos seus.
— Por que a formalidade? — Ele perguntou suavemente,
deslizando as luvas nas mãos dela.
— Porque... — As palavras ficaram presas em sua garganta.
— Só Aldrik está bom, — o príncipe a lembrou.
Ela assentiu silenciosamente, ainda tentando desatar o nó de
sílabas por trás de seus lábios. Com as duas luvas vestidas, Aldrik
passou a ela uma túnica de cota de malha. As mangas eram longas,
estendendo-se até o topo de suas luvas. Vhalla ficou surpresa ao
descobrir que tinha um capuz feito de elos minúsculos. Seu cabelo
caía logo acima de onde ele se acumulava na parte de trás do
pescoço. O peso do olhar do príncipe atraiu seus olhos para os dele,
e Vhalla abaixou a mão que brincava com as pontas dos cabelos.
— Cortaram o seu cabelo. — As mãos dele congelaram na
armadura.
— Eu cortei, — ela corrigiu, olhando para um canto do quarto.
Parecia que estava sendo julgada novamente.
— Eu gostei, — disse Aldrik depois do que pareceu uma
eternidade.
— Gostou? — Sua boca se abriu num choque atordoado.
— Longo ou curto... combina com você. — O príncipe deu de
ombros minimamente.
Vhalla não apontou o fato de que ele havia acabado de se
contradizer. Seu interior estava num turbilhão, e de repente ela
sentiu vontade de chorar. Ele tinha gostado? O que havia sobrado
nela para se gostar?
A armadura na qual ela havia acabado de entrar era trabalhada
em pequenas escamas de aço preto. Pendia até a metade das
coxas e tinha ombreiras que dificultavam seus movimentos de um
modo mínimo. Seu coração disparou com emoções conflitantes
enquanto observava os longos dedos do príncipe demonstrando a
localização das travas na frente da armadura.
— Agora só faltam as grevas e manoplas. — Aldrik apontou para
as peças restantes no suporte. Ela assentiu em silêncio. O príncipe
pairou por um longo momento antes de ir em direção à porta. — Eu
preciso me preparar também.
— Aldrik. — A mão quase trêmula de Vhalla apertou a manga do
casaco dele antes que ela sequer percebesse que havia se mexido.
— Vhalla? — Ele parou todos os seus movimentos num instante,
os olhos procurando os dela.
— Não vou conseguir, — ela sussurrou.
A dor brilhou no rosto do príncipe, junto com uma onda de
entendimento do que suas palavras significavam. — Você vai. —
Aldrik virou-se devagar, como se ela fosse um animal selvagem que
se assustaria facilmente. Uma mão quente envolveu a dela; era um
toque delicado que parecia carregar nele o peso do mundo.
— Eu-eu sou péssima em tudo, e eu...
— Você se lembra do que eu te disse? — Ele perguntou como se
pudesse sentir que suas emoções estavam prestes a dominá-la. —
No último dia do seu julgamento?
— Lembro. — Ela se lembrava da palma da mão pressionada
firmemente contra a lateral dele, em um local que uma vez foi uma
ferida letal a não mais que um ano atrás, quando ele entrou em sua
vida durante uma tempestade de verão. Ele teria morrido por causa
dessa ferida se Vhalla não o tivesse salvado com sua magia,
formando acidentalmente o Vínculo mágico que agora existia entre
eles.
— Vhalla, eu... — Uma porta bateu do lado de fora e o som de
passos pesados com armaduras desapareceu corredor adentro.
Aldrik e a porta se envolveram em um concurso de quem encarava
mais. — Eu preciso ir.
Ela assentiu.
— Vejo você em breve, para a marcha.
Quem dos dois ele estava tentando tranquilizar?
Vhalla assentiu novamente.
— Temos muito tempo antes de chegarmos ao Norte. Vou
garantir pessoalmente que você esteja pronta, — jurou o príncipe,
assumindo a responsabilidade por ela.
— Obrigada. — As palavras não pareciam ser suficientes mas
eram tudo o que ela tinha a oferecer, e Aldrik as aceitou antes de
escapar silenciosamente.
Ela ficou parada durante vários segundos, tentando acalmar a
tempestade que ocorria dentro de seu peito. Sendo o mais próxima
de estar pronta que ela algum dia estaria, Vhalla pegou o pequeno
saco onde lhe disseram para guardar seus pertences pessoais.
Escondidos em seu guarda-roupa estavam os bilhetes de Aldrik, o
bracelete de Larel e três cartas endereçadas a seu antigo mestre da
biblioteca, sua amiga Roan e seu pai. Ela contou a Fritz, que era,
em teoria, o bibliotecário da Torre, e a seu amigo Grahm sobre a
existência delas. Se o pior acontecesse, as cartas seriam enviadas.
Seus olhos se voltaram para o espelho mais uma vez, e Vhalla
parou por mais um minuto. Ela não reconheceu a mulher que a
encarava de volta. Olhos fundos e cabelos selvagens emoldurados
por uma armadura preta. Era o rosto de uma guerreira e uma
feiticeira.
Respirando fundo, Vhalla seguiu pelo corredor e não olhou para
trás. Ela nem se deu ao trabalho de trancar a porta. A espiral
inclinada estava cheia de pessoas, mas nenhuma parecia
interessada em conversar e apenas o barulho das armaduras
encheu o ar. Num geral elas tinham uma composição similar à sua,
mas no que dizia respeito a aparência, nem chegavam aos pés.
Vhalla percebeu pequenos enfeites de ouro ao longo da extensão
de sua armadura. Uma ou duas pessoas pareciam notar o mesmo,
mas não disseram nada.
O corredor terminava em um grande hall de entrada na base da
Torre, a única entrada pública. Vhalla encostou-se na parede
externa, sem falar com ninguém. A Torre tinha sido gentil consigo,
num geral. Mas ela só tinha dois amigos de verdade entre eles, e
ambos ainda estavam dormindo em suas camas.
Vhalla sentiu uma pontada de solidão. O cômodo estava cheio
dos estereotipados cabelos pretos e pele oliva do Oeste, do tom
amarelado e dos cabelos castanho-claros do Leste, e da pele pálida
e dos loiros do Sul. Eles eram todos misturas de olhos e cabelos
que ela conhecia, e ainda assim nenhum deles era familiar.
Alguns dos soldados conversavam nervosamente. Outros
estavam calmos demais para que aquela fosse sua primeira viagem.
Embora Aldrik tivesse dito o contrário, ela estava sozinha. Vhalla
olhou para os próprios pés - ela trazia morte e destruição; era
melhor assim.
Sobre seus lamúrios de autopiedade, Vhalla ouviu os sons de
uma voz familiar.
— Viu, eu te disse que não nos atrasaríamos, — um homem
estava dizendo.
— Mas teríamos se eu não tivesse te arrastado da cama, —
respondeu uma mulher.
— Bem, você já pode parar de me arrastar agora.
A cabeça de Vhalla se ergueu e ela viu Larel puxando Fritz para
dentro da sala com um aperto firme em seu braço. Seus olhos se
arregalaram. Eles estavam vestidos da mesma forma que todos os
outros, completamente cobertos com armaduras.
— Fritz, Larel? — Ela os chamou timidamente.
— Vhal! — O homem Sulista de cabelo loiro selvagem acenou
com entusiasmo enquanto passava por Larel correndo, deixando a
outra mulher que seguia devagar para trás.
— O que vocês estão fazendo aqui? — Vhalla perguntou
estupefata a medida que eles colocavam suas próprias bolsas no
chão.
— Não é óbvio? — Ele respondeu, ajeitando seus cachos
rebeldes. — Nós estamos indo com você.
— Mas nenhum de vocês está no exército, — ela objetou.
— Somos novos recrutas. — Ele sorriu.
Vhalla virou-se para Larel em busca de algum juízo.
— Você não achou que eu deixaria minha primeira pupila correr
em direção à guerra sem mim, não é? — Larel repreendeu de forma
suave, sem qualquer menção ao fato do príncipe ter aparecido no
lugar dela anteriormente. — Que tipo de mentora você pensa que eu
sou? — Ela cruzou os braços sobre o peito. — Você-você não pode.
— O coração de Vhalla começou a acelerar. Ela colocou as mãos
nos ombros de Fritz e viu um conjunto diferente de olhos azuis
Sulistas olhando para ela. Os olhos de um homem com quem
crescera, que fora um amigo querido; eram olhos que agora
pertenciam a um homem morto. — Não vou aguentar que mais
pessoas morram por minha causa. — Vhalla concentrou todo seu
esforço em impedir que sua voz falhasse.
— Não nos trate como crianças. — Larel revirou os olhos.
Fritz agarrou as mãos de Vhalla. — Não é seu trabalho nos
proteger. Nós sabemos o que estamos fazendo. — Ele apertou os
dedos dela gentilmente.
Vhalla sentiu uma incredulidade crescer nela. — Vocês são dois
idiotas, — disse ela.
Fritz riu. — Já fui chamado de coisa pior. — Ele sorriu, — Larel?
— Muito pior, — respondeu a Ocidental com um sorriso.
— Você está fantástica, a propósito, Vhal! — Fritz estendeu os
braços entre eles para inspecionar a armadura de Vhalla. — Não é
de se admirar; você é a nossa Andarilha do Vento.
Vhalla permitiu que Fritz fizesse seu estardalhaço e que Larel
murmurasse e sorrisse. Estas tinham sido as únicas pessoas nos
últimos dias que a fizeram se sentir próxima de humana, e embora
ela tenha ficado em estado de choque ao ver os dois vestindo
armaduras, havia uma pequena parte egoísta de si que se alegrava
secretamente. Vhalla olhou para Larel pelo canto dos olhos, que
respondia de modo sem entusiasmo à Fritz.
O Sulista super agitado foi silenciado quando uma quietude caiu
sobre o cômodo. A Major Reale entrou, também vestida de preto,
com uma capa de obsidiana esvoaçando pelas costas. Uma Lua
Quebrada prateada estava estampada nela. Vhalla bateu
continência junto com o resto da sala, trazendo os punhos ao peito,
pressionando as juntas dos dedos. Ela virou uma mão para baixo, a
outra ainda apontando para cima, ambas ainda conectadas e em
punho para imitar o simbolismo do gesto.
A lua era o ponto em que o dia e a noite se encontravam, a luz
na escuridão onde a mesma não pertencia. Dentro dela, dizia-se
que o Pai havia aprisionado uma criatura de puro caos. A Lua
Quebrada da Torre representava força, que aqueles que ostentavam
sua marca possuíam magia forte o suficiente para romper os céus e
pôr fim ao que os Deuses haviam começado eras atrás.
Vhalla tinha estado cansada demais desde que ingressou na
Torre para refletir melhor sobre os valores imagéticos além de
aprender os seus significados. Mas quanto mais ela considerava o
símbolo, mais ele parecia combinar consigo. Havia algo danificado e
bruto nela, algo maculado; e, no entanto, ao mesmo tempo essas
peças irregulares eram o ingrediente para algo temível. Ela queria
se tornar alguém que o Senado temeria. Por que não despedaçar os
céus?
“— Bem, não é esse um lote miserável cujo qual eu tenho a
estimada honra de levar à guerra? — A Major entrou no cômodo. —
Quem aqui marcha pela glória?
O salão se ergueu em um grito instantâneo de afirmação.
— Sumam da minha frente, — a mulher rosnou, silenciando
instantaneamente os soldados anteriormente alegres. Ela esmagou
a determinação deles com uma simples varredura de seu olho bom.
— Não tenho espaço para heróis sob o meu comando. Muitos de
vocês marcharão para uma morte ingrata. Seus camaradas vestidos
em prata vão temer vocês, eles vão odiá-los e vão ignorar suas
realizações e reivindicar suas vitórias.
A mente de Vhalla se voltou para o Senado, ouvindo um “eles”
muito diferente nas palavras da mulher.
— Mas, para aqueles que não são completamente tolos, —
provocou a Major Reale com um sorriso selvagem cruzando seus
lábios. — Para aqueles de vocês que podem enfrentar nossos
inimigos com tanta crueldade, tanta astúcia e tanta habilidade
quanto eles; talvez esses vejam o fim desta guerra. Então fiquem
comigo, fiquem com seus irmãos e irmãs de preto. Cavalgaremos
em direção ao horizonte da vitória, e quem não puder ver o caminho
até lá deve ir embora agora.
A Major saiu da Torre e não olhou para trás para ver se alguém a
estava seguindo.
Todos estavam.
Quando a luz do sol atingiu o rosto de Vhalla, ela olhou para trás,
para a Torre, que projetava uma sombra escura até se fundir com o
castelo na encosta da montanha.
Casa. Esse palácio magnífico tinha sido sua casa desde que ela
tinha onze anos. Ela chegara a ele como filha de um fazendeiro e
agora o deixaria como uma soldada. Vhalla ajeitou a bolsa
pendurada no ombro, segurando as tiras de couro com força. Ela
tentou empacotar seus nervos, medos e insegurança e suprimi-los
em algum buraco escuro dentro dela.
Eles caminharam por um caminho interno até os estábulos.
Ninguém disse nenhuma palavra. Os sons do palácio acordando e o
barulho das armaduras da Legião Negra logo se juntaram à sinfonia
dos cavalos e homens logo abaixo.
Os estábulos superavam sua imaginação mais louca. Centenas
de pessoas preenchiam todos os espaços possíveis. Cada uma
delas estavam revestidas com armaduras prateadas. Algumas
estavam preparando os corcéis, outras preparando carroças.
Sua admiração foi interrompida quando a major latiu uma ordem
brusca, enviando Vhalla em direção à uma baia lateral. Ela não
esperava ter sua própria montaria. O cavalo de Vhalla era um
garanhão majoritariamente preto, com uma mancha branca na testa.
Ela deu um tapinha em seu pescoço e ele sacudiu a crina escura
num protesto dramático. A centelha de fogo na fera faria bem a ela,
decidiu. Um garoto jovem do estábulo que mantinha uma distância
considerável trabalhava rapidamente para selar e conter a montaria.
Havia o eco de uma voz nela que queria tranquilizar a criança que
estava claramente com medo, mas Vhalla não conseguiu encontrar
forças para confortar mais ninguém. Ela estava muito sombria por
dentro para sequer sorrir, então não foi nenhuma surpresa que ela
quase assustou o garoto até a morte quando falou.
— Qual o nome dele?
— É-É um dos novos. Eu o vi apenas nesta semana. Não acho
que ele tem um nome. — O garoto terminou de colocar as rédeas no
cavalo e prender um pequeno alforje de cada lado. Um estava cheio
de rações, e os poucos bens de Vhalla ficavam no outro - e
deixavam algum espaço sobrando.
Ela caminhou até a frente do cavalo e analisou a besta. —
Relâmpago, — ela decidiu. Não era muito original, mas ele
precisava de um nome, e Relâmpago era tão bom quanto qualquer
outro. Relâmpagos eram fogos acima, relâmpagos eram brilhantes,
relâmpagos eram rápidos e relâmpagos cortavam os céus.
Colocando o pé esquerdo no estribo, ela montou com facilidade,
pegando as rédeas. Vhalla nunca tinha aprendido a cavalgar de
modo propriamente dito, mas um cavalo ou dois era algo que sua
família sempre mantinha para a fazenda. Desde tenra idade ela
montava, então sentar em uma sela parecia uma ação natural.
Vhalla olhou em volta para os outros recrutas; não era tão natural
para muitos deles.
Segurando as rédeas com uma mão, ela colocou os calcanhares
nas laterais do animal e o conduziu para fora do estábulo. Sua
armadura tilintava enquanto ela encontrava o ritmo do cavalo. Vhalla
cavalgou até onde a major estava começando a formar a linha de
frente.
— Major, — disse ela.
— É bom ver que você sabe lidar com um cavalo. — A Major
avaliou Vhalla desde os pés nos estribos até o aperto nas rédeas. —
Você estará perto do centro, Yarl, à minha direita. — Referindo-se a
Fritz e Larel pelo sobrenome, acrescentou: — Charem ao seu lado,
e depois Neiress. E então todo mundo em quem eu possa confiar
que não vai morrer imediatamente em uma briga estará nos
arredores e na retaguarda.
Vhalla colocou seu cavalo alinhado, com espaço suficiente em
ambos os lados. Houve uma pequena comoção atrás dela, e Vhalla
se virou em sua sela. As gigantescas portas cerimoniais do palácio
se abriram com o ruído do ranger de uma grande corrente, e a
família Imperial marchou à luz do sol.
O príncipe Baldair usava sua armadura dourada, que brilhava
intensamente contra a luz. O Imperador usava um traje semelhante
com uma espada maior, mas todo em branco. Aldrik ficava em forte
contraste. Ele usava sua armadura preta escamada que cobria todo
o corpo, semelhante à que Vhalla usava. Atadas sobre a malha de
escamas, haviam grandes couraças de metal pretas decoradas em
ouro, que iam das mãos aos cotovelos, dos pés aos joelhos, dos
ombros à parte superior do peito. Todos os três seguravam elmos
enfiados sob os braços e usavam longas capas brancas que batiam
na altura de suas panturrilhas.
Ele não se parecia em nada com o príncipe que ela tinha visto
poucas horas antes. Mas ele ainda era totalmente familiar para ela.
Os outros membros da família Imperial tiveram seus cavalos
trazidos para eles, mas ninguém pareceu se importar em trazer o de
Aldrik. Ele se aproximou da fera que estava sapateando e a
acalmou com a mão, tirando-a de sua baia.
O olhar de Vhalla foi interrompido quando Larel e Fritz se
aproximaram.
— Charem, à direita da Yarl. Neiress, logo depois, — a major
latiu, e Fritz e Larel entraram em linha junto com Vhalla.
— Você está segurando as rédeas com muita força, —
aconselhou Vhalla em voz baixa ao lado de Fritz para Laurel, que
parecia estar tendo problemas em controlar o cavalo. Larel deu-lhe
um olhar de agradecimento. Mesmo que Vhalla preferisse que eles
estivessem seguros na Torre, ela estava feliz por ter seus amigos
perto de si.
Ela começou a notar olhares estranhos dos outros soldados à
medida que mais deles se alinhavam. Havia um ruptura definida
entre os vestidos de prata e branco e os vestidos de prata e preto.
Amigos seriam escassos na marcha.
Um silêncio se estabeleceu atrás dela, e a major se virou. Aldrik
estava sentado sobre de seu grande garanhão de guerra,
atravessando a lacuna até a Major Reale.
— Meu príncipe. — A major curvou a cabeça.
— Major Reale. — A voz de Aldrik era afiada. — Quantos nós
temos? — Seus olhos examinaram os recrutas.
— Pouco menos de cinquenta, — relatou a major, confirmando
as suspeitas de Vhalla de que eles eram o menor grupo.
— Então eu quero esses pouco menos de cinquenta voltando
para casa. — O príncipe pegou as rédeas em suas mãos enquanto
a major assentia. Ele direcionou o cavalo através das fileiras, indo
em direção à frente, mas poupou um segundo para olhar para
Vhalla. Os olhos dos dois se encontraram e o rosto dele relaxou
uma fração, uma confusão conflitante de emoções se construindo
por trás de seu olhar.
Vhalla endureceu o olhar o máximo que pôde e deu-lhe um
pequeno aceno de cabeça. Ele bateu os calcanhares no cavalo e
definiu um trote para a linha de frente.
O tempo de tristeza e lamúrias havia acabado. A garota que
chegara ao palácio aos onze anos e passara a vida na biblioteca
estava morta; ela fora assassinada pelos Senadores que, segundo o
que sempre lhe ensinaram, tinham jurado protegê-la. A mulher
sentada na sela agora precisava encontrar um coração feito de aço
preto. Ela tinha que sobreviver por nenhum outro motivo além de
contrariar o mundo.
O exército estava pronto e os homens e mulheres se remexiam
nas selas. Vhalla apertou as rédeas com força. Ela poderia fazer
isso, disse a si mesma sobre as mentiras mentais de que seus
joelhos não estavam tremendo nos estribos.
— Abram os portões! — O Imperador gritou.
Os rastrilhos gemeram ao ganhar vida, abrindo-se para a horda
de guerreiros atrás deles. O Imperador liderou a marcha enquanto o
exército se derramava na cidade localizada no topo da montanha
com um barulho estrondoso. Em algum lugar à frente, os soldados
começaram a gritar, um brado sem palavras que denotavam sede
de sangue, medo, vitória e esperança.
Vhalla não emitiu som algum.
O BARULHO DOS cascos dos cavalos nas ruas de paralelepípedos
enchia seus ouvidos. Eles estabeleceram um ritmo acelerado
através da cidade enquanto passavam pelas multidões reunidas.
Mais de uma pessoa olhou com curiosidade mórbida ou medo
quando a Legião Negra passou, e Vhalla lutou para não dar às
massas qualquer atenção.
Mas, apesar de seus melhores esforços, seus olhos vagaram
pela multidão; Vhalla foi encarada com uma mistura de horror, medo
e raiva. Feiticeiros eram párias e criaturas indesejadas e - no que
dizia respeito à multidão - haviam ultrapassado seus limites no
momento em que deixaram a Torre. Mais de uma vez, alguém fora
corajoso o suficiente para atirar alguma coisa contra eles, embora
normalmente errassem e atingissem um lanceiro à frente ou um
arqueiro às suas costas. A Legião Negra era muito menor que os
outros grupos.
Pelo dano crescente à cidade, Vhalla percebeu que estavam
perto da praça do Sol e da Lua. Faziam apenas alguns dias desde a
já infame Noite de Fogo e Vento, e a maioria das coisas ainda
estava em ruínas. A culpa cresceu dentro dela até atingir níveis
vertiginosos.
Quando chegaram à parte mais pobre da cidade, as casas
ficaram menores, menos opulentas. Tornou as muralhas ainda mais
impressionantes. A primeira linha de defesa da capital era uma
estrutura robusta que utilizava elementos naturais e as pedras da
montanha. A ponte levadiça do portão principal já estava sendo
abaixada para o exército marchar.
— Fiquem perto! — A Major Reale gritou da sua esquerda.
Vhalla conduziu o cavalo para perto do centro da fileira, e eles
passaram pelo portão. A cidade continuava a se estender além da
muralha, do outro lado do fosso; fosso esse que permaneceria seco
durante os meses de inverno. Casas ainda mais pobres se
alinhavam à encosta da montanha até o vale mais abaixo.
A estrada na qual marchavam finalmente chegou a um T contra
o Grande Caminho Imperial, uma estrada que ia da fronteira do
Império ao Norte até o mar ao Sul. O exército virou à esquerda e
começou a seguir em direção noroeste. O pavimento de pedra
formava um caminho largo o suficiente para que todo o exército
pudesse cavalgar e marchar em grupos, de onze a quinze homens
lado a lado.
Foi só quando atingiram a floresta que uma corneta tocou de
forma contínua e baixa. Todo o exército diminuiu o passo, e os
líderes pediram uma mudança na formação.
A Major Reale acenou com o braço para a direita. — Abram
espaço, — ela disse, e eles obedeceram.
Vhalla focou à frente; o exército inteiro continuou a avançar
enquanto abria um buraco no meio. Aldrik, à esquerda de seu pai,
diminuiu a velocidade do cavalo a medida que os soldados
marchavam em frente, ao seu redor. Então o Imperador parou sua
montaria e, depois, o príncipe de ouro. A família Imperial se
encaixou entre os escalões.
O príncipe Baldair ficou no meio da linha de frente com todos os
soldados que usavam espadas. O Imperador cavalgou logo atrás,
entre os cavaleiros que portavam armas de haste. Algumas fileiras
depois estava Vhalla e o príncipe herdeiro, que agora ocupava o
espaço entre ela e a major. Seu garanhão de guerra era uma
criatura imensa, e a cintura dela estava no mesmo nível do joelho de
Aldrik.
Ela olhou para ele e isso chamou sua atenção no mesmo
segundo. Vhalla fez uma pequena reverência com a cabeça.
— Meu príncipe, — disse ela respeitosamente. Ele mal fez um
aceno com a cabeça e voltou sua atenção para a major. Vhalla
olhou para a frente. Ela queria acreditar que o modo como a
formação havia se alinhado era um simples acaso, mas ela era
esperta demais para isso. O homem à sua esquerda não deixava
nada ao acaso.
Na verdade, ela tinha quase certeza de que aquele era o lugar
mais seguro do exército - perto do centro, ao lado de um dos
feiticeiros mais poderosos do mundo. Vhalla disse a si mesma que o
calor que relaxou seus ombros ao pensar que ele estaria perto dela
era alívio.
As legiões haviam diminuído o ritmo para pouco mais do que
uma caminhada quando as bandeiras foram guardadas. O tempo
para pompa havia terminado e todos pareciam se preparar para a
longa viagem ao Norte. A guerra já durava quatro longos anos e a
vitória estava a um inverno de distância. Pelo menos, segundo o
que o Imperador havia dito.
Vhalla olhou para trás; entre as duas legiões de retaguarda,
estavam as carroças de suprimentos. Parecia uma grande
quantidade de suprimentos para uma vitória que deveria levar
apenas alguns meses. Ela perguntou a si mesma se o Imperador
estava de fato sendo inteiramente verdadeiro em suas estimativas.
A floresta ficou mais densa e logo eles raramente passavam por
casas. Ocasionalmente, trilhas de caça se estendiam para fora da
estrada, mas haviam poucas coisas mais. As árvores peneiravam a
luz da Mãe Sol, manchando a estrada à frente. Falatório começou a
encher o ar, e foi uma cavalgada bastante tranquila.
Mas Vhalla não sabia se podia se sentir em paz, não sabia se
poderia sentar-se facilmente na sela e tagarelar sobre isso ou
aquilo. Cada pequena mudança em sua armadura a lembrava do
por que ela estava lá. Ela era uma soldada agora, propriedade da
coroa.
— Quanto tempo faz desde que você saiu da cidade pela última
vez? — Perguntou Fritz. O Sulista tinha outros planos, que não
envolviam deixá-la sentar-se em silêncio e chafurdar na própria
desgraça.
— Já faz um tempo, — respondeu Vhalla finalmente.
— Sério? — Ele parecia genuinamente surpreso. — Com que
frequência você vai para casa?
— A última vez que fui para casa... — As palavras de Vhalla
falharam, pensando numa casa de fazenda em meio a um campo de
trigo dourado. Ela enviou uma carta para o pai há apenas alguns
dias, tentando lhe dar a notícia mais rápido do que os rumores
poderiam correr. O pensamento colocou um nó em sua garganta,
como se ela tivesse de alguma forma manchado as lembranças
felizes que sua família tinha construído na casa deles com sua
magia e crimes. — Foi quando atingi minha maioridade, acho?
— O que? — Fritz ficou horrorizado. — Aos quinze? Faz três
anos desde que você foi para casa? Minha mãe e minhas irmãs
teriam arrancado o meu couro se eu não voltasse para casa por três
anos. — Fritz deu sua risada contagiante.
Vhalla abriu um sorriso. — Você tem irmãs? — Como filha única,
às vezes se perguntava como seria ter um irmão.
— Quatro delas, — Larel disse, à direita de Fritz. Ela parecia
estar muito mais confortável com o cavalo agora que ele mal se
movia. — E você deveria vê-los todos juntos. Graças à Mãe eles
não são todos feiticeiros ou seria a família Charem contra o mundo.
— Você as conheceu? — A curiosidade de Vhalla a obrigou a
perguntar.
— Uma vez. — Larel assentiu.
— Há quanto tempo vocês se conhecem?
Os dois trocaram um olhar antes de se voltarem para Vhalla.
— Sete anos, — disse Larel.
— Oito anos, — proclamou Fritz.
Os dois se entreolharam.
— Não, são sete. Você chegou um ano depois da minha
maioridade. — Larel contava nos dedos.
— Não, oito, eu tinha acabado de completar treze anos, —
argumentou Fritz.
— Sim, você completou treze anos, mas foi depois que nos
conhecemos.
— Vocês dois me lembram um velho amigo e eu — Vhalla
refletiu baixinho.
— Quem? — Fritz perguntou, alheio à tristeza que se misturava
em suas palavras.
— O nome dele era Sareem. — Ela mexeu na crina de
Relâmpago.
— Ele é do palácio? — Fritz inclinou a cabeça.
— Ele morreu na Noite do Fogo e Vento. — Vhalla foi
momentaneamente atormentada por suas visões noturnas do corpo
surrado e destruído de seu amigo. A culpa era dela. Ela tinha sido
muito lenta e ele ficou esperando por ela.
— Sinto muito, Vhal. Ele era alguém especial? — Fritz
perguntou, resgatando Vhalla de seus maus tratos mentais auto
infligidos.
— Ele era um bom amigo - especial, como um irmão. — Vhalla
sacudiu fisicamente as imagens de sua cabeça, sentindo outro par
de olhos cair sobre si, vindos da esquerda. Sua sanidade não podia
lidar com outra pergunta sobre Sareem, então ela decidiu assumir o
controle da conversa. — Quanto tempo vamos cavalgar hoje?
— Mais duas ou três horas, — disse uma voz sombria como a
meia-noite.
Vhalla se virou e olhou para o príncipe herdeiro. — Isso é tudo?
Aldrik assentiu. — Levará algum tempo para um exército desse
tamanho parar e montar acampamento. Não queremos fazer isso no
escuro.
Vhalla assentiu e se virou antes que ficasse fascinada demais
por ele. Fritz e Larel começaram a conversar entre eles, mas Vhalla
se excluiu da conversa. Ela se sentia exausta, e passou o resto do
dia num transe.
Quando o sol estava a dois terços do céu, a corneta tocou duas
vezes, convocando todos à uma parada total.
— Ergam acampamento no lado esquerdo, — latiu a Major
Reale, e a Legião Negra seguiu sua ordem.
Aldrik se separou deles e desmontou entre a Legião Negra e o
pelotão das hastes. A tenda de seu pai foi erguida no centro da
legião de vanguarda, e a de Aldrik foi erguida na extremidade.
Os soldados mais experientes que sabiam o que fazer
começaram a montar tendas. As tendas dos membros da Família
Imperial eram significativamente maiores e erguiam-se em um
quadrado com um teto piramidal. Grupos de pessoas correram para
ajudar cada membro da realeza a armar sua residência temporária.
Era uma sensação agradável estar fora da sela. Vhalla esticou
as pernas, ignorando a tensão rígida dos músculos enquanto
amarrava Relâmpago à um galho de árvore baixo. Mas ela
suspeitava que o cavalo fosse esperto o suficiente para não correr.
— Vhalla, nós vamos dividir, — Larel chamou, caminhando até
ela com um pacote de lona nas mãos.
Alívio tomou conta do seu corpo enquanto Vhalla puxava seu
saco de dormir da sela de Relâmpago. Larel estava com ela. Ela se
sentiu culpada pela mulher ter se tornado sua guardiã, mas Vhalla
estava muito mentalmente e fisicamente exausta para desperdiçar
energia com uma culpa tão pequena.
Soldados experientes tiravam objetos pessoais de seus alforjes,
como cobertores ou travesseiros pequenos, e se tornaram
confortáveis em seus espaços apertados. Alguns a olhavam com
curiosidade, alguns com ambivalência - o que era melhor do que os
um ou dois olhares sujos que ela recebeu, mesmo dentro da Legião
Negra.
Larel fincou duas hastes no chão, que suspendiam um pedaço
de lona. O resultado foi uma simples tenda triangular. A privacidade
era resumida na forma de duas abas na frente e na parte de trás
que podiam ser amarradas juntas. Mal era grande o suficiente para
os dois sacos de dormir.
— O jantar estará pronto em breve, — anunciou Larel depois que
elas terminaram de se estabelecer.
— O que tem para o jantar? — Vhalla seguiu a mulher Ocidental
enquanto caminhava em direção à uma das fogueiras.
— Qualquer coisa que os caçadores conseguirem encontrar de
forma rápida, — respondeu Larel.
Naquela noite aparentemente foram alguns cervos, lebres e
faisões que já pingavam gordura no fogo, assando nos espetos que
eram virados de vez em quando. Vhalla recebeu um pedaço de
carne diretamente na palma da mão. Ela lembrou do almoço que
dividiu com o príncipe Baldair em sua mesa formal. Ele estava
comendo com os dedos agora também?
— Não é tão ruim assim, — pensou Vhalla, mordendo sem
entusiasmo uma ponta da carne.
— Eu sempre ouvi que a Floresta do Sul era o trecho mais fácil
da marcha. — Larel arrancou uma tira de carne com os dentes,
comendo vorazmente. — Os soldados dizem que o Deserto
Ocidental compensa isso em dificuldade, e se mergulharmos de
cabeça nas nossas rações agora, nunca conseguiremos atravessar
o deserto.
De repente, todos estavam de pé, fazendo a continência da
Legião Negra. Vhalla foi mais lenta ao levar os punhos ao peito. O
príncipe herdeiro caminhou até o círculo, as mãos cruzadas atrás
das costas em uma posição dominante. Após um longo momento de
avaliação, ele assentiu e a comitiva relaxou. Aldrik foi até o canto
mais distante e sentou-se ao lado de uma mulher que Vhalla nunca
tinha visto.
Sua pele era de um tom marrom profundo, não muito chocolate,
mais parecida com a cor de um chá preto que esteve em infusão por
muito tempo. Seu cabelo tinha a mesma textura que o dos
Nortenhos, e Vhalla imediatamente se sentiu desconfortável. Vhalla
colocou as pontas dos dedos na bochecha, tocando a linha
vermelha fraca da pele recém cicatrizada, lembrando-se da Noite de
Fogo e Vento. O cabelo da mulher se enrolava como um saca-rolhas
em todas as direções, e ela usava uma bandana vermelha em volta
da testa que o empurrava para trás. Ela tinha feições angulares e
impressionantes olhos verdes. Desconforto à parte, a mulher era
bastante bonita.
Ela observou a estranha interação enquanto o céu aquarelado
ficava preto como nanquim. Aldrik estava sentado com um joelho
erguido e um braço apoiado nele. Ele tirou a capa e sentou-se
tranquilamente, vestido com sua armadura. A mulher estava rindo e
Vhalla até mesmo via um sorriso surgir nas bochechas de Aldrik de
vez em quando. Era um sorriso que Vhalla só o tinha visto dar para
ela.
— Quem é aquela? — Vhalla falou para que não pudesse ouvir o
sussurro do riso gutural dele com o da outra mulher, ambos ao
vento.
— Quem? — Larel tentou olhar através da fogueira.
— A mulher com quem o príncipe está conversando. Eu nunca a
vi antes. — Se a mulher esteve na Torre, era incrível que Vhalla não
a tivesse notado. Só a aparência da mulher já a deixava
desconfortável.
— Ah, ela. — Larel parecia ter conseguido dar uma boa olhada.
— Fritz, você a conhece?
— Ela? — Fritz também olhou e balançou a cabeça. — Não
tenho certeza. Acho que ouvi por aí que eles estavam trazendo
pessoas que sabiam sobre o Norte.
— Você acha que podemos confiar nela? — Vhalla perguntou,
incapaz de deixar pra lá a sensação perturbadora.
— O príncipe aparentemente confia, — respondeu Larel com um
encolher de ombros.
Vhalla voltou seu foco para os dois em questão. A discussão
deles parecia ter mudado para algo mais acalorado, e eles estavam
discutindo. Aldrik mudou de posição e, como se sentisse sua
encarada, dois olhos escuros encontraram os seus. Vhalla
rapidamente desviou o olhar.
Pelo resto da refeição, ela fez questão de evitar olhar para ele.
Vhalla cutucou sua carne. Certamente era uma discussão sobre o
Norte, se fosse esse o motivo pelo qual aquela mulher viajava com
eles. Embora os sorrisos casuais e as posições relaxadas fizessem
parecer que a guerra não era o assunto da conversa.
— Coma, Vhalla, — instruiu Larel. — Você vai precisar da sua
energia.
Vhalla se forçou a engolir metade da refeição como se fosse
remédio. Seu desejo de interação social desapareceu e ela se
levantou.
— Vou entrar, — ela anunciou aos seus amigos.
— Temos uma longa viagem amanhã, — concordou Larel.
— Vejo você de manhã, — disse Fritz com um sorriso.
Vhalla se virou e se afastou, nem um pouco cansada.
E LA ESTAVA PRESA no labirinto de seus pesadelos. Cada figura feita
de sombras se partiu e se transformou em névoa, dissipando-se
com o toque dela. Ela correu e passou por todos eles, sentindo o
vento rugir no limite de sua consciência. Vhalla correu gritando
através da escuridão e do fogo.
Dois braços a ergueram, sacudindo-a até que acordasse.
Vhalla imediatamente lutou com o outro corpo, tentando se
afastar das garras da pessoa. Sua testa estava escorregadia de
suor e suas roupas estavam quase ensopadas. O vento uivava
através das montanhas, anunciando uma das últimas tempestades
de verão.
— Vhalla, pare. — Larel puxou Vhalla para os seus braços,
pressionando o rosto de Vhalla em seu peito e servindo como um
escudo entre ela e o mundo. — Você está bem, você está segura.
Eu estou aqui.
Vhalla estremeceu, agarrando-se a Larel como fazia todas as
noites em que acordava assim. O cobertor dela parecia menos
enroscado nas pernas; a outra mulher podia acordá-la de seus
terrores noturnos mais rapidamente quando estava a apenas um
braço de distância. Vhalla pressionou o rosto na mulher Ocidental,
lembrando a si mesma que a pessoa que a estava segurando não
era o corpo mutilado de seu amigo perdido.
— Desculpe, — Vhalla murmurou quando finalmente estava
pronta para enfrentar o mundo de novo.
— Você não tem nada com o que se desculpar. — Larel disse de
tal maneira que Vhalla acreditou.
Como já era de madrugada, ambas decidiram não voltar a
dormir. Elas se ajudaram a prender as armaduras antes de
desmontar a tenda. A pele de Vhalla estava quente e fria ao mesmo
tempo. Era como se ela ainda pudesse sentir o calor do fogo do
pesadelo, a frieza dos gritos na escuridão. Se ela não conseguia
sequer sobreviver a uma noite, como poderia sobreviver à guerra?
— Você quer conversar sobre isso? — Perguntou Larel. Não era
a primeira vez que a mulher fazia essa pergunta.
— Não, — respondeu Vhalla, não tendo interesse em
compartilhar a escuridão que ganhava forma dentro de si tão
sinistramente quanto as nuvens de tempestade no horizonte do
amanhecer.
— Bom dia, — uma voz desconhecida soou, interrompendo
qualquer investigação adicional de Larel.
Vhalla poderia ter agradecido à pessoa, não fosse pelo rosto ao
qual a voz pertencia. Ela parou, meio dobrada sobre a lona da
tenda, encarando olhos esmeralda que brilhavam intensamente na
luz da manhã.
— Bom dia, — cumprimentou Vhalla em voz baixa. Ver essa
mulher e suas feições Nortenhas tão de perto depois dos pesadelos
instantaneamente perturbou Vhalla.
— Bom dia, — respondeu Larel educadamente. — Podemos
ajudá-la?
— Vhalla Yarl, a Andarilha do Vento. — Não era uma pergunta, e
isso fez Vhalla se sentir ansiosa. — Não sei o que eu esperava por
conta das histórias, mas não era você, — disse ela com uma risada.
Vhalla ficou de pé devagar.
— E você é? — Perguntou Larel.
— Ah, onde estão minhas maneiras? Elecia. — Ela estendeu a
mão para Larel, depois para Vhalla. Vhalla a cumprimentou depois
de apenas um breve momento de hesitação. — Mas me diga, tem
certeza que realmente fez aquela tempestade de vento que todo
mundo me conta? Você parece que seria carregada por uma
simples brisa. — Elecia riu e, apesar de ser um som doce, fez os
dentes de Vhalla rangerem.
— Eu fiz; basta perguntar a qualquer um dos Senadores.
Conheço um ou dois que ficariam felizes em lhe contar um relato
bem distorcido daquela noite. — Vhalla deu as costas para a mulher,
amarrando o saco de dormir na sela de Relâmpago. Ela não se
importava se estava sendo rude. Essa mulher era a última pessoa
com quem ela discutiria a Noite de Fogo e Vento.
— Bem, acho que vamos descobrir, — disse ela alegremente. —
O príncipe herdeiro me pediu para entregar uma mensagem.
Vhalla congelou. Aldrik estava enviando mensagens através
dessa mulher? Ela mal parecia mais velha que Vhalla.
— Ele vai ajudá-la com seu treinamento a partir desta noite.
Vhalla conseguiu segurar a língua e acenar para a mulher.
— Excelente. — A mulher bateu as mãos juntas. — Muito bem
meninas, vejo vocês mais tarde. — Ela se foi antes que uma das
duas tivesse a oportunidade de responder.
Vhalla fechou os olhos com força e engoliu em seco a náusea
que apenas a visão da mulher evocou. Ela estava com nojo de si
mesma. — Vou levar isso aqui para as carroças, — anunciou Vhalla,
pegando as hastes da tenda. — Uma caminhada vai me fazer bem.
Larel assentiu em silêncio e pegou a lona, levando-a para o
alforje antes de repetir o processo com o saco de dormir.
Vhalla respirou fundo algumas vezes, lembrando-se de que não
tinha motivos para ficar com raiva. Aldrik provavelmente estava
ocupado, e ele conversou com Elecia na noite passada. Ele
mencionou o fato e pediu um favor a ela, explicou Vhalla em sua
cabeça. Ela deveria estar feliz, até mesmo empolgada, em treinar
com Aldrik. Mas as palavras da mulher ecoaram em sua mente: Vejo
vocês mais tarde. Isso significava que Elecia também estaria lá? Ou
era apenas uma frase corriqueira? Por que ela sequer estava
falando tão casualmente com Aldrik, pra começo de conversa?
Vhalla esperou na fila da carroça para devolver as hastes da
barraca. O sol já quase nascera - afastando as nuvens de
tempestade no processo - e o exército provavelmente começaria
sua marcha em breve.
— Obrigada, — ela murmurou para o soldado carregando a
carroça. Vhalla se virou e esbarrou em um homem grande, com
cabelos castanhos claros. — Sinto muito, — ela murmurou,
mantendo o rosto baixo. Vhalla deu a volta ao redor dele para ir em
direção à sua parte do acampamento quando uma mão grande
apertou o ombro dela.
— Bem, mas você não se acha uma coisinha especial, armadura
preta? — Ele zombou, puxando-a de volta.
Vhalla tropeçou. — Eu disse que sentia muito. — Ela olhou para
o homem, aborrecida; essa não era a manhã certa para testar sua
paciência.
— Sério? Eu não ouvi você. — Ele se inclinou.
— Sinto muito, — ela forçou as desculpas através dos dentes
cerrados, não querendo fazer uma cena diante da pequena multidão
se reunindo.
— Já é ruim o suficiente termos de lidar com a Legião Negra, —
resmungou o homem. — Agora eu tenho que aguentar o sarro de
menininhas?
Vhalla franziu o cenho.
Um braço com armadura se pendurou ao redor dos ombros dela,
e Vhalla piscou surpresa. — Ora, ora, não leve para o lado pessoal,
Vhalla. Grun aqui ainda não comeu e ele fica muito mal-humorado
de manhã, — Daniel disse com um sorriso.
— Vamos lá, Grun, — Craig apareceu do outro lado do homem.
— Vamos colocar um pouco de comida nesse seu estomago
gigante.
Ela não tinha visto os dois soldados desde o julgamento. Eles
tinham sido seus guardas quando ela estava sob custódia, os
guardas bons. Daniel era um Ociental como ela, sua pele com uma
tonalidade amarelada e cabelos castanhos escuros encorpados. O
cabelo loiro ondulado e a pele mais clara de Craig o marcavam
como Sulista. Ela gostou imediatamente dos dois, e esta manhã era
mais uma razão para adicionar à essa lista sempre crescente.
— Quer comer conosco, Vhalla? — Daniel perguntou.
— Não tenho certeza se é uma boa idéia. — Ela olhou para o
homem grande que Craig estava acompanhando.
— Bobagem! — Craig disse e logo ela estava sendo levada em
direção à frente do exército.
— O que vocês dois estão fazendo aqui? — Ela perguntou a
Daniel quando ele tirou o braço de seus ombros. Craig levou o
gigante para longe antes de se juntar a eles.
— Nós somos soldados. — Daniel riu, o movimento sacudindo
seus cabelos quase na altura dos ombros. — Eu diria que aqui é
mais o nosso lugar do que o seu, Srta. Andarilha do Vento.
— Vocês não são guardas do palácio? — Ela perguntou com
surpresa genuína.
Ele balançou a cabeça e levantou o braço. Uma de suas
manoplas era banhada em ouro, o metal em seu antebraço
capturando o brilho da luz da manhã. — Somos a Guarda Dourada,
— explicou.
Vhalla já ouviu falar do esquadrão pessoal do príncipe Baldair
antes; havia rumores de que eles eram a elite da elite, com apenas
os melhores senhores e damas servindo entre eles.
Enquanto ela se concentrava no braço dele, ele se concentrou
nela. — Eu gostei do cabelo; tá melhor do que antes.
Ela ergueu a mão para as pontas desfiadas, que mal tocavam o
capuz de cota de malha da armadura. Seu cabelo estava horrível.
Vhalla fez uma careta quando um pedaço de carne fria foi enfiado
na palma de sua mão. Estava um pouco queimada de um lado e as
gorduras haviam coagulado em uma película gelatinosa que ela
tentou raspar e jogar no chão enquanto eles se sentavam ao redor
dos restos ainda ardentes de uma fogueira.
— Eu não acho que as pessoas estejam contentes por eu estar
aqui. — Outros soldados a encararam, mas nenhum era corajoso o
suficiente para se aproximar com dois membros da mais alta ordem
do príncipe Baldair ao seu lado.
— Mas isso não é a metade da diversão? — Craig perguntou
com um pequeno sorriso.
Ela balançou a cabeça.
— Além disso, parecemos tão exóticos com nossa amiga da
Legião Negra. — Daniel deu uma grande mordida em sua carne.
— De onde vocês dois são? — Vhalla perguntou, beliscando sua
própria comida.
— Da capital, — disse Craig, sem surpresa.
— Cyven, — Daniel anunciou.
— Onde em Cyven? — Ela estava sinceramente interessada em
qualquer um do Leste.
— A maioria das pessoas não conhece. É uma cidade pequena.
— Daniel riu quando viu o semicerrar de olhos que ela estava lhe
dando e prosseguiu: — Chama-se Paca.
— Paca! — Ela ofegou.
— Você conhece? — Ele ergueu as sobrancelhas.
— Eu sou de Leoul.
— Não. — Ele parecia tão animado quanto ela.
— Sim! Sim! Todos os anos eu ia ao Festival do Sol em Paca
com a minha mãe e o meu pai. — Vhalla sentiu a doce pontada de
nostalgia.
— Com a velha senhora que vendia as nozes cristalizadas? —
Ele perguntou, incrédulo.
— E o homem que nunca parava de cantar? — Vhalla afirmou.
— Oh Paaaaaaaca, não vá para o mal caminho! — Daniel
colocou a mão no peito e cantou antes que os dois caíssem em uma
gargalhada. — Você realmente conhece! — Ele lhe lançou um
sorriso deslumbrante, que era contagioso demais para ela não sorrir
também.
— Ah, que gracinha. Você finalmente tem alguém que entende o
seu amor por animais de fazenda. — A provocação de Craig foi
ignorada.
A atenção de Daniel estava apenas em Vhalla.
— A fazenda da minha família fica a cerca de meio dia de
viagem até a Estalagem da Panela Quente. Nós ficamos lá durante
o festival, — explicou ela.
— Eu conhecia a família que era dona da estalagem. Às vezes
eu trabalhava lá quando o meu pai não precisava de ajuda nos
campos. Eu me pergunto se já nos encontramos antes. — Daniel
pensou seriamente sobre o assunto.
— Quem sabe? — Vhalla deu de ombros e ocupou a boca com
um pedaço de carne. Ela não se lembrava de nenhum garoto em
particular, mas não queria desencorajar Daniel. Foi bom ter uma
conexão com sua casa.
— Preparem-se para avançar, — Príncipe Baldair gritou
enquanto passeava pelas fileiras.
— Eu preciso ir. — Ela ficou de pé, passando seu café da manhã
quase intocado para um Craig bastante desejoso.
— Quer cavalgar conosco hoje? — Daniel convidou.
— Acho que não posso, — disse Vhalla, incerta.
— Eles só são rigorosos em relação à formação para chamar
atenção. Não vão se importar agora. — Craig já estava na metade
de sua porção.
Vhalla abriu a boca para responder quando sentiu passos
pesados soando no chão atrás dela.
— Você está bem longe de casa.
— Meu príncipe. — Vhalla se virou, fazendo uma reverência ao
Príncipe Baldair. Ela achou a presença dele desconfortável.
Primeiramente ele não foi nada mais para ela do que o Príncipe
Destruidor de Corações, um homem vindo diretamente das histórias
dos criados. Um homem que ela apenas encontrou brevemente na
biblioteca por acaso. Então, ele tinha sido o irmão de Aldrik, além de
seu conspirador ao esgueira-la para a Noite de Gala no final do
último Festival do Sol. Essa também tinha sido a Noite de Fogo e
Vento. A última vez que viu o príncipe Baldair, ele estava cuidando
de seus ferimentos sob o comando de Aldrik. O que ele achava dela
agora? — Eu estava prestes a voltar.
— Baldair. — Daniel levantou-se, limpando as mãos nas calças,
incrivelmente relaxado na presença de seu príncipe e comandante.
— Seria um problema se Vhalla cavalgasse conosco hoje?
— Você sabe muito bem que haverá problemas com os outros
soldados se ela estiver por perto. — Baldair riu como se a ideia
fosse mais divertida do que desagradável. — Mas eu não me
importo, contanto que os superiores dela não discordem. — O
príncipe deu à Vhalla um sorriso quando fez uma pausa na palavra
superiores.
— Vamos ver... — Vhalla evitou seu olhar presunçoso.
— Um de vocês dois a leva de volta? Não quero problemas logo
no segundo dia — exigiu o príncipe, ciente das tensões em torno da
presença dela.
— Eu levo, — Daniel se voluntariou primeiro.
— Excelente. — O Príncipe Baldair assentiu e foi embora.
— Vamos? — Daniel deu um passo em direção à Legião Negra.
— Até mais, Senhorita Andarilha do Vento. — Craig despediu-se
com um sorriso.
— Cuide-se, Craig. — Vhalla acenou e se aproximou de Daniel.
O acampamento estava quase completamente desmontado
quando eles voltaram. Restos de fogueiras foram apagados e as
pessoas começavam a montar em seus cavalos. A curta caminhada
foi repleta de conversas sobre como a família dele cultivava batatas
e a dela trigo, e os procedimentos de cada um deles. Apesar das
circunstâncias nas quais se conheceram, Vhalla sentiu uma
conexão instantânea com seu colega Oriental.
Quando os dois chegaram à Legião Negra, ela notou que a
tenda de Aldrik estava quase completamente guardada na carroça
com o restante dos itens Imperiais, mas ela não viu o homem em
lugar algum.
— Não deixe os outros soldados incomodá-la — disse Daniel,
parando. — Eles não são pessoas ruins, são apenas... — ele fez
uma pausa, olhando para o céu em busca de inspiração — ...um
pouco estúpidos.
Vhalla sorriu.
— Vhal! — Fritz chegou correndo. — Estávamos procurando por
você. — Ele praticamente derrapou na hora de parar para conseguir
dar à escolta dela uma avaliação completa.
— Fritz, esse é Daniel. Daniel, Fritz — ela apresentou.
Daniel estendeu a palma da mão para cumprimentá-lo.
— É melhor você ser legal com a nossa Vhal! — Fritz disse,
ignorando a mão de Daniel e apontando para o rosto dele.
— Minha nossa, você não me avisou que tinha um guarda-
costas, — Daniel riu, tirando a mão de Fritz do seu rosto e
sacudindo-a. — Você tem a minha palavra, apenas bondade e
cuidado vindos de mim. — O toque baixo de uma corneta ecoou
pela floresta e os últimos soldados assumiram seus lugares como se
fosse uma grande migração. — Opa, preciso voltar. Apareça e
cavalgue conosco, se puder! — Daniel disse, já correndo para a
linha de frente.
— Ele é fofo, — Fritz quase desmaiou.
— Fritz! — Vhalla repreendeu.
— O que? Não me diga que você não percebeu. — Fritz revirou
os olhos.
Na verdade, Vhalla não tinha percebido. Ela correu de volta até
Relâmpago para encontrar Larel já no cavalo, esperando junto com
a montaria de Fritz. — Desculpe, — ela disse.
— Mais uma vez, Vhalla, você não tem que se desculpar por
nada. — Larel sorriu brilhantemente. — Você parece estar de bom
humor.
Vhalla montou no Relâmpago com um aceno de cabeça,
escondendo um sorriso culpado. Ela tinha se divertido.
Acabou sendo exatamente como Craig e Daniel haviam dito. O
exército era uma massa vagamente estruturada hoje, em
comparação com as fileiras organizadas e o posicionamento
cuidadoso do dia anterior. Mas ela, Fritz e Larel gravitaram para o
mesmo lugar na fila. Os dois se envolveram instantaneamente em
algum debate acalorado que se estendia desde o café da manhã e
Vhalla participou pouco da conversa, pensando na oferta de Daniel
e Craig.
Foi só quando Aldrik se mexeu em sua sela que ela percebeu
que ele estava lá.
Vhalla virou e seu queixo caiu. — Seu... cabelo. — Foi um
pensamento que escapou em voz alta. O cabelo preto dele estava
ao natural, caindo perfeitamente liso em volta do rosto. O príncipe
tinha uma franja longa que se dividia na frente, caindo sob as
sobrancelhas, e camadas cortadas de modo bagunçado ao longo do
comprimento. Esses eram elementos de um Aldrik que Vhalla nem
imaginava que existia, muito diferente de como ele geralmente
usava o cabelo no palácio.
Ele olhou para ela, um aborrecimento momentâneo fazendo sua
testa se franzir. — Você realmente não achou que eu gastaria tempo
arrumando o meu cabelo enquanto estamos indo pra guerra, não é?
— O tom baixo da voz de Aldrik traiu sua diversão e
instantaneamente a colocou sob um feitiço.
— Bem, talvez eu goste dele assim, — ponderou Vhalla. O
sorriso tímido dele encorajou ousadia.
Aldrik fez uma breve pausa, com os lábios entreabertos. Ela
encarou seus olhos de ébano e Aldrik olhou para frente
rapidamente, como se fosse incapaz de aguentar ser o único
destinatário de sua apreciação. — Eu acredito que Elecia entregou
minha mensagem para você?
Vhalla ficou sóbria rapidamente com o nome da outra mulher. —
Ela entregou. Treinamento?
— Major Reale disse que começou a trabalhar com você, mas
que ainda tem um longo caminho a percorrer. Prefiro supervisionar
seu progresso pessoalmente.
Se ele tivesse dito essas palavras para qualquer outra pessoa,
provavelmente teria inspirado pavor. Mas para Vhalla, elas davam
um conforto estranho.
— É claro, meu mestre marionetista. — Ela pretendia fazer
referência aos seus antigos medos de forma leve, então foi
surpreendente para Vhalla ver Aldrik a olhando com uma
intensidade profunda.
— Se quer que eu me retire da sua vida, só precisa dizer. — Não
houve leviandade em sua declaração.
Vhalla rapidamente olhou para o outro lado, salvando-os de uma
conduta imprópria e escondendo o rubor que havia chegado às suas
bochechas diante da aparente atenção dele.
— Eu acho, — ela começou suavemente, — que gosto de
brincar com fogo.
Aldrik lançou a ela um longo olhar pelo canto dos olhos. Ela não
conseguia decifrar a expressão dele sem virar a cabeça e encará-lo,
mas o pouco que pôde ver foi desconcertante e fez seu estômago
borbulhar.
N ÃO MUITO TEMPO APÓS o exército parar naquela tarde, Elecia
dirigiu-se à tenda quase montada de Vhalla e Larel. Fritz
levantou-se de onde acabara de desdobrar seu saco de dormir.
A visão da mulher ainda enviava arrepios pelo pescoço de Vhalla
- um aviso fantasma.
— Vhalla, Larel, Fritz, — disse ela com um sorriso, alheia ao
desconforto de Vhalla. — O príncipe está esperando, e eu preferiria
não perder a primeira remessa do jantar.
— Onde estamos indo? — Vhalla perguntou, a última a ir atrás
de Elecia.
— Longe o suficiente para não sermos perturbados. — Eles já
estavam a meio caminho dos limites do acampamento.
— Então, de onde você é? — Larel iniciou uma conversa.
— Norin. — Elecia nem olhou para trás para dar sua resposta.
— Fiarum Evantes, — disse Larel, com reverência.
Vhalla olhou surpresa para a amiga. Ela nunca tinha ouvido
alguém falar nada além de Linguagem Comum do Sul. As línguas
antigas eram uma lembrança desbotada em todo o território,
cimentada pelo avanço do Império Solaris. Ela só podia assumir que
as palavras de Larel eram a língua de Mhashan, o antigo Reino do
Oeste.
— Kotun un Nox, — respondeu Elecia, seu tom mudando para
algo mais profundo, menos arrogante do que o sotaque altivo que
ela usava antes.
— Norin é uma cidade bonita, — ponderou Larel educadamente,
referindo-se à capital Ocidental.
— É mesmo. — Elecia assentiu.
Vhalla começou a sentir seu desconforto derreter. Ela não tinha
motivos para desconfiar de Elecia. Na verdade, ela tinha todos os
motivos para confiar nela. Aldrik claramente confiava, e isso deveria
ser motivo mais do que suficiente para Vhalla. Além disso, se ela
era de Norin, isso a tornava Ocidental e não Nortenha como Vhalla
tinha suspeitado antes. Ela respirou fundo. — Eu sou de...
— Cyven, Leoul, — a mulher de cabelos encaracolados
interrompeu Vhalla com um olhar.
— Sim. — Vhalla franziu a testa levemente, sua perturbação
retornando. — Como você sabia?
— É do meu interesse saber, Vhalla Yarl — respondeu Elecia,
presunçosa.
Fritz cruzou o braço protetoramente com o de Vhalla, como se
sentisse o pavor que a dominava. Ela percebeu que eles estavam
muito sozinhos com Elecia. E, mesmo que a outra mulher tenha dito
que era do Ocidente e falasse com a língua antiga, ela parecia tão
Nortenha que deixava Vhalla mais desconfortável do que queria
admitir.
Se não fosse Fritz e Larel com ela, ela poderia já ter surtado.
— Já era hora — a voz de Aldrik ecoou através de uma pequena
clareira. Ele estava inclinado contra uma árvore, os braços cruzados
sobre o peito. — Obrigado por buscá-los, Elecia. Você pode ir agora.
Vhalla se perguntou brevemente por que Aldrik não os tinha
escoltado pessoalmente. As reuniões deles eram secretas?
— Nem ferrando, — Elecia praticamente cantou. — Não sou sua
garota de recados. Eu quero ficar.
— Tudo bem. — Aldrik revirou os olhos, resignado.
Vhalla juntou as mãos, entrelaçando e soltando os dedos. Elecia
negou uma ordem abertamente, publicamente, sugestivamente - e
ele a deixou fazer isso. Quando Elecia assumiu o lugar à esquerda
de Aldrik, ocorreu a Vhalla que a mulher se comportava da mesma
maneira que Vhalla agia em torno do príncipe. Vhalla mordeu o
lábio; talvez Aldrik fosse mais íntimo de Elecia do que era com ela.
— Vhalla, — a voz de Aldrik chamou sua atenção. — Quero que
você veja qual o objetivo dos seus treinos. Reale me informou que
você ainda precisa dominar o básico.
Vhalla assentiu e ignorou o bufar presunçoso de Elecia.
— Larel, Fritz, eu gostaria que vocês dois formassem um par
para uma demonstração, — comandou Aldrik.
— E quanto a mim? — Elecia choramingou.
— Você supostamente nem deveria estar aqui. — Aldrik lançou a
ela um pequeno olhar e a mulher riu. O som fez a pele de Vhalla se
arrepiar. — Eu também gostaria de ver em que nível vocês dois
estão, então não mutilem ou matem um ao outro, mas também não
se contenham.
Larel e Fritz assentiram, os rostos sérios.
— Comecem ao meu sinal, então. E evitem constranger a si
mesmos. — Aldrik levantou a mão.
Fritz e Larel deram alguns passos para longe um do outro, cada
um se colocando em uma posição de luta muito diferente. Fritz
estava mais ereto, as pernas abertas e as mãos esticadas e baixas,
perto do abdômen. Larel tinha os joelhos dobrados e os punhos
perto do rosto, prontos para atacar.
Aldrik deixou a mão cair e Larel atacou antes que Vhalla
pudesse sequer piscar. Ela puxou o punho para trás como se fosse
dar um gancho de direita, mas, no último momento, deixou cair o
ombro para um cruzado de esquerda. Fritz levantou a palma da mão
aberta, criando um escudo de gelo. Ele sibilou e quebrou quando o
punho de Larel, agora envolto em chamas, bateu contra ele.
Fritz empurrou a outra mão no ombro dela, congelando uma
parte do membro. Larel ofegou e recuou, o gelo rapidamente se
transformando em uma poça ao redor de seus pés. Ela não teve
tempo de recuperar o fôlego quando ele se lançou em sua direção.
Seu pulso tremeu e de repente ele empunhava uma adaga de gelo
em sua palma. Larel desviou levantando o braço, e a adaga quebrou
em sua manopla.
Ela abaixou e deu uma rasteira, que acertou o tornozelo de Fritz
e o fez cair para trás. Larel ergueu um punho flamejante e colocou
toda sua força no golpe. Fritz moveu as mãos como se quisesse
bloquear, mas ele foi muito lento.
As mãos de Vhalla subiram à boca enquanto ela ocultava um
grito, com medo por seu amigo.
O punho de Larel esmagou o rosto de Fritz, e o corpo dele se
dissolveu numa nuvem de fumaça. A mulher Ocidental se virou com
um grunhido. Vhalla percebeu uma mudança na luz atrás dela.
Houve um lampejo de gelo e Fritz voltou a aparecer, segurando uma
adaga de gelo na garganta de Larel.
— Toda vez! — Larel ergueu as mãos e Fritz recuou com um
sorriso, jogando o gelo perversamente afiado de lado. — Toda vez!
— Ela disse novamente, chutando o chão com frustração.
Vhalla olhou maravilhada.
— O ministro me falou sobre você, — comentou Aldrik, dando
um passo na direção de Fritz. — Um ilusionista talentoso.
— Eu não sei se sou talentoso, — disse ele timidamente,
esfregando a parte de trás do pescoço.
— O que, o que foi isso? — Vhalla se forçou a sair do choque
quando sua língua começou a trabalhar novamente.
— Ela é como um coelho recém-nascido! — Elecia riu para
Aldrik, como se Vhalla nem estivesse lá. — Ela nunca viu ilusões
antes.
Aldrik lançou à mulher um olhar afiado antes de se voltar para
Vhalla, suas feições relaxando. — Fritz, você gostaria de explicar
para Vhalla? — O príncipe ordenou ao homem Sulista, mas nunca
tirou os olhos dela.
— As afinidades de água podem usar a umidade presente no ar
para distorcer a luz, criar cortinas de fumaça, neblinas, — começou
Fritz, claramente desconfortável com os elogios e a atenção.
— E ilusões, se o feiticeiro for habilidoso o suficiente. — Aldrik
fez um gesto para Fritz, voltando a atenção de Vhalla para o amigo.
Fritz balançou a mão em demonstração, e uma imagem idêntica
se formou ao lado dele.
Vhalla ofegou baixinho, dando um passo em direção à aparição.
Parecia Fritz em todos os sentidos, e Vhalla ergueu a mão -
ninguém a deteve. A ilusão se dissipou sob as pontas de seus
dedos, nada além de uma nuvem de vapor.
Os olhos de Vhalla se arregalaram.
Ela não estava mais em pé naquela clareira da floresta; ela
estava vivendo um pesadelo. Seus sonhos distorcidos se fundiram
com a realidade bem diante de si e com as horríveis lembranças
que ela retirou de sua consciência. Havia vento, fogo, morte e
sangue espirrando em seus braços e rosto enquanto observava os
corpos despedaçados pelas rajadas de vento uivantes. Era isso que
ela desejou. Ela queria eles mortos. Ela queria eles mais do que
mortos, queria que os Nortenhos sofressem.
Vhalla deu um passo para trás, balançando a cabeça. Isso não
era ela.
— Não, — ela sussurrou. Alguém deu um passo em sua direção;
tudo o que viu foram as sombras de seus sonhos. Sombras que ela
destruiu com um simples toque. — Não chegue mais perto, — ela
deu um aviso trêmulo. Vhalla levou as mãos aos ouvidos, os gritos
das pessoas que ela havia assassinado enchendo seu cérebro. Ela
percebeu com horrível clareza o que vinha a assombrando, o
sangue em suas mãos que ela vinha ignorando.
Ela se sentiu tonta. Suas pernas dobraram embaixo de si e seu
corpo se dobrou.
— Vhalla, o que há de errado? — Fritz perguntou, sua voz fraca.
— Vá, — ela ofegou. Eles não deveriam estar perto dela. No
limite de sua consciência destruída pela culpa, ela podia ouvir um
vento rugindo. Vhalla apertou a cabeça com mais força. Ela
pretendeu matar aqueles Nortenhos na Noite de Fogo e Vento, mas
não tinha sabido o que matar realmente significava.
Duas mãos fortes agarraram seus pulsos e ela atacou,
balançando a cabeça e torcendo o corpo. Vhalla tentou derrubar a
pessoa com uma rajada de vento forte, mas ela nem parecia sentir.
— Vhalla. — A voz de Aldrik era forte e nivelada, cortando
através do barulho caótico em sua cabeça. — Pare. Respire. — Ele
instruiu, e ela se forçou a obedecer. Sua voz soou sobre a
tempestade furiosa dentro dela. — Abra os olhos.
Vhalla abriu um olho e depois o seguinte. Embora fosse quase
noite, o mundo tinha um brilho turvo. Aldrik estava rodeado pela
chama dourada, quase branca, em que ela o viu antes. Ele
queimava mais brilhante do que qualquer um dos outros reunidos
ali. Ela lutou para mudar sua visão de volta ao normal, e seus olhos
se fecharam.
— Olhe pra mim. — Aldrik a sacudiu.
Ela abriu os olhos e focou no rosto dele, recuperando lentamente
o controle de sua visão mágica. Sua respiração estava irregular e
suas mãos tremiam. Preocupação estava escrita na testa franzida
de Aldrik.
— Que a Mãe me salve, eu realmente os matei, — ela ofegou.
A boca dele se escancarou por um momento, mas o príncipe se
recuperou e relaxou o aperto nos pulsos dela. Aldrik ficou de pé,
ajudando Vhalla a se levantar. Quando ela se equilibrou, Aldrik
finalmente a soltou e deu um passo para trás. — Fritz, leve-a de
volta ao acampamento, — ele ordenou rapidamente.
— É mesmo uma boa ideia eu…? — Fritz estava incerto.
— Não teste a minha paciência, Charem, — Aldrik rosnou. Ele
era o Senhor do Fogo em cada centímetro.
Era tudo o que Fritz precisava para voltar à vida. Ele saiu
correndo até ela e parou. — Você pode andar? Quero dizer, você
quer ajuda?
Ela balançou a cabeça. — Eu consigo fazer isso.
Elecia deu um passo em direção à Aldrik. Sua voz era baixa,
mas alta o suficiente para Vhalla ouvir. — Ela não está pronta. Você
precisa desistir disso agora; não há nada que você possa fazer por
ela.
— Neiress, — Aldrik gritou o sobrenome de Larel, ignorando
Elecia. — Eu gostaria de uma rodada, se você estiver disposta.
— Seria uma honra, meu príncipe. — Larel fez uma reverência.
Fritz tirou a atenção de Vhalla da cena, puxando-a para a
floresta que estava entre eles e o acampamento. Ela olhou por cima
do ombro quando uma fúria de chamas irrompeu na escuridão
profunda. Elecia ficou de pé, recostada à uma árvore. As chamas
iluminaram seu rosto, e ela passou o polegar pelos lábios
pensativamente. Vhalla se virou, aliviada que a mulher não os
estava seguindo após a dispensa de Aldrik.
Fritz e Vhalla caminharam em um silêncio desconfortável quando
os sons de armaduras tilintando e explosões de chamas começaram
a desaparecer e se fundir com os sons crescentes do
acampamento. Vhalla focou no chão, deixando Fritz guiá-la pela
mão. Ela repassou mentalmente suas palavras, tentando encontrar
algum tipo de explicação.
— Vhalla, sinto muito, muito mesmo, e-e eu não sei o que fiz,
mas não pretendia te deixar mal. — Fritz quebrou o silêncio como
uma barragem de represa se rompendo. — Eu pensei que seria
interessante para você ver, e eu não sei se isso mexeu com a sua
magia ou algo assim, mas eu prometo que não vou fazer isso de
novo.
— Não é culpa sua. — Ela balançou a cabeça, se sentindo
culpada. — Aquilo me lembrou de algo... não teria como você saber.
Por favor, não se sinta mal. Foi realmente incrível.
— Se você quiser podemos falar sobre isso, — ele ofereceu,
voltando para o seu lado quando eles começaram a andar
novamente.
— Não. — Ela pôs fim à ideia bruscamente.
Fritz a acompanhou até a barraca. Quando ela insistiu que não
tinha fome, ele foi jantar com a promessa de que iria reservar uma
porção para ela. Vhalla não tinha certeza se ele seria bem-sucedido,
mas estava cansada demais para se importar. Ela mal encontrou
energia para tirar sua armadura antes de se jogar no saco de dormir.
Apesar de estar sobrecarregada e à beira da exaustão, o sono
não veio. Vhalla observou as sombras das fogueiras dançando no
tecido de sua barraca. Ela fechou os olhos brevemente, mas toda
vez que o fazia, um novo horror a aguardava. Vhalla não tinha
certeza de quanto tempo havia passado, mas a entrada de Larel na
tenda foi um alívio.
— Bem-vinda de volta, — ela sussurrou.
— Você está acordada?
— Não consigo dormir, — Vhalla explicou o óbvio.
— Você precisa tentar — ordenou Larel suavemente, colocando
a armadura na ponta do colchonete.
— Como foi o resto do treinamento? — Vhalla perguntou,
mudando de assunto.
— Toda vez que o príncipe entra numa briga, ele sempre deixa
uma lembrança dessa experiência. — Larel esfregou o ombro
generosamente enquanto se arrastava para baixo do cobertor.
O silêncio se estabeleceu pesadamente entre elas, suprimindo
as palavras que precisavam ser ditas. Durou tanto tempo que Vhalla
tinha certeza de que Larel havia adormecido. Mas a outra mulher
suspirou lentamente. — Vhalla.
— Sim? — Ela sussurrou de volta.
— Eu sei que não é da minha conta... — O começo
desconfortável de Larel acelerou o coração de Vhalla. — Mas você
sabe que ele se importa com você, certo?
Vhalla olhou na escuridão o contorno sombrio de Larel. Ela se
mexeu e seu estômago sentiu aquela sensação estranha de novo -
provavelmente porque ela não tinha comido. — Ele é um amigo, —
ela confessou pela primeira vez a alguém. Vhalla recordou o dia na
capela e sua mente a traiu, inundando-a também com lembranças
de uma dança nos jardins aquáticos do palácio na Noite da Gala.
Tudo parecia um sonho, considerando onde ela estava agora.
— Um amigo? — Larel refletiu sobre a noção em voz alta.
— Um amigo querido... — Vhalla sentiu uma estranha vontade
de pontuar.
Larel estalou a língua, mas se absteu de mais comentários.
Vhalla se enrolou em uma bola com um suspiro e finalmente
fechou os olhos. Não foram os horrores que a receberam. Um
príncipe com uma coroa dourada foi pintado em suas memórias.
— VHAL ... Vhal. — Fritz cutucou-a gentilmente.
— O que? — Vhalla bocejou.
— Você precisa comer alguma coisa.
Isso de novo. — Não estou com fome. — Ela esfregou os olhos
com o couro macio que cobria suas palmas. Faziam três dias desde
a noite na floresta, e nenhum deles havia mencionado treinamento
desde então. Isso fez com que Vhalla se sentisse ainda mais
quebrada e defeituosa.
— Quando foi a última vez que você comeu? — Agora Larel
também estava nessa.
— Eu... — Vhalla lutou para responder a pergunta
honestamente. — Tomei café da manhã ontem e jantei na noite
anterior à essa.
— Você chama isso de comer? — Fritz sacudiu a cabeça. —
Isso mal pode ser considerado uns lanches esporádicos.
— Esqueça isso. — Aborrecimento rastejou em seu tom.
— Vhalla, — disse uma voz severamente à sua esquerda.
Apreensão a encheu ao som de sua voz. Aldrik mal falara com
ela desde a noite em que Vhalla desmoronou, e ela não teve
coragem para dizer algo a ele. Era bom imaginar que ela poderia
cortar o cabelo e se tornar alguém forte, o monstro que o Senado
tinha todo o direito de temer. Mas no momento em que se deparou
com a besta que era, ela se desfez. Ela era fraca, então fazia
sentido que ele não quisesse nada com ela.
— Você já é um risco para todos por não ser qualificada em
combate ou ter um controle sobre sua magia. O mínimo que você
pode fazer é manter o corpo em boas condições, comendo. — Ele
lançou um longo olhar para ela. — E dormindo, — acrescentou o
príncipe, como se notasse os círculos escuros sob os olhos dela
pela primeira vez.
Com um suspiro, Vhalla pegou a carne que Fritz estendia para
ela e a rasgou com uma mordida. Estava fria, viscosa e sem gosto.
A comida na marcha rapidamente perdeu a sensação de novidade,
e agora era apenas mais um lembrete de onde ela estava, de quem
ela era.
— Coma tudo, — Aldrik instruiu secamente. — Será mais
gracioso se você comer sozinha ao invés de um de nós forçar as
coisas pela sua garganta.
Ela deu mordidas bem pequenas, mas conseguiu engolir - e
manter - tudo. A comida pousou pesadamente em seu estômago e
ameaçou fazer o caminho inverso com o balançar do cavalo.
Como se para tirar proveito do seu mau humor, Elecia apareceu
do nada e se colocou entre Vhalla e Aldrik.
— Bom dia! — Ela disse alegremente.
Aldrik assentiu, e Fritz e Larel a cumprimentaram. Vhalla focou
na estrada à frente.
— Vamos lá, não seja rude, — disse Elecia com um sorriso
condescendente.
— Olá. — Vhalla nem sequer fez contato visual.
— Nossa, alguém acordou do lado errado da cama. — Elecia riu
e bateu a mão no ombro de Vhalla. — Não fique tão séria! — Ela
sorriu e Vhalla continuou a ignorá-la. — Ou fique. — Elecia deu de
ombros e virou-se para Aldrik. — Então, eu não sei se você ouviu,
mas recentemente comecei a estudar remédios para bloqueadores
de Vias...
Vhalla foi forçada a passar as próximas duas horas ouvindo
Elecia e Aldrik discutir as propriedades das Vias e como elas
poderiam ser interrompidas ou bloqueadas. A discussão estava
além do seu entendimento, então ela tentou ignorá-los. Isso a irritou;
eles a irritavam de uma maneira irracional. Essa mulher, que ela mal
conhecia, mantinha uma conversa com Aldrik que fazia Vhalla se
sentir estúpida.
Eventualmente, sua frustração sem sentido finalmente a venceu
e Vhalla interrompeu a conversa deles. — Então, quando vamos
treinar novamente? — Ela perguntou com mais convicção do que
sentia. Todas as quatro pessoas a encararam sem entender.
— Treinar? — Elecia riu. — Por que você iria querer fazer isso?
— Porque eu estou indo para a guerra, — disse Vhalla
afiadamente.
— Mas da última vez...
— Tem certeza de que está disposta a fazer isso? — Larel
interrompeu Elecia.
— Essa é uma boa ideia? — Fritz disse incerto.
— Eu consigo. — Vhalla afirmou para si mesma. — Eu vou
conseguir. — Ela se virou para Aldrik, procurando em seu silêncio
por incentivo, aprovação - qualquer coisa.
— Muito bem, — disse ele depois do que pareceu uma
eternidade. — Precisamos trabalhar primeiro na sua Viabilização,
então vamos nos concentrar nisso hoje à noite.
— Viabilização? — Vhalla repetiu.
— Espere, então você quer me dizer que ela nem sabe como
Viabilizar? — Elecia olhou entre Vhalla e Aldrik. — Você tem
esperança nela, e ela nem mesmo...
— Não é uma decisão sua, — Aldrik vociferou severamente.
Vhalla ficou satisfeita com a quantidade de vezes que Elecia
estava sendo interrompida. O sentimento não foi compartilhado, e a
outra mulher ajustou sua bandana vermelha antes de partir irritada.
— O que é Viabilização? — Vhalla se forçou a perguntar. Ela se
odiava por não saber, mas não perguntar só agravaria o problema.
Aldrik tinha mencionado isso meses atrás, mas ele nunca se
preocupou em explicar o que era.
— É como um feiticeiro usa magia, — começou Fritz.
— Eu posso usar magia, — ela retrucou num tom defensivo e
esgotado.
— Sim, você pode, mas, — Fritz torceu as rédeas em torno dos
dedos, — mas não é lá essas coisas.
As palavras dele eram como uma adaga em suas entranhas. Até
ele a enxergava como uma inútil. Vhalla engoliu a dor dessa
realização, forçando-a para longe de seus olhos, onde poderia ficar
aparente.
— Pense assim, — Larel disse gentilmente. — Você tem uma
jarra e um copo. Você tem que colocar a água da jarra no copo.
Uma maneira de fazer isso é mergulhar o copo na jarra. Mas pode
virar uma bagunça e talvez o copo não se encaixe direito e por aí
vai.
— Então, ao invés disso, você derrama a água da jarra nele, —
Vhalla terminou a lógica. Larel assentiu e sorriu. Foi uma visão bem-
vinda que deu a Vhalla alguma tranquilidade.
— Exatamente, podemos mergulhar em nossa magia para
realizar as coisas por impulso - como você tem feito. Mas é
cansativo, difícil e normalmente inconsistente. É por isso que
abrimos uma Via para que ela flua - para que derrame - facilmente
dentro de nós — terminou Larel.
— E, por esse motivo, você estará trabalhando nisso comigo
esta noite — anunciou Aldrik, alto o suficiente para chamar a
atenção da Major Reale.
— Obrigada, meu príncipe, — murmurou Vhalla.
— Espero que você não me decepcione.
Depois dessa declaração, houve um silêncio frio pelo resto do
dia vindo do homem que geralmente era caloroso. Eles nunca
tiveram a oportunidade de conversar, não de verdade, então Vhalla
ficou surpresa ao descobrir o quanto seu silêncio a incomodava. Foi
como um peso em seus ombros até Aldrik aparecer ao lado da
tenda dela e de Larel naquela noite.
— Você está pronta? — O príncipe perguntou.
Vhalla assentiu em silêncio.
— Devo buscá-la para jantar? — Larel perguntou com um olhar
pensativo entre os seus acompanhantes desconfortáveis.
— Não é necessário; vou garantir que ela coma — respondeu
Aldrik em um tom particularmente afiado. Vhalla concentrou-se na
poeira que cobria a ponta de suas botas. — Venha.
A tenda de Vhalla e Larel não ficava longe da de Aldrik. Os
outros feiticeiros tiveram a decência de reprimir as encaradas, mas
alguns olhavam com curiosidade a novata que seguia o príncipe.
Atrás de si, ela ouviu sussurros e escutou as palavras “Andarilha do
Vento” mais de uma vez. Parecia ser a explicação que era atribuída
automaticamente sempre quando algo diferente ou especial ocorria
perto dela. Era uma boa desculpa para evitar rumores de algo
inapropriado, Vhalla argumentou consigo mesma. Mas a atenção
ainda a deixava desconfortável.
Aldrik abaixou a cabeça sob a aba e entrou no brilho laranja da
tenda à sua frente. Vhalla congelou, assegurando a si mesma de
que não havia motivo para ficar nervosa. Ela só estava prestes a
entrar nos aposentos pessoais do príncipe herdeiro do reino, por
mais provisórios que fossem. Agarrando seus dedos com força, ela
reuniu sua determinação e entrou atrás dele.
A tenda parecia mais espaçosa por dentro. À esquerda da
entrada, peles e cobertores grossos estavam empilhados em cima
de pedaços de madeira para fazer uma cama de pallet. Suas noites
sem dormir deviam estar começando a cobrar o seu preço, porque a
visão era estranhamente atraente. Em volta do perímetro havia
pequenas estruturas em discos delgados com chamas ardendo de
modo impossível acima dos braseiros de aço. À direita, um grande
tapete muito elegante havia sido estendido no chão de terra, com
várias almofadas e uma pequena mesa baixa acima dele.
Aldrik estava do lado oposto da tenda, removendo suas grevas e
manoplas.
— Pode me ajudar com a armadura? — Ele perguntou
casualmente, pegando-a desprevenida.
— M-meu príncipe? — Vhalla tropeçou nas palavras. Era como
se, no segundo em que eles ficassem fora da vista dos outros, ela
estivesse em um mundo diferente com um homem diferente.
— Desde quando você é formal comigo em particular? — Aldrik
arqueou uma sobrancelha escura. — Uma ajudinha aqui?
Ele se virou e levantou os braços. Vhalla notou uma pequena
emenda na parte traseira esquerda da couraça. Ela atravessou a
tenda às pressas e começou a mexer nas travas inferiores.
— Como, hum, como você consegue vestir isso? — Ela
perguntou, desesperada para falar qualquer coisa que abafasse o
barulho do sangue que corria desenfreado em seus ouvidos.
— Eu tenho ajuda - um escudeiro, — explicou ele logicamente.
Os dedos desajeitados de Vhalla finalmente desfizeram o último
fecho e ele tirou a peça, deslizando pela lateral. Aldrik colocou a
couraça no chão e começou a desatar a malha de escamas.
— Aldrik, isso é realmente... — Vhalla engoliu em seco, dando
um passo para trás e olhando para longe.
— Você acha que eu fico nu por baixo da armadura? — Um
pequeno sorriso apareceu nos cantos da boca dele enquanto tirava
as escamas, deixando apenas a cota de malha restando.
— Sua armadura é a mesma que a minha, — observou ela,
inspecionando os elos finos de metal com curiosidade.
— Claro que é. — Ele passou a mão pelos cabelos e Vhalla os
observou cascatearem de volta ao lugar em torno dos dedos dele.
— Por quê? — Ela sentiu como se estivesse deixando passar
algo óbvio.
— Eu fiz as duas. — Seus olhos encararam os dela e Vhalla não
conseguiu encontrar palavras entre a surpresa e o olhar que ele
estava lhe dando.
— Por quê? — Vhalla repetiu novamente, lembrando-se de Larel
dizendo a ela uma vez sobre como os Domadores do Fogo eram
joalheiros ou ferreiros devido à sua capacidade de manipular as
chamas.
— Por quê? Por que faço minha própria armadura, meu
papagaio? — Aldrik tinha que saber que sua pergunta era mais do
que ele fazer a armadura dele. — Porque não confio em outros
artífices quando se trata de algo tão importante quanto a minha vida.
Havia um significado oculto entre suas palavras, e Vhalla se
sentiu confusa tentando ler as entrelinhas. Aldrik a poupou da tarefa
quando arrancou a última parte de sua armadura - e a mente dela
ficou em branco. Ele estava com uma camisa folgada branca de
mangas compridas, que pendia quase toda aberta na parte do
pescoço. Na metade inferior ele vestia um par de calças pretas
justas feitas sob medida. Essa era a versão mais casual e despida
dele que ela já tinha visto, e só essa visão já trouxe um rubor
brilhante para suas bochechas.
Se o príncipe notou seu pudor, foi gentil o suficiente para não
comentar. Aldrik sentou em uma das almofadas perto da mesa
baixa. Um papel chamou sua atenção, provocando um pequeno
suspiro.
— O que é isso? — Ela perguntou, ainda de pé.
— Ah, nada. Apenas algumas coisas que eu preciso repassar
com o Pai. — Ele olhou para ela. — Sinta-se a vontade para ficar
mais confortável, se quiser, — Aldrik ofereceu com um gesto,
apontando para o assento. Seu olhar voltou ao papel e ele beliscou
a ponte do nariz, pensativo.
Vhalla torceu os dedos. Ele falava da armadura; ela
normalmente usava menos peças quando estava com ele. Mas algo
sobre despir qualquer coisa, aqui em sua tenda, fez o coração dela
disparar. Respirando fundo, Vhalla lembrou a si mesma que era
adulta e que devia parar de agir como uma garota excitada. No final
das contas ela decidiu tirar as botas e as luvas, assim como a
couraça de escamas, mas deixou a cota de malha.
Ela sentou na almofada em frente a ele e cruzou as pernas. As
almofadas eram confortáveis, tão luxuosas quanto o tapete, com fios
bem trançados que pareciam ser algum tipo de seda.
— Ah, desculpe. — Vhalla largou a almofada sobressalente com
uma risada nervosa quando sentiu o olhar dele sobre si.
— O que foi? — Aldrik perguntou, devolvendo o papel para a
pilha.
— Elas são muito confortáveis, — disse ela com sinceridade.
— Você acha? — Ele pareceu surpreso, como se as estivesse
considerando o fato pela primeira vez.
— Bem, para mim elas são. — Ela sorriu fracamente. Ele
esquecia tão facilmente que os dois vinham de mundos diferentes.
— De qualquer forma, — ele interrompeu sua própria inspeção.
— Viabilização. É muito parecido com o que Larel explicou: você vai
se conectar com a fonte do seu poder, o que deve ser fácil dada a
sua Afinidade.
— Como eu faço isso?
— Bem, isso meio que depende de você. Te ajudarei a entender
os fundamentos da coisa, mas, no final das contas, se trata da sua
conexão consigo mesma e com o mundo. — Era uma explicação
enigmática, e Vhalla sentiu sua chance de sucesso ir diminuindo até
se tornar um desalento. — A maioria dos feiticeiros têm um gatilho
que abre e fecha sua Via. Normalmente é físico. Muitos acham mais
fácil vinculá-lo à um ato tangível.
— Qual é o seu? — ela perguntou.
— A major me disse que você é plenamente capaz de exercer
visão mágica agora? — Vhalla assentiu, pelo menos com isso ela
podia contar. — Muito bem - observe. — Aldrik estendeu as mãos
diante dela, as palmas abertas. Vhalla ajustou sua visão e o viu
banhado na familiar chama dourada. Ele apertou as mãos em
punhos e de repente o brilho se extinguiu de seu corpo.
— Você está bem? — Ela ofegou, olhando para a sua forma
agora sombria.
Ele riu e assentiu. — Eu fechei minha Via. Continue assistindo.
— Ele relaxou e abriu os dedos. Aldrik os fechou em punhos
novamente e as chamas brancas e douradas retornaram.
— É magnífico, — ela sussurrou. O elogio lhe rendeu um leve
sorriso. Vhalla olhou para baixo, não mais encarando seu rosto, e
parou. — Aldrik... — Ela murmurou quando seus olhos focaram em
um borrão escuro. Ela já tinha visto aquilo antes, no jardim, antes
mesmo de saber sobre sua visão mágica. Vhalla estendeu a mão
para tocá-lo, mas então se obrigou a parar bruscamente. Ela não
deveria ser tão ousada; ele ainda era o príncipe herdeiro.
Aldrik sabia o que ela tinha visto. — O veneno cristalizou,
enraizando-se o suficiente para que eu não pudesse removê-lo. Isso
foi o melhor que pude fazer.
— Ele não está deixando sua Via funcionar corretamente, está?
— Vhalla franziu a testa, de repente percebendo o que aquela
mancha escura significava.
— Exatamente... — Sua voz começou a ficar pesada. — É por
isso que eu não pude protegê-la como deveria naquela noite. —
Aldrik fez uma pausa. — Vhalla, a culpa é minha.
— O que? — Apreensão arrastou dedos gelados em sua
espinha.
Ele pegou a mão dela, que ainda estava pairando, nas dele. —
Você não deveria ter tido que matá-los. Se eu tivesse sido mais
capaz, você não teria sido forçada a isso. — Emoção queimou atrás
dos olhos dele e a realização a atingiu, clara como o dia. Viabilizar
era um projeto secundário. O objetivo principal era a Noite de Fogo
e Vento. Ele estava interpretando o mestre das marionetes
novamente, e Larel certamente o estava ajudando.
— Não quero falar sobre isso. Ensine-me Viabilização ou
terminamos aqui. — Ela arrancou sua mão das dele.
— Eu tinha catorze anos, — ele começou, ignorando-a. A boca
dela ainda estava torcida em aborrecimento. — A primeira vez que
matei um homem.
O rosto dela relaxou.
— Pensando bem, eu nem sequer tive um bom motivo para
matá-lo.
Vhalla se aproximou para ouvir, a voz dele era fraca e seus olhos
brilhantes. Ele parecia olhar através do mundo ao seu redor.
— Me disseram que ele era um homem mau, que iria machucar
minha família e sua morte nos tornaria mais fortes. — Aldrik riu
amargamente. — Como se a morte tornasse alguém mais forte...
A pressão de seu olhar pesava em cada centímetro do corpo
dela.
— Nunca esquecerei que, no final, ele implorou misericórdia ao
seu príncipe. Ele pediu perdão e eu lhe dei a morte. — O corpo de
Aldrik estava muito ereto, seus olhos procurando os dela, desejando
algo.
— Aldrik, — Vhalla sussurrou. Ela não sabia o que poderia lhe
oferecer. — Eu sinto muito. — Ela iniciou o contato, segurando a
mão dele.
Ele não se afastou. — Depois disso, matar ficou mais fácil. Logo
comecei a esquecer seus rostos, seus gritos, suas histórias. Eles
mergulharam em uma cova comunitária na minha mente, que se
tornou uma ferida aberta na qual todos que morrem pela minha mão
vão parar. Mas eu nunca esqueci o rosto do primeiro homem. Tentei
enfiá-lo naquele vazio oco e apagá-lo da minha mente, mas nunca
consegui esquecer.
Vhalla olhou para ele com uma mistura de horror e pena. Ela
apertou a mão dele e ficou surpresa quando o sentiu apertar de
volta.
— Eu te vejo indo por esse caminho, e não quero que você se
perca nessa escuridão. — Ele riu, e a risada carregava a tristeza
mais irrestrita que ela já vira vinda dele. — O pior é que, graças à
extraordinária sabedoria das pessoas do Senado, não posso
protegê-la disso.
— Então o que eu faço? — Vhalla finalmente procurou
orientação para lidar com sua culpa.
— Nunca esqueça quem você é, e não deixe que os mortos a
definam. — Ele falou como se estivesse lendo os pensamentos dela
por semanas. — Fale comigo, Fritz ou Larel. Acho que nenhum de
nós está preparado para perder você para os seus demônios.
Ela olhou para ele; ela não queria pensar na Noite de Fogo e
Vento. Ela queria esquecer. Ele a atraiu para o seu covil com suas
pretensões, e agora ela era refém de seus olhares e toques. Vhalla
fechou os olhos e respirou fundo.
— Toda noite, eu os vejo. Ouço os gritos e sinto o sangue nas
minhas mãos, no meu rosto. — Ela estremeceu enquanto sua voz
falhava, e Vhalla afastou sua mão da dele para se abraçar. — No
começo, não sabia o que eram, mas naquela noite, na floresta, eu
lembrei. — Parecia bobagem dizer que ela tinha esquecido a
primeira vez que matou uma pessoa, mas sua mente tinha sido
muito eficiente em afastar a memória.
— Eu gostaria de ser alguém que pudesse te confortar melhor,
— ele murmurou baixinho. Aldrik se inclinou e, com apenas as
pontas dos dedos, afastou alguns fios perdidos que caiam em seu
rosto. Os dois pareceram prender o fôlego quando sua pele roçou
levemente no rosto dela. Ele se afastou, a mão se apertando em
punho.
— Você é, — disse ela rapidamente, ganhando um olhar
surpreso.
— Eu sou? — ele repetiu cético.
— Eu... — Vhalla tropeçou em suas palavras. — Eu sou... mais
feliz... com você, perto de você. — Algo nele amoleceu, mas havia
uma tristeza que fez Vhalla se sentir culpada por sua confissão.
— Em todo o caso. — Ele voltou a evitar a atenção dela. —
Meus ouvidos e minha porta estão sempre abertos para você.
— Obrigada. — Vhalla se perguntou para quantas pessoas ele
havia oferecido isso. Ela não conseguia imaginar que fossem
muitas.
— Por enquanto, devemos garantir que você saiba Viabilizar. —
Aldrik parecia tão desconfortável quanto ela, e o momento -
qualquer que tenha sido ele - desapareceu.
Eles começaram a trabalhar no que Vhalla descobriu ser uma
tarefa aparentemente impossível de Viabilização. Vhalla viu nuances
do fantasma com quem havia trocado bilhetes meses atrás
enquanto ele despejava uma quantidade de conhecimento digna de
um teórico em magia com facilidade e destreza. Sua ardilosidade
queimou o intelecto dela, atiçando seu paladar mental para obter
novas informações.
Mas a vontade de aprender e a execução prática também eram
muito parecidas com o que ele havia lhe dito meses atrás - era mais
fácil compreender do que fazer. Em todas as tentativas, Aldrik
instruiu que ela “só precisava encontrar a magia dentro de si” ou “se
conectar com o seu poder”. Mas Vhalla sentia como se estivesse
atirando em um alvo desconhecido no escuro.
Quando ele foi buscar comida, ela se viu exausta. A conversa se
tornou casual e Vhalla relaxou, consumindo distraidamente a
refeição diante dela. Ele fez pontadas de dor surgirem em suas
costelas de tanto rir, contando uma história sobre quando tinha
ensinado seu irmão mais novo a andar à cavalo pela primeira vez.
Vhalla compartilhou a primeira vez que foi ajudar no campo da
fazenda, mas acabou brincando na lama a maior parte do dia. Ele
parecia achar isso tão chocante quanto divertido. Por aquela breve
hora os horrores que vira, que cometera, não importavam.
Eles não podiam fugir da realidade por muito tempo. No instante
em que a comida terminou, eles retornaram à Viabilização.
— Acho que talvez isso tudo seja inútil, — Vhalla suspirou,
abaixando os braços. Ela estava acenando-os como uma tola,
tentando encontrar a “essência do ar”.
— Há mais uma coisa que poderíamos tentar, já que você não
possui o luxo de ter tempo, — disse Aldrik pensativamente após um
longo silêncio. — Mas não é um método convencional. É bastante
teórico, na verdade.
— Ah? — Ele sabia exatamente o que dizer para deixá-la
insaciavelmente curiosa.
— É mais sobre Vinculação do que sobre Viabilização. — Ele se
inclinou para frente. — Você teve a chance de ler alguma coisa
sobre Vínculos antes de sair da Torre?
— Não consegui encontrar muita coisa, — respondeu ela.
— Isso é porque não há muito, — afirmou Aldrik. — Vinculação é
uma ocorrência peculiar e difícil de entender porque, na melhor das
avaliações de todos os estudiosos, é a abertura literal de um canal
mágico entre duas pessoas. Você abriu sua magia para mim, para
salvar minha vida.
Essas palavras afundaram dentro dos dois por um momento.
— Mas, como costumam dizer, portas e portões abrem para
ambos os lados, — terminou Aldrik, aliviando a estranha tensão que
surgia esporadicamente toda vez que estavam juntos.
— Espere. — Vhalla piscou. — Você está dizendo que eu tenho
um pouco da sua magia em mim?
— Não apenas um pouco; esse montante tem capacidade de ser
um canal entre nós, — afirmou.
— Isso é incrível, — ela sussurrou.
— É por isso que não acho que sua mágica seja tão eficaz
contra mim quanto é contra os outros. Não vai me afetar tão
fortemente. Nossa própria magia não pode nos machucar. — Ele
balançou a cabeça. — Há várias teorias interessantes que
poderíamos discutir e explorar em outro momento. Por enquanto,
vamos tentar uma Ligação.
— O que seria uma Ligação? — Ela perguntou, desafiando-o a
comentar algo sobre papagaio.
— É difícil de explicar. Pense no Vínculo como uma Via latente.
A Ligação a ativará, ampliará o Vínculo. — Aldrik se inclinou para
mais perto, e o coração de Vhalla bateu mais forte. — Isso pode
nem funcionar. Mas, para que haja uma chance - não lute comigo.
Mesmo se Vhalla quisesse, ela não teria como fazer isso. Ela
ficou tão atordoada com o fato dele avançar em sua direção e com
os dedos que tocaram levemente suas têmporas, que ela mal podia
falar. Os olhos de Aldrik se fecharam e ele respirou fundo. Ela
mordeu o lábio, sem saber se deveria fazer o mesmo. Mas se não o
fizesse, passaria o tempo todo estudando suas feições esculpidas à
luz do fogo - e ela poderia morrer de vergonha se fosse pega no
flagra.
Então Vhalla fechou os olhos também.
No começo, não havia nada. Ela ouviu sua própria respiração e
sentiu as mãos dele sobre si. As pontas dos dedos masculinos
esquentaram e então, fracamente, ela ouviu seu coração bater. Não,
ela percebeu, não era o seu batimento cardíaco, era o dele. A
reação inicial foi entrar em pânico com a sensação de outro coração
batendo em seu peito, mas Vhalla se forçou a ficar quieta e calma.
Logo o coro do som compartilhado se estendeu à respiração dele,
sobrepondo os ruídos de seu próprio corpo. O barulho chegou a um
crescendo que ameaçava consumir sua própria consciência. Mas
Vhalla lembrou-se das palavras dele e cedeu à isso, à ele, deixando
a onda colidir contra ela.
Havia apenas uma inspiração, uma expiração, um batimento
cardíaco entre eles.
Ela derreteu no calor estranho da existência comunitária,
renunciando ao último de seus sentidos físicos. Era diferente de
tudo que ela já havia sentido. Como a vida e morte, ambas
agrupadas perfeitamente em um momento de beleza. Ela tentou
descobrir onde seu próprio eu terminava, para descobrir onde ele
começava, mas não haviam fins nem inícios em lugar algum. Eles
eram infinitos.
Ela sentia como ele sentia, e ele pensava como ela pensava.
De repente, houve uma brisa quente soprando sobre seu eu
metafísico. Era forte. Algo que ela conhecia desde o nascimento e
por toda a sua vida, sem realmente ter palavras que descrevessem
isso antes. Quando Aldrik abriu sua Via, a dela se abriu em resposta
com todo o seu brilho.
Ela o sentiu se afastar e, em sua mente, ela se opôs. Havia uma
segurança ali, uma tranquilidade, uma compaixão e muito mais que
ela não ousava nem nomear. Foi uma partida suave, mas uma
partida da mesma forma. Vhalla suspirou levemente quando seus
olhos se abriram. Aldrik a encarou de volta. O peito dele se
expandiu lentamente a cada respiração profunda.
Por um longo tempo, eles ficaram imóveis. Seu corpo parecia o
mesmo, mas tudo havia mudado. As mãos dele lentamente se
afastaram do seu rosto, e a última conexão foi através do olhar entre
eles.
— Vhalla, eu... — ele proferiu, a língua espessa.
Alguma loucura a dominou, e ela segurou as mãos dele. —
Aldrik, — ela disse, agarrando-se a ele desesperadamente. Vhalla
procurou alguma validação do que havia encontrado em seu breve
período de existência compartilhada.
Aldrik olhou para ela. Muito antes dele tirar as mãos de sua
têmpora, ela viu um momento de pânico, um momento de desejo - e
ele recuou mentalmente. Vhalla percebeu que ele talvez fosse
incapaz de esconder alguma coisa dela novamente na escuridão de
seus olhos, e ela viu tudo como se estivesse olhando em um
espelho. Ela não tinha certeza se essa Ligação era uma bênção ou
uma maldição.
— Acho que fizemos o suficiente por essa noite. — Aldrik
desviou o olhar, sentando-se mais ereto, mais composto.
— Aldrik, — ela sussurrou. Mesmo sua pequena retirada a
machucou mais profundamente do que deveria. Parecia que um
pedaço dela havia sido arrancado.
— Tudo o que você precisa fazer é repetir esse processo, o que
você sentiu. Acho que você consegue descobrir essa parte sozinha.
— Ele ainda não a olhava.
— Aldrik, — implorou Vhalla.
— Você pode pedir ajuda a Larel também. Basta escolher um
movimento e repeti-lo enquanto você Viabiliza. Repita a ação toda
vez que tentar, então quando tiver sucesso, começará a associar o
ato à esse gatilho. — Ele voltou para a mesa, pegando o
pergaminho que estava lendo antes.
Vhalla não tinha certeza do que havia feito de errado, mas ele se
fechou completamente, deixando-a de fora. Foi ele quem sugeriu a
Ligação; do que ele subitamente tinha tanto medo? Ela suspirou e
se levantou.
Aldrik não olhou para ela à medida que voltava a vestir a
armadura. Era uma caminhada curta, mas a última coisa que ela
queria era sair da tenda de um homem - da tenda do príncipe
herdeiro - menos vestida do que quando entrou. Ele não disse nada
e não fez nenhum movimento em sua direção.
— Bem, — disse Vhalla, incerta. — Obrigada. — Um toque de
amargura se arrastou em seu tom. Ele não se mexeu quando ela se
virou para sair.
— Eu irei chamá-la — ele disse abruptamente, quando ela
estava prestes a puxar a aba da tenda.
— O que? — Vhalla virou, o coração acelerando com esperança.
— Trabalhe na sua Viabilização, você precisará dela para o que
vou lhe pedir para fazer — disse Aldrik, virando-se para ela. —
Começaremos quando eu estiver satisfeito com o seu progresso.
Vhalla assentiu e procurou seu olhar reservado por um longo
momento. Ela ainda a viu lá, a perturbação. Mas perturbação em
relação a que? Essa era uma pergunta na qual ela ainda não tinha
resposta.
— Muito bem. Boa noite, Aldrik. — Vhalla puxou a aba da tenda,
partindo.
— Boa noite, Vhalla.
O DIA ESTAVA nublado e quente. Havia uma brisa seca, mas ela
oferecia pouco alívio para o calor opressivo. Era o tipo de dia
em que as pessoas não queriam nada além de encontrar um canto
fresco e com sombra para descansar. Mas o sol estava escaldante,
castigando seus ombros.
Ela estava diante de uma sepultura. Ficava no centro de um
jardim coberto por uma estrutura de vidro. Muitas plantas foram
ajardinadas e a maioria estava aguentando bem, apesar da
temperatura. Mas as flores vermelhas que cercavam a lápide
esculpida diante dela estavam murchas e enrugadas. Não era a
primeira vez que ela tinha estado naquele jardim dos mortos.
O túmulo diante dela tinha um formato de obelisco. No topo,
estava a figura de uma mulher. Ela tinha longos cabelos que caíam
perfeitamente lisos até quase a cintura, e um rosto suave, porém
severo, moldado no mármore impecável. Atrás da dela havia um sol
em ouro e rubi que lançava uma névoa vermelha no chão abaixo.
Vhalla estendeu a mão e tocou as letras familiares, como se isso
fosse conectá-la à mãe morta. Não havia nada além de pedra sob
seus dedos. Ela suspirou, mudando o peso de perna. Ela realmente
odiava estar ali.
— Pare de torcer os dedos, — disse uma voz forte ao seu lado.
Ela virou o rosto para cima, mas o sol encobria o homem que se
erguia sobre ela.

Vhalla virou e abriu os olhos com tudo. O dorso da mão repousava


contra a testa. Ela olhou para a lona que ia lentamente se
iluminando acima de si. Foi um sonho estranho que parecia mais
uma lembrança esquecida há tempos. Vhalla pensou nele
novamente e, apesar da nostalgia avassaladora, nada parecia
familiar quando o considerou pela segunda vez. Ela estava cansada
demais para dar muita atenção ao sonho e foi cumprir suas tarefas
matinais.
Ligação, foi assim que Aldrik chamou. Vhalla cutucou seu café
da manhã, tentando se forçar a comer. Ela ainda não entendia a
ampliação do Vínculo, como Aldrik havia dito, mas certamente fora
significativo. O fantasma dele ainda pairava sobre ela. Ainda podia
sentir a carícia da essência dele em todos os seus ossos. Vhalla
olhou para as mãos. Aprender a Viabilizar parecia tão sem
importância em comparação à isso.
— Como foi ontem à noite? — Fritz perguntou quando se juntou
a ela e Larel.
— O que? — Vhalla saiu de seus pensamentos.
O interesse de Larel havia sido claramente despertado. Ela não
perguntou na noite passada quando Vhalla voltou, exausta e com os
olhos pingando de sono, e ficou em silêncio a manhã toda.
— Com o príncipe, — Fritz baixou a voz. — Você tem uma idéia
melhor de como Viabilizar?
— Acho que sim. — Vhalla assentiu.
— Bom, bom! — Fritz sorriu. — Você vai pegar o jeito em poucas
semanas, tenho certeza.
Vhalla sentiu a magia crepitar em torno de seus dedos. Ela não
precisava de poucas semanas, poderia fazer isso agora. O corpo
dela simplesmente sabia. Mas ela não teve a oportunidade de
corrigir Fritz à medida que as cornetas tocavam, convocando todos
de volta aos seus lugares no exército.
Os soldados avançavam mais devagar agora. Uma semana de
marcha começou a cobrar o seu preço, principalmente se tratando
dos novos recrutas. As pernas de Vhalla estavam rígidas e doloridas
por conta de sua própria sela. Ela não tinha ideia de como os
homens e mulheres que marchavam a pé estavam conseguindo
aguentar. Como eles lutariam quando chegassem ao Norte?
Aldrik também estava lento essa manhã, o exército já estava
praticamente se movendo quando ele montou. Mesmo com toda sua
armadura volumosa, ele ainda estava cheio de elegância em cima
de seu garanhão de guerra. O coração dela começou a acelerar e,
como se sentisse seus batimentos, os olhos de Aldrik encontraram
os dela. A tensão irradiava entre eles, mesmo entre uma dúzia de
pessoas.
Ele puxou as rédeas com força e virou a montaria, cavalgando
junto à retaguarda do exército, algumas fileiras atrás de Vhalla. Ela
observou o príncipe enquanto ele se alinhava ao lado de Elecia.
Vhalla desviou os olhos antes de ver outro momento da conversa
imediata e envolvente deles. Havia uma emoção feia dentro dela,
uma que ela não estava acostumada e não sabia como combater.
— Vou cavalgar na linha de frente, — anunciou ela.
— Por quê? — Fritz pareceu surpreso com sua declaração
repentina.
— Eu tenho amigos lá, — murmurou Vhalla.
— Você tem amigos aqui, — retorquiu Fritz, sem entender.
Vhalla não tinha certeza se poderia, ou deveria, explicar isso a
ele. Pelos cantos dos olhos, Vhalla viu a atenção de Larel se voltar
para Aldrik e Elecia. A mulher Ocidental era atenta demais para o
seu próprio bem.
— Não foi nada que você fez, Fritz. — Vhalla encontrou forças
para sorrir e agarrar o antebraço dele de forma solidária. — São só
algumas pessoas que eu quero ver.
Não houveram mais protestos de Fritz ou Larel sobre o assunto.
Enquanto Vhalla atravessava as filas de cavaleiros, ela fez questão
de garantir que tinha chamado a atenção de Aldrik. Era horrível
admitir, mas ela queria que ele a visse ir embora e sentisse a
mesma emoção feia que ele provocara nela.
A Guarda Dourada não era difícil de encontrar; um grupo de três
cercava o príncipe mais jovem, com braçadeiras banhadas a ouro.
Eles marchavam no centro do exército, e Vhalla vacilou com os
olhares vis que recebeu dos soldados no limite do pelotão. Ela
estava prestes a cavalgar de volta quando os sussurros começaram,
à medida que Daniel se virava em sua direção.
— Vhalla! — Ele chamou, quase deslocando o braço para
acenar para ela. Os soldados abriram caminho em choque, e Vhalla
não teve outra opção a não ser ir até ele. — Não estávamos
esperando que você viesse. — Daniel sorriu e Vhalla
instantaneamente se sentiu melhor.
— Não mesmo. — As palavras do Príncipe Baldair a fizeram
murchar.
— Espero que não seja um problema. — Vhalla baixou os olhos.
Daniel mostrou a língua para o príncipe.
— Não se preocupe tanto. — O príncipe afastou suas
inseguranças com uma gargalhada completa. — Eu disse que não
tinha problema.
— Essa pode ser a primeira vez que um feiticeiro cavalga com
os espadeiros, — observou Craig.
Vhalla acreditava nisso por conta dos olhares que os outros
soldados lhe deram.
— Vhalla, esta é Raylynn. — Daniel apontou para uma mulher
que cavalgava à direita de Baldair. Ela tinha longos cabelos loiros, a
cor dos Sulistas. Mas era liso, como o dos Ocidentais, e sua pele
tinha um tom meio oliva.
— Prazer em conhecê-la — disse Vhalla educadamente.
A mulher a observou pensativamente por um longo momento.
Ela tinha olhos como os de Aldrik, Vhalla notou. Negros e
penetrantes, eles confirmaram a suspeita de Vhalla sobre o sangue
Ocidental nas veias da mulher - como se sua pele beijada pelo sol
não fosse prova o suficiente - e cortaram através de Vhalla
facilmente.
— Você é a Andarilha do Vento. — Foi a segunda vez que a
frase não foi colocada como uma pergunta.
— Sou, — afirmou Vhalla.
— Ray, seja legal. — Daniel manobrou o cavalo para ficar ao
lado do de Vhalla. Raylynn deu à Vhalla uma última longa olhada
antes de soltar uma série de sussurros baixos para o príncipe.
Daniel impediu Vhalla de ouvi-los. — A família de Ray estava na
Noite de Fogo e Vento — ele sussurrou.
Vhalla puxou as rédeas com força, pronta para dar meia volta
com Relâmpago e voltar para seu lugar original na fila. Uma
manopla de ouro rapidamente cobriu sua mão. Ela olhou para
Daniel confusa e frustrada.
— Não vá. Eu acho que vai fazer bem à ela.
— O que? — Vhalla inspirou em apreensão.
— Você não é o monstro que eles acham que você é. — A
declaração dele a atingiu no âmago, e a expressão de Vhalla deve
ter deixado isso bem aparente. — Eu... — Ele estava sem palavras -
os dois estavam, à medida que a onda de honestidade brutal caía
sobre eles. Aquele momento de sinceridade a paralisou, e Vhalla
estava agradecida pelas pernas fortes do cavalo debaixo de si. —
Eu não deveria ter dito isso.
— Eu precisava ouvir. — Ela foi sobrepujada com a franqueza
dele; era infecciosa, e Vhalla queria revestir-se com ela.
Daniel notou que sua mão ainda estava na dela e se afastou
rapidamente. A julgar pelos olhares de canto de Craig e Baldair, ele
foi o último a perceber.
Vhalla relaxou o aperto nas rédeas. — Então, pensei que a
Guarda Dourada fosse maior do que três pessoas.
— No total, somos cinco, — afirmou Daniel. Ele parecia tão
aliviado quanto ela por mudar o rumo da conversa.
— Os outros dois estão na frente de batalha — Craig completou.
— O Tenente-Major Jax Wendyl e o Lorde Erion Le'Dan.
— Tenente-Major Jax? — Vhalla já ouviu o nome antes. — Da
Legião Negra?
— Ele mesmo. — Daniel assentiu.
— Mas ele é um feiticeiro, — ela apontou o óbvio.
— O que? — O Príncipe Baldair ofegou. — Ele escondeu isso de
mim esse tempo todo?
Daniel e Craig começaram a rir, e até Vhalla abriu um sorriso
envergonhado.
— Ele é um feiticeiro. — O príncipe assentiu, olhando para
frente. — Mas ele também é um bom homem. — O príncipe de ouro
virou-se para ela, olhando para Craig e Daniel. — Você vai descobrir
que eu só me cerco de bons homens, Vhalla.
Raylynn bufou.
— E mulheres. — Príncipe Baldair riu e voltou-se para a
espadachim.
Vhalla passou o resto do dia aprendendo sobre a história da
Guarda Dourada. O príncipe Baldair a colocou em vigor quando
menino junto com Lorde Erion Le'Dan e, na época, era
principalmente uma piada entre dois jovens. Mas quando a guerra
do Norte começou, ele recorreu ao amigo para sobreviver à frente
de batalha. Lentamente, outros homens e uma mulher foram
adicionados, aqueles que foram considerados os mais habilidosos e
valiosos.
Daniel fora a adição mais recente depois de assumir o comando
durante uma batalha quando ninguém mais o faria, evitando uma
derrota brutal no Norte e salvando a vida do príncipe no processo.
Vhalla não fazia ideia de que o Oriental com quem estivera
refletindo sobre o cultivo de batatas e conversando sobre o festival
de Paca era um lorde. Daniel parecia desconfortável com a ideia,
assegurando-lhe que não deveria tratá-lo de maneira diferente.
Ela não tinha percebido quanto tempo tinha se passado até a
corneta tocar, dando o sinal de parada. Daniel riu também, dizendo
que tinha perdido a noção do tempo. Ele a convidou para jantar,
proposta que Vhalla recusou devido à culpa por ter abandonado
Larel e Fritz o dia inteiro. Antes que partisse, ele a convidou para
cavalgar com ele de novo e, lembrando-se de Aldrik e Elecia juntos,
Vhalla não pôde recusar de imediato.
— Então, nós meio que descobrimos algo sobre Elecia hoje, —
disse Fritz quando eles terminavam de montar suas tendas.
— O que? — Vhalla não tinha certeza se queria saber.
Larel tinha um brilho de advertência em seus olhos.
— Estávamos conversando com os soldados de infantaria, —
continuou Fritz, não percebendo a apreensão de ambas as
mulheres. — E, aparentemente, eles já viram Elecia antes.
— Viram? — Vhalla perguntou.
— Vira e mexe ela têm estado no palácio - isso desde que o
príncipe era jovem, segundo um deles, — explicou Fritz.
Vhalla não sabia por que esse fato a enchia de tanto receio.
— Como se soldados comuns soubessem de alguma coisa, —
Larel murmurou, terminando de colocar seu saco de dormir.
— Sim, mas você tem que admitir que Elecia e o...
— E quem? — A própria mulher terminou por ele, e os três se
viraram, surpresos.
— E, hum... — Fritz era um rato na armadilha de um gato alegre.
— E o príncipe, — Larel terminou sem medo.
Para seu crédito, Elecia só se surpreendeu por um breve
momento. Vhalla fez uma nota mental de que a menção direta à
uma conexão entre Elecia e Aldrik fez a mulher congelar por um
segundo. — Falando no príncipe, ele disse que a treinará hoje à
noite. — Seus olhos caíram em Vhalla, dizendo muito sem emitir
nenhum som. — Então vamos acabar logo com essa catástrofe.
Durante a caminhada para encontrar Aldrik na floresta, Vhalla
refletiu sobre Elecia e ele. As pessoas já estavam falando sobre os
dois. E se houvesse uma história entre eles? E se Larel estivesse
errada e não fosse apenas fofoca de acampamento? Sua mente
ficou envolta nessa idéia e começou a vagar, só parando quando
Aldrik começou a falar.
— Suas noites serão metade treinando seus corpos físicos,
metade treinando suas proezas mágicas, — declarou ele enquanto
andava ao redor de Vhalla, Larel e Fritz. — Se os três têm alguma
esperança de entrar e sair do Norte vivos, precisarão de cada
minuto de treinamento que eu puder dar a vocês.
Elecia se afastou para o lado, sendo uma exceção às palavras
de Aldrik.
— Se retrucarem ou recusarem, vou reconsiderar minha
benevolência em ser seu professor.
Sua voz era a do príncipe, e não a do Aldrik que ela conhecia.
Vhalla olhou para Fritz, se perguntando se era apenas por causa
dele. Larel era amiga de Aldrik; Elecia claramente tinha alguma
conexão com ele; e Vhalla era…
O que ela era?
Essa pergunta ecoou em sua mente enquanto eles iniciavam o
treinamento físico. Ela ficou em sua cabeça até Vhalla ter que se
focar apenas em não passar mal por conta de tanto correr e pular.
Aldrik se recusou a deixá-los tirar a armadura; o treinamento físico
deles exigia isso, ele disse. Fritz foi o primeiro a entrar em colapso,
ganhando sua ira.
— Charem, levante-se. — Aldrik suspirou, encostando-se a uma
árvore. — Ou você prefere ser despedaçado pedaço à pedaço pelos
clãs Nortenhos? Ou talvez por um Noru?
Fritz lutou para ficar de pé. Vhalla e Larel estavam ofegantes.
Larel estava muito mais em forma do que Vhalla, que sentia como
se pudesse desmaiar a qualquer momento.
— Certo então. — Aldrik compartilhou um longo olhar com
Elecia. — Elecia, Vhalla, em par.
— O que? — As duas mulheres exclamaram em uníssono.
— Isso é uma ordem. — Aldrik se afastou da árvore, olhando
para Elecia. — Eu confio em você para transmitir seu conhecimento
e habilidade. — A mulher de pele escura revirou os olhos, mas não
se opôs uma segunda vez. Aldrik nem olhou para Vhalla, não dando
a ela chance de dizer nada. Vhalla decidiu que tinha feito algo
terrível para ofender o príncipe, mas não conseguia imaginar o que
pudesse ter sido. A única coisa na qual conseguia pensar era na
Ligação. Mas isso tinha sido ideia dele. E de todas as palavras que
Vhalla poderia usar para descrever o que tinha acontecido entre
eles na noite anterior, nenhuma seria negativa.
— Larel, você pode me dizer como um Domador de Fogo luta?
— Aldrik perguntou.
— Combate corpo a corpo com ataques ocasionais de longo
alcance, — respondeu Larel.
— E Magistrais da Água? — O príncipe assentiu e virou-se para
Fritz.
— Uma mistura de ataques congelantes ofensivos e ilusões
defensivas, — Fritz soou como se tivesse citado de um livro.
— E Mestres da Terra? — Aldrik virou-se para Elecia.
— Magia eminentemente defensiva, pele petrificada
impenetrável aos ataques de lâmina e à maioria dos ataques de
gelo ou fogo, combinada com habilidades em armas. — A mulher
apoiou as mãos nas coxas, e Vhalla notou que os sulcos nas grevas
da outra mulher não eram decorativos. Ela havia subestimado isso
antes, mas Elecia tinha duas espadas curtas amarradas às pernas.
— Quanto à Andarilhos do Vento... — A voz do príncipe vacilou
um pouco quando se virou para Vhalla. O peito dela estava
apertado, esperando que ele terminasse seu pensamento. — Vamos
descobrir.
Eles passaram o resto da noite repassando socos e esquivas
básicos. Elecia parecia tão descontente por ter que ajudá-la quanto
Vhalla estava por receber sua ajuda. A mulher foi breve e manteve
seus comentários curtos. Mas mesmo através de lábios franzidos e
olhares de desaprovação, Vhalla estava aprendendo.
A mulher de cabelos cacheados era claramente experiente em
combate. Ela se movia com leveza, facilidade e nunca chegou a
suar. Ela nunca cometeu um único erro e nunca ficou sem fôlego.
Tudo nela parecia dar nos nervos de Vhalla.
Era a vez de Vhalla praticar ataques e Elecia se esquivar e
desviar. Elecia achava tudo divertido. Ela tinha esse jeito irritante
que fazia parecer que ela era melhor que todos os outros. Ela
monopolizou o tempo e a atenção de Aldrik. Seus movimentos eram
impecáveis. Ela tinha uma desenvoltura elegante em relação à tudo,
algo que Vhalla só tinha visto a realeza exalar. Vhalla oscilou
amplamente e Elecia deu um pequeno soco em uma abertura em
seu ombro. Ela deu um passo para trás e olhou para Elecia.
Vhalla piscou em choque por não ter montado o quebra cabeças
antes. Ela não tinha provas, mas algo em suas entranhas lhe dizia
que ela não estava errada. Os rumores de que ela esteve no
palácio, a atitude casual em relação à realeza, tudo fazia sentido.
Somente pessoas que vinham da riqueza e da opulência agiam da
maneira que Elecia agia. Como se o mundo fosse um brinquedo
para o seu entretenimento.
— O que foi? — Elecia perguntou. — Já está desistindo?
Vhalla voltou ao ataque. — Elecia. — Ela deu um soco, a outra
mulher se esquivou. — Diga-me - quantos anos - você tinha -
quando veio - pela primeira vez - ao palácio? — Suas palavras
foram pontuadas com os punhos.
Elecia deu um passo para trás e parou. — Do que você está
falando? — A mulher arqueou uma sobrancelha.
— Foi para um baile? Ou seu pai ou sua mãe estavam numa
viagem de assuntos oficiais?
Os olhos de Elecia se arregalaram e Vhalla reiniciou os ataques.
A mulher se recuperou lentamente e seus bloqueios ficaram
subitamente desleixados. — Você dormiu em uma suíte de
hóspedes? — Ela jogou o punho direito. — Ou sua família ficou em
outro lugar na parte alta da cidade?
Uma franzir irritado tomou conta dos lábios de Elecia. — Eu não
sei do que você está falando.
— E você é uma péssima mentirosa — cuspiu Vhalla.
Elecia olhou para ela em choque. — E você, Vhalla Yarl? Como
exatamente você, que não chega a ser nem um projeto de plebéia,
chamou a atenção do príncipe herdeiro? Uma ninguém como você
confraternizando com ele!
Isso chamou a atenção de Aldrik. Ele rapidamente se aproximou
de onde Larel e Fritz duelavam.
— Você deve saber que não merece nem...
Vhalla se lançou com um grito, não deixando Elecia terminar
outra palavra que a ferisse. Elecia se esquivou facilmente e atingiu
um punho no estômago dela. O braço da mulher parecia uma pedra
afundando em seu abdômen, e Vhalla ofegou por ar ao invés de
gritar.
— Elecia! — Aldrik gritou enquanto Vhalla se dobrava,
segurando a barriga e tossindo. Ele rapidamente atravessou o
espaço que faltava, ficando entre as duas mulheres.
— Você acha que isso... — Elecia apontou um dedo na direção
de Vhalla — ....algum dia será alguma coisa? — Ela jogou a cabeça
para trás e riu.
— Elecia, pare com isso, — Aldrik rosnou.
— Ah sim, defenda seu animal de estimação, — ela zombou em
resposta.
Larel e Fritz olharam em choque..
— Elecia, — ele grunhiu entre dentes, as mãos cerradas em
punhos.
— Você finalmente vai lutar comigo? Eu estive esperando por um
verdadeiro desafio. — A mulher de pele escura disse, erguendo os
punhos. — Faz muito tempo desde a última vez que tivemos
algumas rodadas.
Vhalla conseguiu se erguer nos joelhos, ainda segurando o
estômago enquanto o mesmo tinha espasmos de dor.
Aldrik foi até Elecia pisando duro e a agarrou pela gola da
armadura. Ele a puxou em sua direção e se inclinou para colocar o
rosto bem à frente do dela. — Se quer que eu lute com você como
um adulto, agir como uma criança petulante não é o modo de
conseguir isso, ‘Cia.”
Elecia o afastou com uma carranca e um balançar de cabeça. —
Tudo bem, — disse ela com um brilho nos olhos. — Pode continuar
brincando e fazendo os seus joguinhos com eles, Aldrik, — ela
cuspiu de volta.
Vhalla sentiu a boca se abrir em choque com o uso informal do
nome de Aldrik pela outra mulher.
— Mas - eu vou lhe dizer novamente - essa vadia pobre não vale
nem uma gota do que você dá a ela. — Elecia virou-se e trotou
ruidosamente floresta adentro. Os arbustos e as árvores se
encolhiam ao seu redor antes de voltarem ao lugar, ainda mais
cobertos de vegetação e espinhos do que antes.
Aldrik suspirou e beliscou a ponte do nariz, dando a si próprio um
momento antes de virar e se ajoelhar na frente de Vhalla. — Você
está bem? — Ele perguntou.
Ela assentiu. Seu estômago ainda parecia estar virado do
avesso. Fritz e Larel pairavam a alguns metros deles, em óbvia
incerteza.
— Deixe-me ver. — O príncipe estendeu a mão e Vhalla retirou a
dela. Doía endireitar as costas. — Tire a sua armadura — ordenou
Aldrik, e ela começou a mexer nas travas da frente. — Aqui, — ele
disse suavemente e alcançou os fechos, ajudando-a com as travas
da parte inferior. Vhalla encolheu os ombros, deixando o cabelo cair
na frente do rosto e esconder sua vergonha.
Aldrik pegou sua couraça de escamas; algumas das pequenas
placas estavam amassadas ao redor do abdômen.
Ele suspirou audivelmente. — Vou consertar isso hoje à noite, e
vou te devolver pela manhã.
Ela olhou para a cota de malha; parecia não ter sido danificada.
Houve um momento de silêncio e a brisa suave da noite bagunçou
seus cabelos. Aldrik estendeu a mão e apertou o ombro dela.
— Ela é... — Ele suspirou. — Não preste atenção no que ela diz.
Vhalla assentiu em silêncio. Era uma ideia agradável. Mas uma
vez que algumas coisas eram ditas, nunca poderiam ser retiradas, e
a breve troca de farpas já se repetia em seus ouvidos.
Aldrik acenou em resposta antes de se levantar, virando-se para
um Fritz e uma Laurel silenciosamente chocados. — Larel, leve-a de
volta à tenda. Talvez você tenha que queimar um ou dois desses
arbustos superdesenvolvidos. — Ele olhou para o caminho por onde
Elecia tinha ido. — Fritz, venha comigo. Tenho certeza de que
Vhalla tem uma hemorragia interna por causa de um golpe como
aquele, e não vou fazê-la andar a cavalo amanhã sem que ela tome
uma poção esta noite.
Os dois assentiram e Larel passou o braço de Vhalla pelo
pescoço, ajudando-a a se levantar.
— Não está tão ruim assim, — insistiu Vhalla suavemente, não
querendo fazer uma cena.
— Não há vergonha em aceitar ajuda. Essa marcha é longa
demais para agir como durona agora — disse Larel severamente,
mas com gentileza.
— Ouça essa garota, Vhalla. Ela tem bastante juízo na cabeça.
— Aldrik apontou para Larel, e Vhalla viu o rosto da mulher
Ocidental dar um pequeno sorriso. — Fritz, venha, — ele ordenou
rapidamente, e os dois foram em uma direção diferente.
Assim como Aldrik havia dito, a vegetação precisou ser
queimada em alguns lugares. Estava cheio de trepadeiras quase tão
grossas quanto o pulso de Vhalla, bloqueando a rota direta mais
curta para voltar ao acampamento. Larel usou intensas rajadas de
fogo para incinerar e deixar o caminho limpo.
— Os Mestres da Terra podem alterar árvores e plantas? —
Vhalla perguntou.
— Alguns podem. — Larel assentiu.
Elas não falaram novamente durante o resto da caminhada de
volta à tenda. Larel se ofereceu para ajudar Vhalla a vestir suas
roupas de dormir, mas Vhalla insistiu que poderia fazer isso sozinha.
As palavras de Elecia passaram por sua cabeça. A conversa rendeu
muita informação para dissecar. Um hematoma num tom roxo
doentio já se formava em seu estômago.
Vhalla mal tinha terminado de vestir uma camisa de dormir de
mangas compridas quando houve um tapinha na haste da barraca.
— Vhal? Larel? — Fritz perguntou incerto.
— Está tudo bem, Fritz — disse Vhalla, e ele enfiou a cabeça na
tenda. Larel mudou de lugar para dar espaço suficiente para ele se
sentar. Estava lotado com os três.
— Aqui, o príncipe me disse para dar isso a você. — Ele
entregou a ela um pequeno frasco de madeira.
— Obrigada, — ela disse suavemente, pegando-o e engolindo o
seu conteúdo rapidamente. Ela reconheceu o gosto ardente dessa
poção em particular e estremeceu um pouco. Vhalla estava
começando a suspeitar que os clérigos curavam tudo com esse
líquido mágico. — Desculpe por ser um incômodo.
— Está tudo bem, — Larel consolou. — Isso não foi culpa sua.
— O que exatamente aconteceu? — Perguntou Fritz.
Larel deu uma cotovelada nas costelas dele. — Não é da nossa
conta, — ela repreendeu.
Vhalla torceu os dedos.
— Tá, tá. Espero que se sinta melhor em breve. — Ele estendeu
a mão, bagunçou os cabelos de Vhalla e ajoelhou para se arrastar
para fora da barraca.
— Espere, — Vhalla o deteve. Havia uma sensação doentia em
seu estômago, mas Vhalla achou que tinha mais a ver com seu
nervosismo. — Espere, — ela repetiu novamente quando ele se
sentou. Vhalla passou o frasco de mão em mão, incerta sobre suas
próximas palavras. Mas Fritz e Larel já haviam provado que eram
gentis e leais. Ela respirou fundo.
— Vhalla, você não precisa... — Larel pareceu sentir sua
ansiedade.
— Estamos Vinculados, — disse Vhalla diretamente, cuspindo a
frase antes que perdesse a determinação.
Ambos a encararam em choque e confusos.
— Espere, o que? — Fritz tinha uma expressão estúpida no
rosto.
— Você e... — Larel sussurrou, sua voz falhando antes que
pudesse sequer terminar a frase.
— Aldrik. — Vhalla xingou em voz alta. — O príncipe. — Ela
balançou a cabeça; já era tarde demais e ela já tinha ido muito longe
para voltar atrás. — Aldrik e eu estamos Vinculados. — Vhalla
desviou o olhar. Ela mal entendia o que significava estar Vinculada,
então como eles reagiriam ainda era uma incógnita. Os dois a
encararam de boca aberta, chocados e em silêncio. — Bem, digam
alguma coisa, — ela suspirou.
— Você tem certeza? — Perguntou Larel.
— Bastante, — afirmou ela, lembrando da sua aula de Ligação.
— Ele sabe disso? — Perguntou Fritz.
Larel deu um tapa na parte de trás da cabeça dele. — Claro que
sim, — ela repreendeu.
— Como? — Perguntou Fritz. A mulher Ocidental lançou-lhe um
olhar afiado. — Eu sei como um Vínculo funciona, tipo, em teoria.
Mas como você se Vinculou ao príncipe, de todas as pessoas?
— Eu não entendo tudo totalmente ainda. — Vhalla pensou em
uma noite na biblioteca, uma noite que parecia ter acontecido há
uma eternidade. — Foi quando ele voltou.
— Da frente de batalha? No verão? — Larel parecia já estar
juntando as peças do quebra cabeças.
Vhalla assentiu. — Eu estava trabalhando na biblioteca e... —
Vhalla fez uma pausa, deixando de fora que, na verdade, ela achava
que estava salvando um príncipe diferente. — Eu queria salvá-lo, e
daria qualquer coisa para isso. Ele disse que escrevi magia ou fiz
receptáculos - não tenho certeza. Algo em relação à isso abriu uma
conexão e isso formou um Vínculo. — Ela se remexeu, tentando não
permitir que a conversa que ela própria começara a deixasse
desconfortável.
— Isso é incrível, — Fritz sussurrou.
— Então é por isso - é por isso que as coisas são diferentes
conosco. — Ela não tinha mais certeza do por que confidenciou isso
a seus amigos.
— Como é estar Vinculado? — Perguntou Fritz.
— É difícil de explicar, — confessou Vhalla. — Eu nunca conheci
magia sem estar Vinculada. Então é normal para mim.
— Você Manifestou rapidamente, — apontou Larel. — Até o
ministro ficou chocado, mas faria sentido se você tivesse um Vínculo
com alguém como o Príncipe Aldrik.
— Também foi como... — Vhalla hesitou em compartilhar a noite
anterior com eles, mas ela estava muito envolvida para se conter
agora. — Durante nossa aula de Viabilização, ele me mostrou como
Viabilizar.
— Bem, é claro. — Fritz claramente não entendeu.
— Não. — Vhalla balançou a cabeça. — Ele me mostrou.
Enquanto estávamos Ligados.
Se Vhalla não havia entendido a gravidade de uma Ligação
antes, ela entendeu naquele segundo. Fritz e Larel olharam para ela
com uma combinação de choque, admiração e - o que era mais
enervante - um toque de medo. Vhalla juntou as mãos, torcendo-as
bruscamente.
— Isso é... possível? — Fritz perguntou, finalmente.
— Suponho que sim? Eu só tenho como base o que Aldrik me
disse. — Os olhos de Vhalla dispararam entre os dois,
desesperados para desencadear mais alguma conversa, para que
eles parassem de olhá-la como se tivesse surgido uma segunda
cabeça acima do seu pescoço. — O que isso significa?
— Eu só li sobre. — Pedir a Fritz que recitasse coisas dos livros
tinha o mesmo efeito nele que em Vhalla. Sua mente começou a se
agitar mais uma vez. — A literatura sobre Vínculo é muito esparsa,
porque a maioria das pessoas que tenta criar um Vínculo falha e
uma das pessoas morre no processo. Mas a Ligação é
supostamente um estado de consciência ou percepção mesclada.
— Isso parece correto. — Vhalla assentiu em afirmação.
— Não acredito que ele fez isso. — Fritz acariciou a curta barba
por fazer em sua mandíbula. — É supostamente um processo
arriscado.
— Arriscado? — Vhalla perguntou.
— Novamente, eu apenas li sobre isso... Mas se o Vínculo não
for sólido, completo, se as duas pessoas forem Vinculadas mas não
compatíveis, ou se... — Ele fez uma pausa, censurando-se. — Bem,
existem outras coisas que podem ajudar ou prejudicar o processo
todo. Mas ouvi dizer que isso poderia resultar em uma pessoa se
perdendo na outra. Você acaba com um deles ficando em estado
vegetativo, enquanto o outro enlouquece com os barulhos em sua
cabeça.
Vhalla olhou em choque e depois começou a rir. — Riscos são
algo que o príncipe não mede quando se trata de assumi-los, —
assegurou ela - e isso parecia resumir adequadamente todo o
relacionamento dos dois.
— Por que você nos contou? — Perguntou Larel. — Não consigo
imaginar que o príncipe ficará satisfeito com isso.
Vhalla honestamente não considerou esse fato. — Porque vocês
dois são meus amigos. Eu confio em vocês e quero que saibam
disso. Pra que ter amigos se você não pode compartilhar seus
segredos com eles?
— Minha boca é um túmulo. — Fritz agarrou sua mão e ela
sorriu para seus olhos gentis.
— Você sabe que tem o meu silêncio, — afirmou Larel com um
aceno de cabeça.
— Mas você sabe que eu vou ficar perguntando sobre isso, né?
— Fritz deu seu típico sorriso bobo e cheio de dentes.
Vhalla não pôde deixar de sorrir de volta. — Vou responder da
melhor maneira que puder, — prometeu Vhalla. — Falar sobre isso
pode até ser legal.
Fritz foi embora pouco tempo depois. Ele abraçou apertado
Vhalla e Larel ao mesmo tempo, e Vhalla desejou que ele pudesse
ficar com as duas. Ela, de modo egoísta, queria passar a noite entre
ele e Larel. Mas Vhalla não fez nenhuma exigência. Na melhor das
hipóteses, ela apenas o acordaria quando se debatesse por conta
de seus de pesadelos.
F RITZ DEVOLVEU A ARMADURA DE VHALLA na manhã seguinte,
deixando a garota em conflito e insegura uma vez mais. O
príncipe era uma criatura estranha. Às vezes, parecia que se
preocupava com ela acima de tudo e de todos, como quando Elecia
deu seu golpe baixo. Outras vezes, como durante todo o dia de
cavalgada, parecia que ele nem a queria por perto.
Se ele estava tentando evitá-la, então estava destinado ao
fracasso. Aldrik a via todas as noites quando treinavam juntos e
talvez esse fato o frustrasse, porque o príncipe forçou seus três
alunos para além de todos os limites de cansaço possíveis e os fez
chegar à níveis de exaustão que Vhalla nunca havia conhecido
antes. O segundo dia de treinamento foi mais difícil que o primeiro, e
o terceiro foi mais difícil que o segundo. Na quarta manhã, Vhalla
tinha certeza de que não conseguiria sair da cama; ela quase
chegou atrasada por conta do tempo que demoraram para
conseguir persuadi-la a ir para a sela.
Aldrik teve o bom senso de não colocar Vhalla e Elecia em par
novamente; elas foram mantidas em extremidades opostas dos
ringues improvisados nos quais treinavam. Vhalla estava agradecida
por ter tido a oportunidade de trabalhar com Fritz, mas sentia pena
de Larel por ter de suportar os golpes e escárnios da outra mulher
Ocidental. Se Aldrik estava chateado com Elecia, não demonstrou.
Ele ainda cavalgava com ela durante o dia e nunca a mandava
embora do treinamento.
Em suma, isso fazia Vhalla se sentir pior. Ela ainda se lembrava
do que Elecia havia dito sobre suas origens e de suas perguntas
sobre por que Aldrik sequer estava passando algum tempo com
Vhalla. Isso a fez duvidar de tudo, e depois se sentiu culpada por
duvidar de Aldrik depois de tudo o que ele havia feito por ela. Mas
ela não sabia como se sentir, e Aldrik não estava a ajudando a
resolver o problema.
Então, durante o dia, ela passou a cavalgar com a Guarda
Dourada. Daniel e Craig sempre foram acolhedores, e até o príncipe
Baldair parecia mais satisfeito do que descontente pela
permanência de Vhalla em torno deles. Até mesmo Raylynn estava
começando a ceder. Era uma rotina estranha a qual Vhalla tinha se
metido; ela não a chamaria de pacífica, mas com o tempo tudo ficou
mais fácil. Até seus sonhos começaram a ficar menos ruins.
Ou assim ela pensara.
Um mês de marcha, e Vhalla acordou numa noite tremendo e
com calafrios, apesar da temperatura ficando cada vez mais quente
devido à proximidade do exército em relação ao Deserto Ocidental.
Medo tomou conta de si, mas de alguma forma ela conseguiu não
acordar Larel. Vhalla respirou em grandes lufadas de ar. Ela olhou
para baixo, para os próprios pulsos.
O sonho foi tão vívido quanto suas memórias da Noite de Fogo e
Vento. Sua mente disse que ela já havia sentido aquilo antes. Os
barulhos, cheiros e toques eram todos familiares. E, ainda assim,
Vhalla nunca tinha visto ou feito nada parecido.
Ela estava em um cômodo opulento, sombrio com a melancolia
opressiva. Uma tempestade atingia as janelas de vidro e ela estava
ensopada. Vhalla estremeceu, agarrando os braços para se
proteger do arrepio fantasma. E então ela enfiou uma faca em sua
própria carne.
Vhalla estava olhando para os antebraços novamente.
O sangue escarlate que havia manchado a pele pálida e o
carpete branco não era o que se destacava mais em sua memória.
Era o medo, a culpa avassaladora que ela tinha sentido e -
principalmente - quando ela viu seus olhos no reflexo da lâmina - e
eles não eram os seus olhos.
Vhalla cobriu o rosto com as palmas das mãos. Foi só um sonho,
ela repetiu de novo e de novo. Mas ela ainda podia sentir a lâmina
cortando a pele pálida. Ela podia ver a criada do palácio entrando
correndo, horrorizada e desesperada.
Vhalla ficou de pé e saiu da tenda.
Ainda havia pelo menos uma hora antes do amanhecer e o
mundo ainda estava escuro. Vhalla correu pelo acampamento
silencioso, com os pés descalços e as roupas úmidas de suor. Seu
coração disparou e sua mente não permitiu que ela se acalmasse,
não até que soubesse que ele estava bem. Ela não se importava se
Aldrik ainda estava irritado com ela. Ela tinha que vê-lo.
Bater na porta - ou na haste que segurava as abas da tenda - do
príncipe herdeiro antes do amanhecer era algo tolo a se fazer, mas
isso não a impediu. Vhalla juntou as mãos, torcendo os dedos
durante o que parecia ser uma eternidade enquanto esperava. —
Meu príncipe? — Sua voz estava tensa de preocupação. Vhalla
lutou contra um gemido. — Aldrik?
Para o seu alívio, ela ouviu uma leve agitação vinda de dentro da
tenda. A lona tremulou quando as amarras no interior foram
desfeitas. Aldrik abriu a aba, aborrecido. Com a outra mão ele
puxava a barra da camisa para baixo, terminando de vesti-la.
— Vhalla? — Ele esfregou os olhos para espantar o sono como
se não estivesse enxergando direito, sua irritação desaparecendo
rapidamente.
Ela sentiu algo dentro de si romper com o alívio, e cobriu a boca
com as mãos para abafar um pequeno soluço. Aldrik deu uma
olhada em seu rosto tomado pelo pânico e, com um rápido olhar
para garantir que não haviam observadores, ele agarrou a mão dela
e a puxou para dentro da tenda.
No momento em que ele soltou a pesada aba de lona, os dois
foram mergulhados na escuridão. Ela piscou diante da penumbra. A
cama dele estava uma bagunça de cobertores; papéis e garrafas
vazias desordenavam sua mesa.
Aldrik rapidamente a rodeou e colocou as mãos em seus
ombros. Ele a inspecionou dos pés à cabeça. — O que foi? — Sua
voz estava tensa. — Você está machucada? — Aldrik botou uma
mão na testa dela e a deslizou pelo seu rosto, para inclinar o queixo
de Vhalla e fazê-la olhar para ele.
A sensação de alívio ainda era forte demais para se sentir
envergonhada. — Eu estou bem, — ela conseguiu dizer,
fracamente. Vhalla estendeu a mão e agarrou os dois pulsos dele.
Ela soltou um barulho que era algo entre uma risada e um suspiro
quando viu que as mangas da camisa dele não tinham sinais de
sangue. — Estou bem. — Vhalla disse. — Eu pensei que você...
— Eu o quê? — Ele perguntou. Aldrik estava claramente
confuso, mas o príncipe não fez nenhum movimento para se afastar.
— Não importa. — Ela riu forçadamente. — Foi um sonho. Uma
coisa ruim... Eu achei que você estava machucado. Mas foi apenas
um sonho.
Aldrik fez uma pausa antes de mover as mãos para segurar
ambos os lados de seu rosto. Ele passou os polegares por suas
bochechas manchadas de lágrimas, e Vhalla apreciou os olhos dele
sobre ela pelo que pareceu ser a primeira vez numa eternidade. —
Eu estou bem, — ele sussurrou. — Veja, eu estou bem.
Sua ternura a fez soltar um pequeno soluço que estava preso, e
ela apertou os antebraços dele. — Eu estava com medo, — ela
admitiu. Os olhos dele se arregalaram. — Eu pensei... — Ela se
engasgou com as palavras.
— O que? Pensou o que?
Vhalla encarou seu olhar interrogativo. — Nada, — disse ela
balançando a cabeça. — Não importa; você está bem.
— Vhalla, — ele insistiu, as mãos no rosto dela impedindo-a de
desviar o olhar.
— Eu estava com medo de ter perdido você. — As palavras
foram como uma flecha no coração do silêncio que florescia entre
eles. E palavras, assim como as flechas, uma vez lançadas, não
podiam ser recuperadas. Vhalla confessara tanto para ele quanto
para si mesma. A verdade de sua admissão lentamente ficava clara
para os dois. Ela sentiu o queixo tremer. — Sinto muito, eu não
deveria ter incomodado você.
Ela soltou os braços dele e se afastou, pronta para sair. As
orelhas de Vhalla ardiam de vergonha e a garota abaixou a cabeça.
O que tinha dado nela? Por que ela havia vindo? Ele deixara claro
por dias a fio que ela havia feito algo para ofendê-lo. Que ele não
queria a presença dela.
Aldrik fechou o espaço entre eles. Curvando-se um pouco, ele
enrolou um braço em volta de sua cintura e envolveu o outro em
volta de seus ombros. Vhalla ofegou e sentiu o cheiro da camisa
dele enquanto seu rosto pressionava contra o peitoral masculino.
Ele a segurou lá e respirou fundo algumas vezes. Vhalla sentiu o
peito contra o qual estava pressionada se mover sob sua bochecha
e ouviu o batimento cardíaco dele acelerar. Incerta, levantou as
mãos e agarrou a parte de trás da camisa de Aldrik. Ele não a
afastou.
— Eu te disse, sua mulher tola, — ele sussurrou, sua respiração
soprando para longe o embaraço escaldante. — Você vai ter que me
dizer se quiser me perder.
Vhalla apertou os braços em volta dele e fechou os olhos. Seu
contato a acalmou, e ela sentiu o próprio batimento cardíaco reduzir
a velocidade junto ao dele. A mão de Aldrik se moveu e ela sentiu
os dedos do príncipe se perderem em seus cabelos emaranhados
pela manhã.
— Achei que você estava machucada. — Ele riu secamente. —
Eu tinha acabado de... — Aldrik parecia sem palavras. — Eu tive
meu próprio pesadelo, suponho.
Vhalla inalou profundamente. Ele cheirava à fumaça, suor, metal,
couro e algo que era distintamente Aldrik. Ela o sentiu balançar a
cabeça e eles continuaram em silêncio. Ele estava quente atrás do
tecido fino de sua camisa, e ela se apertou mais contra ele.
Ela não tinha certeza de quanto tempo ficaram ali, mas
eventualmente sentiu os braços dele penderem frouxos ao seu
redor. Vhalla quis protestar, mas seu aperto relaxou. Aldrik se
endireitou, mas um braço permaneceu em volta da cintura feminina.
A outra mão se enrolou na parte de trás do pescoço dela.
— Hoje à noite, venha para mim.
Vhalla sentiu as pontas dos dedos dele apertando sua nuca. —
Esta noite? — Ela chiou, sua garganta subitamente seca.
Aldrik ficou de repente tão assustado quanto ela. Seus olhos
perderam parte de sua intensidade e deram lugar à surpresa e
confusão, como se sua boca tivesse falado antes que seu cérebro
pudesse processar a precedente demanda por ela. — Eu te disse
que haviam coisas nas quais queria trabalhar com você.
— É claro. — Vhalla assentiu. Ele tinha estado tão distante que
ela quase esqueceu.
— Você deveria ir, — ele murmurou enquanto as mãos
relaxavam seu aperto nela. Aldrik se afastou. — Antes que muita
gente acorde.
Vhalla assentiu. — Mais uma vez, desculpe por incomodá-lo, —
disse ela suavemente, ficando meio chocada quando começou a
perceber a verdadeira extensão das ações de ambos.
— Está tudo bem, — ele disse gentilmente. — Podemos
conversar melhor depois. — Vhalla assentiu. Aldrik foi até a aba de
sua tenda e deu uma olhada no perímetro. — Parece estar tudo
limpo. — Ele deu um passo para o lado e ela saiu.
Vhalla ouviu a lona se fechar abruptamente atrás de si, e ela se
afastou, sem olhar para trás. Haviam mais algumas pessoas
acordadas e circulando por aí, mas nenhuma lhe deu atenção. O
céu estava colorido em laranjas e azuis; o amanhecer estava
próximo.
Ela vestiu a armadura do lado de fora da barraca, para não
acordar Larel. Sua pele formigava quando deslizou a cota de malha
sobre suas roupas de lã, e Vhalla lembrou a si mesma que devia
respirar. Um sonho a deixara num estado de pânico cego, correndo
para o príncipe herdeiro.
Por quê?
Os dedos de Vhalla vacilaram nas travas da armadura. A
lembrança da dança deles na Noite de Gala voltou rapidamente à
sua memória com uma clareza impressionante. Ele também a
abraçou naquela ocasião e, assim como naquela manhã, ela quis
que o abraço nunca mais terminasse. Ela pressionou uma mão
sobre os olhos, bloqueando o amanhecer com um gemido.
Ela veio do nada e ela era ninguém. Ela não tinha que passar
algum tempo com o príncipe herdeiro, o homem que seria seu futuro
Imperador. Ele não tinha tempo a perder com pessoas como ela. As
palavras de Elecia cimentaram-se ainda mais em sua consciência.
— Vhalla?
Ela nem sequer ouviu Larel despertar.
— Bom dia. — Vhalla terminou de se vestir rapidamente.
— Você está bem?
Era irritante como Larel não perdia nada. — Estou bem. —
Vhalla começou a desmontar a tenda.
— Foi outro sonho? — Perguntou Larel.
— Chega, Larel — Vhalla suspirou e se endireitou. A mulher
Ocidental ficou calada. Vhalla deveria ter ficado também, mas havia
uma sensação dolorida em seu estômago que colocava maldade em
seu sangue. — Por que você está sempre me importunando? Não é
da sua conta o que eu sonho ou não, o que eu como ou não.
O rosto de Larel ficou inexpressivo.
— Só me deixe em paz, pelo menos uma vez. — Vhalla pegou
sua bolsa e saiu correndo, deixando o resto da barraca para Larel.
Ela se odiava por essas palavras. Não era culpa de Larel. A
classe na qual Vhalla havia nascido; a Noite de Fogo e Vento; a
atitude inconstante, confusa e frustrante do príncipe em relação a
Vhalla. Larel não tinha controle sobre nenhuma destas coisas.
Vhalla acabara de despejar suas frustrações em alguém que não
estava esperando por isso.
Vhalla marchou sozinha. Ela encontrou um canto aleatório do
exército para se afastar de Elecia, Aldrik, Fritz, Larel e da Guarda
Dourada. Fritz percebeu instantaneamente e estava prestes a ir em
sua direção quando Larel o deteve. Eles logo se envolveram em
uma conversa acalorada que Vhalla tentou ignorar. Estavam
claramente falando sobre ela.
Quando a marcha do dia cessou, Vhalla imaginou cada possível
coisa que Larel, Fritz e Aldrik poderiam ter dito sobre ela. Algumas
delas a fizeram se sentir culpada por sequer pensar que eles diriam
tal coisa, mas de alguma forma ainda pareciam plausíveis. Os
ombros de Vhalla se curvaram e sua cabeça pendeu para frente. De
repente ela se sentia tão cansada.
— Vhalla. — Ela levantou a cabeça de supetão, virando-se para
olhar para o príncipe das trevas que havia se materializado ao seu
lado. — Depois que todos estiverem estabelecidos, venha à minha
tenda e começaremos a trabalhar.
Ele ainda não tinha especificado qual trabalho seria esse, e
Vhalla se sentiu estranha sob sua avaliação estudiosa. Depois de
vagar pelo acampamento, esperando que Larel e Fritz se
afastassem para poder tirar sua armadura afim de evitar confrontos
estranhos, Vhalla finalmente arrastou os pés até a tenda de Aldrik.
Ela foi com a mesma roupa de lã na qual usara pela manhã - a
mesma que ela usava há dias.
A aba da tenda estava aberta e Vhalla parou educadamente na
entrada.
— Meu príncipe? — Ela perguntou suavemente. — Cheguei
muito cedo?
Ele estava sentado à pequena mesa escrevendo em um pedaço
de papel diante dele. Sua armadura estava apoiada no suporte do
lado oposto à entrada, e Aldrik estava vestindo uma calça marrom e
uma camisa branca de algodão. — Não, você chegou na hora,
Vhalla. — Ele olhou para ela brevemente. — Feche a entrada atrás
de você. — O príncipe apontou para as amarras internas que
seguravam a aba aberta, e ela obedeceu.
Vhalla ficou momentaneamente sobrepujada por conta da última
vez em que esteve no espaço dele. Ela rapidamente cruzou o
espaço e se sentou em uma almofada em frente à ele. Inclinando a
cabeça, Vhalla avaliou o príncipe, tentando descobrir o que estava
diferente.
— O que foi? — Ele perguntou sem desviar o olhar do que
estava fazendo.
— Você não está vestindo nada preto, — ela percebeu.
Aldrik fez uma pausa e considerou suas próprias roupas. —
Suponho que não estou mesmo. — Ele terminou de escrever e
dobrou o papel duas vezes, colocando-o de lado.
— É estranho, — disse ela, pensativa.
— É? — Aldrik apoiou o cotovelo na mesa, a bochecha no
punho.
— Você está sempre de preto, — explicou ela.
— Isso não é verdade. — Ele balançou a cabeça.
— Sim, você está, — insistiu Vhalla.
— Eu visto preto em público.
— Por quê?
— Talvez eu lhe diga, se você me disser que nuvem carregada é
essa que está sobre a sua cabeça. — Claramente, seu dia de mau
humor não havia passado despercebido por ele.
— Eu prefiro não falar sobre isso, — murmurou.
— Eu preferiria que você falasse. — Ele se inclinou para frente.
— Foi o sonho?
— Por que todo mundo está tão obcecado com os meus
sonhos? — Vhalla se encolheu.
— Porque nós nos importamos com você, — explicou Aldrik.
— Nós? — ela repetiu.
— Fritz, Larel e eu.
— Por que... — Por que ele insistia em se importar com ela? —
Bem, vocês deveriam parar.
— Isso não é...
— Achei que tivesse vindo aqui para trabalhar em algo com
você. — Vhalla ficou de pé. — Não vou fazer isso de novo, Aldrik.
Não vou deixar você me manipular outra vez.
— Sim, sim, é claro, minha lady. — Ele acenou com a mão.
— Não brinque comigo. — Isso atingiu um nervo sensível dentro
dela.
— Você não é uma lady? — Ele perguntou.
— Eu sou uma mulher, — disse Vhalla, revirando os olhos. —
Mas não sou uma lady.
— Tudo bem então, minha princesa. — Ele sorriu.
— Pare, — advertiu Vhalla.
— Por que, minha rainha?
Ela já tinha aguentado o suficiente e estava a meio caminho da
porta quando Aldrik agarrou o seu pulso. Vhalla nem se deu ao
trabalho de virar e olhar para ele.
— São apenas palavras. — O timbre da voz dele era baixo e
profundo.
— Não são. — Ela pensou em todos os lordes e damas que via
no palácio, o quão diferente se sentiu na Noite da Gala. Títulos eram
mais do que apenas palavras. Eram paredes e barreiras e
parapeitos para erguer algumas pessoas e manter outras do lado de
fora.
— Olhe para mim. — Ele ordenou e ela obedeceu. — Eu poderia
te dar qualquer uma delas.
— Não funciona assim.
— Funciona. — Ela cometeu o erro de focar sua atenção nele, e
o olhar sério de Aldrik consumiu tudo. — Um dia, serei o Imperador.
Eu vou poder torná-la qualquer coisa que queira.
— Por quê? — Vhalla sussurrou.
— Porque... — Ele ficou momentaneamente sem palavras. Então
o príncipe fez algo que era conhecido por evitar fazer. Ele encontrou
o seu olhar e mostrou à ela a verdade em cada palavra: — Eu o
faria simplesmente porque iria agradá-la.
Vhalla ergueu o rosto para encará-lo, analisando o príncipe com
ceticismo. Ela abriu a boca e a fechou novamente, sem saber como
responder. Ela não sabia se era corajosa o suficiente para ser tão
ousada.
Ele relaxou o aperto em seu pulso, e sua mão pegou a dela. —
Eu percebi uma coisa nessa manhã, nesses últimos dias, — Aldrik
murmurou. — Sou um príncipe mimado. Não importa o quão injusto
possa ser, não lido bem quando me é negado o que quero, mesmo
que seja algo auto-infligido. Eu te machuquei, te coloquei em perigo
e continuarei pedindo isso e muito mais à você, quanto mais tempo
ficar perto de mim. E, mesmo sabendo disso, pareço te querer cada
vez mais perto, mesmo quando o bom senso me diz para fazer o
contrário.
— Aldrik. — Todas as palavras falharam, exceto o nome dele.
— Você me pediu antes por honestidade; aí está ela. — Foi a
vez dele de procurar suas feições em busca de uma reação.
Vhalla ficou tonta, e tudo o que conseguiu fazer foi acenar com a
cabeça. Ele a guiou de volta para a pequena área de estar e sentou-
se com ela. Vhalla sentiu o calor de sua pele sob as pontas dos
dedos, e ela não fez nada para interromper o contato. — Então, no
que diz respeito aos meus sentimentos, confie em mim acima de
todos os outros.
— Acima de Elecia, você quer dizer. — Vhalla não deixou as
coisas ao acaso.
— Acima de Elecia, — Aldrik concordou com um aceno de
cabeça.
— Então, você não está chateado comigo? — Se eles estavam
esclarecendo as coisas, Vhalla queria tirar tudo a limpo.
— Nem um pouco. — O polegar de Aldrik passou levemente pelo
dorso de sua mão. — Na verdade, você é quem deveria estar
chateada comigo por... — Ele suspirou e passou a mão pelos
cabelos.
— Vamos considerar que estamos quites. — Vhalla não queria
ficar remoendo. Ela já tinha feito isso o suficiente durante todo o dia,
e sentiu-se em paz por finalmente saber mais ou menos a que pé
estava com Aldrik. — Então, no que deveríamos supostamente estar
trabalhando?
Aldrik compartilhou um breve sorriso com ela antes de seu rosto
rapidamente ficar sombrio. — Tenho um plano para conquistar o
Norte. — Os olhos dele a perfuraram. — Mas vou precisar de você.
— O que eu poderia fazer? — Ela não tinha dominado nenhum
tipo de combate.
— Vai depender se você conseguir se tornar proficiente em
Projeção. Acredito que sou capaz de vê-la quando você fica
Projetada por causa do nosso Vínculo, mas ninguém deve conseguir
isso. Se você conseguir Projetar, pode se infiltrar na fortaleza
Nortenha sem ser detectada. Aprender todas as suas passagens e
fraquezas. A informação que você poderia nos dar pode fazê-los
cair em uma noite.
Vhalla imediatamente se sentiu desconfortável com a ideia. —
Mas da última vez eu fiquei presa.
— Eu vou ajudá-la; eu estarei aqui. — Aldrik apertou a mão dela
levemente. — Se você estiver disposta, começaremos a praticar
hoje à noite.
Após algum debate interno, Vhalla finalmente decidiu. — Eu vou
fazer isso. — Talvez fosse a única coisa que pudesse fazer que
desse sentido ao seu recrutamento nas forças armadas. — O que
eu preciso fazer?
— Bem, você trabalhou na sua Viabilização? — Aldrik finalmente
se endireitou, tirando a mão das dela. A distância que ele havia
imposto entre os dois não era grande o suficiente para fazê-la sentir
falta de seu toque. E não parecia que ele estava planejando que
aquela seria a última vez em que se tocariam, também.
— Na verdade, não. — Vhalla desviou o olhar.
— Também não vi você usando magia quando praticamos. —
Aldrik deu a ela um sorriso conhecedor. — Então, vamos praticar
isso primeiro.
Vhalla assentiu e pensou na última vez em que haviam
trabalhado juntos. Era uma lembrança fácil de recordar, dado o
impacto que a Ligação teve em si. Vhalla estendeu as mãos,
concentrando-se nelas. Ela tinha visto Aldrik repetir esse movimento
inúmeras vezes.
Ela apertou as mãos em punhos e sentiu uma onda de poder.
Era o mesmo sentimento que ele transmitira a ela durante a
Ligação, e Vhalla se perguntou por que tinha sentido tanto medo de
tentar. Seus olhos dispararam para os dele. — Acho que consegui.
— Sério? — Ele parecia surpreso e cético.
— Pode conferir, — sugeriu.
Aldrik a olhou desconfiado. — Eu não posso.
— O que?
— Eu não consigo usar visão mágica. — Aldrik parecia
envergonhado em admitir o fato.
Vhalla o olhou em choque. Ele não conseguia fazer algo? O que
era mais chocante: ele não conseguia fazer algo que ela podia. Os
olhos dele não encontraram os seus e Vhalla tirou o olhar de
espanto do rosto. Ele a ajudou quando ela não tinha nem ideia do
que era magia. Ela não o castigaria agora.
— Bem, vamos simplesmente assumir que eu consegui. —
Vhalla deu um pequeno sorriso.
— Mesmo? Tão fácil assim? — Ele estava surpreso.
— Eu tenho um bom professor. — Ela o lançou um sorriso largo,
e a boca dele se curvou em resposta antes que o príncipe pudesse
pensar sobre isso.
— Você se lembra de como Projetou? — Ele perguntou.
— Vagamente, — ela confessou. Lembrava de tentar estar perto
dele quando o Imperador retornou à capital, e Vhalla lembrou de ter
estendido a mente em direção ao jardim de rosas. Ela pensou que
tinha sido um sonho na época, mas talvez fizesse mais sentido que
isso também tivesse sido uma Projeção.
— Tente repetir o processo. — Aldrik parecia tão incerto quanto
ela.
Vhalla assentiu, disposta a deixar sua confiança nela impulsionar
a tentativa. Ela fechou os olhos, pensando no processo que havia
utilizado há muito tempo. Visualize, ela instruiu a si mesma. Em sua
mente, a sala começou a se reconstruir com uma nitidez
magicamente acentuada.
Vhalla permitiu que o mundo ficasse cada vez mais lento e
imóvel. Mais longe, ela precisava esticar mais. Agora capaz de
manter uma Via aberta, Vhalla achou mais fácil construir um mundo
mágico no qual pudesse entrar. Ela era o ar; ele chamava por Vhalla
sem cessar, pedindo-lhe para que preenchesse o espaço. Logo os
sons desapareceram, e ela se levantou.
Seus sentidos voltaram a si, mas estavam diferentes de antes.
Ela ouvia ao sentir o ar se mover; ela via através das correntes
cintilantes de ar que circulavam em torno dos objetos. Vhalla
observou sua forma mole cair.
Aldrik pegou seu corpo físico e a aconchegou, deixando-a
descansar em seu braço. Um sorriso curvou os lábios masculinos
diante da visão dela.
— Excelente, — ele se entusiasmou.
Você consegue me ver? ela perguntou.
Ele assentiu. — Tente andar.
Ela se virou. Era fácil atravessar a sala, e os olhos dele a
seguiram o tempo todo. Ela foi até a armadura dele e estendeu a
mão. Vhalla a estudou, incerta.
Como eu pareço? ela perguntou, imaginando se a aparência
fantasmagórica de sua mão era a mesma para ele.
— Difusa, como se você estivesse em um nevoeiro. Como uma
miragem parece no deserto — respondeu Aldrik.
Vhalla tentou tocar a couraça de metal e descobriu que sua mão
passava através do objeto. Não posso tocar nas coisas, ela
observou.
— Tente usar sua magia, — ele sugeriu.
Vhalla estendeu a mão, tentando manipular o vento ao seu redor.
Ele estava subitamente escorregadio e sem forma, como um barril
de cobras e óleo. Vhalla exigiu que ele a obedecesse,
concentrando-se mais.
— Vhalla, pare, — Aldrik avisou.
Ela nem olhou para ele. Vhalla tentou respirar fundo, sentir o ar,
mas descobriu que não conseguia fazer isso nessa forma. Ela teria
que forçar. Mergulhando em sua Via, ela insistiu que a armadura se
movesse. Sua visão tremulou, o mundo se alternando entre claro e
escuro.
Aldrik? ela chamou.
— Vhalla, pare! — Ele soava como se estivesse distante e muito
afastado.
Aldrik! ela gritou. Vhalla estava em um mundo de luz ofuscante.
— Vhalla. — A voz de Aldrik estava fraca. — Volte para mim. —
Ela virou-se no vazio branco, mas não conseguiu descobrir onde ele
estava. — Escute, encontre o seu batimento cardíaco. Encontre o
meu. Volte. — Ele parecia tenso, o que apenas a fez se sentir mais
perturbada.
Aldrik? ela perguntou no vazio. Não houve resposta. Vhalla
fechou os olhos, apenas para encontrar mais luz. Ela ouviu
atentamente, não havia nada. Vhalla andou um pouco, mas não
conseguiu fazer com que nada aparecesse diante dela. O tempo
parecia ter parado, e ela não tinha certeza de quanto tempo vagou.
Finalmente, ela se sentou e simplesmente ouviu.
Devagar, dolorosamente devagar, ela começou a ouvir uma
batida distante. Era um ritmo familiar, e chamava por ela. Vhalla
permitiu que ele fluísse de volta para dentro dela, ressoando através
de todos os aspectos de sua consciência. Foi uma transição lenta
enquanto o mundo se desvanecia em escuridão.
Seus olhos se abriram. O rosto de Aldrik pairava sobre ela, e ele
soltou uma pequena risada aliviada. Pela segunda vez em um dia,
se viu pressionada contra o peito dele. Vhalla suspirou suavemente.
Era uma situação com a qual poderia aprender a conviver.
— Você me assustou de novo, — ele murmurou. — Essa será a
última vez que faremos isso.
— Não, — insistiu Vhalla, sacudindo a cabeça. — Vou dominar
isso, só preciso de mais prática. Eu forcei demais.
Ele a estudou cuidadosamente e ela bocejou, sentindo-se
subitamente exausta. Ela não fez nenhum movimento para levantar,
e ele não fez nenhum movimento para tirá-la de cima dele. As
pálpebras de Vhalla se fecharam.
— Descanse, — o príncipe instruiu.
Ela se mexeu um pouco, com a orelha contra o peito dele. —
Aldrik? — Ela perguntou com outro bocejo.
— Vhalla?
Ela lutou para encontrar as palavras certas. — Essa é uma ideia
muito, muito ruim.
Vhalla o sentiu endurecer por um momento, e ele soltou um
pequeno suspiro. — Eu sei. — Sua voz era quase inaudível. — Eu
sei. Agora descanse.
Vhalla sentiu sua consciência desaparecer enquanto se envolvia
na calidez confortável que somente ele podia exalar.
V HALLA ERA UMA daquelas pessoas perpetuamente com frio. Com
uma baixa quantidade de gordura corporal, provavelmente
devida aos seus hábitos irregulares de alimentação quando ficava
muito envolvida em algo, ela era geralmente a primeira a reclamar
sobre um arrepio. Há muito que ela tinha aceitado o fato como parte
de sua sina, e se vestia de modo a ficar o mais quente possível para
compensar isso.
No entanto, naquele momento em particular ela estava
agradavelmente aquecida. Era uma sensação surreal e, em seu
estado ainda meio dormindo, ela se remexeu, pressionando-se mais
perto da fonte de calor. Essa mesma fonte se ajustou sob a garota
antes de ficar parada novamente. A sensação desconhecida trouxe
Vhalla de volta à consciência. Sua mente estava lenta por conta do
sono, e ela se esforçou para entender a situação.
O batimento cardíaco dele foi a primeira coisa que ouviu. Lento e
forte contra sua orelha direita. A segunda coisa foi o arranhar da
pena contra o papel. Vhalla abriu os olhos de supetão e percebeu
que descansava na dobra do braço esquerdo de Aldrik, que a
envolvia num meio-abraço. Ela estava a meio caminho do colo dele,
enquanto o príncipe se sentava de pernas cruzadas no chão.
Esticado sobre ela estava seu braço direito, enquanto ele escrevia
nos papéis sobre a mesa.
Os eventos anteriores voltaram aos poucos, pontuados por um
bocejo.
— Você acordou. — Aldrik colocou a pena na mesa e passou
uma mão pelos cabelos. — Como se sente?
— Cansada, — ela respondeu grogue.
— Eu percebi. — Seu tom era monótono, mas sua postura não
era rígida. — Tenho quase certeza de que você esgotou a maior
parte de sua magia e mergulhou na sua própria Via.
Vhalla fez uma nota mental para perguntar a ele, Fritz ou Larel
sobre isso mais tarde, quando ela não estivesse com tanto sono. —
Quão tarde é?
Ele se mexeu e estendeu a mão até o outro lado da mesa.
Haviam pergaminhos espalhados sobre a superfície, com todos os
tipos de rabiscos nas folhas. Aldrik afastou algumas páginas e um
brilho prateado chamou sua atenção.
— Vejamos, oito e meia. — Ele inspecionou o relógio de bolso.
— Posso ver? — Vhalla estendeu a mão.
Ele a olhou com curiosidade, mas atendeu ao seu pedido. Vhalla
virou o relógio entre os dedos. A parte de trás era polida ao ponto do
acabamento ser praticamente espelhado, e a frente continha o sol
flamejante do Império. Relógios eram especiais porque aqueles que
entendiam sua estranha mecânica eram poucos e raros de se
encontrar. Vhalla olhou para o seu reflexo no vidro que cobria o
mostrador de obsidiana e alabastro. — É lindo.
— Obrigado, — respondeu Aldrik sem jeito.
— Eu nunca segurei um antes, — Vhalla ponderou em voz alta.
Os poucos relógios que ela já vira eram grandes, como aquele no
balcão de circulação da biblioteca. — É como segurar o próprio
tempo, não é?
— Suponho que sim.
— Eu gostaria de poder fazê-lo parar, — ela sussurrou.
Suas mãos envolveram as dela e o relógio, fechando a trava
frontal no processo. — Se pudesse, o que você faria?
A respiração de Aldrik era quente em suas bochechas, e Vhalla
estava profundamente ciente do quão próximo os dois estavam. Ele
a segurava com um braço, a outra mão segurando ambas as dela,
sua lateral pressionada ao longo do peito dele. O que eles estavam
fazendo?
— Eu... — Ela estaria perdida naqueles olhos negros se não
tomasse cuidado. Vhalla se endireitou. — No que você está
trabalhando?
— Isso? — Aldrik apontou para o pergaminho, permitindo que
ela salvasse os dois de si mesmos. — Sabe, existe esse trabalho
emocionante de verificar nosso estoque, para garantir que tenhamos
suprimentos suficientes para chegar às Encruzilhadas. Haviam uma
ou duas queixas de disciplina; Eu faço uma triagem de tudo isso
para o Pai. — Ele fez uma pausa; ela seguiu o seu olhar até um
pedaço de papel que estava completamente cheio de seus rabiscos
inclinados. — Eu também comecei a fazer algumas anotações sobre
o nosso Vínculo.
— Sobre nós? — Vhalla olhou para o papel.
— Não há muita informação sobre Vinculação. Queria um
registro para poder consultar mais tarde, se algo estranho
acontecer.
Ela mordeu o lábio, sem saber como se sentia sobre o fato de
suas experiências com Aldrik potencialmente serem lidas por outra
pessoa. — Suponho que faz sentido. Se precisar de alguma
informação minha, me avise. — Vhalla ofereceu, e ele assentiu. —
Seu irmão ajuda você com as outras coisas?
— Baldair? — Aldrik empurrou o cabelo para trás com ambas as
mãos. Por um momento, ele parecia com o homem que ela
conheceu no palácio; pelo menos até os fios caírem novamente de
modo bagunçado ao redor do rosto.
— Ele não é muito chegado à negócios oficiais. — A voz de
Aldrik estava fria.
— Ele disse que vocês dois tinham um relacionamento estranho.
— Aldrik ergueu uma sobrancelha diante da declaração dela. —
Quando ele veio à minha cela, durante o julgamento.
— Disse, é? — Aldrik riu sombriamente. — Essa é uma maneira
de descrever as coisas.
— Vocês não se dão bem. — Vhalla não precisava ter irmãos
para perceber isso.
— Nosso relacionamento funciona quando e como precisamos
que ele funcione. Normalmente chegamos à um acordo. — Suas
palavras e tom cautelosos deixavam claro que ela não tiraria mais
nada dele.
Vhalla bocejou novamente, mesmo sem querer. — Eu devo ir,
suponho. — Ela desviou o olhar. Na verdade, ela não tinha vontade
de ir embora.
— Você ainda não comeu. — O sentimento parecia ser mútuo.
— Eu poderia conseguir alguma comida para nós.
— Tudo bem. — Foi fácil concordar.
Aldrik levantou e se espreguiçou. Ele pegou a cota de malha de
onde estava pendurada em um gancho no suporte de sua armadura
e a vestiu por cima da cabeça.
Vhalla se inclinou para trás, estudando a graça sutil de seus
movimentos. — A cota de malha é realmente necessária no
acampamento?
Aldrik fez uma pausa e ela viu o rosto dele ficar com uma
expressão de dor. — Todo o cuidado é pouco, — ele murmurou. Seu
comportamento mudou antes que Vhalla pudesse comentar sobre
isso. — Espere aqui, voltarei em breve. — Ela assentiu e ele saiu
pela aba de lona.
Vhalla deitou de costas sobre as almofadas espalhadas no
tapete. Essa noite e a madrugada anterior estavam sendo
completamente surreais, e ela não queria que terminasse. Ele a
queria mais perto, ou assim dissera. Isso colocava borboletas em
seu estômago tanto quanto colocava alarmes em sua cabeça.
Ela gemeu, cobrindo os olhos com o antebraço. A coisa mais
inteligente a se fazer seria acabar com isso agora, seja o que for
que isso fosse. Seria melhor pedir desculpas, recusar, ir embora e
impedir que algo mais acontecesse. Vhalla inclinou a cabeça para
trás e observou as chamas dançarem em um de seus braseiros
pendurados. Essa seria a coisa mais inteligente a se fazer, mas o
que ela realmente fez foi ficar lá deitada até ele voltar.
— Nossa, você parece confortável. — Aldrik exibia um sorriso
preguiçoso.
— Não tenho um travesseiro de verdade para dormir há mais de
um mês, — ela o lembrou, sentando-se.
— Então pegue um desses. — Ele deu de ombros, colocando
um pequeno saco em cima da mesa.
— Eu não posso pegar seu travesseiro. — Vhalla aceitou um pão
que ele entregou à ela.
— Por que não?
— Ah, sim, a propósito, o príncipe herdeiro Aldrik me deu um
travesseiro. Isso é super normal, certo? — Vhalla revirou os olhos.
— Ouvi dizer que a troca de presentes é a última moda entre as
senhoritas lá no Leste. Você está me dizendo que minhas fontes
estão incorretas? — Aldrik sorriu.
— Ah, fofo.
Vhalla pegou um dos travesseiros em questão e o jogou na cara
dele. Ela acertou em cheio e o príncipe a encarou. Por um
momento, Vhalla sentiu seus nervos assumirem o controle.
— Você acabou de agredir o príncipe herdeiro. — Ele a fitou,
mas ela viu o brilho que entregava a travessura em seus olhos. —
Vhalla, acho que isso viola os termos da sua liberdade condicional.
— Ah é? Diga-me, o que você fará comigo? — Ela fez o possível
para imitar um dos sorrisos que era a marca registrada dele, e foi
recompensada pela faísca se transformando num incêndio em seus
olhos.
— Eu poderia pensar em algumas coisas para fazer com você.
— Sua voz era grave e profunda, e Vhalla sentiu um rubor subir por
suas bochechas.
Não tendo uma boa resposta, ela deu uma mordida no pão e
preencheu o silêncio com sua mastigação. Ele riu e balançou a
cabeça. Vhalla terminou o pãozinho e ele a entregou um cantil de
couro com água. Vhalla limpou a boca com as costas da mão,
analisando o príncipe.
— Você realmente não é nada parecido com o que eles dizem,
— ela ponderou. Ele ergueu uma sobrancelha, instigando-a a
continuar. Vhalla pegou um dos menores pedaços de carne do saco
e mastigou pensativamente. — Todo mundo que já disse algo sobre
você. Foram sempre avisos, advertências. — Vhalla inclinou a
cabeça, pensando no passado. — Quando almocei com o seu
irmão, ele disse que tinha me salvado de você, que você me
comeria viva. — Ela deu uma pequena risada e um sorriso, mas que
rapidamente saiu de seu rosto quando o viu tenso.
— Tenho certeza que meu irmão ficaria mais do que feliz em
salvar qualquer um de mim. — Aldrik fechou a mão em punho.
— Eu não acredito neles. — Vhalla esperava que isso fosse
óbvio.
— Eu sei. — A voz dele estava fraca, e Aldrik evitou seu olhar. —
Mas eles estão certos, sabe. Não sou uma boa pessoa para se ter
por perto.
Vhalla franziu a testa, engolindo rapidamente o resto da comida.
Ela se aproximou dele, inclinando-se para colocar o rosto na sua
frente, procurando por suas feições atenciosamente. — Não quero
mais te ouvir dizer isso, ok? — Sussurrou. — Eu não vou a lugar
algum, a menos que você me peça para ir embora.
Seus lábios se separaram levemente quando seu queixo ficou
frouxo. — Está tarde.
— Está, — ela concordou.
O silêncio que se instalou sobre os dois era uma mistura
estranha, tanto confortável quanto doloroso. Vhalla percebeu que
seu coração estava tentando fortemente escapar do peito.
Hesitante, ela estendeu a mão. As pontas dos dedos roçaram
levemente as juntas dele. Ele segurou o seu olhar, e ela fechou os
dedos ao redor dos dele.
— Você deveria ir, — ele murmurou. Havia uma tensão em sua
voz que Vhalla nunca tinha ouvido antes.
— Eu deveria, — ela concordou.
Nenhum deles se mexeu.
— Vhalla, — Aldrik sussurrou. Seu nome soou tenso contra os
lábios dele, e ela descobriu que uma parte sua saboreava o som.
— Aldrik? — Ela respondeu da mesma forma.
Ele apertou sua mão com força por um momento, e ela prendeu
a respiração. Mas quando ele afrouxou o aperto, Vhalla percebeu a
insanidade que os possuiu naquela breve troca se dissipando no ar.
— Vou cavalgar com você amanhã, — ele prometeu. — Não
cavalgue com mais ninguém. Fique ao meu lado.
Vhalla assentiu. — Eu vou. Prometo.
Aldrik a ajudou a se levantar e ela ficou de frente para ele, os
dedos ainda nos seus. Lentamente, ele ergueu sua mão até o rosto
e pressionou gentilmente os lábios contra os nós de seus dedos. A
boca dele era macia e o calor de sua respiração enviou um pequeno
arrepio pela espinha dela.
Vhalla calçou as botas, atravessando em poucos passos a
distância até a entrada da tenda e parou, virando-se. — Aldrik,
amanhã. — Vhalla fez uma pausa, as palavras grudando no interior
de sua garganta, a obrigando a engolir em seco para libertá-las. —
Tudo isso será um sonho? — A testa dele franziu por um momento.
— Na próxima vez que nos encontrarmos, será como se nada disso
tivesse acontecido?
— Claro que será, — disse ele bem objetivamente. Vhalla sentiu
um aperto no peito. Aldrik cruzou a distância entre eles e colocou a
palma da mão sob sua orelha, os dedos envolvendo a parte de trás
do pescoço dela. Ele se aproximou e ela viu um flash de diversão
em seus olhos. — Para todas as outras pessoas, é claro que vai ser.
— E para nós? — Vhalla não sabia como esse tom de súplica
havia penetrado em sua voz.
— Para nós, vai ser a espera de mais quatro longos dias até
praticarmos sua Projeção novamente.
Ela sorriu levemente em alívio, esperando ter entendido o que
ele quis dizer corretamente. — Até lá, então.
— Até lá. — Ele se endireitou e puxou a aba da tenda para
permitir que Vhalla desaparecesse na noite fria.
Seu estômago estava cheio de borboletas, e ela suprimiu um
ruído estranho de euforia enquanto voltava para sua própria tenda.
Vhalla nunca tinha sentido nada parecido com isso antes, e
descobriu que apreciava a sensação eufórica que se espalhava pelo
seu sangue. Mais quatro dias; era muito melhor que um mês. Vhalla
colocou uma mão sobre a outra, sentindo os lábios fantasmas em
sua pele.
Aldrik estava certo, já era tarde. A maioria das fogueiras já
tinham um fogo baixo e estavam localizadas em direção ao centro
do acampamento. Ao longo do limite do terreno haviam poucas
pessoas. Ela conseguiu chegar longe o bastante da tenda de Aldrik
antes que alguém percebesse que sua presença poderia ser
decorrente de várias razões. A noite tranquila começou a subjugá-la
a cada passo que se aproximava de sua tenda. Ela precisava se
desculpar com Larel.
Larel estava enrolada em seu saco de dormir, e não fez nenhum
movimento enquanto Vhalla trocava de roupa silenciosamente. O ar
estava frio contra sua pele nua à medida que ela desfazia as
ataduras que começou a usar sobre os seios, para evitar assaduras
desconfortáveis por conta da armadura. Sua mente
instantaneamente lembrou do calor do príncipe, e a memória enviou
um diferente tipo de tremor através de si. Ela suspirou enquanto se
arrastava para baixo da lã áspera do cobertor.
Vhalla se contentou em deixar para resolver as coisas com Larel
na manhã seguinte. Mas a mulher Ocidental estava apenas fingindo
dormir, e Vhalla rapidamente ficou presa em uma disputa de
encaradas. Larel a olhou ponderadamente, e permitiu que o silêncio
se alongasse o suficiente para ficar claro que ela estava esperando
que Vhalla dissesse alguma coisa.
— Sinto muito por fazer você montar a tenda sozinha hoje. — As
orelhas de Vhalla arderam com a vergonha.
— Isso não foi nada.
Isso não foi, mas o modo como Vhalla agiu tinha sido muita
coisa. — Eu também sinto muito por despejar tudo em cima de
você. — Ela fez o possível para manter contato visual com Larel,
mas a vergonha acabou vencendo e Vhalla evitou o olhar da outra
mulher. — Não quis dizer nada daquilo, é só que eu estava exausta
e... — Vhalla engoliu em seco. — Larel, você é minha amiga. Eu
não teria aguentado isso tudo sem você. Eu não teria sobrevivido
tanto tempo sem você.
Vhalla engasgou em sua própria emoção. Era verdade. Se não
fosse por tudo que Larel fez e continuava fazendo por ela, Vhalla
estaria sozinha. Claro, Aldrik estava a ajudando e ele trazia à Vhalla
tanta alegria quanto frustração. Mas as coisas estavam estranhas
ali, por causa de suas próprias hesitações e das expectativas de
todo mundo. Em comparação, o laço que Larel tinha construído com
Vhalla era perfeitamente simples.
A mão de Larel se fechou com força em torno da de Vhalla. —
Não pense mais nisso, — disse ela finalmente. — Eu perdoo você.
Trêmula, Vhalla respirou fundo, agarrando-se à palma de Larel.
— Você é mais que uma pupila para mim, sabe disso. Você é
uma amiga querida. — A mulher Ocidental passou a mão pelos
cabelos de Vhalla amorosamente. — Eu não tenho muitos amigos.
— Eu nunca tive também, — Vhalla riu fracamente.
— Aldrik foi um dos meus primeiros amigos. — Quando o nome
do príncipe saía da boca de alguém automaticamente chamava a
atenção de Vhalla, e Larel o disse com mais facilidade do que ela
conseguia. — Você compartilhou seu segredo com o príncipe. Vou
compartilhar o meu.
— Você não precisa fazer isso. — Vhalla podia sentir uma aura
desconhecida em torno de Larel, uma aura de desconforto.
— Eu sei. — A mulher sorriu. — Mas eu quero que saiba que
confio em você do mesmo modo que você confia em mim. — Larel
se remexeu, seus olhos ficando distantes. — Suponho que nada
fará sentido a menos que comece do começo. Eu venho de uma
família muito pobre em uma pequena cidade chamada Qui.
— Não conheço, — confessou Vhalla.
— Você não teria como conhecer, a menos que tivesse estudado
mineração Ocidental. Qui é uma cidade à meio caminho de Norin.
Claro, isso se você seguir as antigas rotas antes do Grande
Caminho Imperial ser ampliado. Naquela época, muitos faziam
paradas em busca suprimentos ou para descansar os cavalos. —
Larel rolou, deitando de costas, os dedos entrelaçados levemente
aos de Vhalla.
— É uma cidade que tem mais merda do que esterco de vaca. —
A mulher estava estranhamente amarga. — Meu pai era um mineiro
que só sabia transformar álcool em urina. Minha mãe era uma
mulher quebrada, e acho que tudo o que ela conseguia fazer era
olhar para o nada, especialmente depois que meu pai começou a
espancá-la.
Vhalla piscou, num silêncio atordoado.
— Não havia dinheiro, nem futuro, e nem alegria ali. Que a Mãe
me ajude, eu odiava aquele barraco que eles chamavam de casa.
Um dia, eu tinha uns cinco anos, ou talvez seis. Meu pai trouxe para
casa um homem que eu nunca tinha visto. Ele disse que o homem
nos daria todo o dinheiro que precisávamos e tudo que eu tinha que
fazer era ser uma boa garota e obedecer. — Larel colocou o
antebraço sobre a testa, olhando para algo muito além da lona
acima delas.
— Não entendi até ficar sozinha com aquele homem. Eu gritei,
chorei e ninguém veio. Naquele momento, eu só queria que todos
eles morressem. — Larel suspirou suavemente. Vhalla mal podia
processar o que a mulher estava insinuando. — Eles me
encontraram sentada em meio às cinzas daquela casa. Acho que
não chorei nenhuma vez. — Ela se virou para encarar Vhalla. —
Essa foi a primeira vez que Manifestei. Eu era apenas uma criança,
mas uma feiticeira mesmo assim. Então, fui entregue às minas.
Todo dia me colocavam em um buraco. Eu cavava e cavava. Ou
fazia fogueiras, derretia coisas ou qualquer outra tarefa que pudesse
fazer.
— Sinto muito, — sussurrou Vhalla. Essas duas palavras não
pareciam nem chegar perto de ser o suficiente.
— Isso foi em outra vida, Vhalla. — Larel deu de ombros. —
Sendo justa, as minas me pagaram uma moeda de cobre por cada
dia em que trabalhei. Era o suficiente para comprar o jantar, e eu
dormia em galpões de armazenamento vazios. — Larel voltou a
deitar de costas, os olhos vidrados com as lembranças. — Então,
num certo dia, havia uma comitiva Imperial passando por ali. O
próprio Imperador estava lá, e eles fizeram uma parada para
descansar as montarias e reabastecer as reservas. Eu nunca tinha
visto algo tão incrível quanto as carruagens douradas e os cavalos
cobertos com couro colorido.
— O Imperador disse que queria fazer uma excursão pelas
minas. Eles estavam indo para Norin, mas o Imperador Solaris sabia
que a nossa mina era uma das principais fornecedoras de prata do
Oeste, e teve a gentileza de pelo menos fingir interesse. Aldrik
estava lá.
Vhalla esforçou-se para imaginar como seria um Aldrik criança,
sem o comportamento e a presença que ele tinha quando adulto.
— Ele tinha doze anos e cada centímetro dele gritava príncipe -
mesmo naquela época. Aldrik seguiu o pai pelas minas
obedientemente. Mas ele ainda era uma criança e, eventualmente,
começou a vagar sozinho - quero dizer, com um guarda. Embora
ninguém no Ocidente nunca fosse machucá-lo. Ele é um filho do
Oeste, afinal. Eu o vi convocando algumas chamas para brincar.
Nunca tinha visto outra pessoa como eu. — Larel riu baixinho.
— Eu era uma coisinha imunda, Vhalla. Não tinha o direito de me
aproximar do príncipe herdeiro. Mas ele sorriu gentilmente e me
deixou mostrá-lo o que conseguia fazer. Ele me disse que havia um
lugar no castelo, uma Torre, onde pessoas como nós eram especiais
- onde eu não teria que viver no escuro. Eu me lembro de chorar;
chorei porque parecia tão perfeito e chorei porque sabia que nunca
iria.
— Ele olhou para mim estranhamente. Ele não entendia por que
eu não poderia ir. O guarda o explicou, e Aldrik simplesmente disse
que iria me levar. — Larel brincou com a ponta do cobertor. — Ele
me levou até o pai e disse, na frente de todo mundo, que eu estava
indo para me juntar à Torre. A princípio, o contramestre se opôs,
dizendo que eu era propriedade das minas. Mas Aldrik não quis
ouvir. No final das contas, fui comprada com sete moedas de ouro e
um agradecimento Imperial. Eu tinha onze anos quando finalmente
deixei a cidade, e nunca mais voltei.
Vhalla a olhou com admiração, mas Larel parecia longe de
terminar.
— Entrei na caravana Imperial para Norin e depois fui ao Palácio
Meridional. Aldrik e eu éramos inseparáveis o tempo todo. Éramos
crianças - e, bem, crianças não entendem o mundo e todas as
razões que mantêm as pessoas separadas. Desde o início ele não
quis que eu o chamasse de “príncipe”, disse que isso o fazia se
sentir estranho. Fiquei feliz em obedecê-lo. Quando entrei na Torre,
ele insistiu que treinássemos juntos. O Ministro Egmun não…
— Egmun? — Vhalla interrompeu, em choque.
Larel sabia que havia algo mais no tom de Vhalla. — Egmun era
o Ministro da Feitiçaria antes de Victor.
Vhalla sentou-se. — Não, não o mesmo Chefe Eleito e Senador
Egmun? — Tinha que ser um engano.
— Sim, ele renunciou ao cargo de ministro para ingressar no
Senado, — explicou Larel.
— Ele-ele... — Vhalla fervilhou e enfureceu ao lembrar do
homem que tentou espancá-la até a submissão ao ponto de aceitar
a morte como uma alternativa à dor.
Larel deixou as palavras de Vhalla sucumbirem. — Ouvi dizer
que Egmun mudou muito durante sua transição para senador.
— Desculpe, continue. — Vhalla balançou a cabeça, afastando a
imagem do senador que ela considerava como sendo a
personificação do mal encarnado.
— De qualquer forma, eles não acharam apropriado que eu
treinasse com o príncipe herdeiro, mas Aldrik é o Aldrik. Então
treinamos juntos mesmo assim. Cada dia que eu passava com ele
era melhor que o anterior. Mesmo nas vezes em que ele estava com
raiva ou triste, eu apenas gostava de estar em sua companhia, de
vê-lo… — Larel se perdeu na nostalgia com um sorriso suave e
triste.
Os olhos de Vhalla se arregalaram. — Você o amava?
Faria sentido se ela amasse. Ele a salvou, a trouxe para uma
nova vida e ficou ao lado dela enquanto lhe mostrava um mundo
novo e surpreendente. Quem não poderia amar alguém nessas
circunstâncias se a pessoa em questão fosse tão incrível quanto
Aldrik era?
— Bem... — Mesmo na penumbra, as bochechas de Larel
estavam ligeiramente rosadas. Vhalla nunca a tinha visto corar
antes e isso fez com que suas entranhas apertassem. — Houve um
verão, ele mal tinha feito quatorze anos, e eu tinha treze. Era aquela
idade que você começa a se perguntar o que é o amor. Nós tivemos
um momento; ele foi o primeiro garoto que eu beijei. — Vhalla se
remexeu em seus cobertores. — Mas esse instante desapareceu
tão rápido quanto surgiu. Nós dois percebemos que éramos
crianças brincando de estarem apaixonadas e rimos da situação
toda.
Larel suspirou suavemente.
— Logo no início da guerra nas Cavernas de Cristal, ele atingiu
um ponto realmente sombrio. Eu tentei alcançá-lo, e ele me afastou.
Tivemos uma briga, e nós dois dissemos coisas das quais nos
arrependemos. — Ela parecia magoada. — Fiquei com o orgulho
ferido, fiquei machucada, e fui embora. Eu sabia que ele precisava
de mim - precisava de alguém - mais do que nunca, e eu o
abandonei. — A atenção de Larel estava de volta à Vhalla, a neblina
do passado sumindo por um momento. — Então eu prometi que
nunca abandonaria alguém que precisasse, se tivesse a chance
novamente. Que eu nunca ignoraria um amigo por causa das coisas
tolas que a dor poderia levá-los a fazer.
Vhalla rapidamente percebeu que Larel estava falando sobre ela.
— Depois disso, por muitos anos, as coisas ficaram estranhas e
frias entre nós. — Larel estava de volta à sua história. — Mas o
tempo cura todas as feridas e reconstruímos nossa amizade. Nunca
será como era antes, mas o que tínhamos criou uma base sólida.
Ele sabe que pode confiar em mim implicitamente, e eu posso
confiar nele.
O silêncio preencheu o ar enquanto Vhalla digeria a história de
Larel. Isso a fez se sentir pesada e deu um nó em seu estômago.
Ela sentiu tristeza pela amiga; alegria, empolgação e um toque de
ciúmes. Ela se sentiu como uma criança ao se perguntar como era
beijar o príncipe e manteve suas perguntas para si mesma.
— Então é por isso que você é minha mentora. — Vhalla viu a
coisa toda por uma perspectiva diferente.
— Sim. Durante o seu Despertar, Aldrik ficou obsessivamente
preocupado com você. Tivemos que praticamente removê-lo à força.
Ele queria monitorar todos que tinham permissão sequer para vê-la,
quanto mais para tocá-la. Porque Victor continuou afastando-o, ele
me nomeou para a tarefa. Ele me pediu um favor. Claro, agora eu
sei por que ele estava tão frenético, já que vocês estão Vinculados.
Vhalla torceu os cobertores entre os dedos. Não era a primeira
vez que lhe diziam que ele cobrava favores por ela. Vhalla inclinou a
cabeça. — O Vínculo?
— Você sabe como é feito um Vínculo, — disse Larel
delicadamente. — Vocês dois são uma parte um do outro. Há
registros de pessoas que enlouqueceram porque perderam seus
Vinculados. Alguns teorizam que, dependendo da profundidade do
Vínculo, se um morrer o outro morre também.
Vhalla sentou-se ereta, descansando a testa na palma da mão.
Era uma questão de autopreservação para ele. — Ele está me
mantendo segura porque se ele não...
— Ele está te mantendo segura porque ele quer mantê-la
segura, — Larel interrompeu.
Vhalla olhou para a outra mulher, que agora também estava
sentada. Larel passou um braço em volta dos ombros de sua amiga,
puxando Vhalla para trás e envolvendo-a na segurança de seu
abraço quente.
A voz de Larel era triste e sincera. — Aldrik passou por várias
coisas, muitas das quais nunca sequer me contou. Mas eu vi as
bordas da escuridão que ele carrega. Não acho que ele se preocupa
com a própria sanidade ou mortalidade. Ele não quer que você
morra porque tem medo de que isso signifique que ele teria que
viver sem você. — Larel acariciou o topo da cabeça de Vhalla.
— Ouça com atenção. Eu o conheço há doze anos. E muitos
deles foram, ouso dizer, como sua melhor amiga. Conheço o Aldrik -
o bom e o ruim. — Larel suspirou. — Não quero dizer nada que ele
ainda não tenha dito por si mesmo. Mas ele se importa com você,
Vhalla. De uma maneira que nunca o vi se importar com ninguém
antes.
Vhalla fechou os olhos, imaginando que estava de volta ao
palácio. — Obrigada por me contar tudo isso, Larel.
— Doce Vhalla, você sabe que eu sempre estarei aqui por você.
— Larel a apertou em seu abraço com força, e Vhalla dormiu em
paz pela primeira vez no que pareceu anos.
N A MANHÃ SEGUINTE, Aldrik manteve sua promessa e cavalgou ao
lado dela. Eles conversaram o dia inteiro, quase
exclusivamente um com o outro. Ele perguntou sobre sua vida no
Leste, sua fazenda, sua família. Vhalla o fez perguntas sobre todo o
tipo de conhecimento mágico sobre o qual ela não tinha outro modo
de aprender. O homem era praticamente uma biblioteca ambulante.
Também não havia resquícios de tensão entre ela, Fritz e Larel.
Fritz percebeu rapidamente que quaisquer problemas que
estivessem acontecendo foram resolvidos, e o Sulista teve bom
senso o suficiente para não persistir no assunto. Armada com seus
amigos à tiracolo e segura ao saber da estabilidade de seu
relacionamento com Aldrik, Vhalla ignorou Elecia durante o
treinamento - para a grande frustração da outra mulher.
Vhalla usou sua Viabilização abundantemente, para surpresa de
todos, menos de Aldrik. Fritz e Larel a encorajaram, como o
esperado. Elecia ficou obviamente perturbada e a evitou pelos
próximos três dias.
Vhalla ficou impressionada com a facilidade com que conseguia
manter o controle, sem hesitação ou medo, depois dos primeiros
dias de Viabilização. Apoiada por seus amigos e Aldrik, Vhalla se viu
finalmente apreciando sua magia. O vento deslizava facilmente
entre seus dedos, curvando-se à sua vontade, e Vhalla estava
rapidamente superando as introduções de magia básica que Aldrik
lhe dera meses atrás. Magia, ela estava descobrindo, era como
poesia. Uma vez que você entendia a lógica, a métrica, a rima por
trás dela, você poderia ornamentá-la e torná-la sua.
Na terceira noite, ela estava armando sua tenda e de Larel
apenas com magia. Foi a primeira vez que Vhalla sentiu vários
pares de olhos sobre si por causa de sua feitiçaria, olhos que não
eram intimidantes ou assustados. A Legião Negra começou a
prestar atenção em sua Andarilha do Vento mais uma vez, não por
causa da Noite de Fogo e Vento, mas pelos feitos diários que ela
estava começando a ser capaz de realizar. Foi tanto um apoio à
sanidade quanto um incentivo à confiança de Vhalla.
Ela estava tão bem com a coisa toda que, quando Aldrik a
colocou em par com Elecia durante o treinamento - à pedido da
mesma -, Vhalla nem sequer pestanejou. Ela aceitou a presença da
outra mulher à sua frente. Se era realmente uma competição pela
atenção de Aldrik, era Vhalla quem estava vencendo. O príncipe
herdeiro cavalgara ao seu lado sem parar, e amanhã eles
praticariam Projeção novamente.
Aldrik tinha a intenção de trabalhar num combate mais corpo a
corpo, e Vhalla estava feliz em seguir suas ordens. A mulher de
aparência Nortenha precisava ser tirada de seu pedestal e essa era
a noite de Vhalla, a garota assegurou a si mesma. Ela estava se
sentindo mais forte a cada semana que passava, menos dolorida,
mais capaz.
— Você tem certeza que quer fazer isso, Yarl? — Elecia sorriu,
os olhos indo rapidamente em direção a Aldrik.
— É só um treino, certo? — Vhalla ficou em sua posição de
batalha preferida, um braço erguido e outro na altura do peito.
— Ah, é claro. — Elecia fechou a mão direita em punho,
pressionando a palma da mão esquerda sobre o mesmo.
Vhalla cerrou ambos os punhos e também saudou sua magia. —
Ao seu sinal ou ao meu?
— Meu - não quero que você trapaceie. — Elecia encheu sua
voz com sarcasmo, mas Vhalla sabia que havia um fundo de
verdade nas palavras, e seu olho tremeu de raiva.
Elecia avançou e Vhalla imediatamente entrou na ofensiva.
TA mulher de pele negra se esquivou e escapou dos ataques
habilmente. Ela evitou por pouco os ganchos e socos de Vhalla.
Mas Vhalla estava errando os golpes por uma margem muito menor
do que ela esperava.
Vhalla respirou fundo e concentrou-se. Ela começou a sentir as
ondulações nas correntes de ar à medida que os músculos da outra
mulher se retesavam e pulsavam antes de dar um soco ou chute. O
corpo de Vhalla sabia antes que seus olhos pudessem ver. Seu
coração começou a acelerar. Ela podia fazer isso: ela podia lutar.
Uma pulsação começou a encher seus ouvidos, e ela se permitiu
confiar no instinto. Vhalla se movia como o vento, rápida e precisa.
Suas mãos giravam em arcos exatos, atingindo o alvo quase todas
as vezes. A ofensiva constante fez Elecia começar a entrar em
pânico, e o pânico a deixou desleixada. Vhalla não ouvia nada além
do batimento cardíaco em sua cabeça.
Elecia deu um soco no rosto de Vhalla; sabendo o que estava
chegando, Vhalla se esquivou no último segundo. Ela apertou a mão
em torno do pulso de Elecia e saboreou o olhar de puro choque
quando seu pé deu uma rasteira na outra mulher. Elecia caiu de
joelhos e Vhalla alcançou o rosto da mulher com a mão livre,
apertando-a sobre a boca de Elecia.
Os olhos da mulher de cabelos pretos se arregalaram em terror.
— Já chega, — Aldrik latiu a ordem à sua direita. — Vhalla,
solte-a.
Os batimentos cardíacos nos ouvidos de Vhalla começaram a
desaparecer: era quase como sair de um transe. Como se estivesse
vendo a outra mulher pela primeira vez, Vhalla rapidamente afastou
a mão, encarando o membro que parecia ter ganhado vida própria.
— O que, em nome da Mãe, foi isso? — Elecia ficou de pé.
— Apenas um treino — disse Vhalla secamente. Ela não estava
disposta a deixar o choque dar à Elecia margem de manobra para
ignorar o fato de ter sido vencida. — Um treino no qual você foi
derrotada.
— Certo, — Elecia murmurou, seus olhos se voltando para
Aldrik. — Derrotada por um estilo de luta terrivelmente familiar.
— Acho que foi o suficiente por essa noite. — O tom de Aldrik
era claro: ele não queria mais discutir o assunto.
— Por quê? — Elecia deu um passo à frente. — Para então você
poder continuar a treiná-la em segredo? — Aquilo era dor na voz da
outra mulher? — O que vocês dois fazem nas noites em que a
chama para a sua tenda?
— Isso não é da sua conta. — Vhalla nunca ouviu Aldrik ser tão
brusco com Elecia.
— É sim, porque você é meu...
— Apenas vá embora, Elecia. Aldrik beliscou a ponte do nariz
com um suspiro.
Ele era o que dela? Vhalla queria gritar a pergunta, mas mal
conseguia encontrar ar suficiente para respirar durante toda a troca
de farpas.
— Tudo bem, Aldrik. Se quer treiná-la em segredo, vá em frente.
Mas não pense que o seu favoritismo iminente pelos pobres e
indignos passará de modo despercebido ou inquestionável. —
Elecia estava de volta aos insultos, e Vhalla desejou que as
palavras apenas a deixassem entorpecida ao invés de parecerem
como punhais em suas entranhas.
— Todos vocês, voltem, — Aldrik ordenou enquanto Elecia se
afastava raivosamente.
— Aldrik, — Vhalla disse suavemente quando Fritz e Larel
começaram a ir na frente.
— Onde você aprendeu a fazer aquilo? — O príncipe a olhou de
cima.
— Onde mais eu poderia ter aprendido? — Ela não entendeu por
que estava sendo alvo do desgosto dele. — Você, Elecia, Larel,
Fritz, Major Reale, você conhece todos que já me ensinaram a
lutar...
— O jeito que você se moveu. Nenhum deles poderia ter lhe
ensinado aquilo. — Ele estava taciturno.
— Bem, eu tenho um bom professor. — Vhalla tentou dar um
sorriso, o qual ela abandonou rapidamente.
Os olhos de Aldrik estavam sombrios com uma tempestade de
emoções, e nenhuma delas era boa. — Foi mais do que isso,
Vhalla, — ele pressionou.
— Não sei o que mais você acha que eu fiz. — Ela deu um
passo para longe, cruzando os braços. — Não sei se você se
lembra, mas minha vida não tem sido minha nas últimas semanas.
Sou propriedade da coroa, meu príncipe.
— Então é isso? Você é apenas propriedade da coroa? Não há
mais nada? — Aldrik encurtou o espaço entre eles com dois passos.
— O que mais poderia haver? — Por que mais ela estaria indo
para a guerra?
Os olhos dele se arregalaram um pouco, e Vhalla percebeu que
eles não estavam falando sobre a presença dela nas forças
armadas ou no combate. Aldrik passou por ela tempestivamente, o
ombro dele batendo levemente no seu.
— Aldrik, você sabe que não foi isso que eu quis dizer, — ela
disse às suas costas.
Ele congelou e a olhou de volta. Aquilo era apreço em seu rosto?
Ele estava impressionado que ela tinha reconhecido as mudanças
sutis na conversa deles?
O momento foi passageiro, e ele a deixou sozinha sem mais uma
palavra.
Vhalla queria gritar. O vento fazia cócegas sob sua palma,
respondendo às suas frustrações. Pela primeira vez, Vhalla
considerou correr e abandonar seu dever.
Mais tarde, em sua tenda, Vhalla desabafou com Larel sobre
tudo. — Eu nem sei o que fiz! — A outra mulher ficou em silêncio. —
Achei que ele teria ficado satisfeito por eu não ser totalmente inútil.
— Você nunca foi inútil, — corrigiu Larel, embora não tenha
ajudado.
— Eu venci a Elecia! — Vhalla se jogou de volta no saco de
dormir. — Pensei que ele ficaria orgulhoso.
Larel fez uma pausa por um longo momento, deitada de lado em
seu próprio saco de dormir, perto de Vhalla. Elas colocaram suas
camas improvisadas uma ao lado da outra, para dar mais espaço
para as armaduras na pequena tenda. Parecia um uso muito melhor
do espaço, até porque Vhalla já havia quebrado todos os limites de
contato possíveis nas noites que passou tremendo e chorando nos
braços de Larel.
— O jeito que você lutou, Vhalla, — Larel começou
delicadamente.
— Você também não, — ela gemeu.
— Bem, você se moveu de uma maneira muito diferente do que
antes, — apontou Larel. — O que aconteceu?
— Estamos treinando há semanas, — enfatizou Vhalla. — É
esperado que eu esteja melhorando.
— Nem Fritz ou eu poderíamos vencer Elecia.
— Mas vocês dois não estavam tentando de verdade. — Vhalla
virou de lado para encarar Larel.
— Estávamos sim. — Larel assentiu. — Como você fez isso?
Vhalla fez uma pausa, tentando deixar de lado seu modo
defensivo e pensar. — Eu não sei, simplesmente me movi.
— Você simplesmente se moveu? — Larel rapidamente
abandonou o tom de ceticismo quando viu o rosto de Vhalla.
— Eu nem sequer pensei, — acrescentou Vhalla suavemente,
tentando analisar o que havia acontecido. — Era como se meu
corpo soubesse o que fazer, e eu apenas tive que confiar nele.
— Você lutou como Aldrik. — Larel continuou antes que Vhalla
pudesse apontar que o príncipe a estava treinando: — Não, Vhalla,
você lutou exatamente como Aldrik.
— Mas...
Larel balançou a cabeça. — Era como se você fosse o reflexo
dele. Já treinei vezes o suficiente com o príncipe para saber como
ele se move. Até o modo como você deu a rasteira, Vhalla. E então,
quando você agarrou o rosto de Elecia... É assim que Aldrik executa
seus inimigos. — Vhalla lembrou-se da Nortenha na Noite de Fogo e
Vento, a que Aldrik matara bem diante dela. Ele agarrou o rosto da
espadachim e a queimou viva de dentro para fora.
Vhalla estremeceu. — Eu não sei como...
— A Ligação é o meu palpite. — Larel chegou à conclusão óbvia.
— Eu tenho que ir falar com ele. — Vhalla foi impedida de se
levantar por um braço em volta dos seus ombros.
— Amanhã, — disse Larel pensativamente. — Acho que Aldrik
ficou muito surpreso com essa reviravolta. Dê algum espaço à ele
para esfriar a cabeça e processar isso tudo.
Vhalla franziu a testa, mas obedeceu a amiga. Larel dava os
melhores conselhos e tinha uma sabedoria calcada em anos de
convivência com Aldrik à seu favor. E o amanhecer não estava
muito longe.
Mas quando o amanhecer chegou, Aldrik não estava em lugar
algum. Vhalla fez uma varredura pelas fogueiras e pelas tendas que
estavam sendo desmontadas, mas não conseguiu encontrar nem
rastro da sombra alta dele em lugar nenhum. Ela não o viu até estar
entrando em linha com Fritz e Larel.
Ele ignorou o espaço que Vhalla havia deixado para ele, o
espaço que havia sido constantemente preenchido por dias, e foi
diretamente até Elecia. Vhalla se despediu de Fritz e Larel e trotou
rapidamente para a linha de frente. As mudanças de humor e as
distâncias desconfortáveis dele estavam começando a esgotar a
paciência de Vhalla. Ela não se importava que durante o dia a
proximidade deles tivesse que ser um segredo - seja o que for que
essa proximidade significasse. Ela estava cansada de tudo ser nos
termos dele e o que ele precisava.
— Olha só quem está aqui. — Craig foi o primeiro a notá-la, e
Daniel sorriu de orelha a orelha enquanto ela se aproximava. — Nós
pensamos que você tinha nos abandonado, Srta. Andarilha do
Vento.
— Meus meninos de ouro favoritos? — Vhalla riu, afastando a
tensão da Legião Negra, ficando entre Craig e Daniel. — Como eu
poderia abandoná-los?
— Bom dia, Vhalla. — O príncipe Baldair sorriu para ela, do outro
lado de Daniel.
— Bom dia, meu príncipe. — Vhalla baixou os olhos com
respeito. Quando ela os ergueu novamente eles encontraram os de
Raylynn, e a mulher Sulista deu à ela um pequeno aceno de
cabeça. As coisas haviam melhorado drasticamente entre as duas.
— Como estão as espadas hoje?
— Afiadas como sempre, — Craig anunciou com orgulho. —
Especialmente este aqui. — Ele apontou para Daniel, e o Oriental foi
tomado de repente pela modéstia. — Ele tem estado invicto no
ringue há duas semanas.
— Ringue? — Vhalla perguntou. — De treino?
— Devemos manter nossos reflexos afiados. — Baldair lançou-
lhe um olhar de soslaio. — Certamente vocês têm algum tipo de
exercício na Legião Negra também.
— Nós temos. — Vhalla passou as rédeas desconfortavelmente
de uma mão para outra.
— É estranho imaginar você lutando, — Daniel pensou em voz
alta. — Não que eu esteja dizendo que você não poderia ou não
deveria fazer isso. Quando você estava em julgamento, você não
parecia uma combatente, — acrescentou ele às pressas.
— Eu não era. — Vhalla olhou para frente, para o horizonte
árido. Ela tinha escolhido o dia certo para cavalgar na linha de frente
do exército. Os arbustos e gramíneas remanescentes da floresta
estavam se dissolvendo nas areias do Deserto Ocidental. O Grande
Caminho Imperial atravessava as dunas amarelas pálidas como
uma cobra de alabastro, e não havia mais nada a frente delas até
onde seus olhos podiam alcançar.
— Você treinaria comigo? — Daniel perguntou. — Nunca tive
muita oportunidade de treinar com feiticeiros; Jax geralmente está
ocupado com a Legião Negra. Eu adoraria ter a experiência. — Ele
sorriu e afastou os cabelos suados e grudentos do rosto.
— Claro. — Vhalla assentiu e ajustou o capuz de cota de malha
que Aldrik havia feito para ela, mantendo o sol longe de suas
bochechas.
— Quando pararmos, então. — Daniel parecia genuinamente
animado.
Como resultado de sua decisão sobre entrar em combate, a
conversa entre eles girou em torno da história da Legião Negra e da
Torre dos Feiticeiros. Sem surpresa, o abismo entre os feiticeiros e
os Comuns era profunda, e o que Craig e Daniel disseram sobre ser
pior nas forças armadas se mostrou verdadeiro. Quando o exército
terminou sua marcha do dia, os espadachins homens e mulheres
observaram Vhalla cautelosamente enquanto ela permanecia entre
eles. Ela cavalgou com Craig e Daniel vezes o suficiente para não
receber mais olhares ou sussurros, mas ficar com eles depois de
pararem pareceu cruzar um novo limite.
— Você tem certeza de que quer fazer isso? — Vhalla perguntou
depois que eles amarraram suas montarias.
— Sim, Danny, você tem certeza de que quer fazer isso? —
Raylynn lançou um olhar de canto de olho para Vhalla. As coisas
poderiam ter melhorado entre as duas, mas a melhoria fora
insignificante.
— Tenho, — Daniel riu. — Eu sei que Vhalla não vai me
machucar.
Raylynn claramente não compartilhava do mesmo sentimento,
mas Vhalla achou a confiança e a segurança de Daniel revigorantes.
Ele parecia sempre dar a ela o benefício da dúvida, e confiava nela
sem precisar de um motivo. Isso rapidamente havia se transformado
em um sentimento estranho desde que se tornara uma feiticeira.
Vhalla e Daniel se posicionaram, atraindo a atenção de mais de
uma pessoa, e os outros soldados começaram a se reunir,
curiosamente olhando para a feiticeira em armadura preta contra um
Guarda Dourado.
— Uma rodada leve, então? — Daniel sacou a espada. Era uma
bela lâmina com um pomo de ouro em formato de espiga de trigo.
Vhalla tinha admirado o objeto nas muitas ocasiões quando eles
conversaram sobre suas casas no Leste. — Até alguém se
entregar?
— Até alguém se entregar. — Vhalla assentiu, cerrando os
punhos. Ela estava quase tonta com o poder. Os ventos do deserto
eram rápidos, livres e fortes.
— Craig, se você puder fazer as honras. — Daniel olhou para o
amigo.
— Ao meu sinal. — Craig ficou entre eles, erguendo a mão. —
Vão! — Ele deixou cair a palma pelo ar, pulando para trás ao
mesmo tempo.
Vhalla agiu no segundo em que Craig terminou de falar, e ela
estava um passo à frente de Daniel mesmo quando Craig ainda
estava se afastando. Ela passou um braço sobre o peito, enviando
uma rajada de vento arenoso no rosto de Daniel. Daniel, para o seu
crédito, não vacilou com um ataque tão básico e torceu a espada na
palma da mão para dar um golpe de giro.
Abaixando-se sob a lâmina, Vhalla rodou em torno de Daniel
como uma dançarina. Ela colocou uma palma no centro das costas
dele, fazendo-o cair com uma rajada de vento. Ela ficou
desapontada; Vhalla esperava um desafio maior vindo de um
membro tão respeitado da guarda do príncipe Baldair.
Mas Daniel estava preparado para mostrá-la como tinha
ganhado suas braçadeiras douradas. Enquanto caía, ele enfiou a
espada na areia, girando ao redor da arma para dar uma rasteira e
varrer os pés dela de baixo de si. Em sua surpresa, Vhalla mal teve
tempo de se equilibrar e, quando o fez, a ponta de uma lâmina
estava em sua garganta.
— Você não é ruim, — Daniel ofegou.
— Nem você, — ela retrucou com um sorriso dissimulado.
O rosto de Daniel se transformou quando ele deu um sorriso,
como se agora eles compartilhassem um segredo selvagem um com
o outro. Vhalla nunca teria adivinhado, mas havia algo diferente em
brigar com uma pessoa que era quase íntima.
O momento foi rapidamente arruinado quando um homem que
estava observando deu um passo à frente. — Pela mãe, o que você
pensa que está fazendo, lorde Taffl?
Vhalla reconheceu a forma grande e musculosa do homem. Era
ele quem a tinha confrontado no início da marcha. Aquele que
Daniel e Craig haviam persuadido a não mais importuná-la.
— Treinando um pouco, — Daniel falou com Grun, mas não
desviou suas atenções de Vhalla, ajudando-a a se levantar.
— Com isso? — Grun apontou para ela.
— A senhorita graciosamente concordou em me conceder a
experiência de uma luta contra um feiticeiro, — Daniel se irritou.
Ninguém falou; tudo estava assustadoramente silencioso, pois
cada espectador parecia prender a respiração. Todos pareciam
igualmente com medo de como ambas as partes se comportariam
se a tensão rompesse entre os dois homens, incluindo Vhalla.
— Eu deveria ir, acho.
— Vhalla, não… — Daniel se virou rapidamente.
— Não, eu deveria mesmo. Larel provavelmente está montando
a tenda sem mim. — Vhalla sorriu numa tentativa de fazê-lo
acreditar na desculpa esfarrapada.
— Eu quero treinar contra um feiticeiro, — Grun disse antes que
Vhalla saísse do ringue improvisado. — Lute comigo.
Vhalla olhou para ele cautelosamente. Ela não pensou nem por
um minuto que ele de repente a aceitaria. Mas talvez pudesse
mostrar a ele que não era perigosa, que não queria lhe fazer mal. —
Muito bem, — disse ela antes que Daniel pudesse contestar.
— Vhalla, você não precisa. — O homem Oriental deu um passo
para mais perto dela, baixando a voz. — Não se sinta pressionada a
isso.
— Não estou. — Ela balançou a cabeça, sussurrando: — Talvez
isso seja bom para mostrar à ele.
— Bem...
— Vocês dois terminaram de sussurrar sua conversinha fiada?
— Grun perguntou de modo seco, puxando a espada em frente à
Vhalla.
Daniel se afastou rapidamente, seus movimentos bruscos e
nervosos. Era o calor do deserto ou havia um rubor em suas
bochechas? Daniel levantou a palma da mão; o sinal para começar
a briga seria quando ele a abaixasse.
Ela notou como os cabelos castanhos escuros dele se moviam à
medida que sua mão cortava através do ar, seus olhos castanhos
disparando em direção à ela.
Distraída, Vhalla não ouviu Grun se mover até que ele estava
sobre Vhalla. Ela deu meia volta no último segundo, fazendo uma
tentativa precária de se esquivar. Ele esmagou o pomo da lâmina
contra a bochecha dela em um golpe de contramão, enviando Vhalla
voando para a areia.
— Grun! — Daniel e Craig gritaram.
— É só um treino. — O homem musculoso riu. — Se ela quiser
se render, ela pode.
Vhalla cuspiu sangue na areia. Seu lábio estava cortado e ela já
sentia o rosto inchando. Ela piscou, tentando afastar as estrelas de
sua visão e voltou a ficar de pé.
A bota de Grun se conectou contra suas costelas, ecoando
contra a armadura quando ele a chutou. Vhalla rolou pela areia,
perdendo o fôlego. Ela se curvou sobre si mesma, golpes fantasmas
atacando seu corpo. Ofegando, ela tentou afastar as lembranças do
ataque de Rato e Verruga.
— Sério, é só isso? — Grun riu, incitando alguns dos
espectadores a aplaudir. — Esta é a terrível Andarilha do Vento?
— Vhalla, se renda. — Daniel correu para o lado dela.
— Não me toque, — ela sibilou, estendendo a palma da mão.
Algo em seus olhos congelou Daniel no lugar. Vhalla virou-se para
Grun, sentindo o vento à suas costas. Seu coração começou a
acelerar só de olhar para ele.
— Ah, você ainda quer lutar? — Grun riu quando Vhalla se
levantou. — Bem, pelo menos nossa Legião Negra faz bons sacos
de pancada. Deveríamos agradecer ao Senhor do Fogo pela única
coisa que ele já nos deu.
— Retire o que disse. — Vhalla mal pôde ouvir os próprios
pensamentos sobre o batimento cardíaco acelerado em seus
ouvidos.
— Ou o qu... — Grun não tinha nem terminado sua frase quando
o punho de Vhalla se chocou com a lateral de seu rosto.
O homem era musculoso e duro feito pedra, e Vhalla podia sentir
os ossos de seu braço se comprimirem através do ombro enquanto
ela dava um soco na bochecha dele. Sua mão doía, mas ela ignorou
o fato, aterrisando rapidamente por conta de seu pulo para o soco e
em seguida disparando para trás.
Grun soltou um grito de raiva e apontou a espada para ela.
— Por que você me odeia? Por que você odeia todos nós? —
Ela gritou, seu corpo se esquivando habilmente dos golpes da
lâmina dele.
— Porque vocês são abominações! — Grun gritou, tentando
agarrar a armadura dela.
Vhalla foi mais rápida e afastou a mão dele com um impulso,
girando até ficar ao seu lado. — Nós somos seus camaradas! Não
queremos lutar com você!
— Disse a mulher que matou inúmeras pessoas na Noite de
Fogo e Vento! — Grun ergueu a lâmina sobre a cabeça e golpeou o
ombro de Vhalla. O tinido de metal contra metal foi agudo e fez seu
ouvido zunir enquanto ela caía no chão.
Eles achavam que ela era uma assassina.
— Eu não os matei, — sussurrou Vhalla.
— Mentirosa! — Grun ergueu a lâmina novamente. — Eles
deveriam ter matado você naquela noite!
O gigante mirou direto em sua cabeça. Vhalla olhou para a
lâmina enquanto o mundo se transformava em caos com as
intenções claramente assassinas de Grun. Isso não era um treino; o
homem pretendia que fosse uma execução.
Vhalla levantou a mão e o vento arrancou a lâmina de Grun de
seus dedos, enviando-a para a areia ao longe. Ela passou a mão na
frente de seu corpo e uma rajada de vento secundária golpeou a
lateral Grun. Quando Vhalla se levantou, ela pressionou a mão para
baixo, segurando o homem no chão, apesar dos esforços dele.
— Eu não sou sua inimiga, — ela sussurrou com uma voz
perturbadoramente calma. — Então eu não posso morrer hoje. Eu
não vou morrer até que você veja a verdade.
— O que está acontecendo aqui? — Uma voz berrou. O Príncipe
Baldair atravessou a multidão que se reunia, Raylynn ao seu lado.
Vhalla relaxou a mão, permitindo que Grun se levantasse.
— Ela me atacou! — O homem fez sua acusação, se dirigindo ao
príncipe.
— Mentiroso! — Daniel gritou. Grun fuzilou o Lorde Oriental com
os olhos. — Meu príncipe, Vhalla foi gentil o suficiente para treinar
com ele, e Grun se aproveitou da situação. Ele atentou contra a vida
dela.
— Era só um treino, — respondeu Grun. — Foi ela quem deu o
primeiro golpe; olhe para o meu rosto.
Grun de fato tinha uma contusão se formando onde Vhalla o
atingira, mas ela podia lamber os lábios e sentir o gosto de sangue.
— Ela é um monstro, e se pudesse, teria me matado - foi
legítima defesa, — continuou Grun.
Vhalla viu nuances do Senado quando alguns soldados
começaram a assentir.
— Isso não é verdade! — Daniel sacou a lâmina, a voz rude. —
Continue a mentir e eu arrancarei sua língua.
— Defenda sua aberração. — Grun tentou pegar sua própria
espada, esquecendo que Vhalla o desarmou completamente.
— Chega! — Príncipe Baldair gritou. Os homens fumegavam de
ódio, mas fizeram silêncio. O príncipe virou-se para Vhalla. — Você
tem algo a dizer em sua defesa?
Vhalla encarou os olhos azuis sem fim do príncipe, considerando
sua pergunta. Seu lado latejava onde Grun a chutou, onde Rato e
Verruga a chutaram. Ela cerrou os punhos, soltando seu domínio
sobre sua Via mágica - e com ele, sua vontade de lutar. — Não.
— Não? — O príncipe ficou surpreso.
— Eu aprendi que o Império... — Vhalla se virou, encarando os
soldados. — Que o povo, não têm interesse na verdade. — Vhalla
encarou os olhos do Príncipe Baldair friamente. — Sou propriedade
da coroa, e propriedades não revidam.
O desprezo surpreendeu até mesmo ela, e todos ficaram em um
silêncio atordoado. Foi a primeira vez que ela disse isso em um
lugar público, a primeira vez que assumiu sua nova identidade. Eles
pensariam o que quisessem sobre ela - palavras não mudariam a
realidade. Então, por que travar essa batalha? Ela tinha coisas o
suficiente com o que se preocupar - sobreviver, por exemplo.
— Venha comigo, feiticeira. — O príncipe claramente se ofendeu
com sua franqueza. — Grun, Daniel, eu vou lidar com vocês mais
tarde.
— Baldair… — Daniel deu um pequeno passo entre Vhalla e o
príncipe.
— Silêncio, soldado!
Vhalla nunca tinha visto o Príncipe Baldair ser tão severo. Daniel
olhava para ela com desespero enquanto a garota seguia o príncipe
acampamento adentro. Ela sabia que deveria se sentir culpada, mas
não se sentia. E seu humor azedou no momento em que Baldair a
conduziu até a tenda dele.
Era completamente diferente da de Aldrik por dentro. Ele tinha
uma mesa de verdade e três cadeiras posicionadas em torno dela.
Um único braseiro de bronze pendia do centro da tenda e iluminava
a sala. A cama do Príncipe Baldair era grande - por motivos que
Vhalla podia adivinhar, dada sua reputação com as mulheres - e
parecia um colchão de verdade. Ela se perguntou quão difícil era
para os cavalos carregarem aquilo tudo.
O príncipe fechou a aba da tenda atrás dele e fez um pequeno
círculo em volta dela, avaliando Vhalla da cabeça aos pés. — Sente-
se. — Ele apontou para uma cadeira. — Ou, talvez você prefira que
eu jogue algumas almofadas no chão?
Os olhos de Vhalla se arregalaram, lendo as entrelinhas de suas
palavras.
— Você parece desconfortável. — O príncipe fez uma pausa,
seus olhos lendo os dela. — Eu supunha que você ficaria mais à
vontade na tenda de um príncipe. Ou é só na do meu irmão?
— O que você quer? — Ela exigiu.
— Hoje, eu vi ele em você. — Baldair apertou os olhos, como se
estivesse tentando imaginar Aldrik imposto sobre dela. — O jeito no
qual se moveu, o modo como você foi impelida pela luta. Diga-me,
essa é a única maneira que ele esteve em você?
— Eu não sei do que está falando, — Vhalla sibilou.
— Não me lembro da última vez que vi Aldrik com uma mulher,
ao menos uma que não foi comprada ou dada a ele por nosso pai,
numa tentativa de encontrar a futura Imperatriz. — Baldair deu um
passo para mais perto dela. Ela não conhecia esse príncipe. Havia
uma natureza competitiva e feia nele, que só piorava quando ia de
encontro ao seu belo exterior.
— Nem mais uma palavra, — advertiu Vhalla.
— Ah? Isso é ciúme das outras mulheres? Você achou que ele
era um exemplo de pureza? Já o vi matar garotas mais jovens que
você. Eu o vi enganar mulheres para levá-las para a cama. — O
Príncipe Baldair riu.
A tensão em seus músculos era tanta que Vhalla temeu que
fosse quebrar seus ossos. — Fale sobre ele novamente e eu vou...
— Você vai o quê? — Príncipe Baldair ignorou o seu blefe. —
Não me ameace, Vhalla. Nós dois sabemos os termos que o
Senado lhe deu. Você não gostaria de forçar a mão de Aldrik,
gostaria?
O horror a silenciou, e suas mãos relaxaram. Ele não faria isso.
— O que você quer de mim? — Ela sussurrou.
O príncipe se inclinou em sua direção para sussurrar em seu
ouvido. — Seja o que for que você tenha com ele, termine agora. —
Sua voz era baixa e parecia sincera e aflita. — Se não por você,
então por ele.
O peito de Vhalla se apertou, mas ela não teve a oportunidade
de perguntar o que ele quis dizer. O barulho de um único cavalo e o
relincho de uma parada brusca puderam ser ouvidos, vindos do lado
de fora da tenda.
Príncipe Baldair olhou para cima quando a aba da barraca foi
aberta. Vhalla se virou e uma onda de alívio caiu sobre ela quando
viu a figura sombria entrar.
— Ah, irmão, — disse o Príncipe Baldair docemente, afastando-
se do rosto dela. — Estávamos falando sobre você.
O S OLHOS DE ALDRIK faiscaram de Vhalla para o irmão. Vhalla
encontrou o seu olhar e implorou silenciosamente para ele tirá-
la de lá o mais rápido possível. Ela o viu reunir suas emoções e
mascará-las enquanto cruzava as mãos atrás das costas.
— O que está acontecendo aqui? — Sua voz continha uma
calma mortal.
— Ela foi flagrada em uma briga. — Príncipe Baldair olhou para
Vhalla. — Eu estava administrando as medidas disciplinares.
A cabeça de Vhalla se voltou bruscamente para o príncipe mais
jovem. Era assim que ele chamava isso?
— Acredito que aplicar medidas disciplinares cabe ao líder do
subordinado. — Ela podia ouvir o estresse sob o tom de voz frio de
Aldrik.
— Normalmente, sim, — o Príncipe Baldair concordou. — Mas
acho que o líder dela é bastante tendencioso, não é?
— Baldair... — Aldrik nem tentou esconder a ameaça nas
profundezas de sua voz.
— Acho que você está confundindo a mulher, Aldrik. Nós dois
sabemos como as necessidades de um homem precisam ser
atendidas, mas ela é jovem demais para você e seus joguinhos. —
O Príncipe Baldair cruzou os braços sobre o peito.
Vhalla absteve-se de pontuar que ela não era assim tão mais
jovem do que o próprio Baldair.
— O que é isso? — Aldrik foi até o irmão, parando a uma
distância mínima apenas para encará-lo de cima. — Ciúme
descabido? — Aldrik zombou. — Que uma mulher talvez prefira a
mim do que a você?
— Não fique se gabando, — ridicularizou o príncipe de olhos
azuis. Príncipe Baldair se esticou ao máximo e ainda assim era pelo
menos um palmo mais baixo que seu irmão. — Isso não é sobre eu
ou você, isso é sobre ela. — Seus olhos se voltaram para Vhalla. —
Ela era gentil, tímida e doce na primeira vez em que a conheci.
Menos de um ano com você e veja o que fez com ela, Aldrik. Ela
está de preto…
— Baldair… — Aldrik rosnou.
— ...e ela está lutando e gostando de fazer isso, — continuou o
príncipe mais jovem.
— Baldair! — A mão de Aldrik se fechou em punho.
— Ela tem sangue nas mãos! — O rosto do Príncipe Baldair
avançou, ficando cara a cara com o de Aldrik. — Você tem a
audácia de não se sentir culpado?
A mandíbula de Aldrik se contraiu, mas ele não disse nada.
O príncipe mais jovem balançou a cabeça. — Pelo menos isso.
— Ele voltou-se para ela com uma expressão triste. — Vhalla, você
não precisa dele para brilhar. Eu tentei te dizer isso antes da Noite
de Gala. Especialmente agora, você não precisa se forçar a tolerar a
presença dele depois do que ele…
Vhalla já tinha ouvido o suficiente; ela deu os três passos entre
eles vigorosamente, ergueu a mão e bateu a palma aberta com
força no rosto do príncipe mais jovem.
Vhalla nunca tinha estapeado ninguém antes. Talvez o Príncipe
Baldair tivesse razão sobre ela ter mudado significativamente nos
últimos meses. Se houvera mesmo uma mudança, ela decidiu que
tinha sido para melhor, enquanto sentia uma profunda satisfação
correr através dela.
A mão dele subiu para a marca vermelha na própria bochecha, e
ele a encarou com os olhos arregalados e a boca aberta. Até Aldrik
ficou chocado em um silêncio pasmo.
— Chega! — Vhalla se atrapalhou com as palavras, suas
emoções enlouquecidas. — Nunca mais o faça se sentir, ou sugira
que ele deva, se sentir culpado por mim ou em meu nome. — Ela
encarou o príncipe de ouro. — E não finja que você de alguma
forma sabe, sabe como… — Vhalla sentiu suas entranhas
revirarem, os pensamentos em sua mente nublando. — Como eu,
ou, como ele... Como nós... — Ela ouviu sua voz falhar; ela não
queria enfrentar isso aqui.
A expressão do Príncipe Baldair caiu.
Aldrik lançou um olhar para o irmão antes de dar as costas a ele,
para encarar Vhalla. Ele colocou uma mão em seu ombro, a outra
passando cuidadosamente sobre sua bochecha ferida. Aldrik
inclinou o rosto dela em sua direção, e ela encarou seus olhos,
trêmula.
— Vhalla, — ele sussurrou, acariciando sua bochecha com o
polegar. — Está tudo bem, já é o suficiente. — Ela relaxou sob o
calor familiar de seu olhar, e Aldrik deu a ela um pequeno sorriso
que foi devolvido fracamente.
— É verdade, não é? — O Príncipe Baldair murmurou.
A mão de Aldrik saiu de seu rosto, mas a outra permaneceu em
seu ombro quando ele virou para avaliar o irmão.
O príncipe mais jovem olhava para a cena diante dele com os
olhos arregalados. — Você realmente se importa com ela.
Ela sentiu Aldrik tensionar diante da afirmação, mas ele não fez
nenhum movimento para se afastar; na verdade, sua mão se
apertou um pouco mais. O coração de Vhalla bateu mais forte. Ela
queria desesperadamente ir embora, fugir o mais rápido possível.
Por mais que ela quisesse ouvir a verdade nua e crua na resposta à
essa acusação, ela não queria que fosse desse jeito.
— E você... — O Príncipe Baldair olhou para ela.
Vhalla reuniu os restos de sua coragem para olhá-lo de forma
inabalável. Ela teve sucesso o suficiente - o príncipe foi o primeiro a
desviar o olhar com um aceno de cabeça. Ele caminhou
pesadamente até uma cadeira e se afundou nela. O príncipe apoiou
a têmpora na ponta dos dedos, olhando incrédulo para Aldrik.
— Eu só queria ajudá-la. Pensei que você fosse... Aldrik, você é
inteligente demais para isso.
— Eu sei, — respondeu Aldrik em voz baixa, a tensão parecia ter
desaparecido e a tristeza encheu os olhos dele em seu lugar.
— E eu aqui pensando que, pensando que você… — O Príncipe
Baldair riu e balançou a cabeça novamente. — Ah, deixa pra lá.
— Príncipe Baldair. — Vhalla deu um passo à frente e a mão de
Aldrik saiu de cima dela. — Sinto muito por minhas ações hoje. Mais
importante, desculpe-me por bater em você. — Ela respirou fundo.
— Eu apreciaria se… se isso não fosse usado como uma razão para
me matar.
O príncipe começou a rir; ele colocou uma mão sobre o
estômago e deixou o som melódico quebrar a tensão no ar.
— Não, eu meio que mereci, não é? — Vhalla olhou para ele,
atordoada. O príncipe virou-se para o irmão. — Hoje não foi culpa
dela, Aldrik. Acho que parte do que ela disse na verdade pode ter
dado uma boa sacudida nos homens. Você ficaria orgulhoso se
tivesse visto, acho. — O Príncipe Baldair mudou de posição,
descansando a bochecha na mão. — E, Vhalla, me desculpe. Essa
não foi uma maneira muito principesca de agir.
Vhalla o estudou cuidadosamente. Num geral, esse homem tinha
feito mais bem do que mal, e ele tinha ganhado créditos com ela
quando estava sendo julgada - créditos que ele estava gastando
agora. Baldair talvez fosse emocionalmente alienado, mas Vhalla
não tinha certeza se era maldoso.
— Eu te perdoo, meu príncipe, — disse ela. As palavras dele
ainda doíam como uma ferroada, mas Vhalla deixou isso de lado,
pelo menos por enquanto.
Vhalla voltou-se para Aldrik - seu alto, maravilhoso, príncipe das
trevas - e deu à ele um sorriso aliviado. Seus olhos pousaram
suavemente sobre ela, e parecia que a tensão que esteve se
construindo entre os dois estava perto de ruir. Não era um
sentimento desagradável.
— Vamos? — Ela perguntou.
Ele assentiu, lançando um último olhar para o irmão antes de
sair.
Vhalla fez uma breve pausa, virando-se. Ela considerou o
príncipe de cabelos loiros, que a olhou curiosamente em resposta.
— O que você queria de mim, receio que não vou poder fazer. —
Vhalla já tinha aceitado que, seja o que quer que acontecesse ou o
que quer que eles fossem, não seria ela quem terminaria as coisas
entre ela e Aldrik.
— Vá com cuidado, Vhalla, — advertiu o Príncipe Baldair. — Sei
muito mais sobre o meu irmão do que você. Eu posso parecer um
idiota…
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Eu sou um idiota às vezes, — ele corrigiu com uma risada. —
Mas sou exatamente o que você vê. Ele, não. Há coisas sobre ele
que você ainda não sabe.
Vhalla puxou a aba da tenda. Mesmo que houvessem coisas,
Vhalla não as ouviria de Baldair. Aldrik diria a ela, na hora certa.
— E, Vhalla? — O príncipe ficou de pé. — Cavalgue na linha de
frente novamente. Não deixe isso que aconteceu te dissuadir.
— Por quê? — ela perguntou cética.
— Porque acho que é bom para os homens ver você comigo. —
Ele sentiu a confusão dela e continuou: — Você é um símbolo,
Vhalla. E, apesar do que alguns acreditam, você tem mais controle
sobre o que simboliza do que qualquer outra pessoa.
— Eu não sou ninguém, — ela murmurou, ouvindo Aldrik montar
em seu garanhão de guerra.
— Mesmo algo muito pequeno pode lançar uma grande sombra
quando está perto do sol.
Vhalla considerou a afirmação por um longo momento,
procurando no rosto do príncipe por alguma pista de insinceridade.
Ela não encontrou nenhuma, e o deixou para trás antes que ele
tivesse a chance de dizer outra coisa que poderia potencialmente
arruinar sua frágil sensação de paz. Independente de tudo que o
Príncipe Baldair era, ou já tinha sido, Vhalla de alguma forma não
sentia que ele era seu inimigo.
Aldrik tirou um pé do estribo para ela subir, oferecendo-lhe uma
mão para ajudá-la a montar em seu cavalo. As bochechas de Vhalla
ficaram quentes quando montou atrás dele na sela. Suas mãos
pousaram levemente sobre a cintura dele, revestida com armadura,
em busca de equilíbrio.
— Onde está Relâmpago? — Ela perguntou.
— O soldado Oriental do meu irmão o levou de volta quando foi
buscar Fritznangle. — Aldrik impulsionou a montaria para frente.
O vento estava fresco e cálido em suas bochechas depois da
atmosfera opressiva na tenda.
— Daniel?
Aldrik assentiu em silêncio.
— É uma boa ideia cavalgar assim? — Vhalla perguntou
baixinho, notando os olhares dos soldados.
— Eu quero que eles te vejam comigo. — Ele respondeu tão
rapidamente que não teria como o príncipe ter pensado antes de
dizer as palavras.
— Por quê? — Ela sussurrou.
— Porque eu quero que eles saibam que, se colocarem a mão
em você de novo, terão que lidar comigo diretamente. — A voz de
Aldrik era profunda e ríspida, e isso a fez querer agarrá-lo e nunca
deixá-lo ir.
Ele os levou diretamente para sua tenda. Os soldados da Legião
Negra que tinham acabado de montá-la estavam começando a se
dissipar, e todos olharam para ela com curiosidade enquanto Aldrik
conduzia Vhalla para dentro. Poder se afastar dos olhares
indiscretos de todo mundo era um alívio, mas, por outro lado,
também era igualmente estressante ter esses mesmos olhares
indiscretos observando-a ser conduzida com a mão do príncipe em
suas costas.
No momento em que a aba da tenda se fechou, os braseiros
alinhados ao longo do perímetro se acenderam com chamas. Aldrik
nem parecia pensar antes de usar sua magia. — Tire isso, eu vou
consertar. — Ele colocou uma palma em seu ombro ferido.
Vhalla assentiu, começando a abrir a malha escamada enquanto
Aldrik fazia o mesmo. Ela se sentiu confortável e nervosa ao mesmo
tempo. Aldrik pegou a couraça de metal enquanto Vhalla despia sua
cota de malha.
— Então, o que aconteceu? — Aldrik perguntou.
— Bem... — Vhalla suspirou e contou os eventos que a levaram
à tenda de Baldair.
— Você o derrotou no final, então? — Ele perguntou depois que
ela terminou sua história.
— Derrotei. — Vhalla assentiu.
— Como?
— Eu simplesmente me movi... — Ela não tinha certeza de qual
resposta ele estava procurando com essa pergunta.
— Como fez com Elecia? — Aldrik ergueu os olhos de onde
estava trabalhando na couraça. Seus polegares corriam sobre o
metal quente e vermelho.
— Sim... — Vhalla fez uma pausa, esperando que ele
preenchesse os espaços em branco. Ele não preencheu, e a
frustração tomou conta dela. — Você não pode continuar fazendo
isso.
— Continuar fazendo o que? — Ele pareceu surpreso com o tom
dela.
— Você não pode continuar fazendo perguntas enigmáticas e
depois ir embora batendo os pés de mau humor sem me dar as
respostas que sei que você tem. — Vhalla não era ninguém e,
mesmo assim, corajosamente fazia exigências ao príncipe herdeiro.
Aldrik apenas suspirou e deixou que fizesse isso. — Tudo bem,
mulher teimosa. — Ele colocou a armadura concertada dela de lado.
— Você não acha estranho que, do nada, você seja capaz de
derrotar soldados com anos de prática?
— Temos treinado. — Era uma desculpa bem esfarrapada
quando Vhalla realmente pensou sobre isso.
— Você era desajeitada, na melhor das hipóteses. — Quando
Aldrik era honesto, ele não media as palavras. — Eu estava
começando a ficar com medo do que precisaríamos fazer para
mantê-la viva quando chegássemos ao Norte.
— Então, o que aconteceu? — Vhalla pressionou.
— Você luta como eu. — Aldrik encarou seus olhos.
— É claro que luto.
— Não, Vhalla. — Ele balançou a cabeça. — Você luta
exatamente como eu.
— Por quê? — Ela sussurrou.
— Só posso assumir que é por causa da Ligação, — refletiu
Aldrik.
— Mas não estamos mais Ligados. — Eles não tentaram
novamente desde aquela primeira noite, semanas atrás.
— Não, mas o Vínculo foi ampliado, e nossas mentes estavam…
— Aldrik fez uma pausa, fechando os olhos com um suspiro suave.
— Nossas mentes estavam unidas. Foi uma coisa imprudente a se
fazer da minha parte, dado o pouco que se sabe sobre seus efeitos.
— Então, já que é assim, — ela se atrapalhou, suas palavras
lutando para encontrar a fonte do desconforto dele. — Por que não
interrompemos isso?
— Mesmo se pudéssemos, eu não o faria.
— Mas... — Se isso parecia estar causando a ele tanta angústia,
por que não acabar com isso?
— Porque agora eu posso ter alguma garantia que você
conseguirá sobreviver à essa guerra.
Vhalla ficou atordoada em silêncio. Ela não aguentou o peso do
olhar dele e se engajou em um rápido concurso de encarar com a
mesa. — Eu sei, — ela começou a confessar. — Larel me contou
sobre os Vínculos. Que, se eu morrer, você morre também.
— Isso é apenas uma teoria. — Aldrik afastou o pensamento
com facilidade. — E não é vinda de nenhum estudioso respeitável.
— Mas...
— Eu quero que você se preocupe apenas consigo mesma. —
Ele sentiu que ela queria protestar. — Vhalla, por favor, me prometa
que vai fazer isso.
A luz do fogo estava pregando peças em seus olhos. Estava
fazendo com que o homem que era quase quase sete anos mais
velho que ela parecesse nada mais do que uma criança assustada.
Vhalla se moveu sem pensar, pegando as mãos dele nas suas.
Aldrik apertou seus dedos com força, e ela apagou todas as dúvidas
que existiam dentro de si.
— Eu prometo, mas só se você me prometer também que vai
parar de fugir e esconder as coisas. Não quero sentir como se você
me deixasse de fora. — A voz de Vhalla caiu para um sussurro, e
Aldrik assentiu silenciosamente, poupando-lhe de qualquer
explicação adicional.
— Devemos praticar sua Projeção. — Ele os tirou do transe em
que estavam.
— Ah, certo. — Vhalla tinha esquecido por completo de que eles
realmente planejaram trabalhar juntos naquela noite.
— Vamos deixar a magia de lado, por enquanto, e focar em ver o
quão longe você consegue ir. — Aldrik se colocou diante da mesa,
ajustando seus papéis.
— Claro, — ela fechou os olhos.
— Você poderia deitar primeiro? — Aldrik a lembrou que seu
corpo físico ficou mole da última vez. Ele pegou uma das almofadas
e a apoiou sobre sua perna.
Vhalla hesitou, o convite era claro. O príncipe fingiu prestar
atenção na papelada, claramente apreensivo se ela o aceitaria ou
rejeitaria. As palavras de aviso do Príncipe Baldair se repetiram de
forma frustrante na mente de Vhalla e ela se deitou rapidamente,
com a cabeça apoiada na perna dele. Ela não deixaria o príncipe
mais jovem e seus joguinhos se meterem em seu caminho.
Vhalla saiu de seu corpo logo após fechar os olhos. Era surreal
ver sua forma física tão imóvel, como se mal respirasse. Aldrik a
observou atentamente, esperando por qualquer sinal de problema.
Eu acho que é mais fácil agora, Vhalla disse com um
pensamento.
— Parece que sim, — ele concordou.
Você pode me ouvir mesmo que eu esteja longe?
— Só tem uma maneira de descobrir. Vá devagar — ele advertiu,
mas não disse para ela parar.
Vhalla passou através das abas de lona da tenda. Houve alguma
resistência, mas nada que ela não pudesse lidar. As pessoas
andavam de uma fogueira para outra, mas ninguém a notava.
Você ainda pode me ouvir?
— Alto e claro. — Aldrik parecia animado com o progresso dela,
e isso a encorajou a continuar.
Ela avançou em linha reta e descobriu que só era desconfortável
quando alguém a atravessava. Era como um calafrio estranho, e o
mundo ficava desorientado por um instante. Mas depois da terceira
vez, Vhalla estava começando a ajustar sua magia de acordo com a
necessidade, se recuperando mais rapidamente.
— Você está bem?
Sim. Estou no limite do acampamento agora.
— Vá um pouco mais longe.
Vhalla caminhou deserto adentro até o sol mergulhar sob o
horizonte. Ela chamava Aldrik regularmente, mas a conexão era
consistente e forte. Quando ela retornou ao seu corpo, havia poucas
dúvidas de que ela começara a dominar a arte da Projeção.
Retornar era simples; ela ouviu o pulso que a guiou de volta na
primeira vez e soltou seu domínio sob a magia. Mas quando seus
verdadeiros olhos se abriram, Vhalla soltou um gemido suave ao
perceber o modo como o mundo girava.
Aldrik se mexeu, inclinando-se sobre ela. — O que foi?
— Acho que meu cérebro está apenas retornando mais devagar
por causa da distância. — Ela não tinha certeza se isso fazia
sentido. Houve um ruído de algo arranhando, e ela viu que ele
voltou a fazer anotações. Vhalla lutou para se sentar.
— Deite-se, Vhalla, — ele repreendeu. Ela voltou à sua posição
inicial, a mão esquerda dele correndo gentilmente por seus cabelos.
— Você é incrível. — A voz de Aldrik era apenas um sussurro e ele
se concentrou nos papéis ao invés dela. Vhalla olhou para cima,
para ele, mas o homem parecia mais estar falando consigo mesmo.
— Mas acima de tudo, você será a chave para acabar com esta
guerra.
— Você acha? — Vhalla murmurou cansada.
— Acho. — Não havia nenhum traço de dúvida em sua voz. —
Agora descanse.
Vhalla obedeceu e fechou os olhos.
As semanas se passaram como areia através das dunas. O
deserto era deprimente e vazio, mas os dias de Vhalla eram cheios.
Seja por causa do pedido dela ou por vontade própria, Aldrik se
recuperou rapidamente do choque por conta dos efeitos da Ligação.
Em particular, a encorajava a se apoiar liberalmente em sua
conexão com ele. O príncipe a garantiu que isso não o afetava de
forma alguma.
Vhalla foi cautelosa - a princípio. Mas quanto mais ela permitia
que aquela pulsação dominasse seus ouvidos, mais forte e rápida
ela se tornava. Era como se seu corpo estivesse reaprendendo o
que já sabia, tornando cada movimento mais aguçado e preciso.
Aldrik ainda cavalgava com Elecia em alguns dias, e Vhalla com
a Guarda Dourada. O Príncipe Baldair parecia satisfeito com a sua
presença. Quanto mais tempo passava com o príncipe mais jovem,
mais tempo queria ficar com ele em particular. Ela tinha perguntas
sobre suas mensagens enigmáticas e avisos mal disfarçados.
Queria perguntá-lo de forma direta o que ele sabia, o que queria
dizer com aquilo. Mas o tempo que passavam juntos nunca se
estendia além da marcha.
As noites de Vhalla eram gastas suando e empurrando seu
corpo além de todos os limites sob as demandas do príncipe mais
velho. Vhalla estava agradecida pela mistura de encorajamento
gentil e vigoroso tanto de Aldrik quanto de seus amigos. Seu corpo
estava começando a se preencher mais uma vez, definindo
músculos em lugares que ela nunca imaginou que poderiam.
A atmosfera da marcha começou a mudar à medida que se
aproximavam das Encruzilhadas. Havia um alívio palpável entre os
soldados cansados da estrada e queimados pelo sol, por estarem
perto de um ponto de descanso.
— Quanto tempo mais vocês acham que vai levar? — Vhalla
perguntou aos seus companheiros.
— Possivelmente um dia, talvez dois, — respondeu Aldrik. Sua
atenção nela agora era uma ocorrência regular.
— Uma cama, — disse Fritz saudosamente.
— Um banho, — Vhalla suspirou feliz com o pensamento. — Vai
haver água nas Encruzilhadas, certo? — O exército ficou limitado às
rações de água dos poços que ladeavam o Grande Caminho
Imperial em longos intervalos. Nenhum deles tomava um banho
havia semanas, e Vhalla não conseguia imaginar o quão mal todos
eles cheiravam para alguém que não estava acostumado com o
fedor.
— Claro que haverá água, — Larel riu. — As Encruzilhadas são
um lugar mágico, Vhalla. É o centro do mundo.
— Mal posso esperar. — Ela estava genuinamente animada
depois de ficar na estrada por tanto tempo. — O que vocês farão
primeiro?
— A primeira coisa que vou fazer é beber um Dragão Escarlate,
— proclamou Fritz.
— Você é um bebum, — brincou Larel.
— Um o quê? — Vhalla perguntou.
— Um Dragão Escarlate é um tipo de bebida, — respondeu
Aldrik, à sua esquerda. — É feito com álcool Ocidental
condimentado, tem um sabor acentuado e é muito forte.
— Eu quero experimentar um também, então. — Ela sorriu de
volta para Fritz e o Sulista de cabelos bagunçados já começou a
planejar uma grande aventura para os três. Larel tentou domar seus
sonhos grandiosos e os dois entraram num bate-boca em questão
de minutos.
— Vhalla, — disse Aldrik com uma voz que era reservada
apenas para ela. A garota olhou para ele. — Há algo que eu quero
lhe dizer.
— Sim? — O tom dele fez seu pulso acelerar.
— Nas Encruzilhadas, eu tenho alguns... negócios que precisarei
resolver com Elecia.
Vhalla estava mais preocupada com o quão delicado ele estava
sendo com o assunto do que com as próprias palavras em questão.
O que o deixava tão desconfortável? — O que é?
— Você não precisa se preocupar com isso. — Seus olhos
estavam reservados.
— Aldrik, você me prometeu...
— Vhalla, — ele sibilou. Ela levou a mão à boca olhando
rapidamente ao redor para ver se alguém tinha notado seu deslize
ao esquecer o título dele. — Eu vou te dizer, prometo. Mas somente
quando for a hora certa.
— Quando será a hora certa? — Ela pressionou.
— Quando tudo estiver acabado e resolvido. — Seu tom deixava
claro que ela não obteria mais informações sobre o assunto. Vhalla
suspirou suavemente. — Deve levar apenas dois dias, três no
máximo. Vou te encontrar depois disso e contar tudo.
— Tudo bem. — Vhalla assentiu e exibiu um semblante corajoso
pelo resto do dia. Mas as palavras dele chacoalhavam em seu
cérebro a cada passo, ecoando na noite.
O DIA ESTAVA quente e pegajoso, e seu cabelo grudava no rosto e
pescoço por conta do suor, enquanto tirava o elmo. Ela olhou
para as árvores densas acima, retorcidas e grossas com as copas e
cipós. Sua mente lamentou por conta da última vez que tinha visto o
céu ininterrupto. Um pássaro disparou entre as folhagens antes de ir
para o céu acima. Ela se viu desejando que pudesse fazer o
mesmo.
O cheiro de cinzas e fogo enchia o seu nariz, um perfume muito
familiar que ela mal notava mais. Seu olhar voltou para a terra e em
direção à destruição que fora realizada. Os últimos sobreviventes
estavam sendo mortos pela espada. Sangue estava espirrado sobre
sua própria armadura, o vermelho ficando escuro contra o preto da
malha escamada e da couraça de metal.
Vhalla reconheceu vagamente que algo estava distintamente
fora de lugar. A pontada da consciência de que algo estava errado
rastejou dentro dela.
Ela voltou para sua tenda. Não, não a tenda dela; ou era? Tentar
pensar era muito difícil, como se estivesse lutando contra o óbvio.
Dentro havia o mesmo espaço familiar no chão, com almofadas
e uma pequena mesa, embora desta vez estivesse perto da cama.
Uma outra grande mesa retangular com cadeiras dominava o lado
oposto. Estava bagunçada com papéis que caíam no chão, e ela
tirou suas grandes manoplas, jogando-as de qualquer modo.
Sua respiração ficou irregular e ela se virou. Com um movimento
de seus braços, empurrou todos os papéis e documentos no chão
com um grunhido. Ela bateu as mãos sobre a mesa e sentiu os
ombros tremerem.
Esta cidade não fazia parte das forças rebeldes. Talvez alguns
tivessem se unido à resistência, mas tudo havia sido submetido às
chamas e ao aço. Suas unhas cravaram na madeira da mesa
enquanto ela abafava um grito de frustração. Ninguém poderia ouvir
sua dor. Ela não podia deixar que os soldados ficassem sabendo de
sua instabilidade. Ela nunca pôde.
Os olhos dos mortos permaneciam em sua memória, os olhos
suplicantes e temerosos enquanto ela os envolvia em chamas e os
queimava vivos. Nunca ficava mais simples com o tempo. As
lembranças nunca eram mais fáceis de suportar.
Recuperando o controle, começou a tirar sua armadura. Ela
realmente precisava da ajuda de outra pessoa com a grande
couraça de metal, mas não podia se importar menos enquanto
queimava através das fivelas de couro escondidas embaixo da
peça. Ela consertaria isso mais tarde.
Se seus pecados fossem tão fáceis de remover quanto sua
armadura, ela talvez pudesse dormir à noite. Esfregou os olhos,
cansada. Com um suspiro, começou a vasculhar uma bolsa
escondida em sua cama, pegando a única coisa que poderia lavar a
sua dor e afogar os gritos. Um chamado interrompeu suas ações.
— Meu príncipe. — A voz era familiar, um dos homens de
Baldair.
— Entre. — A voz dela era profunda. Um homem de cabelos e
olhos escuros entrou na tenda, e ela o avaliou ferozmente, sem
vontade de receber visitas e esperando muito que ele percebesse
isso. — Como posso lhe ser útil? — Ela perguntou rapidamente.
— Hoje, — ele deu um passo à frente, seus movimentos
espasmódicos; ela se perguntou se ele estava pior do que ela. —
Hoje você liderou o ataque, não foi? — Ele ainda estava de
armadura, coberto até os cotovelos em sangue e cinzas.
— Foi. — Ela já estava irritada com essa conversa. Apesar do
que os soldados pensavam de sua pessoa, a última coisa que ela
queria fazer era relembrar seus assassinatos. — Se isso é tudo... —
Ela virou as costas para o homem, fingindo estar interessada em
pegar os papéis espalhados. Apenas as poucas palavras que ele
tinha dito trouxeram os rostos horrorizados de volta à sua mente.
— E-ele teria vinte e dois, — o homem divagou. — Ele tinha
cabelos escuros, como nós; ele era do Oeste.
Ela pegou um papel, continuando a ignorá-lo; o homem não
parecia entender a dica.
— Ele se casou jovem, com uma noiva Nortenha. — Algo torceu
em sua voz.
— Receio não saber de quem você está falando, — disse ela,
devolvendo um punhado de papéis à mesa.
— Meu filho. — O homem deu um grito doentio e se lançou
contra ela. A adaga afundou na lateral de sua cintura, logo acima do
quadril.
Houve um grito masculino que foi um dos sons mais
assustadores e horríveis que Vhalla já foi forçada a ouvir, e ela
gritou com ele. Ela começou a lutar contra a prisão mental que a
confinava. Ela não queria mais ver.
Ela sentiu o veneno, uma sensação vertiginosa e doentia que
tomou conta de si quase que imediatamente. Ela olhou para o
homem em choque quando ele dava um passo para trás. Sua mão
se estendeu até o rosto dele e logo o soldado estava em chamas,
suas feições se contorcendo antes de queimar até a morte.
Seus pés começaram a tropeçar e a ceder. Ela colocou a mão na
adaga. Removê-la incitaria imediata perda de sangue, mantê-la ali
continuaria a injetar mais veneno em suas veias. Ela gritou,
inclinando-se contra a mesa. Com uma mão trêmula, agarrou a
adaga, tomando sua decisão enquanto puxava a lâmina ondulada.
O aço cortou sua carne novamente quando ela o arrancou de sua
lateral.
Sua mão estava pressionada contra a ferida aberta. Um soldado
entrou correndo. — Já era hora — ela quis dizer, mas sua
mandíbula estava cerrada, o sangue encharcando a camisa fina que
ela usava e escorrendo entre os dedos. Sua visão começou a
embaçar e ela concentrou seu poder para dentro, sentindo o fogo
queimar em suas veias enquanto tentava purgar o veneno.

Vhalla acordou com um grito, a mão na cintura. Ela jogou os


cobertores para o lado, olhando para o próprio corpo. Levantou a
túnica, vendo apenas pele lisa e imaculada onde esperava ver
sangue. A garota levou a mão à testa e enxugou o suor frio.
Ela se sentia doente. Seu cérebro voltou lentamente a funcionar
enquanto lutava para recuperar o fôlego. Vhalla tentou dizer a si
mesma que era apenas um sonho, que aquilo tinha sido só um
sonho. Mas ela sentiu na pele cada minuto. Ela tinha ouvido a voz
de Aldrik.
De repente, uma lembrança de uma noite a muito tempo atrás
retornou à sua memória. Ela se perguntou como poderia ter
esquecido. O fato tinha simplesmente desaparecido de sua mente
diante do caos em que sua vida se desdobrou.
Ecoando em sua mente estavam as palavras do Nortenho
durante a Noite de Fogo e Vento.
— É claro, também esperávamos que, se o veneno não
conseguisse matá-lo, a vergonha de ter um dos homens do seu
querido e doce irmão te esfaqueando pelas costas seria suficiente.
Não tinha feito sentido na época. Ainda não fazia sentido, ela
lembrou a si mesma. Sua mente tinha inventado uma explicação
para aquele momento confuso e a feito sonhar com isso. Vhalla
abraçou a si mesma. A explicação alternativa era impossível
demais. Assim como no último fragmento de sonho, ela queria ir até
ele. Cada batida de seu coração a fazia lutar contra a distância entre
eles.
— Vhalla, o que foi? — Larel esfregou os olhos, espantando o
sono.
— Nada, — ela arfou.
— Os sonhos estão voltando? — A mulher Ocidental também se
sentou.
— Não. — Vhalla balançou a cabeça. — Foi um sonho, mas não
aquele sonho. Apenas um pesadelo aleatório. — Ela começou a
vestir sua armadura, com pressa para começar o dia e esquecer as
imagens assustadoras remanescentes.
Ela ficou tão aliviada ao ver Aldrik depois que nem se incomodou
quando Elecia cavalgou à frente e se colocou entre eles. A visão do
príncipe acalmou seus nervos e medos, reafirmando-a de que os
sonhos nada mais eram do que apenas terrores noturnos. Os dois
falavam sobre algum feriado Ocidental, e Vhalla saboreou o som da
rara risada dele. Para o grande aborrecimento de Elecia, Aldrik fez
de tudo para incluir Vhalla na conversa.
— Você nunca esteve no Oeste antes, certo? — Ele perguntou
do outro lado de Elecia.
— Nunca. — Ela balançou a cabeça.
— Uma pena que não possamos passar em Norin, — disse ele
pensativamente.
— Eu gostaria de conhecê-la algum dia. — Aldrik sorriu com a
declaração de Vhalla. — Como é Norin?
— Norin se estabeleceu... — Elecia começou arrogantemente.
— No grande oásis ao longo do Mar Ocidental, — interveio
Vhalla. — A brisa do mar ajuda a manter a cidade fresca, apesar do
calor do deserto, e o castelo de Norin é um dos mais antigos do
mundo. Ou pelo menos foi o que eu li. — Vhalla saboreou o olhar de
orgulho e satisfação que o príncipe deu a ela.
— Bem, quase tudo em Norin são as coisas mais antigas do
mundo. Há uma razão pela qual a cidade levou dez anos para cair
diante do Império. — Só Elecia poderia transformar uma derrota em
um símbolo de orgulho, além de ter torcido o nariz para Vhalla.
Vhalla não se importou com Elecia, sua atenção apenas em
Aldrik. A mãe dele tinha vivido naquele castelo como uma das
princesas de Mhashan. Ele era um príncipe de dois mundos. —
Como é a comida? — Ela perguntou, decidindo permanecer
envolvida na conversa.
— A comida Ocidental é mais saudável do que as coisas que
vocês têm aqui no Sul. Nós usamos menos manteigas e óleos, —
proclamou Elecia, orgulhosa.
Vhalla quase não se impediu de revirar os olhos.
— Existe uma sobremesa que eu acho que você gostaria, na
verdade, — murmurou Aldrik. — Eles pegam a raspa dos limões e
cristalizam com açúcar.
— Parece delicioso. — Vhalla sorriu conspiratoriamente,
lembrando-se do bolo de limão que dividiam no jardim de Aldrik.
— Talvez possamos encontrar alguns nas Encruzilhadas. — O
príncipe tirou o elmo por alguns momentos e passou a mão pelos
cabelos. Suor fez eles grudarem em sua cabeça e Vhalla debateu
qual estilo era melhor.
— E quanto à comida Oriental? — Elecia perguntou,
interrompendo a admiração de Vhalla pelo príncipe.
— É simples, suponho. — Na verdade, a família de Vhalla nunca
teve dinheiro para alimentos caros ou sofisticados. — Nunca
experimentei um pão melhor do que o de casa durante a época da
colheita. Mas eu cresci em grande parte no Sul.
— Ah, sim, aprendiz de biblioteca — disse Elecia com
naturalidade.
Irritou Vhalla que a outra mulher simplesmente soubesse coisas
sobre ela e nunca tivesse explicado como as descobriu.
Vhalla abriu a boca para falar quando uma corneta tocou ao sul
da fileira. Eles estavam marchando havia apenas algumas poucas
horas; certamente não seria hora de parar. Todo mundo se virou
quando a corneta tocou novamente em aviso.
Vhalla ouviu Aldrik xingar alto antes de seu cavalo iniciar uma
corrida, disparando pelas fileiras em direção a seu pai, na legião à
frente deles. Elecia deu uma olhadela para o horizonte. Vhalla olhou
também.
— O que foi? — Perguntou, tentando discernir o motivo da súbita
mudança de atmosfera.
— Parece uma tempestade de areia. Que a Mãe nos salve. — A
cabeça de Elecia virou para frente e para trás novamente. — Há
muitos a pé... — ela murmurou e sua cabeça disparou para a direita.
— Larel! — Elecia chamou. Larel encarou a outra mulher nos olhos.
— À que distância fica a primeira muralha de contenção das
Encruzilhadas?
— Uma hora, talvez, se cavalgarmos correndo — respondeu
Larel, apertando os olhos por cima do ombro.
— Uma cidade mais próxima? — Elecia apertou as rédeas.
— Nenhuma que eu saiba. — Larel franziu o cenho, com o rosto
tenso.
— Vamos ter que correr, então. — Elecia amaldiçoou e avançou
em direção à Família Imperial.
— O que está acontecendo? — Vhalla estava confusa.
— É uma tempestade de areia, Vhal. — Fritz olhou para trás
novamente, incerto. — Está distante, mas não queremos ficar
presos no meio de uma dessas. Elas são temperamentais e muito
rápidas. Se conseguirmos nos abrigar, talvez mate apenas alguns
por asfixia. Há muitas coisas aqui que o vento pode carregar e
transformar em projéteis que vão ser um verdadeiro pesadelo.
— É tão ruim assim? — Ela perguntou em choque.
— Os ventos Ocidentais são conhecidos por serem fortes o
suficiente para arrancar árvores com raiz e tudo, além de carregar
homens adultos como se fossem bonecas de pano. As tempestades
normalmente surgem no verão. É anormal surgir uma no inverno.
Não estamos preparados — respondeu Fritz gravemente.
Vhalla girou na sela, olhando para o ponto escuro no horizonte.
Na melhor das hipóteses ela talvez matasse alguns? Isso não
parecia a melhor das hipóteses para ela. A garota se perguntou se
estava imaginando coisas ao perceber que o ponto escuro estava
crescendo no horizonte ao sul. Outra corneta soou, e uma série de
sopros e outras cornetas ecoaram o chamado. Aldrik e Elecia
cavalgaram de volta, juntos.
— Nós vamos correr até as Encruzilhadas! — O príncipe gritou,
chamando a atenção de todos os soldados da Legião Negra. — Não
digam nem mais uma palavra e ouçam as ordens.
Era como se todos tivessem entendido ao mesmo tempo o que
estava acontecendo, e o exército acelerou o ritmo. Mas, com tantos
soldados a pé, eles estavam severamente limitados no quesito
velocidade. Vhalla olhou por cima do ombro. Parecia que estavam
fazendo progresso ao se afastar, ou a tempestade não estava vindo
em direção à eles.
Então o vento mudou.
Ela a sentiu lá, a massa furiosa e violenta atrás deles. Era uma
fúria diferente de qualquer outra que Vhalla já sentiu antes. Era puro
poder e vento que avançavam para consumir cada pessoa daquele
exército. Vhalla virou para trás e olhou novamente. Não parecia
maior, mas ela sabia a verdade.
— Quanto tempo mais até as Encruzilhadas? — Ela sussurrou
para Fritz e Larel.
— Não sei. Eu só passei por esse caminho uma vez antes —
Larel sussurrou de volta. Sua voz era quase inaudível sobre os
cascos dos cavalos na estrada de pedra.
— Quanto tempo mais? — Vhalla tentou Elecia, e a outra mulher
olhou para ela aborrecida, mas Vhalla lançou-lhe um olhar
inabalável. Ela não aceitaria birras agora.
— Talvez um pouco menos de trinta minutos? — Elecia disse.
Vhalla xingou. Eles não iriam conseguir. Ela sentia.
— Meu príncipe! — Vhalla chamou. Aldrik a encarou
severamente por ter falado fora de hora, mas ela o ignorou. — Não
vamos conseguir se não formos mais rápido.
Seriedade o fez franzir a testa. — Você tem certeza? — Ele
perguntou gravemente.
Vhalla arrancou as manoplas e as enfiou no saco do alforje.
Fechando as mãos em punhos, ela soltou as rédeas completamente
e as estendeu no ar. Fechando os olhos, Vhalla abriu os dedos, sem
se importar com o quão tola poderia parecer. O vento passou
através e em volta de suas mãos, e ela sentiu o poder da
tempestade no fim de cada rajada.
Seus olhos se abriram com brusquidão. — Nós não vamos
conseguir!
A atenção de Elecia disparou dela para Aldrik. — Aldrik, não há
outro abrigo além das muralhas de contenção das Encruzilhadas. —
A tensão fez a voz de Elecia tremer.
Vhalla examinou a paisagem ao redor deles. Era verdade.
Apenas areia e mais areia até onde os olhos podiam ver. Ela olhou
por cima do ombro. A pequena mancha escura tinha se
transformado em uma muralha no horizonte.
— Droga! — Aldrik impulsionou o cavalo para a frente de novo e
Vhalla o viu correr de volta para o pai. Por um breve momento ela
viu o Imperador olhar para trás, em sua direção. O cavalo de Aldrik
diminuiu o passo e o exército acelerou ao redor dele, enquanto o
princípe retornava ao seu lugar. Mais uma corneta soou, seguida
pelas outras.
O exército Imperial estava correndo ao longo do Grande
Caminho Imperial. O estrondo dos cavalos e o coro das armaduras
ultrapassavam o barulho do vento que aumentava
progressivamente. Vhalla olhou para trás, para as seções das
carroças; aqueles cavalos não poderiam ser forçados a ir mais
rápido sem perder suas cargas. Os soldados de infantaria já
estavam sendo deixados para trás enquanto a cavalaria começava a
entrar em pânico e a correr mais rápido. Ela viu a parede rugindo
atrás deles, bloqueando o sol ameaçadoramente.
Uma realização difícil pulsou através dela. Eles ainda não iriam
conseguir. Os cavalos não seriam mais rápidos que esse vento.
Mesmo para um único cavaleiro, a tempestade era muito grande e
muito rápida. Vhalla absorveu os rostos de pânico das pessoas ao
seu redor, as expressões tensas de seus amigos.
Nenhuma palavra era dita entre nenhum dos soldados. Parecia
que ela não tinha sido a única a chegar à percepção desanimadora
da situação. Não era necessário magia para sentir as rajadas de
vento crescentes que começavam a fazer homens e mulheres
tropeçarem e as montarias vacilarem. Uma corneta tocou, um som
pulsante e frenético. Todo mundo se virou. O coração de Vhalla
batia em sua garganta.
Uma massa rodopiante de areia e morte cortava da terra até o
céu. O vento uivava e consumia tudo em seu caminho, mergulhando
o mundo na escuridão. Ela se estendia por ambos os lados do
exército. A tempestade pretendia engoli-los inteiros e estava prestes
a começar sua refeição com o último cavaleiro no final do último
pelotão.
Vhalla viu os rostos das pessoas ao seu redor enquanto eles
confrontavam sua própria mortalidade. Seu olhar recuou até cair em
Aldrik. Ele tinha uma expressão atormentada de frustração e
desespero. Vhalla sentiu algo pulsar através de si freneticamente;
ela não o deixaria morrer.
Como se sentisse a intensidade de sua atenção, a cabeça de
Aldrik se voltou para ela; algo em seu rosto fez com que ele fosse
dominado pelo pânico. Ela mal viu o movimento dos lábios
masculinos, como se ele fosse dizer alguma coisa. Vhalla virou
Relâmpago com força para a direita, cortando entre as legiões.
Eles não podiam fazer nada; nenhum deles poderia fazer coisa
alguma. Se ela não tentasse, tudo estava acabado. Vhalla apertou
os calcanhares nas laterais de Relâmpago enquanto corria através
das expressões chocadas até os arredores externos das fileiras. Em
algum lugar, alguém estava chamando seu nome.
Vhalla não olhou para trás.
O vento estava em seus ouvidos, fluindo através de si, e, apesar
de todos os seus medos, ela não fez nada para suprimi-lo. Não seria
como da última vez. Ela encontraria o vento e o usaria para salvar,
não para matar.
Vhalla estalou as rédeas. — Mais rápido, — ela exigiu. — Mais
rápido! — Ela gritou, assistindo a tempestade de areia se aproximar
do final da fileira. Seu coração ameaçava explodir em seu peito, e
Vhalla piscou a areia dos olhos.
Os soldados das legiões de retaguarda a encaravam em choque
enquanto ela corria apressadamente em direção à tempestade.
Haviam mais gritos às suas costas agora. A garota olhou para trás.
A Legião Negra era um rugido que chamava por ela. Vhalla virou a
cabeça para frente, para longe deles, já quase no final do exército.
O vento chicoteava seus cabelos, e logo Relâmpago começou a
se assustar e a lutar contra os comandos para avançar. Vhalla
amaldiçoou a fera, implorando que ele a levasse um pouco mais
longe. Seja por conta das palavras ou de seus calcanhares
enterrados na lateral dele, Relâmpago obedeceu. Ela voltou para a
estrada quando os últimos soldados da legião passaram correndo
por ela na direção oposta. Suas expressões horrorizadas eram tudo
que podiam lhe oferecer.
Vhalla puxou as rédeas com força e desmontou
desajeitadamente, tropeçando e se recuperando em seguida.
Virando Relâmpago de volta para a direção do exército, ela deu-lhe
um tapa na traseira - o cavalo não precisou de muito mais incentivo
para fugir das areias rodopiantes. Os soldados continuaram
avançando.
Ela deu um pequeno suspiro de alívio. Eles precisariam de todas
as chances que pudessem ter. Se falhasse, eles precisavam
continuar correndo. No mínimo, ganharia tempo para eles. Vhalla se
virou e olhou para o titã de vento e areia.
E ela se sentiu muito pequena.
Vhalla abriu as pernas e plantou os pés firmemente, preparando-
se. Ela estendeu as mãos nuas contra o vento. Se podia fazer uma
tempestade, poderia terminar uma. Vhalla sentiu o vento entre seus
dedos, sentiu as correntes de ar, eram parte dela - e eles
responderiam à ela.
Nada a preparou para o impacto da tempestade. Era como se
tivesse sido jogada de outro telhado e Vhalla sentiu seus ombros
estalarem com a pressão. Todo o seu corpo estava tensionado e os
joelhos tremiam.
Vhalla fechou os olhos e rangeu os dentes. Havia areia de todos
os lados; em seus cabelos, em seus ouvidos, em seu nariz. Mas
isso terminaria aqui, consigo. Ela se inclinou para a tempestade,
empurrando de volta com toda a força que tinha. No caos da areia e
no rugido do vento, ela não conseguia abrir os olhos. Vhalla tentou
estender a mão para frente, para ver se conseguia parar ou pelo
menos diminuir a tempestade, mas seus sentidos estavam confusos
com o poder bruto que ela estava tentando barrar.
A primeira vez em que gritou foi quando um de seus dedos
quebrou, curvando-se para trás. A dor aguda e repentina de seus
ossos sendo puxados das articulações fez seu foco vacilar - ela
sentiu o vento colidir contra si, quase a fazendo perder o equilíbrio.
Vhalla forçou as pernas a se endireitarem, lutando contra a dor.
Outro dedo se foi, e então seu ombro ameaçou ceder.
Suas mãos tremiam e Vhalla se sentiu à beira da exaustão. Com
um grito, ela fez tudo o que Aldrik tinha alertado para não fazer
desde sua primeira aula com ele. Vhalla se jogou em sua Via com o
pensamento singular de que aquela tempestade acabaria ali, que
não alcançaria seus amigos - que não alcançaria ele.
Os momentos que se seguiram foram uma estranha dicotomia
de sensações, como se seu corpo estivesse morrendo e sua mente
nascendo de novo. Luz queimou nos cantos de seus olhos fechados
e inundou seus sentidos. Com um barulho quase audível, ela se
sentiu conectada à tempestade através de sua Via. Sentiu cada
aresta, e entendeu seus violentos vendavais. Era dela agora, uma
extensão de sua magia sobre a qual ela possuía um frágil controle.
Ela lutou para mover os braços. Vhalla sentiu a conexão com
seu corpo físico oscilar. Ela gritou mentalmente, lutando contra a
falha iminente de todos os seus sistemas. Um pouco mais - era
tanto uma oração quanto um protesto - um pouco mais. Com os
braços estendidos para os lados, Vhalla respirou fundo e sentiu a
areia encher seus pulmões. Ela deu um último empurrão para fazer
da tempestade uma parte de si. E então virou esse poder o interior,
empurrando-o para dentro de sua Via, o sufocando.
Os ventos morreram e o silêncio encheu seus ouvidos. As
pernas de Vhalla cederam e ela caiu de joelhos, os braços
pendendo para os lados. Abrindo os olhos, ela viu o brilho
escaldante do sol contra um céu azul. Um pequeno soluço escapou
de sua boca e ela tossiu, os pulmões pegando fogo. Ainda havia um
estranho borrão de luz e escuridão brincando nas bordas de sua
visão. Vhalla sentiu o ombro bater contra a pedra da estrada, depois
sua têmpora - e o mundo ficou preto.
U MA ÚNICA CHAMA DANÇAVA ao lado da cama, e a lua se movia
através de cortinas estranhas enquanto Vhalla entrava e saía
da consciência. Ela se mexeu inquieta, tentando se libertar da prisão
de exaustão e do estado semiconsciente dos sonhos.
Uma palma quente tocou sua bochecha, seguida pelo sussurro
de palavras suaves. Ela se agitou com o farfalhar do cobertor sendo
colocado sobre si. Vhalla abriu os olhos de supetão.
O cômodo entrou em foco lentamente. Vhalla não reconheceu a
decoração de bom gosto ou a ornamentação sumptuosa. Mas
reconheceu a mulher que estava ao lado de sua cama.
— Isso está ficando repetitivo — sussurrou Vhalla fracamente,
quase fazendo Larel morrer do coração.
— Você acordou, — a mulher Ocidental disse com um suspiro de
alívio. — Isso está ficando repetitivo. Pare de se quebrar toda. — A
tentativa de humor dela não tinha passado despercebida por Laurel,
e a mulher ficou alegre só de ver Vhalla com os olhos abertos.
— Onde estamos? — Vhalla perguntou entre um acesso de
tosse. Parecia que suas entranhas haviam sido trituradas.
— Nas Encruzilhadas. — Larel segurou um copo de água contra
os lábios ressecados da amiga.
— Conseguimos? — Ela se engasgou em surpresa.
— Conseguimos. — Larel passou o copo para as mãos ansiosas
de Vhalla, erguendo-se de seu lugar ao lado da cama. — E há
alguém que tem estado muito ansioso para vê-la.
Larel saiu do quarto sem maiores explicações, mas Vhalla não
ficou surpresa quando um príncipe de cabelos negros entrou
silenciosamente pela porta, pouco tempo depois. Ele se virou para
ela e a respiração de Vhalla engatou. Seu cabelo estava arrumado
para trás e ele vestia roupas finas, e não uma armadura. Ele parecia
cada centímetro do príncipe que ela conheceu meses atrás. Cada
centímetro do príncipe que ela arriscou sua vida para salvar.
— Vhalla... — Aldrik disse, com um nó na garganta.
Ela viu círculos escuros sob seus olhos quando ele cambaleou
na direção dela. Vhalla sentou-se ereta, estremecendo um pouco
com a dor em suas costas e ombros enquanto colocava o copo
quase vazio na mesa de cabeceira. Dois olhos de obsidiana a
consumiram avidamente, embora Vhalla soubesse que ela estava
uma bagunça.
Quando Vhalla abriu a boca para falar, o príncipe caiu de joelhos
ao lado da cama. Ela ficou atordoada em silêncio, e Aldrik escondeu
o rosto nos antebraços. Ela observou os ombros dele tremerem por
um momento, e ouviu uma respiração irregular. Incapaz de suportar
sua dor sem sentido, Vhalla estendeu uma mão enfaixada, a
colocando no cabelo dele.
O rosto do príncipe saltou para cima, assustado com seu toque.
— O que aconteceu? — Ela sussurrou, incapaz de entender as
coisas logicamente.
— Sua idiota tola, — ele disse de repente, com a voz rouca,
levantando-se. — Você agiu sem ordens do seu superior. Você
ignorou o chamado. Você poderia ter se matado, sua garota burra.
Vhalla encolheu-se como se ele a tivesse dado um tapa.
— E você parou a tempestade. — Ele se sentou pesadamente
na beira de sua cama. Sem hesitar, Aldrik estendeu as mãos e
segurou ambas as bochechas dela suavemente. — Sua mulher tola,
incrível e surpreendente, você salvou todos nós.
Vhalla soltou um pequeno soluço de alívio. Essa verdade poderia
ser assumida pela simples presença dele ali, mas ouvi-lo dizer a
tornava ainda mais real. Ela abaixou a cabeça e cobriu a boca com
a mão, tentando conter suas emoções. Aldrik mudou de posição e
passou os braços em volta dela, puxando-a para ele. Doía mover o
corpo em alguns lugares, mas Vhalla ignorou isso facilmente
enquanto pressionava o rosto contra o ombro dele.
— Você foi maravilhosa, Vhalla — ele respirou profundamente, o
nariz enterrado em seus cabelos. — E eu juro, se você fizer algo
assim novamente...
Vhalla afastou o rosto em surpresa, e as mãos dele envolveram
seus ombros.
— Quando você saiu correndo, eu não pude segui-la; não pude
mandar ninguém atrás de você - eu deveria ter mandado. Sinto
muito, pelos Deuses, eu queria ter feito isso… — Aldrik respirou
fundo e lutou para retomar sua compostura.
— Aldrik, — disse ela, pegando as mãos que estavam em seus
ombros e colocando-as entre as suas, mal contendo um pequeno
estremecimento. — Eu não queria que você me seguisse. —
Hesitante, ela ergueu uma mão enfaixada e acariciou o rosto dele.
Era a primeira vez na qual podia se lembrar em que tocava a
bochecha esculpida dele, e lamentou instantaneamente que metade
de sua mão estivesse envolta em bandagens. Vhalla deu a ele um
pequeno sorriso. — Eu queria mantê-lo seguro. Esse é o meu
trabalho, não é? Manter você vivo?
Aldrik soltou uma risada e balançou a cabeça. Ele se mexeu,
inclinando-se na direção dela. Seus dedos caíram do rosto dele,
sendo agarrados por ambas as mãos do príncipe. Vhalla sentiu-se
tonta por ficar sentada à medida que também se dava conta da
proximidade dele.
— Vhalla, — ele murmurou suavemente, apertando suas mãos.
— Eu pensei que nunca mais iria ter outra oportunidade de ver você,
de conversar com você. — Aldrik olhou para seus dedos
entrelaçados; os polegares dele acariciaram o dorso de seus
curativos. — Pensei que você cavalgaria em direção à morte e eu
nunca... — Sua voz caiu para pouco mais que um sussurro. Ele
corajosamente voltou sua atenção à ela mais uma vez, e Vhalla
sentiu algo dentro de si vibrar freneticamente. — Eu nunca teria a
oportunidade de te dizer que...
Vhalla se inclinou para mais perto, saboreando cada palavra. Ela
quase podia sentir a respiração dele em seu rosto quando ele falou.
— Que eu... — Aldrik ficou subitamente e profundamente
consciente de sua atenção, e havia algo que se assemelhava à
medo quando ele percebeu isso. Os lábios de Aldrik se separaram.
Vhalla prendeu a respiração.
Ele prontamente fechou a boca e desviou o olhar quando o
barulho de passos pesados se aproximaram. Vhalla seguiu os olhos
dele até o batente da porta.
— Deite-se novamente — murmurou Aldrik com resignação.
Vhalla obedeceu e olhou para cima, esperando que se sentisse
menos tonta logo. Aldrik suspirou e se levantou, indo até uma caixa
clerical que estava aberta em uma penteadeira próxima. Ele estava
pegando uma garrafa cheia de xarope transparente quando o
príncipe de ouro entrou num rompante, sem nem bater.
— Vhalla, a heroína! — Ele disse, entusiasmado. — Ouvi dizer
que você tinha acordado!
— As fofocas se espalham muito rápido, — Aldrik xingou
baixinho.
— Como se sente? — O príncipe mais novo se aproximou,
ignorando o irmão.
— Cansada, — ela disse simplesmente e com sinceridade.
— Sim, — Aldrik atravessou o quarto para lhe entregar o frasco,
e ela o tomou sem questionar e num único gole. — Ela não vai ser
uma companhia muito divertida agora.
agora. — Jura? — O príncipe Baldair ergueu uma sobrancelha.
— O que você é, então?
Aldrik olhou para o irmão.
— Meninos, não briguem, — murmurou Vhalla; ela estava
cansada demais para a picuinha deles. Aldrik piscou em sua
direção, surpreso, e o Príncipe Baldair riu. — Como posso ajudá-lo,
meu príncipe?
— Nosso pai gostaria de recebê-la para um café da manhã.
Vhalla piscou para o príncipe, quase certa de que ouviu errado.
— Por-Por quê? — Ela o encarou em choque. A última vez que
Vhalla tinha visto o Imperador de perto, ele a estava julgando por
uma tentativa de matar seu filho. Vhalla procurou pela orientação
silenciosa de Aldrik, mas ele tinha aquele olhar reservado e duro
como pedra que usava quando seu irmão estava por perto.
— Para agradecê-la, tenho certeza, — respondeu o Príncipe
Baldair.
— Ela precisa descansar, — objetou Aldrik.
— Certamente ela também precisa comer, não é? — O príncipe
mais jovem protestou.
— Não estou em um estado adequado para ver... — Vhalla fez
uma pausa; ela não podia dizer “realeza”, pois metade da família
Imperial estava diante dela. — ...ver o Imperador, — ela terminou.
— O Pai entende sua situação. Não se preocupe com o decoro
— o príncipe de ouro contra-argumentou com um sorriso.
Vhalla cutucou as bandagens em volta dos dedos. — Suponho
que não possa recusar o meu Imperador, — disse suavemente.
Aldrik olhou para ela com nítida preocupação. — Vou falar com o
meu pai.
— É apenas um café da manhã. — Vhalla tentou tranquilizar
mais a si mesma do que qualquer outra pessoa. Aldrik olhou para
ela em derrota, e ela lhe lançou um olhar de desculpas.
— Excelente! Daqui a uma hora, então. — Baldair bateu as
palmas das mãos e saiu.
Aldrik se remexeu, puxando uma corrente que pendia de um
botão até o bolso. Ele olhou para o relógio de bolso prateado que
ela tinha admirado durante várias noites após o treino de Projeção.
— Você não deveria ter concordado, — ele murmurou e voltou à sua
posição anterior.
— Aldrik, quando você vai entender? — Ela lutou para se sentar
novamente, pressionando a parte inferior da palma na testa com um
suspiro. — Eu nunca estou em posição de recusar a sua família.
— O que? — Ele parecia honestamente confuso.
Vhalla sorriu de forma cansada, era fofo como às vezes ele não
tinha noção das coisas. — Eu não sou nada, não tenho nenhuma
posição ou título. E mais, ainda sou propriedade da coroa. Você ou
qualquer outro membro da sua família pode pedir qualquer coisa
para mim, e eu serei obrigada a obedecer. — Vhalla passou a mão
pelo antebraço dele, mas o princípe se afastou rapidamente.
— Então você só me obedece? — Aldrik perguntou friamente.
Vhalla riu. — Claro que não. Gosto de estar ao seu redor, de
ouvir o que você pensa e de passar um tempo com você. Você é
uma das melhores coisas que já me aconteceu. — Vhalla sorriu em
sua direção, e viu o príncipe relaxar. Como ela nunca percebeu o
quão inseguro ele era?
— Você é tão engraçado. Eu te obedeço? Aldrik, eu… — Vhalla
se deteve, o sorriso deslizando de seu rosto diante do despertar da
revelação. — ...eu...
Amo você.
Era isso que sua mente queria dizer, e a constatação a atingiu
com mais força do que a tempestade de areia.
— Você? — Ele deixou a palavra suspensa esperançosamente.
Vhalla inalou bruscamente. — Eu...
Era uma causa perdida; ela era uma causa perdida. Ela o amava
e não podia mais negar. Um simples olhar a tinha impulsionado para
uma corrida em direção à morte provável na intenção de salvá-lo.
Agora que ela tinha percebido isso, também percebeu há quanto
tempo estava apaixonada por esse irritante, encantador e
enigmático homem.
— Bem, eu... — Vhalla encarou aqueles olhos pretos e escuros.
Todos os momentos em que ele olhou para ela voltaram à sua
memória numa onda de emoção. Lembrou-se de uma noite a uma
eternidade atrás, quando ele a imobilizou apenas com o olhar na
biblioteca, puxando-a para fora de um sonho. Vhalla lembrou de se
perder em seu olhar quando ele a segurou durante a Noite de Gala,
e de como ela o queria. Lembrou-se de acordar encarando aquele
olhar, mais de uma vez agora, e de querer ver apenas ele toda vez
que despertava.
— Eu realmente, verdadeiramente... — Vhalla estendeu a mão e
tocou a bochecha de Aldrik devagar. O olhar dele ficou sério e sua
respiração mais superficial. O estômago dela se torceu em um nó.
Ela nunca poderia, nunca iria, nunca deveria ter este homem. E,
pela primeira vez, Vhalla deu ouvidos aos alarmes em sua cabeça.
— Eu amo ser alguém que você considera uma amiga.
Aldrik a considerou por um longo momento. Seus lábios se
separaram um pouco e seus olhos examinaram o rosto dela. Vhalla
não tinha certeza do que ele estava procurando. Aldrik respirou
fundo bruscamente, abrindo a boca. O coração de Vhalla pulou duas
batidas de uma só vez. O príncipe murchou e evitou seu olhar
expectante.
— Você deve se preparar para encontrar o Pai, — disse ele
suavemente. Aldrik ficou de pé e ajeitou o casaco trespassado sem
sequer olhar para ela. — Voltarei em trinta minutos.
Vhalla tentou dizer qualquer outra coisa, mas a porta já havia se
fechado atrás dele. Ela soltou um suspiro trêmulo. — Eu te amo,
Aldrik, — ela sussurrou no ambiente silencioso. A respiração
seguinte foi mais instável que a anterior, e a próxima ficou presa em
sua garganta com um gemido de dor que ela só pôde expulsar
liberando suas lágrimas.
Vhalla cerrou as mãos em punhos e enterrou os olhos nelas. Ela
tinha que se recompor; esse não era o lugar nem o momento de
perder o juízo por estar apaixonada pelo príncipe herdeiro.
Primeiro, ela tentou negar. Isso possivelmente não era amor. Ela
quase morreu, e ele a abraçou, lhe deu conforto. Ela estava apenas
agarrando-se a ele por conta de um estado emotivo. Vhalla riu com
um soluço rouco. Ela não tinha certeza se já havia amado alguém
antes, mas sabia que isso era amor.
Então ela tentou culpar o Vínculo ou a Ligação. Claramente,
ambos afetaram os dois de várias maneiras que mal eram
compreendidas. Eles estavam fazendo algo surgir a partir do nada.
O Vínculo sempre esteve lá, desde que o conheceu.
Não, pelo pouco que sabia academicamente sobre o Vínculo,
Vhalla estava confiante em seu sentimento amoroso. Ela sentia sua
própria extensão no príncipe, a calma que a proximidade dele trazia,
por ter aquele pedaço de si perto dela novamente. O Vínculo era
uma porta, uma janela, uma Via; não os alterava, apenas lhes dava
acesso ao que havia além, no outro. Ele deixava expostas as
verdades que os dois tentavam manter ocultas.
Finalmente, ela tentou a razão. Vhalla garantiu a si mesma que
era simplesmente o resultado de passar tanto tempo com ele na
marcha. Até o Príncipe Baldair mencionou as necessidades que
surgiam naturalmente. Ela o via todos os dias, ele era seu professor,
e era fácil desenvolver sentimentos por alguém em tal posição.
Vhalla olhou para as palmas das mãos. Não foi apenas na marcha.
Vhalla suspirou, reclinando-se na cama. Não tinha certeza de
quando tinha acontecido. Fechando os olhos, deixou as memórias
surgirem em um fluxo doloroso de soluços silenciosos, analisando-
as de uma perspectiva que nunca tinha encarado antes. Foi no
momento em que ele deixou cair aqueles papéis por toda parte,
quando ela tinha ficado naquele jardim de rosas por um minuto a
mais do que o planejado, durante suas desculpas? Talvez tenha
sido no momento em que ele correu até ela, abandonando
quaisquer deveres oficiais que tivesse, quando seu pai e irmão
retornaram para o Sul. Foi no minuto em que seu coração acelerou
quando ele confessou que queria vê-la novamente? Ou quando
soube que ele estava se esforçando por ela? Poderia isso ter
começado antes mesmo que soubesse quem ele de fato era,
quando saboreava sua mente astuta através daquela letra
lindamente curva?
Ela percebeu que, seja quando for que tenha acontecido, ela o
amava antes do momento em que ele a viu com Sareem. Quando
seu coração se apertou com a preocupação de que Aldrik pensasse
que ela já pertencia à outra pessoa. Ela o amava quando tinha
escolhido usar o vestido de gala preto, em vez de um outro de cor
apropriada. Ela o amava quando não queria nada além de que ele
ficasse ao seu lado no palácio, e nunca mais voltasse à guerra.
Tudo depois disso tinha sido apenas negação.
Vhalla abriu os olhos e colocou a mão sobre a boca, abafando as
lágrimas. Agora ela sabia. Sabia que estava irremediavelmente
apaixonada por um homem que eventualmente iria sair de sua vida.
Era uma revelação catastrófica. Mesmo que de alguma maneira eles
conseguissem ficar próximos um do outro vivendo no palácio, ele
seria Imperador um dia. Ele se casaria com alguém digno de sua
posição, e ela teria que se ajoelhar diante dele e da mulher que
seria sua Imperatriz e mãe de seus filhos.
Ele disse que os títulos não importavam, que poderia dar à ela
qualquer um deles como príncipe ou Imperador. Ela acreditou nele,
porque queria acreditar. Queria pensar que poderia ser simples e
bonito. Vhalla nunca lhe disse por que ficou tão ferida por conta das
palavras de Elecia. Que ela desejava que a nobreza tornasse
aceitável aos olhos da sociedade que ela estivesse perto dele. Não
apenas como amiga, mas como um interesse amoroso. Se ele
soubesse, provavelmente nunca teria dito nada sobre conceder a
ela qualquer título que desejasse.
A porta se abriu de repente, assustando-a. Virando a cabeça
bruscamente para a entrada, ela viu Larel segurando uma pequena
trouxa de roupas. Vhalla tentou sorrir, tentou ser forte, mas tudo o
que conseguiu foi desmoronar novamente.
— Larel, — ela engasgou debilmente. A outra mulher correu para
o seu lado, largando as roupas no pé da cama e colocando as mãos
nos ombros de Vhalla.
— Vhalla, o que foi? O que está doendo? — Larel inspecionou
suas bandagens rapidamente.
Vhalla balançou a cabeça, deixando-a cair nas mãos. Ela não
conseguia lidar com a preocupação; ela não conseguia lidar com a
vergonha do motivo pelo qual ela estava se desfazendo.
— Vhalla, por favor, — implorou Larel.
— Eu o amo, — ela sussurrou entre respirações irregulares.
— O que? — Larel perguntou, se aproximando.
— Eu amo o Aldrik. — Vhalla procurou na expressão da outra
mulher por alguma coisa, qualquer coisa.
— Ah, Vhalla, — Larel a envolveu em um abraço aconchegante.
A ação destruiu seu controle e Vhalla soluçou abertamente contra a
blusa de Larel. — Calma, calma... O que há de tão horrível nisso?
— Larel se afastou um pouco, inclinando a cabeça para olhá-la.
— Porque, porque ele nunca vai querer alguém como eu. Porque
eu não sou boa o suficiente para merecer sequer metade do que ele
tem me dado. Porque, no final de tudo, não importa o que nós
somos, ele irá embora. Porque eu acho que ele é maravilhoso, e
tudo o que nunca terei. Porque… — Vhalla respirou, trêmula. —
Porque, não sei se já amei alguém assim antes e isso me apavora.
Larel deu um sorriso gentil e cansado. Ela passou a mão pelos
cabelos de Vhalla e a puxou para perto novamente. Larel acariciou
suas costas, e Vhalla se permitiu vergonhosamente aceitar todo
conforto que a outra mulher oferecia e mais um pouco.
Eventualmente, seu pânico inicial - agravado pelo medo e pelo
desespero - enfraqueceu, e suas lágrimas voltaram a ficar sob
controle.
— Vhalla, — disse Larel finalmente. — Não vou lhe dizer qual o
melhor caminho. Eu não consigo nem fingir saber qual é. — Ela
suspirou. — Mas vou lhe dizer que, uma vez que um laço é rompido
com Aldrik, é muito difícil consertá-lo. — Havia uma tristeza genuína
na suavidade da voz de Larel. — Também vou lhe dizer que você
está certa, do jeito que as coisas andam é provavelmente
impossível que você seja algo permanente na vida dele. Que, se
você tentar, possivelmente terminará com o coração partido. Você
precisa decidir se esse momento, não importa o quanto dure, vale o
esforço de superar esse medo. Se vale o suficiente para ficar com
ele.
Vhalla suspirou, sentando-se e esfregando os olhos. Ela se
perguntou quando Larel tinha se tornado tão perspicaz e desejou
que essa sabedoria tivesse estado presente em sua vida muito
antes do que só no ano passado.
— Para ele, eu sou só uma… — Vhalla não tinha certeza do que
significava para o príncipe herdeiro. Ela era mais do que sua súdita.
Aluna parecia não cobrir completamente a extensão do
relacionamento deles. Uma amiga? Até isso parecia ridículo; ela não
conseguia se lembrar de sequer uma vez na qual abraçou seus
amigos como ela o tinha abraçado antes. — Uma... — Vhalla fez
uma pausa, sem ter uma boa resposta.
— Eu não diria que você é só alguma coisa, Vhalla. Acho que
você é muito mais do que acredita ser. Especialmente para ele. —
Larel encarou seus olhos com um olhar firme. Quando ficou claro
que ela estava sem palavras, Larel se mexeu, pegando as roupas.
— Você encontrará o Imperador em breve. Imaginei que gostaria
de trocar de roupa; espero ter escolhido certo, metade delas ainda
não está seca.
Vhalla considerou a escolha de Larel. Calças justas de couro
marrom e uma túnica de lã cinza com mangas compridas. Elas
cheiravam como o ar fresco da manhã, e a falta de sujeira
confirmava ainda mais que haviam sido lavadas.
— Como você soube?
— Aldrik me encontrou. — Larel sorriu suavemente, e Vhalla deu
uma risada fraca. — Quer ajuda para trocar de roupa? — A mulher
mais velha perguntou.
Vhalla balançou a cabeça. — Comparada à outras experiências
de quando usei tanta magia assim, até que não estou tão ruim. —
Ela já podia sentir o elixir que Aldrik havia lhe dado fazendo efeito.
Larel assentiu. — Tudo bem, vou deixar isso com você então. Eu
recomendaria tomar isso antes de ir. — Larel puxou um frasco com
líquido púrpura e o colocou na caixa de itens medicinais. — Vai
anestesiar as coisas um pouco e deve te deixar com a cabeça no
lugar, caso precise.
— Obrigada, — disse Vhalla sinceramente.
— Por nada, Vhalla. Fritz e eu também estamos hospedados
nesta estalagem. Seus amigos da Guarda Dourada também.
Estaremos aqui quando você voltar. Boa sorte. — A mulher sorriu e
partiu.
Vhalla se perguntou o real motivo pelo qual Laurel desejou boa
sorte.
Ela se vestiu o mais rápido possível, mas também foi uma
oportunidade de fazer um balanço da condição do seu corpo. Os
ombros dela estavam rígidos e inchados; seus cotovelos também
eram um lembrete da pressão na qual os havia submetido. Suas
mãos estavam uma bagunça, mas, pelo lado positivo, nada parecia
quebrado.
Havia um espelho no quarto que instantaneamente chamou a
atenção de Vhalla. Era de corpo inteiro, e ela se viu pela primeira
vez em meses. Seu cabelo tinha crescido, batendo em algum lugar
perto da altura dos ombros, caindo em ondas castanhas
emaranhadas. Seu rosto tinha afinado e os olhos pareciam um
pouco mais cavados, a sombra do semblante dela destacando o
salpicado dourado ao redor das pupilas. Músculos que ela nem
sabia que possuía estavam começando a tomar forma sob a pele
firme. Mesmo enfaixada, ela tinha uma aparência afiada e forte,
mais confiante do que se sentia.
Aldrik voltou quando ela estava fazendo uma análise de sua
condição. Uma estranha mistura de emoções tomou conta dele no
momento em que a viu, e o coração de Vhalla disparou
instantaneamente. Ela deu um passo em sua direção, oscilando um
pouco com a dor nos joelhos. Ele estava lá em um instante, seus
braços apoiando os dela para ajudá-la a se equilibrar.
— Essa é uma péssima ideia. — A voz dele era baixa e
retumbou através do peito dela.
— Tenho tido muitas dessas ultimamente, — ela disse de modo
suave. Vhalla se recuperou e deu um passo para trás. Ela tinha
medo do que aqueles olhos escuros poderiam ver se ficasse perto
demais por muito tempo. — Vamos?
Ele apertou os lábios, hesitante, mas não disse nada.
Aldrik foi na frente, segurando a porta aberta para ela e a
guiando por um pequeno lance de escadas. Ele passou um braço
em volta de sua cintura e segurou uma de suas mãos nas dele
enquanto ela mancava escada abaixo. Daniel, Craig, Fritz e Larel
estavam reunidos em um hall de entrada luxuoso, claramente
esperando por ela. Aldrik não parecia ter pressa em tirar as mãos de
sua pessoa.
— Você realmente está viva, — Daniel sussurrou, como se ela
fosse um fantasma.
— Vhal! — Fritz passou os braços em volta de seus ombros,
quase derrubando-a.
— Fritznangle, — Aldrik advertiu, dando um passo em direção ao
Sulista.
— Vhal, você estava fantástica! Foi como a Mãe banindo a noite.
Apenas uma coisinha minúscula contra aquela tempestade enorme,
maciça, gigantesca! — Fritz balbuciava como um louco.
Outra pessoa saiu de um canto da sala, alguém que Vhalla não
havia notado antes. Dois olhos cor de esmeralda avaliaram Vhalla
pensativamente.
— Você é uma das pessoas mais loucas que já conheci. —
Elecia colocou uma mão no quadril e mudou o peso nas pernas para
estender a outra palma para Vhalla. — E por isso, devo minha vida
a você.
Vhalla estendeu a mão, apertando a palma enfaixada contra a de
Elecia.
— Obrigada, Vhalla Yarl, — Elecia proferiu as palavras mais
sinceras que Vhalla já tinha ouvido dela.
Vhalla ficou em um transe atordoado enquanto se dirigia para a
porta. Aldrik a segurou aberta para que ela passasse e a garota
saiu, dando de cara com o amanhecer. Vermelho riscava o
horizonte, mergulhando a praça lotada em seus tons laranjas e
rosados. Grandes edifícios construídos com mármore e arenito
brilhavam no crepúsculo. Eles ostentavam estandartes de tamanho
proporcional, os vermelhos e pretos do Oeste e os brancos e
dourados do Império. O chão sob seus pés era de pedra polida, e
Vhalla olhou maravilhada para o centro do mundo.
— Aquele lá. — Aldrik apontou para um prédio do outro lado da
praça com três grandes janelas de vitrais coloridos circulares na
frente. — Você precisa que eu a ajude?
— Não. — Vhalla balançou a cabeça. — Só saber que você está
aqui já é o suficiente. — Ela deixou que ele entendesse isso como
quisesse.
Vhalla não dera mais que três passos quando o primeiro membro
da Legião Negra a notou. Ele se aproximou, dando-lhe a saudação
da Lua Quebrada. Isso inspirou o próximo a aparecer e oferecer-lhe
agradecimentos e elogios. Os olhos dela encararam Aldrik em
confusão e surpresa. Ele a admirou silenciosamente e Vhalla sentiu
um rubor subir por suas bochechas.
Foi um processo lento devido ao fato deles serem interrompidos
a cada passo. A Legião Negra estava esperando na porta, mas
Vhalla percebeu que a maioria das pessoas na praça eram
soldados. Eles pararam o que estavam fazendo, congelando ao vê-
la.
Um homem de alta patente desembainhou a espada presa ao
quadril. Ela olhou para Aldrik nervosamente, lembrando-se da última
vez que se deparou com um dos espadachins. O homem juntou os
pés e ficou ereto. Sua mão esquerda foi para a parte inferior das
costas enquanto, com a direita, ele levantou a espada sobre seu
peito e rosto, em uma saudação primitiva.
Ela não tinha certeza do que ele queria dela, e Vhalla
nervosamente deu outro passo. Uma mulher mais velha repetiu o
movimento. Sem espada, ela levou o punho direito ao peito em
saudação.
Vhalla deu outro passo. Mais dois deram um passo à frente em
saudação.
A cada passada que Vhalla dava, havia outro, e mais outro e
mais outro. Eles começaram a se alinhar pelo caminho,
permanecendo em suas saudações com reverência, mesmo depois
que ela seguia em frente. Vhalla se virou quando toda a praça -
homens, mulheres, crianças, soldados e civis - mostrava sua própria
demonstração de reverência.
— Eles sempre fazem isso para você por aqui? — Vhalla
sussurrou para Aldrik. A atenção a deixava nervosa.
Ele olhou para ela, desnorteado. — Vhalla, — Aldrik se inclinou
para perto de sua orelha. — Eles não estão me saudando, estão
saudando você.
Ninguém disse nenhuma palavra; eles prestaram suas honras
sem fazer barulho, e o silêncio falou tão alto em seus ouvidos que
Vhalla quis chorar. Pela primeira vez desde que se tornara uma
feiticeira, ela sentiu a multidão olhando-a com respeito, com
adoração. Por mais que seu corpo doesse, ela se manteve ereta.
O Imperador e o Príncipe Baldair estavam esperando do lado de
fora do edifício na direção ao qual Aldrik a guiava. O Imperador
Solaris examinou a cena com seus olhos azuis da cor do oceano,
pousando-os na mulher que estava sendo guiada por seu filho mais
velho e saudada por seu povo. Ele cruzou as mãos atrás das costas
em uma posição que remetia Vhalla à Aldrik.
— Se não é a heroína do dia. — O Imperador falou alto o
suficiente para que a maior parte da praça ouvisse.
Vhalla caiu de joelhos, desajeitada, seus membros estalando e
doendo.
— Meu Senhor, obrigada pelo convite — disse ela
respeitosamente, baixando os olhos.
— Levante-se, Vhalla Yarl. Você é a salvadora mais bem
reconhecida do meu exército — ele ordenou levemente.
Vhalla colocou as duas mãos no joelho erguido e fez esforço
para ficar de pé, fazendo uma careta com o estalos em suas pernas.
Ela se sentia muito mais velha do que seus dezoito anos, e podia
sentir a tensão irradiando de Aldrik diante de sua dor, mas ele não
se moveu. Vhalla estava agradecida por ele ter permitido que ela
fizesse isso sozinha diante de seu pai e de todos aqueles que
estavam reunidos.
— Venha, desejo conceder a você os meus agradecimentos. —
O Imperador deu um passo atrás e o Príncipe Baldair abriu as
portas para eles.
O EDIFÍCIO NO QUAL ELA entrou era como um pequeno palácio.
Alabastro, mármore, prata, ouro e pedras preciosas brilhavam
por toda parte. À medida que o sol se erguia no céu, passava
através das grandes escotilhas nas paredes, dando uma nova vida à
opulência. O Imperador a levou até uma sala de estar lateral. Havia
sofás e uma mesa para refeições oposta à uma outra mesa grande
e cheia de papéis.
Para sua surpresa, o Imperador foi até a mesa que não estava
com a comida. Príncipe Baldair deu a volta e foi para o lado direito
do pai, enquanto Aldrik pairava perto dela. Ele não se movia até que
ela o fizesse, sua sombra silenciosa.
— Eu gostaria de te mostrar uma coisa. — O Imperador Solaris
fez um gesto para que ela fosse até ele.
Vhalla se aproximou, com Aldrik ainda de pé ao seu lado,
deixando a direta dela livre para o Imperador. Ela avaliou um mapa
enorme e o Imperador apontou para um ponto no Grande Caminho
Imperial, ao sul das Encruzilhadas.
— Aqui é onde estávamos quando a tempestade de areia nos
alcançou. — Os olhos de Vhalla correram de volta para as
Encruzilhadas; eles estiveram tão perto. Como se lesse seus
pensamentos, o Imperador continuou: — Os homens da frente do
exército estavam a menos de cinco minutos das muralhas que os
protegeriam da tempestade.
Vhalla olhou para o mapa. Lembrou-se das fileiras correndo, mas
muitos não teriam conseguido.
— Diga-me, — perguntou o Imperador enquanto acariciava sua
barba e a avaliava, — que ordens você teria dado?
— Ordens para o que? — Ela perguntou, sem saber se tinha
entendido a pergunta dele.
— Se você estivesse na minha posição, que decisões teria
tomado?
Ela olhou para o homem e depois de volta para o mapa,
respirando fundo, o que gerou uma tosse irritante por causa da
sensação de areia nos pulmões.
— Perdão, — ela murmurou. Mantendo o rosto voltado para a
mesa, Vhalla inclinou a cabeça para o lado. — Eu teria dividido as
fileiras.
— Dividido as fileiras? — Foi o Príncipe Baldair quem perguntou.
Vhalla assentiu. — Um, — ela apontou para o príncipe mais
jovem. — Dois, — ela se virou para o Imperador. — Três, — ela
apontou para Aldrik. — Dividido em três partes. Manter vocês
centralizados pode fazer sentido na marcha; talvez até num contexto
de combate, para proteção, mas nessa situação, estaríamos
brincando com as probabilidades.
— E quais probabilidades seriam essas? — O Imperador apoiou
as mãos na mesa. Vhalla se sentiu muito pequena ao perceber que
o tampo chegava à sua cintura, ao invés de bater nos quadris ou
mais abaixo, como acontecia com o homem mais alto que ela.
— Suas vidas, — disse ela com naturalidade, surpreendida com
a frieza que a lógica criava em sua voz. Príncipe Baldair tinha no
momento uma expressão um tanto atônita. Vhalla encarou os olhos
do Imperador. — Se os três ficassem no centro, vocês teriam estado
no meio da tempestade, com pouco mais de uma dúzia de fileiras de
cavalos entre si. Se um de vocês morressem, haveria uma grande
chance de que o que quer que tenha matado essa pessoa, também
teria matado aqueles ao seu redor; quanto maior a proximidade,
maiores as probabilidades de morte. Vocês três morrem, todos nós
perdemos. Se nós subitamente perdêssemos o Imperador e todos
os herdeiros, esse reino teria mais de uma frente de batalha.
O Imperador esfregou o queixo. — Continue.
— Vocês todos correriam em direções diferentes com os
cavaleiros mais rápidos preparados para dar a vida por cada um de
vocês. Seria a melhor chance de sobrevivência, — explicou Vhalla
simplesmente.
— Você sabe que isso significaria que metade do exército seria
deixado para trás, a pé. — O Imperador a considerou
pensativamente.
— Eu sei disso. — Ela assentiu. — Eles seriam deixados à
própria sorte. — A palavra sorte parecia mais agradável que morte.
O príncipe mais jovem parecia horrorizado, e Vhalla teria que se
virar para ver a expressão de Aldrik. O Imperador era quase
analítico demais na maneira como parecia calcular as palavras dela
em uma pontuação invisível. Vhalla juntou as mãos, torcendo-as.
— Você até que é inteligente, — disse o Imperador de modo
vago.
— Meu Senhor, se sou inteligente é porque você encheu seu
castelo com bons professores. — Ela pensou em Mohned com uma
pontada de saudade de casa.
— Ah, Vhalla, não seja tão modesta. Conhecimento e poder são
uma combinação perigosa, e você parece ter bastante dos dois. —
O Imperador virou-se e fez um gesto em direção à mesa, que estava
posta e cheia de comida.
Sentaram-se uma pessoa de cada vez. Aldrik puxou a cadeira
para ela, apesar de não lhe oferecer sequer um olhar. Vhalla se
perguntou o que exatamente o havia feito mudar de atitude.
Obviamente, quaisquer que fossem seus planos, um controle
minucioso de suas próprias ações era parte deles. Aldrik estava
sentado à sua direita, Príncipe Baldair à sua esquerda e o
Imperador à sua frente.
Vhalla não tinha visto comida tão boa assim ou uma mesa tão
cheia de talheres, copos e pratos desde que jantou com o príncipe
Baldair no palácio. A refeição estava quente e fresca, e ela mal
conseguiu conter um ronco particularmente alto de seu estômago,
colocando a mão sobre o abdômen. Ela teve o cuidado de comer
depois que os três membros da realeza se serviram. Decoro era
uma desculpa conveniente. Vhalla não tinha ideia de quais ou
quando os garfos deveriam ser usados, ou por que eles usavam um
garfo diferente para cada prato - ela apenas os imitou.
— Esta é uma situação incrivelmente peculiar, você não acha,
Senhorita Yarl? — O Imperador começou.
— Só Vhalla está bem, — disse ela, sem saber se era
apropriado ou não. Era estranho ter ambos os filhos dele chamando-
a pelo primeiro nome e ter o homem que estava acima dos dois
tratando-a de maneira mais formal.
Ele a ignorou e continuou: — Não é normal alguém ser julgado
por assassinato e traição e depois jantar com o Imperador apenas
alguns meses depois.
— Poucas coisas no meu mundo são o que eu chamaria de
normal neste momento, meu senhor. — Ela mordiscou o pão, seu
cérebro ainda atormentado por estar apaixonada pelo príncipe
herdeiro.
O Imperador riu. — E mesmo assim, toda vez você se recupera
e se fortalece. Eu sabia que você era forte quando te vi naquela
cela.
Vhalla continuou tentando comer de maneira educada, lutando
com seus dedos enfaixados. Ela não queria pensar no julgamento.
Ela na verdade nem queria estar sentada naquela mesa.
— Estou preparado para perdoá-la por seus crimes, — refletiu o
Imperador, tomando um gole de vinho.
Ela o olhou em choque. Um perdão Imperial? Alguém precisava
beliscá-la, ela estava sonhando. — Meu Senhor?
— Você mereceu que confiássemos na sua pessoa o suficiente
para lhe dar uma segunda chance ao salvar a vida de um príncipe.
Acho que potencialmente salvar a vida da família Imperial, quiçá do
próprio Imperador, concede a você uma ficha limpa. — Ele exibia
um sorriso embaixo da barba, mas seus olhos estavam vazios de
qualquer leviandade.
Vhalla congelou. Salvar a vida de um príncipe? Isso significava
que Aldrik contara à ele o que realmente havia acontecido na Noite
de Fogo e Vento? Ela se impediu de olhar em direção ao príncipe
herdeiro.
— Obrigada, meu senhor. — Vhalla baixou os olhos.
— Mas veja, minhas mãos estão atadas. — O Imperador
mastigou pensativamente um pedaço de carne vermelha, antes de
enxugar a boca com o guardanapo e continuar: — O Senado, a voz
do povo, viu seu serviço militar como uma forma de punição
adequada, e eu não gostaria de trair a confiança dos meus leais
súditos.
— Claro que não... — Vhalla disse entorpecida, a palavra perdão
ecoando de novo e de novo em sua cabeça.
— Não se deixe enganar, Vhalla. Eles estão ávidos como
sempre, e se eu te perdoasse agora, aquelas mesmas pessoas lá
fora que estavam te saudando se voltariam contra você novamente.
— O Imperador olhou para ela.
Pelo canto dos olhos, ela podia ver Aldrik se remexendo
desconfortavelmente em seu assento.
— Mas se você nos desse a vitória. — O homem riu. — Bem,
isso seria algo digno de recompensa.
— Vitória? Não sei como poderia… — Vhalla se atrapalhou com
as palavras. Sua sentença parecia estar aumentando, não
diminuindo. Antes ela deveria apenas servir na guerra; agora ela
tinha que trazer a vitória? Eles alguma vez já tinham planejado
libertá-la?
Os olhos azuis gélidos do Imperador se desviaram para Aldrik. O
príncipe mais velho deu um gole muito longo em seu vinho. — Meu
filho me disse que andou trabalhando com você em algo importante.
Vhalla não disse nada, por medo de incriminar ela e Aldrik com
algo que ele ainda não mencionou ao pai. Mas haviam coisas que
ela não poderia nunca imaginá-lo dizendo. Apesar de tentar evitar,
ela olhou para o príncipe das trevas.
— Ele disse que você pode me dar o Norte com seus poderes de
Andarilha do Vento. — O Imperador inclinou-se para a frente,
colocando os cotovelos na mesa.
— Digamos que ainda estou aprendendo a maioria das minhas
próprias capacidades, — ela disse com cuidado.
— Fui informado disso. — O Imperador acenou, dispensando
suas preocupações. — Aldrik tem me enviado relatórios detalhados
de suas averiguações em relação à elas.
— Entendo... — Vhalla murmurou, olhando curiosamente para o
homem em questão. Aldrik não parecia que ia parar de ocupar a
boca com o copo de vinho tão cedo.
As anotações que Aldrik estava fazendo durante suas
Vinculações surgiram em sua mente. Ele disse que iria usá-las para
futuras referências. Ele lhe disse que tinha um plano para tomar o
Norte usando o seu poder. Então, por que ela se sentia traída?
— Embora eu esteja extremamente impressionado com suas
habilidades de comandar ventos e tempestades, o que mais me
intriga, Vhalla, é essa habilidade de situar sua mente além do corpo.
Isso parece impressionante demais para ser real. Quão segura você
está em relação ao seu controle sobre isso? — O Imperador
finalmente chegou ao ponto.
Vhalla engoliu em seco e pegou seu copo d'água, ignorando o
álcool. Isso não era um convite educado para agradecê-la por salvar
o exército. Isso era um bom pretexto para ele falar com ela e
formular uma estratégia de batalha.
— Suponho que o príncipe herdeiro julgue melhor meu controle,
ele é muito mais experiente do que eu. — Vhalla murmurou
enquanto espetava um pouco de comida do prato, mastigando
durante o silêncio que se seguiu.
— Você acha que ela estará pronta? — O Imperador virou-se
para Aldrik.
Os olhos de Vhalla levantaram bem a tempo de encarar os do
príncipe, enquanto as obsidianas caíam sobre ela com uma careta.
— Acho que sim, — respondeu Aldrik, virando-se para o pai.
— Então eu gostaria de uma demonstração antes de sairmos
das Encruzilhadas. — O Imperador recostou-se na cadeira e cruzou
as mãos.
— Uma demonstração? Por quê? — Aldrik perguntou, mais
ousado do que Vhalla algum dia poderia ser.
— Eu preciso de garantias. — O Imperador não parecia satisfeito
ao ser interrogado pelo filho.
— Devido aos eventos recentes, não tenho certeza se isso é
magicamente... — Aldrik começou.
— Você terá sua demonstração. — Vhalla focou no Imperador,
ignorando Aldrik e o fato de que ela o havia interrompido.
— Ah, aí está o fogo que eu vi no julgamento. — O Imperador
sorriu. Ela olhou para Aldrik, e ele mal conseguia conter sua
frustração. — Existem oportunidades no seu futuro, Vhalla Yarl.
Obediência é sempre bem recompensada.
— Obrigada, meu senhor. — Vhalla estava subitamente
conflitante com relação à tudo isso. Ela se sentia manipulada e
enganada, mas não tinha certeza de por quem.
Aldrik tinha sido honesto com ela sobre seus encontros. Então
por que tinha doído tanto? Vhalla torceu as mãos em seu colo.
No momento em que a comida foi recolhida, Vhalla já estava
ansiosa para escapar. — Por favor, perdoem-me, meus senhores,
mas me sinto bastante exausta.
— Certamente. Recupere-se rápido, Vhalla Yarl. — O Imperador
e seus filhos também se levantaram. — Vamos nos reunir
novamente em alguns dias.
Vhalla assentiu em silêncio, fez uma pequena reverência e virou-
se para a porta.
Ela o sentiu antes mesmo de Aldrik se mexer.
— Vou garantir que ela volte para a estalagem, — declarou o
príncipe herdeiro.
— Aldrik, gostaria que você repassasse comigo alguns planos
para gerenciar as adições nas tropas. Eles chegarão nos próximos
dias, e você tem seus assuntos com Elecia. — A voz do Imperador
tinha um tom definitivo.
Vhalla se eriçou com o nome da outra mulher. Ela tinha
esquecido dos negócios de Aldrik.
— Vai levar apenas um momento, — protestou o príncipe mais
velho.
— Não é necessário, meu príncipe. A caminhada não é longa e
eu não me importo de fazê-la sozinha, — respondeu Vhalla.
Os olhos de Aldrik se estreitaram levemente, seja em confusão
ou em agitação. — Eu preferiria não deixar nada ao acaso, — disse
ele, tenso. — As Encruzilhadas podem ser cheias de pessoas
suspeitas e desagradáveis.
— Meu irmão, sempre preocupado com o bem-estar de seus
súditos. — Príncipe Baldair caminhou para o lado dela. —
Felizmente, você tem dois filhos, pai. Ficarei feliz em garantir que a
nossa pequena Andarilha do Vento chegue em casa sã e salva.
Vhalla olhou confusa para o príncipe de ouro. Ela estava
bastante segura de que acabara de dizer que voltaria sozinha.
— Excelente sugestão, Baldair. — O Imperador foi até a grande
mesa e fez um gesto, indicando que era para Aldrik segui-lo. —
Estou ansioso pela sua demonstração, Senhorita Yarl, — o
Imperador disse antes de voltar sua atenção para os mapas e
papéis na mesa.
Aldrik olhou para ela derrotado, depois encarou o irmão, mas foi
obedientemente para o lado de seu pai.
Vhalla sentiu os olhos de Aldrik sobre ela quando a mão do
Príncipe Baldair caiu levemente em seu quadril, e ele a guiou para
fora do cômodo em direção ao sol da manhã.
— Por favor, retire suas mãos da minha pessoa, — Vhalla
murmurou para o Príncipe Destruidor de Corações.
Ele deu a ela um sorriso cheio de dentes. — Ora, ora, seja mais
gentil, — disse ele de modo charmoso. — As pessoas estão te
observando. — Ele sorriu para alguns soldados enquanto começava
a levá-la de volta, atravessando a praça.
— Exatamente, — ela retrucou. Pessoas observando era
precisamente com o que ela estava preocupada.
— Ah? Não quer que eles pensem que você está envolvida
comigo? — O Príncipe Baldair retornou um aceno. — Só com o meu
irmão?
Vhalla olhou para ele. — Chega disso, — ela advertiu. Seu ritmo
acelerou, para que pudesse atravessar a distância mais
rapidamente.
— Não até você perceber que ele está brincando com você. —
Todo gracejo e toda alegria tinham desaparecido de sua voz, e o
rosto do Príncipe Baldair ficou sério.
— Não é da sua conta, — argumentou Vhalla.
— Eu pensei que não estava. Pensei que talvez ele tivesse
mudado. — O príncipe segurou a porta da estalagem aberta para
ela, e Vhalla quase voou escada acima. — Mas pelo que vi, pelo
que ouvi, nos últimos dias - não é esse o caso.
Vhalla mordeu a língua e abriu a porta com tudo, torcendo para
que Larel a estivesse esperando e a salvasse. Ela não estava. O
príncipe segurou a porta que se fechava em sua cara com uma das
mãos, e Vhalla se virou bruscamente.
— Ainda estou me recuperando, meu príncipe, e gostaria de
descansar. Por favor, me dê licença. — Ela reuniu o que restava de
sua educação e decoro.
— Estou tentando te ajudar, — disse ele.
Vhalla viu a preocupação marcada em sua expressão aflita. —
Ah, é? — Sua paciência estava por um fio. — Do mesmo modo
como ajudou na última vez em que tivemos uma conversinha?
— Tudo o que eu te disse naquela hora era verdade. — Algo no
tom dele fez Vhalla parar, e ela balançou um pouco. — Vhalla, por
favor, sente-se. Meu irmão e meu Pai vão fazer da minha vida um
inferno se algo acontecer com você sob os meus cuidados.
Vhalla se jogou na cama, tirando as botas e deitando-se. Ela
rolou para ficar de lado, de costas para o príncipe. Tudo doeu no
momento em que começou a relaxar, mas não houve muito o que
fazer quando o príncipe deu a volta para sentar na beira da cama,
de frente para ela. Vhalla olhou para ele.
— Vhalla, por favor, ouça. Quero lhe contar uma coisa, —
implorou o Príncipe Baldair.
Ela suspirou. — Se eu ouvir, você vai embora?
Ele assentiu e Vhalla esperou com expectativa. — Meu irmão e
eu temos três anos de diferença, o que é uma diferença significativa
quando se tem cinco e oito, ou doze e quinze, mas dos quinze e
dezoito para cima se torna cada vez menos relevante. — Ela se
perguntou por que ele estava deixando-a cansada com trivialidades
sobre o aniversário deles. — Pouco tempo depois da minha
cerimônia de maioridade, houve um ano em que meu irmão e eu
decidimos entrar em uma competição amigável.
— Competição amigável? — Vhalla se preparou para o que
aquilo significava entre esses homens.
— Eu sempre fui... charmoso. — Príncipe Baldair sorriu para ela,
e Vhalla nem tentou se impedir de revirar os olhos. Pelo menos ele
riu. — Meu irmão cresceu como uma criança estranha e triste. Num
certo ponto, parecia que ele tinha atingido o fundo do poço e cedeu
à escuridão e ao isolamento que o cercavam. Para ser sincero,
nunca o vi sair de lá.
Vhalla achou interessante como as descrições do príncipe
Baldair e de Larel poderiam ser semelhantes e diferentes ao mesmo
tempo.
— Em algum momento tivemos uma briga, e realmente não
importa o motivo, mas ele tinha dezoito anos, e eu quinze, no auge
da idade mais impetuosa e temperamental. Eu disse que Aldrik não
podia sequer chamar a atenção de uma mulher por causa do modo
como ele era. — Vhalla parou, começando a ouvir atentamente. —
Por alguma razão, meu irmão aceitou o desafio.
— Desafio? — Ela repetiu suavemente.
— Por um ano, foi um desafio para ver quem conseguiria fazer o
maior número de mulheres concordar em compartilhar sua cama.
Os olhos de Vhalla se arregalaram. — Isso é... horrível.
— Certamente não foi a pior coisa que qualquer um de nós dois
já fez para passar o tempo. Nem a pior coisa que jovens príncipes já
fizeram ou farão na vida. — Vhalla percebeu a provável verdade de
suas palavras com horror. — No começo, eu era o favorito dos
casos de uma noite só. Mas eu subestimei meu irmão. Uma a uma,
como moscas em uma teia, elas começaram a se oferecer para ele.
Eu não entendia e isso me frustrava diariamente. Como a carcaça
magricela, desajeitada e deprimente que era o meu irmão tinha
conseguido reclamar uma liderança sólida?
— Chega, já entendi. — Ela apertou o rosto no travesseiro.
— Não, nós ainda não chegamos ao ponto. — Ele tinha uma
expressão sombria e Vhalla concordou silenciosamente. — Pensei
que era simplesmente por ele ser o príncipe herdeiro. Mas não era
esse o caso, porque as mulheres pareciam ficar interessadas por
muito tempo, mesmo depois que a vez delas tinha passado, sempre
esperançosas. Eventualmente, descobri que ele não estava
realmente levando-as para a cama. Elas concordavam em ir, o que,
dado os termos da nossa aposta, o colocou na liderança. Mas ele
nunca tomou de fato nenhuma delas.
A testa de Vhalla franziu. — Por que não? — É claro que ela se
sentia feliz ao ouvir que ele não tinha dormido com um exército de
mulheres, embora atraí-las como gado parecesse ruim o suficiente.
— Finalmente perguntei a ele um dia, quando o confrontei sobre
os termos do desafio. Nunca esquecerei o que ele me disse. —
Príncipe Baldair desviou o olhar. — Aldrik disse que era da caçada
que ele gostava. Que nenhuma delas era boa o suficiente para
merecer o seu toque. Que ele não tinha que matar a presa para ter
a satisfação da vitória. Era divertido; era um passatempo vê-las se
apaixonarem. Nos seis meses seguintes, eu o assisti brincar
habilmente com cada mulher elegível que conheceu. De alguma
forma, ele sabia o que elas queriam ouvir, como queriam ser
tratadas, e ele fez isso fingindo e usando uma completa máscara de
sinceridade. Ele tomou coisas delas, mas não seus corpos. Suas
dignidades, seu tempo, seus sonhos...
— Por favor, eu já entendi, — Vhalla sussurrou, e estava
cansada demais para ser tão forte quanto desejava ser.
O Príncipe Baldair suspirou e estendeu a mão, colocando uma
de suas grandes palmas no topo da cabeça dela. Vhalla ficou tensa
com o toque momentâneo e estranho.
— Pensei que talvez ele tivesse mudado. — A voz do príncipe
era suave. — Mas então ouvi uma conversa entre ele e o Pai. Aldrik
jurou que seria ele quem te faria se comprometer a obter a vitória.
Que você seria submissa e obediente à ele acima de tudo, e que ele
a tinha sob o seu comando sem questionar. Que a tempestade de
areia foi um exemplo disso - e foi aí que percebi que meu irmão
nunca abandonaria o controle que tem sobre as pessoas.
— Príncipe Baldair, estou muito cansada, — ela sussurrou. As
anotações na mesa do Imperador voltaram à sua mente, junto com
a menção dos relatórios que foram dados. Ela tinha sido uma
marionete para Aldrik e seu pai esse tempo todo? Seria seus
sentimentos a forma de pagamento para o melhor ator do mundo?
— Eu concordo com eles - com Aldrik e meu pai. Você é
inteligente, Vhalla. Por favor, só... o enxergue como ele é, tudo
bem? — Príncipe Baldair buscou o seu olhar.
Vhalla fechou os olhos, não querendo nada mais além de se
esconder. — Agradeço sua preocupação, meu príncipe. — Foi tudo
o que ela pôde dizer no final das contas.
Ele suspirou profundamente. — Bom descanso, Vhalla. — O
Príncipe Baldair se levantou.
Ela confiou apenas nos ecos de sua partida para perceber que
ele tinha saído.
Vhalla estremeceu, apesar do quarto estar quente. É claro que o
dia em que percebia estar irremediavelmente apaixonada por um
homem, também era o dia em que recebia uma série de provas
adicionais de que ele era um grande idiota perverso. Isso se alguém
considerasse a palavra do príncipe Baldair como prova de alguma
coisa. Vhalla riu e depois tossiu devido ao estado de seus pulmões.
Aldrik não a alertou com relação à tudo isso? Ele não disse
várias vezes que não era um bom homem? Vhalla suspirou
novamente e se perguntou se era justo ela usar isso contra ele.
Todas os encontros deles tinham sido uma desculpa para testar
suas habilidades. Ela era tola por pensar que eles - ela -
significavam outra coisa. Vhalla respirou de modo frágil e lutou
contra as lágrimas até que a exaustão a tomou.
— VHAAAAAAAL ... — Fritz cantou de mansinho. —
Vhaaaaaaallaaaaaaaaa.
Um dedo cutucou sua bochecha. Ela gemeu, rolando para longe
do contato.
— Deixe-a dormir, — Larel repreendeu.
— Mas ela dormiu o dia inteiro, e é a nossa primeira noite de
verdade nas Encruzilhadas, — Fritz choramingou.
— Vocês dois são tão barulhentos, — Vhalla amaldiçoou em voz
baixa.
— Um de nós é, — corrigiu Larel, com um tom ofendido.
— Vhal, você não quer levantar? — Fritz rastejou na cama com
ela.
— Não. — Ela não estava com a mínima vontade de fazer isso.
Depois de Aldrik e do Príncipe Baldair naquela manhã, e das
proclamações e demandas do Imperador, ela considerava
seriamente passar o resto da vida na cama.
— O que há de errado, Vhal? O mundo está celebrando em sua
homenagem agora, e você tem que festejar com eles. — Fritz a
agarrou com os dois braços, fazendo-a se sentar.
Larel aproveitou a oportunidade dela estar erguida para empurrar
dois elixires pela garganta de Vhalla.
— Por isso, todos nós vamos sair. — Fritz rastejou ao redor da
cama, sentando-se na frente dela.
— Sair?
— Ele copiou a ideia dos seus amigos da Guarda Dourada. —
Larel sentou na beirada da cama. Não era uma grande peça de
mobília, e eles estavam amontoados um em cima do outro. — Eles
vão sair para comemorar a primeira noite de verdade nas
Encruzilhadas. Aparentemente, vai haver uma celebração em
homenagem à Andarilha do Vento.
— Em minha homenagem? — Vhalla piscou.
— Sim, Vhalla. — Larel sorriu. — Você salvou centenas de vidas
- entenda isso.
Vhalla assentiu em silêncio.
— Nós queremos que você venha. — Fritz agarrou suas mãos.
— Nós? — Vhalla olhou para Larel. Ela não conseguia imaginar
Larel festejando nas ruas.
— Não tenho mais nada para fazer, — a mulher riu levemente.
— E acontece que a Andarilha do Vento em questão é minha pupila.
Seria uma vergonha se eu não tomasse pelo menos um drinque em
sua homenagem.
— Você vem com a gente? — Fritz perguntou novamente.
— Eu… — Vhalla suspirou, olhando o sol poente através das
cortinas. Ela pensou em Aldrik e no Imperador mais uma vez,
conspirando naquele edifício opulento aspirante à palácio. Uma
pequena centelha de raiva surgiu nela, e Vhalla agarrou os dedos
de Fritz. — Eu adoraria.
— Tem certeza de que se sente bem o suficiente? — Larel sentiu
que algo estava errado, mas a outra mulher parecia estar
confundindo as emoções selvagens de Vhalla em relação ao
príncipe com dores físicas causadas por seus ferimentos.
— Já estive pior. — Vhalla deu um sorriso corajoso. — Quem
sabe, talvez um pouco de companhia possa me fazer bem?
Teria sido mais convincente se ela não tivesse começado a ter
um ataque de tosse. Mas Fritz foi o salvador da noite, dando o braço
à ela e ajudando Vhalla a atravessar o corredor e a descer as
escadas. Larel deve ter concordado com a ideia, porque não se
opôs.
Uma vez que seu corpo estava em movimento, Vhalla descobriu
que se sentia melhor, provando que seus ferimentos físicos eram
superficiais. Eles provavelmente não se abstiveram de forçar todos
os tipos de poções em sua garganta enquanto estava inconsciente;
mas agora que as misturas clericais estavam fazendo efeito, seu
corpo estava se recuperando rapidamente. Desta vez ninguém a
esperava do lado de fora da estalagem, e ela estava grata por isso.
Vhalla não queria mais atenção.
As Encruzilhadas eram um lugar diferente de todos os outros
que Vhalla já vira. A capital era cheia, mas não assim. Parecia que
todas as pessoas de todos os tipos de formas, cores e tamanhos
estavam abarrotando as ruas, e essas mesmas ruas estavam cheias
de mercadores com peças tentadoras que não pareciam saber o
que significava encerrar o expediente. Os três foram por uma
pequena rua lateral, seguindo as instruções que Craig e Daniel
haviam dado a Fritz.
O bar estava barulhento, e os sons de homens e mulheres
cantando, rindo e conversando abafaram qualquer pensamento ou
dúvida de Vhalla. Ela estava em uma terra estrangeira como uma
heroína célebre. E, se pudesse acreditar em Fritz e Larel, a fonte da
alegria de todas essas pessoas era ela própria. Mesmo se isso
fosse apenas meia verdade, Vhalla antes tinha jurado viver a
despeito das intenções do Senado; agora ela jurou para si mesma
que seria feliz a despeito de qualquer jogo que a família Imperial
estivesse jogando.
— Vocês conseguiram vir! — Craig acenou para eles.
Daniel estava fora de sua cadeira no momento em que os viu.
Ele foi até Vhalla com uma única passada. — Como você está se
sentindo?
— Melhor, — ela respondeu sinceramente.
— Eu não esperava que você fosse sair hoje. — De alguma
forma, ele se colocou entre ela e Fritz.
— Bem, Larel e Fritz me disseram que essa é a minha festa, —
disse com arrogância sarcástica.
— É, de fato! — Craig riu alto. Ele rapidamente bebeu o
conteúdo de sua caneca de metal e a bateu contra a mesa algumas
vezes para chamar a atenção do bar. O Sulista ficou de pé, pulando
na cadeira, balançando assustadoramente por um momento.
Raylynn levantou, pronta para pegá-lo. — Boas pessoas,
companheiros soldados! É nossa honra hoje beber com a Andarilha
do Vento em pessoa!
As bochechas de Vhalla ficaram escarlate quando o cômodo se
recuperou de seu silêncio atordoado e explodiu em aplausos.
— Mas, é uma vergonha dizer, ela ainda não tem uma bebida! —
Craig riu.
Como mágica, haviam três copos de formatos e tamanhos
variados diante dela.
— Tente este aqui. — Daniel colocou um quarto copo na sua
frente; só tinha a altura de seu punho e estava cheio de um líquido
vermelho viscoso como xarope.
— O que é isso? — Ela perguntou.
— Um Dragão Escarlate. — Ele tocou o próprio nariz. — O
Oeste é conhecido por eles.
Vhalla reconheceu o nome e tomou um gole tímido. Era muito
gelado e queimou o fundo de sua garganta. Ela piscou para afastar
as lágrimas e segurou uma tossida.
— Não é de beber muito? — Craig riu.
— Não! — Vhalla tomou outro gole por via das dúvidas.
O Dragão Escarlate se foi e o álcool em outros dois copos o
seguiram rapidamente. Ela e Daniel haviam se envolvido em uma
intensa discussão sobre o peso de um porco premiado em um dos
infames festivais de Paca. Vhalla inclinou-se sobre a mesa em
busca de apoio quando se virou para encará-lo.
— Não, cem, — ela insistiu. — Eu juro, juro, que aquele porco
pesava cem pedras.
— Vhalla, sua Leouliana louca, — Daniel riu e tomou outro longo
gole de sua caneca. Ela observou o pomo de adão no pescoço dele
se mover enquanto o homem engolia. — Nenhum porco chega nem
perto de pesar cem pedras. — Ele apontou um dedo para ela.
— Não aponte para mim. — A garota agarrou o dedo indicador
dele, um ataque de risos tomando conta dela. — Isso é tão rude.
— Me solte, mulher. — Daniel tentou deixar seu rosto sério, e
Vhalla riu do modo como ele apertou os lábios juntos. De algum
modo, tudo estava terrivelmente engraçado naquele momento.
— Tá, tá. Mas você está errada e sabe disso. — Ela se recostou
na cadeira.
— Vhalla, Daniel, nós estamos indo. — Craig sacudiu seu
ombro.
Vhalla piscou, se perguntando quando o resto da mesa tinha
levantado. Ela tinha acabado de começar a conversar com Daniel.
— Para onde? — Seu camarada Oriental estava tão confuso
quanto ela.
— Dançar! — Fritz rodopiou.
Vhalla explodiu em gargalhadas incontroláveis, quase
derramando sua bebida número... deus sabe qual, em todo lugar.
— Você quer ir? — Larel riu. A mulher Ocidental estava cuidando
de Vhalla mesmo quando tinha um rubor nas bochechas. A irmã
mais velha que Vhalla nunca teve.
— Claro! — Vhalla cantou alegremente.
Ela tentou se levantar e quase caiu. Um braço musculoso
rapidamente se envolveu em torno de seu ombro. Vhalla encarou os
olhos de Daniel, surpresa. Ele era muito mais robusto do que
parecia.
— Essa é uma péssima ideia, — ele riu.
— Você - você vai aprender uma coisa quanto mais ficar perto de
mim: eu sou a rainha das péssimas ideias. — Vhalla quase não
conseguiu evitar comentar sobre o príncipe Aldrik.
Daniel a guiou pela noite atrás de Fritz, Larel, Craig, Raylynn e
outros que Vhalla não sabia nem o nome.
O salão de dança no qual foram parar era quente e abafado.
Mesmo que todas as grandes portas do térreo estivessem abertas
para circular a brisa fresca da noite, o vapor do suor pairava no
ambiente. Era um espaço grande e aberto, feito em grande parte
com madeira. Tinha um palco junto à uma parede, um bar na outra e
bancos nas extremidades - um lugar para descansar os pés
exaustos.
Vhalla sentou num deles com uma gargalhada. A multidão de
pessoas continuava a mover-se de acordo com a música que
tocava. Em algum lugar no meio dela, Fritz estava passando
vergonha com seu terceiro ou quarto rapaz da noite, e Larel, Craig e
Raylynn não estavam em nenhum lugar que ela pudesse ver. A
dança Ocidental tinha tambores altos, cornetas e favorecia um ritmo
forte. Como tal, os passos eram mais rápidos em comparação com
o estilo de dança Sulista; as pessoas giravam e se entrelaçavam,
chutavam e rodopiavam entre si.
Daniel sentou-se pesadamente ao seu lado, a coxa dele tocando
a dela, e enxugou o suor da testa. Ele passou uma caneca para ela.
Vhalla tomou um longo gole e o olhou.
— Água? — Ela fez uma careta.
— Para sua cabeça, amanhã. Melhor começar a tomar agora, —
ele disse, ofegante.
— Eu não quero água. — Ela mostrou a língua para ele e o fez
rir.
— Tá bom, mas não chore no meu ouvido amanhã de manhã. —
Ele passou a própria cerveja para ela, e Vhalla tomou um gole antes
de devolvê-la a ele.
— Está quente. — Vhalla balançava para frente e para trás.
— Quer ir tomar um ar? — Ele perguntou.
Ela assentiu.
Em vez de levá-la em direção às portas principais, ele subiu por
uma escada lateral. Vhalla escorregou em um dos degraus e ele a
pegou enquanto os dois caíam na gargalhada. Ela se encostou na
parede, tentando controlar as risadas.
— Vhalla, você é inteligente demais para ser tão estúpida
quando está bêbada, — Daniel ofegou entre risadas. Algo sobre a
vertigem era contagiosa, e Vhalla deslizou contra a parede. Ele a
pegou pelo braço, puxando-a em sua direção. — Vamos lá, mal
demos dez passos.
Daniel a ajudou a subir e as escadas os levaram ao telhado. Eles
não foram os únicos a ter essa ideia, já que alguns outros
divagavam ao redor, aproveitando o ar noturno. Vhalla foi para um
canto vazio do telhado e suspirou suavemente.
— É lindo, — ela sussurrou com uma admiração enevoada. As
Encruzilhadas estavam iluminadas em todo o horizonte. As janelas
retangulares dos prédios quadrados de telhado plano brilhavam
contra o deserto sombrio. Em algumas janelas, cortinas brilhantes
em vermelho e marrom tingiam as luzes; em outras, vitrais coloridos
projetavam cores nas ruas e prédios próximos.
— É a sua primeira vez, certo? — Daniel sentou-se no estreito
beiral que margeava as bordas do telhado. Vhalla sentou-se
também, passando as pernas para o lado. — Vhalla, cuidado. — Ele
agarrou o braço dela.
— Tolinho, — ela riu, oscilando e colocando a mão na argila
pedregosa para se inclinar para perto dele. — Não posso me
machucar ao cair - quero dizer, não posso morrer. — Ele inclinou a
cabeça com curiosidade. — Fogo não pode ferir Domadores de
Fogo, água não pode ferir Magistrais da Água e terra não pode ferir
Mestres da Terra, eu acho? — Vhalla se viu rindo de novo; ela não
tinha ideia. — Mas o vento não pode me matar; eu já caí de lugares
mais altos e estou vivíssima. — Ela começou a divagar, afastando-
se dele.
— Foi como eu tive o meu Despertar, na verdade. Um Despertar
é quando um feiticeiro demonstra seus poderes na íntegra pela
primeira vez. Antes disso, eles apenas Manifestam de alguma
maneira aqui ou ali, sem controle. Essa é a segunda vez que um
homem me leva para um telhado. Mas, da última vez, Aldrik decidiu
me empurrar pra fora dele, no caso. — Ela fez um movimento de
empurrar com as mãos e começou a rir. — Pela Mãe, eu fiquei
furiosa com ele. Também fiquei toda quebrada. Mas ele me deu um
ótimo pedido de desculpas, depois de tudo. O maravilhoso
complexo que é Aldrik Solaris tinha um motivo para a maior parte de
suas ações, apesar de ainda ser bastante horrível mesmo sabendo
a razão. Eu queria que mais pessoas pudessem ter visto a cara dele
quando se desculpou - ele parecia um garotinho! — Vhalla rugiu de
tanto rir. Ela não estava chateada com o príncipe a algumas horas
atrás? Lentamente, suas risadas desapareceram quando ela
vislumbrou o rosto de Daniel. — O que?
— Vhalla..., — ele murmurou, levando sua pesada caneca aos
lábios — ...você bebeu demais. — Ele sorriu cansado e estendeu a
mão. Daniel colocou a palma sobre a cabeça dela e acariciou seus
cabelos uma vez. — Chega disso, antes que você diga algo que
realmente se arrependa pela manhã.
Ela descobriu que, de alguma forma, ainda estava segurando o
copo de água, e bebeu profundamente. Vhalla se viu balançando
levemente na brisa, ou talvez fosse a sensação da cerveja em sua
cabeça. Ela se inclinou para o lado e sua têmpora encontrou o
ombro masculino. Eles ficaram em silêncio; ele olhou de volta para o
telhado, ela olhou para a cidade.
— Ele tem sorte, — Daniel sussurrou.
— Ele não me quer, — disse ela pela primeira vez em voz alta. O
silêncio de Daniel foi um convite para que continuasse. — Acho que
sou um fardo, ou uma ferramenta, ou uma diversão. Nada mais que
isso.
— Acho que não, — murmurou Daniel. — Eu o vi ao seu redor -
todos nós vimos.
Vhalla perguntou a si mesma se ela tinha apenas imaginado o
espadachim inclinando-se uma fração em sua direção.
Ela respirou fundo e agarrou a caneca dele, a água esquecida
por um momento. Daniel abriu mão do próprio copo. — Ele me quer
para o pai, para a guerra deles, só isso.
— Então ele é ainda mais tolo e estúpido do que as pessoas
dizem. — Os dedos de Daniel roçaram os seus quando ela passou a
caneca de volta para ele.
— Você tem alguém? — Vhalla já estava certa de que sabia que
a resposta não seria afirmativa. Se fosse sincera consigo mesma, já
tinha começado a perceber a maneira como seu companheiro
Oriental a olhava quando pensava que ela não estava prestando
atenção.
— Eu tinha. — Ele tomou um gole longo. — Voltei da minha
última missão e descobri que ela havia decidido que “quando a
guerra acabasse” era muito tempo para se esperar.
— Sinto muito, — Vhalla suspirou, aceitando a caneca dele de
volta.
— Estou superando isso. — Daniel encolheu os ombros. Ele não
foi nem um pouco convincente.
— Sabe o que vai ajudar? — Ela girou as pernas de novo e ficou
de pé com um tropeço e uma risada. — Mais álcool, mais dança. —
Ela estendeu as mãos para ele e o homem riu, aceitando a ideia.
Ambos tinham algo do que queriam fugir, percebeu Vhalla - ou
melhor, de alguém. Ele fugia da sombra dessa outra mulher, e ela
fugia das possibilidades dolorosas que envolviam ela e Aldrik. Vhalla
desceu as escadas com determinação, a mão dele envolta na sua
enquanto o guiava de volta ao andar debaixo. Essa noite, eles
fugiriam juntos.
A primeira parada foi no bar. Só porque percebeu que estava
fugindo, isso não fazia de seu julgamento algo mais conciso. Sua
mão já estava erguida e ela pediu dois copos de um líquido que
desceu queimando garganta abaixo.
Daniel tossiu. — Como você consegue beber isso? — Ele bateu
o copo de volta no balcão do bar.
— Você também está bebendo, — ela tossiu. Vhalla sentiu o
álcool atingir seu sistema e cambaleou, rindo outra vez. — Vamos
lá.
Daniel pagou o barman e eles foram para a pista de dança
novamente. Ele pegou as mãos dela e a girou três vezes. O interior
de Vhalla borbulhou e ela estava rindo de novo. Seus quadris
balançavam e suas mãos batiam palmas de acordo com a música
enquanto os dois batiam os pés no chão e giravam os quadris. Ela
chutou para a esquerda dele e ele para a sua direita, antes de
mudarem de direção.
Eles voltaram a ficar juntos e uma mão estava envolta na dele, a
outra em seu ombro - e a dele, no ombro dela. Vhalla se viu sorrindo
de orelha a orelha. Os dois eram péssimos dançarinos. Mas ela
estava completamente embriagada pelo álcool, pela multidão, pelo
calor, pelos sorrisos doces de Daniel, por sua admiração amável e
por suas mãos.
Por fim, os pés dela pareciam estar prestes a cair e suas
articulações gritavam em protesto ao menor sinal de mais
movimentos. Vhalla perdeu o passo e quase caiu, colocando as
mãos nos ombros masculinos, apoiando-se nele em busca de apoio.
Ela sentiu as palmas de Daniel pousarem em seus quadris.
— Estou tão cansada, — ela gritou em seu ouvido sobre a
música e o barulho das pessoas.
— Graças à Mãe, eu também. — Ele riu e a levou para fora da
pista de dança. Eles caminharam até a saída principal e pararam
perto da porta.
— Cadê todo mundo? — A banda nunca tinha parado de tocar,
então a multidão nunca parou de se mover. Ambos tentaram
localizar pelo menos uma das pessoas que vieram com eles.
— Quem sabe? Eles sabem o caminho de volta. — Daniel
bocejou, virou-se e tropeçou em direção à rua. Foi a vez dele de
quase cair, e Vhalla correu para o seu lado, passando os braços em
volta de sua cintura. Ele a agarrou em busca de apoio e eles quase
caíram juntos.
— Você-você está bêbado. — Ela socou o estômago dele.
— Ungh, — ele grunhiu. — Não faça isso ou vou vomitar nos
seus sapatos.
— Você não ou-use, — ela riu e arrastou as palavras, com o
braço ao redor da cintura de Daniel e o dele ao redor de seus
ombros.
— Agora quem é que está bêbado? — Ele colocou o polegar em
um canto da boca dela e o indicador no outro, apertando os lábios
femininos para imitar o movimento de fala.
Vhalla riu e deu um tapa em sua mão. — Não tire sarro de mim,
— ela fez beicinho.
— Ora, aí está uma expressão que pode quebrar até o mais forte
dos homens. — Daniel sorriu. Vhalla notou que um dos lados da
boca dele se erguia mais que o outro. Não tinha a mesma curvatura
que a de Aldrik, mas havia algo similar e charmoso nela.
Eles tropeçaram pelas ruas provocando um ao outro, agarrando
paredes e portões em busca de apoio. Num geral, foi um milagre
que não acabaram terrivelmente perdidos. No caminho, eles
passaram por um chafariz público e Daniel insistiu para que ela
bebesse generosamente.
— Eu não consigo beber nem mais uma gota. — Ela estava
deitada no chão sujo, com o rosto molhado.
— Levante-se do chão, — ele riu.
— Não, é legal aqui. — Ela sorriu, o que logo foi interrompido por
um bocejo. A imprecisão em sua cabeça estava começando a
mudar para exaustão.
Ele estendeu a mão para ela. — Não estamos longe agora,
Vhalla. Cama é melhor que o chão. Além disso, acho que existem
certas pessoas, às quais tenho medo de ter que prestar contas, que
ficariam furiosas se eu deixasse você dormir na rua.
Ela ficou de pé novamente e eles entraram tropeçando na
estalagem, pouco tempo depois. O hall principal estava silencioso e
ele a ajudou a subir as escadas. Vhalla se dissolveu em uma crise
de riso, caindo contra a parede.
— Você é tão barulhenta, — ele repreendeu entre risadas
incontroláveis.
— Não, você que é! — Ela cobriu a boca com uma mão, sua
lateral doendo por conta das contusões e da diversão.
Daniel sorriu para ela de forma encantadora. Seus cabelos
caíam ao redor do rosto. Ele tinha uma aparência comum, como
qualquer outro Oriental. Mas, para Vhalla, ele era bonito de um jeito
nostálgico, e sua voz, desgastada por conta dos muitos anos de
gritos nos campos de batalha e áreas de treinamento, estava
começando a soar suave. — Vamos lá, já para a cama.
— Obrigada, Daniel, — sussurrou Vhalla, parando na frente da
porta de seu quarto.
— Pelo quê? — Ele perguntou.
Mesmo bêbada, ela não era ingênua. Esse seria o momento que
a maioria dos outros homens a pediria para entrar em seu quarto.
Vhalla encostou-se à porta com um sorriso sincero. O brilho da
embriaguez desapareceria com o amanhecer. Mas o doce rastro de
sua presença prometia permanecer por muito tempo. — Já faz um
tempo que eu não me divertia tanto.
— Nem eu. — Daniel deu mais alguns passos para trás. — Se
você precisar de alguma coisa, estou no andar de cima, primeira
porta à direita depois do patamar.
— Obrigada. — Ela bocejou.
— Tudo bem, hora de dormir, sua linda Andarilha do Vento. —
Ele deu a ela um sorriso preguiçoso que Vhalla retribuiu, antes de
entrar no quarto escuro.
Ela não tinha forças nem para trocar de roupa. Vhalla foi direto
para a cama, caindo em cima de outro corpo em coma. Ela quase
teve um infarto.
— Bem-vinda de volta, Vhalla, — Larel murmurou grogue.
— O que você está fazendo aqui? — Vhalla relaxou, movendo-
se para debaixo dos cobertores.
— Eu queria ter certeza de que você iria voltar, — a Ocidental
bocejou. — Como foi o resto da noite?
— Divertida. — Vhalla aconchegou-se ao calor familiar de Larel.
— Fritz? — Larel fechou os olhos.
— Não sei — disse Vhalla honestamente, e perguntou a si
mesma se deveria se sentir culpada.
— Ele provavelmente ainda está tentando pegar alguns garotos,
— Larel riu, cansada. Suas palavras estavam um pouco arrastadas -
Vhalla não tinha sido a única a beber. — Daniel?
— Sim, ele me acompanhou de volta. — Vhalla esfregou o rosto
no travesseiro.
— Ele não fez nada inapropriado, né? — Larel abriu os olhos de
supetão para estudar Vhalla.
Vhalla riu. — Não, ele é maravilhoso, na verdade, — ela admitiu
de modo quase desleal. — Eu deveria ficar com alguém como ele…
— Quando Vhalla pensava sobre isso, ele seria uma escolha
sensata. Apenas pouco acima de sua posição, Oriental como ela,
atencioso, gentil, bonito. Ela se sentiu estranha só de pensar na
crescente lista de razões pelas quais Daniel era um bom par.
— Aldrik? — Apenas com esse nome, a racionalização de Vhalla
sobre ela e Daniel parou completamente.
— Eu o amo, — suspirou. Ela o amava tanto que seu coração
doía só de pensar. Uma noite e muito álcool não conseguiriam
mudar o que vinha crescendo e sendo construído há meses, mesmo
que essa mudança fosse o melhor para si. Vhalla cutucou o
cobertor. — O que você sentia pelo Aldrik?
— O que eu sentia? — Larel deitou-se de costas. — Eu sentia
como se ele fosse uma das únicas pessoas que eu realmente tinha
no mundo, que realmente se importavam comigo. Suponho que é a
razão pela qual já chamei esse sentimento de amor.
— Como você confunde amor? — Vhalla perguntou. Talvez ela
estivesse confundindo também?
— Existem muitos tipos de amor, — disse Larel.
— Existem?
— Você ama Aldrik do mesmo modo como ama o seu pai? — A
voz de Larel continha um sorriso.
— Família é diferente! — Vhalla empurrou o ombro da outra
mulher.
— Eu te amo, — disse Larel suavemente, acalmando-a. A
mulher Ocidental se inclinou para perto, dando um beijo gentil na
testa de Vhalla. — Não de um jeito romântico. Mas eu amo você
total e completamente, mesmo assim. — Vhalla de repente sentiu
vontade de chorar. — E eu amo Aldrik - mas como meu amigo; Eu
não queria e não o quero entre os lençóis. Quando o beijei, foi
estranho, constrangedor; não havia nada mais além de um beijo.
— Entendo, — Vhalla mal conseguiu terminar de dizer antes de
bocejar. Ela se perguntou o que sentiria se beijasse Aldrik.
— Vamos dormir, Vhalla. Está tarde. — Larel se aproximou dela,
antes de se aconchegar.
Vhalla fechou os olhos. Ela fingiu que a respiração lenta e
constante de Larel era a de Aldrik. Fingiu que era o calor dele
irradiando ao seu lado. Vhalla suspirou suavemente. Havia uma dor
que fez suas pernas se apertarem sob as cobertas. Talvez fosse o
álcool ou a exaustão que a levou a admitir, mas ela sabia, sem
dúvida, que queria o príncipe herdeiro como mulher - e como uma
amante.
A TRAVÉS DO QUARTO OUTRORA escuro, uma fenda de luz passou por
entre as cortinas, fazendo Vhalla piscar de modo turvo e sua
cabeça latejar.
— Eu me sinto doente, — ela gemeu suavemente.
— Você bebeu demais, — murmurou Larel.
— Vocês duas, silêncio, — um sussurro agonizado ordenou.
As duas mulheres sentaram-se de supetão ao som da voz
masculina.
Vhalla espiou por cima da beirada da cama e viu um Fritz
desgrenhado jogado no chão. — Quando você chegou aqui? — Ela
fez uma pausa. — Por que você está aqui?
— Larel não estava no nosso quarto e eu fiquei preocupado. Aí
depois fiquei com sono, — Fritz gemeu, rolando para longe da luz.
— Chega de falar.
Bem quando Vhalla ia sugerir que eles dormissem o dia inteiro,
houve uma batida na porta.
— Condenada seja essa pessoa à justiça ardente da Mãe, —
Fritz cuspiu as palavras malignamente.
— Vhalla? — Era Daniel.
Vhalla se levantou e tentou ajeitar as roupas amassadas que
cheiravam à álcool. Larel e Fritz já tinham desabado novamente
quando ela abriu a porta. Daniel parecia estar num estado melhor,
mas não muito. Seu cabelo estava molhado, e Vhalla imaginou que
um banho provavelmente a ajudaria também.
Ele riu quando a encarou. — Ainda dormindo? — Ela apontou o
óbvio.
— Não, apenas praticando um ritual antigo da Torre, — ela
retrucou com um sorriso cansado, encostada na porta. Vhalla
examinou a bandeja que ele segurava nas mãos. — Você me trouxe
presentes?
— Algo assim. Posso? — Daniel levantou sua oferta de comida,
água e alguns frascos.
Ela assentiu e se afastou para que seu amigo Oriental entrasse
no quarto escuro. Larel e Fritz o encararam com olhos vermelhos e
franzidos, mas não questionaram.
— Achei mesmo que vocês dois estariam aqui. — Ele balançou a
cabeça com diversão. — Trouxe água para cada um e uma poção
que ajudará com as dores de cabeça. Eu dei um jeito de encontrar
um pouco antes que acabassem totalmente.
— E man'nik. — Larel rapidamente estava de pé, indo em
direção à bandeja. Ela pegou um pãozinho quente, mordendo-o
vorazmente.
— E isso. — Daniel nem tentou pronunciar o nome da comida
Ocidental. Ele olhou para o rosto confuso de Vhalla. — É recheado
com carne.
— Coma um, Vhalla. — Larel enfiou uma nas mãos dela,
agarrando o pote de água.
— Obrigada, Daniel, — disse Vhalla sinceramente, engolindo a
poção e amenizando o sabor com a água.
— Foi sugestão minha sair ontem à noite. — Ele sorriu quando
Fritz arrastou os pés. — E eu percebi que nenhum de vocês era
muito acostumado com esse tipo de coisa.
— E você é? — Fritz pegou sua parte dos presentes de Daniel.
— Na verdade não. — Daniel riu. — Vamos sair para uma noite
mais tranquila hoje, e vocês todos estão convidados.
— Sem álcool, — murmurou Larel.
— Sem álcool, — ele confirmou. — Volto ao anoitecer. Vamos
todos nos encontrar no hall de entrada do térreo. — Daniel foi até a
porta.
— Onde você está indo agora? — Vhalla perguntou.
Daniel fez uma pausa, seu olhar interrogativo. — Pensei em ir ao
mercado principal hoje.
— Posso ir com você? — Ela não tinha certeza do que a
dominou naquele momento.
— Não me importo se você vier junto. — Daniel deu seu sorriso
cheio de dentes e Vhalla se viu incapaz de não sorrir de volta.
— Eu preciso mudar de roupa... — Vhalla beliscou as próprias
roupas amarrotadas, sentindo o odor que exalava. Ela se sentia tão
nojenta quanto cheirava, por conta de dançar na noite passada. — E
tomar um banho.
— Vou esperar lá embaixo, — disse ele, abrindo a porta. — Não
tenha pressa.
— Daniel, hein? — Fritz cantarolou em apreciação.
— O que? — Vhalla perguntou, na defensiva.
— Nada, apenas que é uma pena que ele não pareça
interessado em garotos. A marcha é longa — Fritz zombou.
— Ah, cale a boca. — Larel balançou a cabeça para Fritz. —
Você já tem alguém.
— Tem? — Vhalla piscou. O Sulista pareceu muito empenhado
em encontrar homens durante toda a noite.
— Na verdade, não... — Fritz estava mais desconfortável do q ue
Vhalla já o tinha visto.
— Grahm, é o Grahm. — Larel revirou os olhos.
— Grahm? — Vhalla lembrou-se do homem Oriental que
raramente era visto separado de Fritz na Torre. Como eles se
sentavam, coxas se tocando, ombros roçando. — Você e Grahm?
— Não é nada oficial, eu não sei... — O vermelho nas bochechas
de Fritz disse a Vhalla tudo o que precisava saber. O que quer que
fosse "não oficial" entre eles não permaneceria desse jeito por muito
tempo quando Fritz retornasse.
— Se você está indo ao mercado, precisará disso aqui. — Larel
colocou três moedas de ouro na penteadeira.
— De onde isso veio? — Vhalla nunca tinha visto tanto dinheiro
ao mesmo tempo em sua vida.
— Remuneração, — Fritz bocejou, abrindo a porta.
— Remuneração? Pelo quê? — Vhalla estava confusa.
— Soldados são pagos. — Larel sorriu.
— Mas eu não sou um soldado. — Vhalla torceu os dedos. —
Sou propriedade da coroa.
— Acho que salvar o exército merece três moedas de ouro. —
Larel deu um tapinha no ombro dela e conduziu Vhalla para o
banheiro.
Era um banheiro compartilhado para todo o andar, mas
felizmente estava vazio. A banheira era apenas para uma pessoa e
Vhalla aproveitou o seu momento. Alguém, e ela suspeitava de
Larel, a havia banhado precariamente enquanto estava
inconsciente, mas nem se comparava ao quão limpa se sentia
depois da experiência completa.
Quando Vhalla voltou para o quarto, Larel ainda estava
esperando persistentemente para verificar seus ferimentos. Vhalla
duvidava que pudesse dançar a noite toda se os ferimentos ainda
fossem significativos, mas ela obedeceu Larel de qualquer maneira.
Larel a viu vestida e então usou a magia de uma maneira que Vhalla
nunca havia imaginado.
Ela passou as palmas pelos cabelos de Vhalla e o calor
instantaneamente fez a água evaporar, remodelando os fios. Larel
explicou como foram necessárias muitas tentativas para obter o
equilíbrio certo entre tensão e calor, mas foi um truque útil quando
dominado. Quando Vhalla olhou para os cabelos no espelho,
subitamente macios e lisos, ela concordou facilmente.
Daniel estava sentado, um pedaço de carvão se movendo sem
parar sobre as páginas de um livro de couro de aparência gasta,
quando ela chegou no andar de baixo. Ele tinha uma bolsa de lona
pendurada atravessando o peito, bolsa essa na qual o livro
desapareceu rapidamente quando ele a notou. Vhalla ajeitou a
própria bolsa nos ombros, vazia, exceto por uma moeda de ouro.
— Sinto muito por fazer você esperar, — disse ela se
desculpando.
— Sem problemas. — Daniel ficou de pé com um aceno de
cabeça. — Pronta?
Ela assentiu.
As vielas das Encruzilhadas eram completamente diferentes à
luz do dia. A maioria das lojas que fechavam ao pôr do sol estavam
agora aberta e cheias de vida. Mesas foram dispostas com todos os
tipos de jóias, comida, bugigangas e quinquilharias. Vhalla se viu
desacelerando em cada uma delas para inspecionar algo que nunca
tinha visto antes.
— Nós nunca vamos chegar ao mercado principal assim. —
Daniel riu.
— Desculpa! — Ela disse, correndo para alcançá-lo. — É só que
é tudo tão, tão diferente.
Vhalla fez questão de manter o passo junto à Daniel e não ficar
para trás. Eventualmente, seu trajeto cheio de voltas levou os dois à
uma rua larga - o Caminho Leste-Oeste. Vhalla engasgou com o
enxame de pessoas que se agitavam dentro do maior mercado do
mundo. Tudo estava movimentado, tudo estava colorido, tudo
estava vivo e tudo parecia ter um preço.
As pessoas pressionavam-se umas contra as outras e se
empurravam decididamente para chegar seja onde quisessem ir em
seguida. Alguns carregavam grandes cestos na cabeça, outros
seguravam travessas, e outros tinham gaiolas com animais
selvagens que Vhalla nunca vira antes. Um homem se empurrou
entre eles e Vhalla olhou para Daniel, mas a multidão já o havia
engolido.
Ela examinou sua esquerda e direita, tentando descobrir onde o
homem poderia ter ido. Vhalla caminhou em direção à onde ele
estava antes. — Daniel? — Alguns transeuntes a olharam
estranhamente, mas seguiram em frente. — Daniel! — Ela tentou
um pouco mais alto.
— Vhalla! — Uma mão disparou para cima, nos limites da
multidão. — Por aqui. — Vhalla teve que pular para localizá-lo, e ela
empurrou por entre as massas para chegar até ele. Daniel riu. —
Desculpe por isso.
— Não foi culpa sua. — Ela balançou a cabeça.
— Vamos dar uma olhada aqui. — Ele segurou uma cortina
pesada que dava para uma loja mal iluminada.
Os olhos de Vhalla se ajustaram lentamente à pouca iluminação.
Uma densa névoa pairava no ar, e continha o cheiro de especiarias
e madeira. Caixas de vidro cobriam as paredes e algumas ficavam
livremente no meio da sala. Vhalla passou a mão sobre elas,
olhando os tesouros que continham.
— Irashi, bem-vinda. — Uma jovem mulher vestindo uma túnica
que revelava seu decote generoso - até demais, na opinião de
Vhalla - caminhou até eles. Ela tinha cabelos pretos, longos e lisos.
Metade caía sobre seus ombros e costas. A outra metade estava
trançada como teia de aranha no topo da cabeça.
— Bem-vindos à melhor Loja de Antiguidades em todo o
território. — Ela se inclinou contra uma das caixas, a pele bronzeada
de sua perna deslizando através de uma fenda em sua túnica rubi
brilhante - um contraste impressionante. — E com o que posso
ajudá-los hoje? — A mulher sorriu dissimuladamente.
— Acho que estamos apenas olhando. — Vhalla deu um passo
mais perto de Daniel e se afastou da mulher. Ele não pareceu
incomodado, mas algo nessa mulher deixava os pelos de Vhalla
erguidos.
— Ninguém fica “apenas olhando”. Todos têm desejos. — A
mulher cruzou os braços sob os seios. — Diga-me, qual é o seu?
— Desculpe decepcioná-la. — Vhalla desviou de sua pergunta e
olhou para Daniel. — Vamos, estou com fome. — Ela agarrou o
braço dele e se virou para sair.
— Não há sequer uma curiosidade que você tenha, Vhalla Yarl?
— Vhalla congelou abruptamente. — Eu sei que seus ventos não
lhe dirão o que as chamas vão me dizer.
Daniel deu um passo à frente; ele colocou metade de seu corpo
na frente de Vhalla, um braço esticado sobre ela protetoramente.
— Como você sabe o meu nome? — Vhalla sussurrou em
choque.
— Eu posso saber muitas coisas e te contar mais ainda, se você
assim o desejar. — A mulher jogou parte de seu cabelo por cima
dos ombros. — O fogo queima todas as mentiras.
— Você é uma feiticeira, — afirmou Vhalla; era como se ela
pudesse sentir o cheiro da magia que irradiava da mulher.
— Sou uma Domadora de Fogo, — a mulher afirmou com um
aceno de cabeça.
— Qual é o seu nome? — Vhalla empurrou o braço de Daniel
para baixo, dando um passo à frente.
— Eu tive muitos nomes; eu poderia lhe contar um deles, ou eu
poderia deixar você escolher um nome por si mesma. Então será
algo que só nós duas poderemos compartilhar. — A mulher
continuou relaxada contra uma das caixas.
— Diga-me o nome pelo qual você gostaria que eu te chamasse.
Inventado ou não. — O instinto disse a Vhalla para fazer o mínimo
de escolhas possíveis ao interagir com essa mulher.
— Vi, — a Ocidental disse com simplicidade. — Você gostaria
que eu lesse suas curiosidades?
— Ler nossas curiosidades? — Daniel perguntou.
— Sou uma Domadora do Fogo, eu e as chamas somos uma só,
e com os meus olhos posso ver o futuro. Você vem com
curiosidades, perguntas, em seu coração e eu lhe darei respostas,
— proclamou a mulher.
Vhalla era uma pessoa cética, mas a mulher sabia o nome dela.
— Vou fazer isso. — Ela se sentiu dominada pela valentia.
A mulher deu um sorriso conhecedor. — Você deve escolher
quatro coisas: três para queimar, uma para segurar. — A Domadora
de Fogo fez um gesto apontando para o cômodo, para as caixas, e
Vhalla entendeu. Essas coisas não estavam à venda; era uma
vidente e essas eram as ferramentas de seu trabalho. Vhalla
começou a perambular pelo local, Daniel pairando sobre seu ombro.
— Tem certeza de que é uma boa ideia? — Ele sussurrou
diretamente em seu ouvido para que a mulher não ouvisse. Sua
proximidade era calorosa, mesmo em comparação com o dia
quente.
— Vai ficar tudo bem. Por que não viver um pouco? Estou aqui,
e, de alguma forma, ela sabia o meu nome.
Vhalla examinou os objetos estranhos; havia uma quantidade
impossível de quinquilharias em ordem aleatória nas caixas. Um
pote de penas chamou sua atenção. Vhalla estendeu a mão,
manuseando-o. Selecionando uma pluma cinza-prateada, Vhalla
levou-a ao balcão em que a mulher repousava.
Então Vhalla estava vagando novamente. Um punhado de trigo -
casa - e pétalas de rosa, uma outra sensação de lar, reunidos no
balcão. A última coisa - algo para segurar - foi mais difícil de
encontrar. Ela passou muito tempo indo de caixa em caixa, olhando
para isso ou aquilo.
No final das contas, foi uma fina corrente de prata que estava
pendurada em uma caixa de jóias parcialmente fechada que
chamou sua atenção. Vhalla abriu a tampa de vidro do estojo e
puxou a corrente levemente. Era um simples relógio de bolso
prateado, projetado para ser usado em volta do pescoço. Vhalla
olhou-o atentamente. Os elos eram estranhamente familiares. Isso a
lembrou do relógio de Aldrik, ela percebeu. — Isso... é isso que eu
vou segurar. — Vhalla caminhou de volta para a mulher.
— Uma escolha interessante. — A Domadora de Fogo parecia
divertida. — Venha. — Vi levou as mercadorias a serem queimadas
para um quarto dos fundos ainda mais cheio de fumaça. Os sapatos
foram removidos como se estivessem em um lugar sagrado.
Tapeçarias e tapetes cobriam o chão e as paredes, fazendo com
que o lugar parecesse muito pequeno e íntimo. Cada um deles
ocupou um lugar ao redor de uma fogueira que queimava
lentamente.
— Você tem certeza de que deseja um observador? — Ela
perguntou, olhando para Daniel. — Vou ler os futuros tal como eu os
vejo.
— Suponho que não... — Vhalla olhou incerta para Daniel. — Se
você não se importar?
— Vou esperar logo ali. — Daniel saiu através da cortina pesada
e Vhalla ouviu seus passos desaparecerem.
A mulher se ajoelhou sobre a fogueira e enfiou a mão nos
carvões fumegantes. Ela os ergueu e os deixou cair, seu brilho
laranja-quente brilhava na penumbra. Chamas lambiam seus dedos
e logo depois seus braços; até os cotovelos estavam cobertos de
fuligem. A mulher estendeu a mão e ergueu o polegar, marcando o
rosto de Vhalla.
— Vhalla Yarl, pássaro abençoado do Leste. Aquela que pode
voar sem asas. A primeira garota a fugir da gaiola. A primeira a
retornar para a nossa terra.
A mulher se inclinou para trás. Pegando a pena, ela a jogou na
fogueira. Chamas crepitaram brancas. Vi pegou o trigo,
adicionando-o ao fogo. A cor mudou para laranja. Por último, as
pétalas da rosa foram sacrificadas e o fogo mudou para um
vermelho profundo e antinatural, quase preto.
Vhalla segurou o fôlego quando a mulher colocou o rosto nas
chamas. De bruços, ela abriu os olhos para o fogo, e Vhalla soltou
um suspiro desconfortável enquanto a Domadora do Fogo não era
afetada em nada pelo calor. Lentamente, as chamas começaram a
diminuir, deixando uma cinza púrpura clara no fundo do pequeno
poço.
— O presente queima, deixando que o futuro ressuscite de suas
cinzas. — Vi se inclinou, pegando um punhado grande de cinzas e o
jogando no ar sobre elas. O pó fino começou a girar lentamente e a
cair, mais leve que a neve, e pairou diante dela, fazendo formas
desconhecidas antes de finalmente se estabelecer no chão. Os
olhos de Vi queimavam numa cor vermelha brilhante.
— Você marchará para a vitória, e ela será conquistada graças
às suas asas prateadas. Mas os ventos da mudança que você
libertará também destruirão a terna esperança sobre a qual você
voa. Você perderá sua sentinela sombria, — a mulher predisse.
Vhalla apertou o simples relógio de bolso, com o coração
acelerado.
— Dois caminhos estarão diante de você: noite e dia. Siga em
direção ao oeste no cair da noite. Desapareça nas trevas
reconfortantes de um véu de escuridão. Você encontrará uma
felicidade familiar lá, se puder ignorar os anseios pelo sol. — Vi fez
uma pausa, olhando as cinzas cintilantes ao redor da sala. — A
outra estrada queimará suas mentiras à luz da alvorada. Seus
desejos transparecerão para que todos os vejam. Mas tenha
cuidado, pois o mesmo fogo que te desmascará também dará à luz
um poder ainda maior, que consumirá a própria terra.
Um silêncio dominou o cômodo à medida que as últimas cinzas
caíam no chão. Vhalla respirava superficialmente. Cada uma das
palavras da mulher parecia ter sido cuidadosa e perfeitamente
escolhida para um significado exato. Mas qual era esse significado
Vhalla ainda não sabia ao certo. Os olhos de Vi lentamente voltaram
a ficar pretos de novo.
— E agora, o pagamento. — A mulher se acomodou em uma
posição mais confortável.
— Ah, certo. — Vhalla pegou sua bolsa e procurou a moeda de
ouro.
— Eu não quero moedas. — Vi a deteve.
Vhalla fez uma pausa, uma sensação perturbadora deslizando
pela parte de trás do seu crânio. — O que você quer, então?
— Esse relógio. — A Ocidental apontou para o objeto que Vhalla
estava segurando.
— Esse? — Vhalla levantou a peça; era da mulher, para começo
de conversa. Vi assentiu. — Tudo bem, é claro.
Vhalla o entregou. Ela nunca tinha esperado ficar com ele, mas
algo estranho formigou em seus dedos quando Vhalla abriu mão do
relógio. Era fisicamente difícil vê-lo nas mãos da outra mulher.
— Nossos atuais negócios foram concluídos.
As duas se levantaram e Vi segurou aberta a cortina enquanto
Vhalla calçava seus sapatos.
— Guarde minhas palavras, Vhalla Yarl.
Vhalla só pôde acenar com a cabeça diante da mensagem
enigmática, antes de voltar à loja propriamente dita. Ela esfregou as
cinzas do rosto, tentando descobrir o quanto a adivinhação da
mulher a incomodava. Vhalla assentiu para Daniel e eles saíram em
silêncio, voltando ao caos do mercado. De alguma forma, ela sentiu
o brilho ardente do olhar da mulher perseguindo-a pela rua.
Vhalla ficou de braços dados com Daniel a fim de evitar se
separar dele novamente. Ele também era uma fonte estável e, na
verdade, ela se sentia um pouco abalada. Vhalla se contraiu,
segurando-o mais forte.
— Como foi? — Ele perguntou da maneira mais leve possível.
— Foi... uma experiência. — Vhalla tentou rir. Ela podia perceber
que ele não tinha comprado sua fachada corajosa, mas não insistiu
com mais perguntas sobre que tipo de experiência tinha sido.
Daniel ficou de bom humor o resto do dia, enquanto mostrava o
mercado. Ele a deixou confortável para decidir quão próximo de si
ela gostaria de ficar, nem a afastando e nem a puxando para mais
perto. Normalmente os dois ficavam lado a lado por praticidade, mas
se ela fosse completamente honesta, estava gostando do fato de
estar fisicamente perto de alguém que não era confuso ou
frustrante.
Eles pararam em uma banca de comida e compraram bolinhos
de arroz com legumes dentro. Vhalla riu quando o ofereceu uma
mordida do seu, que tinha um sabor diferente, e metade caiu no colo
dele. Para a sobremesa, eles tentaram um doce quadrado com uma
textura estranha, rígida e gelatinosa ao mesmo tempo. Vhalla
comprou uma caixa pequena para presentear Larel e Fritz.
Depois que o assunto sobre a manhã finalmente morreu, o dia se
transformou em uma experiência geral muito positiva no mercado.
Vhalla comprou um pequeno frasco de perfume e uma bola de pot-
pourri para sua bolsa em uma loja de fragrâncias, pensando que
ambos poderiam ser úteis durante o resto de sua marcha pelo
deserto.
Eles passaram por uma confeitaria e encontraram as raspas de
limão cristalizadas que Aldrik havia mencionado. Vhalla pegou duas
delas, uma para ela e outra para ele. O príncipe os havia
mencionado, e também gostou do bolo de limão. Daniel comprou
uma nova adaga que poderia ser usada na perna e espadas curtas,
que ele insistia serem muito melhores do que as que já tinha.
Quando Vhalla disse-lhe que não tinha armas, ele ficou horrorizado
e essa nova caçada bélica custou o resto da tarde.
Ela finalmente escolheu uma adaga fina, quase em formato de
agulha, que era um pouco menor que o comprimento do seu
antebraço. A lâmina vinha com um coldre para usar na parte interna
do mesmo, a empunhadura bem perto do pulso. Daniel apontou que
ela perderia muita estabilidade e força escolhendo uma opção tão
pequena. Mas quando Vhalla a prendeu no lado interior do
antebraço e desenrolou a manga sobre a lâmina, ela imediatamente
gostou de sua escolha. Com uma blusa normal, ficava perfeitamente
escondida. O punho tinha o comprimento exato para não impedir
sua mobilidade. Com um movimento rápido, ela a desembainharia.
Ao todo, o dia custou quase a soma do dinheiro que havia
trazido. Mas eles ficariam nas Encruzilhadas por apenas mais
alguns dias e grande parte das suas despesas já pareciam ter sido
pagas.
Mesmo fora do mercado, seu braço ainda estava enrolado ao de
Daniel. O frio da noite estava chegando e ele era uma presença
familiar e quente. Vhalla sorriu, mexendo na adaga presa ao braço
esquerdo.
— Não funciona como uma arma oculta se você ficar mostrando
às pessoas que ela está aí, — Daniel repreendeu com um sorriso.
— Você está certo, acho, — ela concordou com uma risada. Ele
não tinha tocado na adaga nova presa à panturrilha por horas.
Eles passearam pelo mercado e depois voltaram à praça central,
onde o Caminho Leste-Oeste encontrava o Grande Caminho
Imperial. Domadores de Fogo andavam por ali, acendendo as
lâmpadas, e Vhalla achou incrível ver uma sociedade que tinha
feiticeiros tão integrados de maneiras úteis. Ela sorriu, os olhos
seguindo um em particular, sem motivo. Ele entrou num prédio com
grandes vitrais coloridos circulares. Vhalla parou de remexer na
bolsa em seu ombro.
Era uma ideia terrível. Ela estava tendo outro daqueles
momentos em que precisava admitir que era um erro e parar. Vhalla
respirou fundo. — Eu… — Ela fez uma pausa, olhando entre Daniel
e o prédio. — Eu preciso fazer uma parada rápida. A estalagem fica
logo ali. Você pode ir na frente.
— Não, eu não vou deixar você andar sozinha nas Encruzilhadas
à noite, — disse ele num tom definitivo. — Pode ser perigoso.
— Muito bem, — ela suspirou suavemente. — Então me espere
aqui fora?
— Isso eu posso fazer. — Havia apreensão em seus olhos, mas
Daniel a manteve longe de sua língua e a poupou do comentário.
Vhalla respirou fundo e reuniu coragem, caminhando para as
portas de entrada. Ela não tinha certeza se queria ver Aldrik
novamente. Ela não estava brava com ele? Mas na raiz de todos os
seus sentimentos conflitantes estava a necessidade de vê-lo, de
dizer o que precisava ser dito: a verdade.
Música suave, de estilo Sulista, tocava em um dos cômodos do
saguão principal. Vhalla olhou incerta para as portas fechadas e as
salas de estar opulentas. Um homem pigarreou por trás do balcão
de recepção.
— Tenho uma entrega para o Príncipe Herdeiro, — anunciou
Vhalla.
O homem mais velho cruzou os dedos ossudos e a olhou com
ceticismo. — O que você possivelmente poderia ter?
— Eu sou a Andarilha do Vento, — declarou ela, tentando usar
suas credenciais para evitar a pergunta.
— Parabéns, e o que é tão importante que ele não teria deixado
avisado?
Desanimada por sua abordagem não ter funcionado, ela perdeu
a determinação e murmurou: — Ele... nós temos um trabalho a
fazer... para o Imperador.
— Tenho certeza que sim... — O homem não acreditou nela nem
um pouco. — Infelizmente, o príncipe pediu explicitamente para não
ser incomodado. Vá com deus.
Vhalla suspirou suavemente, resignada.
— Vhalla? — Príncipe Baldair parou num corredor que se unia
ao hall de entrada junto com outros cômodos, caminhando até ela.
— O que você está fazendo aqui?
— Meu príncipe, eu estava de saída. — Vhalla lembrou-se
vívidamente da última vez que ela e o Príncipe Baldair haviam se
falado.
— Ela estava pedindo para ver o príncipe herdeiro, — informou o
funcionário traiçoeiro.
— Vhalla. — O príncipe de ouro franziu a testa, olhando para o
homem e pensando duas vezes antes de continuar. — Eu mesmo
vou levá-la lá.
— Você vai? — Vhalla e o recepcionista perguntaram em
uníssono.
— Ele se trancou lá em cima; eu não o vi nenhuma vez.
Companhia é bom de vez em quando, não? — Baldair colocou a
mão na base das costas dela e praticamente a empurrou escada
acima em direção aos largos degraus.
— Você está realmente me levando para vê-lo? — Vhalla
perguntou quando chegaram ao hall do segundo andar.
— Claro que não, mas vou perguntar o que você pensa que está
fazendo aqui. — Quando ficaram em particular, o príncipe deixou de
lado todo o decoro.
— Não é nada importante, — murmurou Vhalla. Ela já estava
duvidando de sua missão.
— Pensei que tinha dito para você ficar longe. — Baldair franziu
a testa.
— Isso não é da sua conta. — Vhalla tirou o saco de doces da
mochila. — E eu também queria dar isso a ele.
— Raspas de limão? — Príncipe Baldair reconheceu a marca da
confeitaria. — Vhalla... — ele suspirou. — Eu não sei que tipo de
relacionamento você acha que pode ter com o meu irmão...
— Eu não quero um, — disse ela na defensiva. As palavras
atravessaram seus lábios antes que Vhalla pudesse pensar nelas,
alimentadas pelo despeito.
— Não, você quer. Ele tem você sob o feitiço dele, — insistiu o
príncipe de cabelos loiros.
— Do que você está falando? — Vhalla deu um passo para trás.
— Por que mais alguém iria querer o meu irmão?
Ele pegou o seu pulso enquanto ela tentava ir embora. — Me
solte.
— Estou tentando ajudá-la. — De alguma forma, o Príncipe
Baldair conseguia parecer sincero.
— Me solte! — Vhalla puxou tentando se livrar do aperto firme.
— O que é esse alvoroço todo? — Uma voz resmungou no final
do corredor. O sangue de Vhalla se transformou em gelo nas veias.
Elecia, com uma túnica de dormir frouxa e nada mais, estava
descalça e parecia meio grogue. Ela bocejou enquanto se
aproximava. — Vhalla? O que você está fazendo aqui?
— Nada! — Vhalla disse, tentando bater em retirada de forma
rápida. — Estou tentando ir embora agora. — Ela apertou as raspas
de limão contra o peito e tentou se virar, mas o Príncipe Baldair
ainda segurava seu pulso.
— Você ainda está aqui? A essa hora? — A surpresa do Príncipe
Baldair ao ver Elecia fez com que ele ignorasse os puxões de Vhalla
contra o seu agarre.
— Baldair, pare de ser um estúpido, pegue a garota e vá
embora, — retrucou Elecia. Ela parecia exausta e no limite. De
alguma forma, até o cabelo dela parecia menos volumoso do que o
normal.
— O que exatamente vocês dois andaram fazendo esse tempo
todo? — O Príncipe Baldair perguntou.
— Sua curiosidade não pode ser saciada sozinha? — Vhalla
perguntou fracamente, ainda tentando sair.
— Irmão, pela Mãe, eu juro... — Uma voz baixa que soava
rouca, como se doesse falar - e ainda sim claramente muito irritada -
veio do final do corredor. Elecia se virou e correu de volta para
Aldrik.
— Você precisa voltar para a cama. — A outra mulher estava de
frente para ele, a palma negra contrastando com a pele pálida do
peito nu masculino.
Os olhos de Vhalla se arregalaram quando ela absorveu a visão
dos dois juntos. Elecia mal estando vestida, cansada, seu cabelo
uma bagunça. Aldrik parecendo o mais próximo de dormir que ela já
tinha visto antes - e seminu. Seu peito pálido e bem esculpido trouxe
um rubor quente às suas bochechas. Aldrik não apenas tolerou o
contato; ele não parecia se importar com a proximidade de Elecia,
com seu toque. Ele moveu a mão para colocá-la no ombro da outra
mulher.
O saco de raspas de limão escorregou da mão de Vhalla e caiu
no chão.
O barulho da sacola caindo e a dispersão dos doces silenciaram
todas as partes envolvidas. Os olhos de Aldrik foram os últimos a
encarar Vhalla, mas encontraram os dela com uma mistura de
surpresa e confusão. Vhalla respirou de forma trêmula.
Não havia nada a dizer. O silêncio se estendeu por mais um
minuto doloroso. Pouco antes que o mesmo se rompesse ela girou
nos calcanhares, arrancou sua mão do aperto frouxo do príncipe
Baldair, e correu.
Vhalla desceu rapidamente as escadas, saindo pelas portas e
entrando na praça. Ela inclinou a cabeça para trás e respirou fundo.
O ar frio que atingiu seus pulmões a fez engasgar, e Vhalla se
dobrou sobre si mesma. Os soluços já haviam começado. Ela
fechou os olhos com força e sentiu todo o corpo tremer.
Um par de mãos se posicionaram timidamente sobre seus
ombros, pairando um momento antes de fazer o contato.
— Vhalla, — Daniel sussurrou.
Ela girou. Suas bochechas estavam encharcadas pelo choro
quase silencioso. — Eu te disse, eu sou a rainha das péssimas
ideias. — Vhalla tentou dar um sorriso que foi rapidamente
consumido pelas lágrimas.
Daniel a puxou para si e passou os braços suavemente em volta
de seus ombros. Ele sussurrou palavras suaves no topo de sua
cabeça e a abraçou. Vhalla pressionou o rosto contra o peito dele,
segurando sua camisa. Ela sentiu os joelhos cederem.
Daniel deu apoio a ela. Ele a segurou, sem dizer nada, sem
perguntar nada, enquanto ela soluçava. Vhalla não se importava
com quem estava vendo a cena. Por trás de seus olhos estava a
imagem ímpar de Aldrik e outra mulher. Uma mulher que ela sabia
estar no palácio há algum tempo, com algum tipo de nascimento
nobre se todas as suas suspeitas estivessem corretas. Ambos eram
adultos, tinham a idade certa e a criação certa. Eles estavam juntos,
interrompidos ao fazerem algo, durante a noite. Ela pensou em seu
peito nu e isso agitou algo dentro de Vhalla, o que só a fez chorar
mais.
Vhalla agarrou Daniel como se os braços dele fossem a última
coisa que a impedissem de perder a sanidade.
O SOL ESTAVA se pondo sobre os telhados das Encruzilhadas.
Vhalla ergueu as mãos ao rosto dele. Aldrik se inclinou em sua
direção, tomando ambas as palmas em suas próprias, e beijou-as
levemente. Ela sussurrou para ele e ele sussurrou de volta, as
palavras que ela tinha desejado ouvir por tanto tempo. Ela se
aproximou dele e os lábios masculinos se separaram.
Então Vhalla estava apenas observando, os longos e belos
dedos de Elecia estavam sobre a face pálida dele. Os dois se
inclinaram para mais perto e Vhalla gritou.

Ela sufocou no ar noturno, acordando assustada. Vhalla olhou em


volta freneticamente, lembrando-se de onde estava. Daniel estava
dormindo profundamente na cadeira que Larel tinha ocupado antes.
A Ocidental e Fritz ainda estavam fora jantando, alheios ao fato de
que o mundo de Vhalla havia sido destruído, e Daniel tinha se
recusado a deixá-la sozinha. Vhalla caiu de volta no travesseiro,
forçando os olhos a se fecharem.

Na vez seguinte, suas mãos eram as dele. No escuro, as pontas dos


dedos passaram por um rosto encoberto pelas sombras. Ela não
conseguia distinguir as feições, mas Vhalla sabia não eram as dela.
Eram de Elecia? Sua mente divagou enquanto estava contida na
prisão do sonho. Seu coração batia rápido e ela sentiu o sangue
correr, concentrando-se em outro lugar. Havia um desejo carnal que
deveria ser atendido.

Vhalla rolou na cama e abriu os olhos, olhando fixamente para a


parede. Ela choramingou suavemente e puxou os cobertores sobre
a cabeça.

Ela correu pelas ruas de fogo e morte. Os corpos já estavam


mutilados, os membros agredidos e os crânios despedaçados
espalhados pelo chão. Vhalla correu pelas ruas, pelos espectros
sombrios. Essa noite - essa noite ela seria rápida o suficiente, seus
pés a diziam isso, e ela permitiu que o vento aumentasse embaixo
de si.
Vhalla derrapou ao parar diante do prédio demolido, e arrancou
selvagemente os escombros. Cada pedra retirada fazia seu coração
bater um pouco mais rápido. Eventualmente, ela viu um rosto sob os
destroços. Vhalla congelou; ele não deveria estar lá. Ela arrancou os
entulhos remanescentes e pegou o corpo de Aldrik em seus braços,
chorando.

Ela acordou uma terceira vez e então uma quarta e uma quinta.
Sua mente estava fortemente munida com pesadelos. Daniel se
fora, e ela ouviu conversas abafadas do outro lado da porta. Vhalla
reconheceu instantaneamente uma voz como sendo a de Larel, e
esperou que a outra mulher deslizasse de forma silenciosa para
dentro do quarto.
— Larel, — ela sussurrou fracamente, sentindo o colchão
afundar para acomodar a nova pessoa.
— O que aconteceu? — Larel passou as mãos pelos cabelos de
Vhalla de forma amorosa.
— Aldrik... — Vhalla engasgou com o nome dele. — Ele e
Elecia... eles...
— Eles o que? — Larel persuadiu gentilmente.
Vhalla contou os acontecimentos que ocorreram mais cedo e
Larel ouviu obedientemente. Ela não disse nada, nem de bom, nem
de ruim, absorvendo toda a história. Vhalla teve outra crise de choro
quando recontou o momento em que viu Elecia e Aldrik juntos.
— Tenho certeza que ela é nobre. O jeito que age em torno dele,
o modo como o chama pelo nome... Tem alguma coisa ali, Larel. Eu
só... eu não queria ver. — Vhalla fungou audivelmente.
— Ela é, — disse Larel suavemente.
— Ela é o que? — Vhalla esfregou os olhos.
— Ela é nobre, — confirmou Larel.
— O que? — Vhalla ficou paralisada. — Como você pode ter
certeza?
Larel suspirou e desviou os olhos. Seja o que for que ela
estivesse prestes a dizer, Vhalla sabia que não iria gostar. — Ela
não começou a aparecer no palácio até que ele fosse mais velho,
durante os poucos anos em que estivemos muito distantes um do
outro. Ele passava muito tempo com ela quando Elecia estava por
perto. Não me lembrei disso até ouvir a recepção que ela teve aqui
nas Encruzilhadas. Ela é uma Ci'Dan, uma família nobre do Oeste
que tem laços com a coroa. Eu na verdade nunca estudei história -
essa é a área do Fritz -, mas sempre presumi que ela era uma noiva
em potencial, dada a idade dele quando ela apareceu.
— Você sabia. — Traição era como veneno em brasa. — Você
sabia e não me contou?
— Vhalla, me escute, — exigiu Larel, prendendo-a na cama com
um braço. — Me escute.
Vhalla parou de lutar, mas isso não impediu a raiva que pulsava
em suas veias. Todo mundo estava disposto a mentir e a enganá-la;
talvez o Príncipe Baldair estivesse certo.
— Eu não te contei porque não acreditava - e ainda não acredito
- que você tenha algo com o que se preocupar.
— Como você pode dizer isso? Ela é uma mulher nobre, o
conhece há anos - eu vi os dois juntos!
— Calma. — Larel tentou acalmar a histeria de Vhalla. —
Quando vocês estão juntos, Aldrik olha para você, e só para você.
— Ele passou muito tempo com ela.
— Passou mesmo, — Larel admitiu. — Mas ele nunca olhou
para ela da maneira como olha para você. Ele nunca fala com ela do
mesmo modo que fala com você. Vhalla, Aldrik gosta de você
profundamente, eu sei que sim.
— Você não sabe de nada, — murmurou Vhalla.
Larel apenas suspirou e esfregou as costas de Vhalla enquanto
a mulher mais nova chorava baixinho.
Vhalla ficou chocada quando, mais tarde, um mensageiro lhe
trouxe uma convocação Imperial. Era um cartão com três dobras
selado com o sol flamejante do Império em cera preta.
— Você vai abrir? — Larel perguntou após a décima volta de
Vhalla pelo quarto.
— Vou, — disse ela com falsa confiança.
— Hoje? — Larel teve a audácia de provocá-la.
Vhalla lançou um olhar furioso para a outra mulher, e Larel não
pareceu muito arrependida. A Ocidental não havia mudado seu
discurso de que Aldrik não tinha interesse em Elecia.
— Vou, — repetiu Vhalla, colocando o dedo sob o selo. Ela
respirou fundo e desdobrou o bilhete antes que suas mãos o
derrubassem por causa da tremedeira. — Sua presença é
requisitada, — ela leu em voz alta. — Príncipe Aldrik C. Solaris.
— Só isso? — Até Larel parecia surpresa.
— É melhor assim. — Vhalla jogou o bilhete em sua bolsa,
vasculhando as roupas no chão que nunca haviam entrado nas
gavetas. — É sério. Vou até lá e vou dizer a ele que sei de tudo.
— Vhalla, — Larel suspirou.
— Podemos acabar com essa farsa, e vou fazer o que for
necessário para que eu tenha a minha liberdade, — Vhalla jurou,
vestindo um conjunto de blusa limpa e calças justas.
Elas desceram as escadas em silêncio, Larel a assistindo sair da
estalagem e a vigiando durante todo o caminho até o hotel luxuoso
onde a família Imperial estava hospedada. Vhalla passou a
caminhada tentando proteger seu coração o máximo possível. Ela
imaginou cada costela como um muro de arame farpado no qual
nada poderia entrar ou sair. Ela faria o que Aldrik e o Imperador
precisassem e depois iria embora. Ela não queria nem mencionar o
que tinha visto. Afinal, não era da sua conta; ela que havia invadido
a privacidade dele.
Quando Vhalla chegou ao prédio reluzente na praça principal,
ela já havia feito um roteiro e repetido tantas conversas em sua
cabeça que se sentia preparada para todos os prognósticos
possíveis. Não importa o que, ela iria manter o controle e sair o mais
rápido possível. No entanto, nada disso impediu seu coração de
ameaçar explodir em sua gaiola espinhosa quando abriu a porta do
hotel, deixando Larel para trás.
— Como posso ajudar? — A mulher atrás do balcão perguntou
rigidamente.
— Tenho uma hora marcada com o príncipe herdeiro. — Vhalla
não se permitiu dizer o nome dele. — Vhalla Yarl, a Andarilha do
Vento.
A mulher pegou o mesmo livro-caixa que o homem da noite
anterior, e passou o dedo pelas páginas. — Ah, sim. Vá em frente -
segundo andar, ala direita, — a mulher instruiu desnecessariamente.
Vhalla já havia começado a subir as escadas.
Cada passo coincidia com as batidas em seus ouvidos. Cada
resquício de seu escasso bom senso gritava para deixar uma
mensagem dizendo que estava indisposta. Mas ela sabia que só
poderia fugir por pouco tempo. Dali a quatro dias eles estariam
cavalgando juntos, com Elecia também.
Vhalla fez uma pausa e respirou fundo, concentrando-se apenas
no som do ar se movendo. Ela podia fazer isso.
Chegando ao hall do segundo andar, ela parou. Vhalla afastou a
imagem de Elecia e Aldrik juntos no meio da noite e seguiu em
direção à porta. Com o resto de sua determinação, deu algumas
batidas curtas.
Foi um minuto tenso enquanto esperava; ela estava totalmente
preparada para sair correndo e explicar que achou que ele estava
fora. A maçaneta da porta girou. Aldrik estava contra a luz colorida
dos grandes círculos de vitrais que dominavam a parede oposta à
porta. Ele usava um casaco de couro preto que ia até os joelhos,
com uma única fileira de botões de ouro abertos contra a camisa de
algodão branca com colarinho alto por baixo. Calças bem ajustadas
caíam diretamente até pés descalços, observou Vhalla com
curiosidade. Seu cabelo estava arrumado novamente, e só a visão
dele já era dolorosa, porque agora contrastava drasticamente com o
homem desgrenhado que havia sido acordado de seu sono,
provavelmente dos braços de seu amor.
— Olá, Vhalla. — Ele parecia tão feliz em vê-la quanto ela se
sentia em relação à ele.
— Meu príncipe, — Vhalla desviou o olhar, incapaz de manter o
contato visual por mais tempo.
— Entre. — Ele deu um passo para trás e se virou.
Vhalla entrou no quarto, fechando a porta suavemente atrás de
si.
Era um cômodo espantoso. Tetos altos com mosaicos de
histórias clássicas, juntamente com alguns personagens que Vhalla
nunca tinha visto antes. Havia uma grande área de estar com duas
espreguiçadeiras que davam para um grande sofá, com uma mesa
entre eles. Um bar bem abastecido dominava o local à esquerda da
porta - Vhalla instantaneamente desejou algo forte - e uma grande
mesa com todos os tipos de papéis e garrafas abertas estava à
direita. Do outro lado, havia uma parede com portas de correr
abertas que revelavam um quarto adicional com uma cama grande e
forrada com cobertores e travesseiros. Talvez a característica mais
surpreendente fosse a janela, aquela que viu da praça. Era grande o
suficiente para que almofadas fossem empilhados no parapeito, e
parecia que podia acomodar facilmente quatro pessoas.
Vhalla deu outro passo hesitante, ficando instantaneamente
desconfortável no ambiente dele. Ela não pôde deixar de olhar para
a cama, perguntando-se se Elecia havia a compartilhado com ele na
noite anterior. Aldrik tinha ido até a mesa e estava mexendo nos
papéis.
— Você está quieta. — Ele a olhou pelo canto dos olhos.
— Desculpe, — ela respondeu, sem saber o que mais poderia
dizer.
— Sente-se, — ele ordenou de modo quase malcriado.
Vhalla avançou através da tensão entre eles, quase se afogando
nela antes de conseguir se sentar em uma das espreguiçadeiras.
Aldrik encontrou o papel pelo qual procurava, colocando-o na mesa
mais baixa diante do sofá enquanto se sentava em frente a ela. Eles
se entreolharam, esperando que alguém dissesse algo primeiro.
Vhalla engoliu em seco.
— Isso é para a demonstração? Para o seu pai? — Trabalho, ela
deveria focar no trabalho.
— Para o que mais seria? — Ele murmurou, suas palavras como
agulhas.
— É claro, — respondeu Vhalla fracamente.
— Meu pai vai querer que façamos um jogo de caça ao tesouro.
— Aldrik olhou para o pergaminho como se fosse a coisa mais
fascinante do mundo. — Baseado no que eu disse a ele que você é
capaz de fazer no atual momento, primeiro ele a fará Projetar até
uma pessoa, que lhe dirá um local e um item. Você reportará para
mim e me direcionará para algo - que eu não vou saber o que é até
o início da demonstração - com base nas instruções.
— Isso parece bastante simples. — Ela assentiu.
— Parece? — Aldrik arqueou uma sobrancelha para ela.
Vhalla se remexeu sob seu ceticismo. — Temos feito coisas
desse tipo há semanas.
— O que exatamente temos feito, Vhalla? — A voz de Aldrik
estava vazia, sem qualquer calor familiar.
Ela não sabia como responder. Ele não estava perguntando
sobre Projeção, ele estava perguntando sobre a dança que eles
vinham fazendo em torno de algo que os dois estavam aterrorizados
demais para nomear. Agora, parecia que ele estava a acusando.
— Deixa pra lá. — Aldrik levantou-se. — Não responda. Eu já
sei.
— O que? — Ela ficou de pé também. — O que você acha que
sabe?
— Você achou que eu não iria descobrir? — Ele estreitou os
olhos para ela.
— Descobrir o que? — A voz de Vhalla tinha um tom estridente
por causa da tensão que seus olhos evocavam nela.
— Você não foi a primeira que me usou para chegar até ele. —
Aldrik desviou o olhar com nojo.
— Do que você está falando?
— Você e Baldair.
O queixo de Vhalla despencou em puro choque. — O que?
— Eu peguei vocês dois juntos ontem à noite, de mãos dadas. —
Aldrik se esticou em sua altura máxima, sua linguagem corporal
imponente.
— De mãos dadas? — Vhalla hesitou. — Você quer dizer, ele
agarrando o meu pulso? Ele me segurando no lugar para que eu
fosse forçada a testemunhar você e Elecia? — Ela acusou,
apontando para o príncipe herdeiro.
— Elecia? — Aldrik parecia ter esquecido que a outra mulher
esteve com ele na noite passada.
— Você sequer ia me contar? — O lábio inferior de Vhalla
tremeu, e ela jurou que não iria perder o controle, que não choraria
na frente dele.
— O que Elecia tem a ver com isso? — A confusão afrouxou
seus ombros.
— Não. — Vhalla balançou a cabeça. — Chega, não posso mais.
Estou farta. — Ela se virou, partindo em direção à porta.
— Vhalla! — Ele disse num estalo. — Você me pediu para não
manter segredos, para dizer a verdade, e agora está me virando as
costas? — Aldrik riu sombriamente. — A ironia disso.
— A verdade? — Ela parou, a apenas dez passos da porta. Ela
deveria simplesmente ir embora. Mas algo a fez dar meia volta.
Vhalla o olhou em desalento. Tudo teria sido melhor se ele apenas
tivesse admitido. — A verdade é... a verdade é... — Algo dentro dela
se rompeu. — A verdade é que toda vez que fecho os olhos, tudo o
que vejo é você e ela! — A voz de Vhalla quebrou no meio da frase
e ela jogou os braços para cima em derrota. As lágrimas ardiam nos
cantos de seus olhos e ela fungou, mantendo-as afastadas.
— Por quê? — Aldrik deu um passo em sua direção.
— Porque - você sabe o porquê! — Ele realmente iria fazê-la
dizer?
— Por que você se importaria com Elecia se deseja o meu
irmão? — Sua voz estava perdendo o tom afiado, suas sondagens
se tornando mais exploratórias do que maldosas.
— Aldrik, — Vhalla cobriu os olhos com a palma da mão. —
Você é um idiota. — Ela deu uma risada derrotada. — Não quero o
seu irmão, meu estimado príncipe Aldrik C. Solaris. Nem toda
criatura com peitos pensa que o Príncipe Baldair é um deus entre os
homens.
— Então por que, por que você se importa? — Ele deu outro
passo para mais perto. Vhalla abriu a boca e a fechou, virando-se
para a porta. — Diga-me, porque Elecia importa? — Aldrik agarrou
seu cotovelo, impedindo-a de fugir do quarto.
— Por que ela importa? — Vhalla não tinha certeza se alguma
vez na vida já conhecera um homem que pudesse ser tão
assombrosamente esperto em relação a praticamente tudo e, ao
mesmo tempo, tão pateta quando se tratava da pessoa com quem
supostamente deveria estar mais conectado do que qualquer outra
no mundo. Ela se virou para encará-lo, arrancando o braço de seu
agarre. — Ela importa da mesma forma que os títulos importam. Da
mesma forma que o meu nascimento e o seu importam. Da mesma
forma que importa o motivo pelo qual seu irmão insiste em me
atormentar com histórias horríveis sobre você.
— Pare de evitar a minha pergunta! — Ele exigiu.
— Não estou evitando! — O resto de sua determinação se
quebrou e seu controle se perdeu. Lágrimas iriam cair a qualquer
momento, e se os dois iriam romper, eles poderiam muito bem ficar
em pedaços de uma vez. — Eu amo você, Aldrik!
Sua voz ecoou em ondas de choque que abalaram os dois. A
palma da mão de Vhalla voou para sua boca. Ela não teve a
intenção de dizer isso, e Vhalla o olhou com os olhos arregalados.
Ela observou seu rosto com atenção. Testemunhou as palavras
serem absorvidas lentamente, o choque que começou a surgir nos
olhos dele, que ergueu suas sobrancelhas e que fez seu queixo
despencar.
O coração de Vhalla disparou e ela sentiu um soluço suave subir
por sua garganta. Queria que ele dissesse algo, qualquer coisa. Se
ele a condenasse logo, poderia sair e finalmente seguir em frente e
superá-lo. Ela poderia deixar seus cabelos pretos e olhos escuros
para trás. Ela poderia deixar sua voz desaparecer de seus sonhos e
não mais permitir que sua figura a assombrasse à luz do dia.
A boca de Aldrik se fechou. Ele engoliu em seco.
Vhalla não podia mais tolerar o silêncio e agarrou a maçaneta da
porta como se fosse sua única tábua de salvação. Ela iria embora
agora, e deixaria tudo ficar quebrado.
O príncipe tinha outros planos, e ele a agarrou.
— Aldrik o qu... — Ela tinha apenas começado a dar meia volta,
e ele a girou o resto da distância que faltava.
As mãos dele soltaram seus braços e seguraram suas
bochechas em um único movimento fluido. Vhalla teve apenas meio
segundo para registrar o rosto de Aldrik se aproximando do seu. Ela
inalou bruscamente com o choque de sentir os lábios masculinos
contra os dela. Seu cheiro, sua respiração, o calor de suas mãos, a
sensação de sua boca, tudo isso violou os sentidos dela e Vhalla
fechou os olhos, inclinando-se para o beijo.
V HALLA suspirou baixinho, sua boca ainda gloriosamente tomada
pela dele. Algo clicou audivelmente de volta ao lugar, e de
repente sua cabeça silenciou o barulho dos últimos meses. As mãos
dele estavam quentes em suas bochechas, e elas contiveram as
lágrimas que insistentemente haviam conseguido escapar segundos
antes. Ela o sentiu se afastar um pouco, mas Vhalla empurrou a
cabeça para frente, roubando um último momento de seus lábios.
Os olhos dela se abriram e encontraram os dele. Apesar de ser
quem iniciou o beijo, ele parecia tão desnorteado quanto ela.
Ainda segurando seu rosto, Aldrik suspirou suavemente e se
inclinou para frente, para pressionar a testa contra a dela, seus
narizes mal se tocando. — Diga de novo...
Vhalla fechou os olhos. — Eu amo você, Aldrik. — Dizer isso em
voz alta, para ele, fazia surgir faíscas em seu peito.
Ele puxou o rosto dela novamente em direção a si, reivindicando
sua boca outra vez de modo feroz. As mãos de Vhalla ganharam
vida própria, combinando com a veemência dele. Elas pressionaram
contra o peitoral definido, as palmas correndo em direção aos
ombros. Vhalla enterrou os dedos no cabelo dele, na altura da nuca,
ansiosa para desfazer a aparência impecável do príncipe. Suas
unhas correram contra o couro cabeludo e as mãos dele caíram do
rosto dela para sua cintura.
Aldrik a puxou para mais perto e seus braços flexionaram. Ela
sentiu os quadris encontrarem os dele, e os seios roçarem contra o
comprimento quente do corpo masculino. Vhalla estremeceu - e ele
a apertou com mais força. Ela interrompeu o beijo por um momento,
respirando fundo de forma trêmula. Assim que abriu os olhos a boca
dele estava na sua novamente, e Aldrik aniquilou todos os
pensamentos dela somente com seu gosto e toque.
O tempo que se passou entre os dois não chegou nem perto de
ser suficiente, antes que ela sentisse o pescoço dele tensionar
contra os seus dedos e os lábios masculinos se afastarem dos seus.
Vhalla se conformou o mais graciosamente possível, mal se
contendo para não agarrá-lo e segurar sua boca contra a dela para
sempre.
Aldrik a olhou em adoração perplexa; ela nunca tinha visto um
rubor em suas bochechas antes, mas agora havia uma cor rosada e
suave nelas que parecia quase saudável na palidez natural de sua
pele. Seus lábios se separaram e ele respirou pesadamente. Uma
mão foi da cintura dela para o rosto, e ele acariciou sua bochecha
com as pontas dos dedos.
— Aldrik, — sussurrou, seus lábios em chamas. Ela ainda se
sentia embriagada pela proximidade dele; no entanto, sem a
distração imediata de sua boca, a confusão começou a voltar ao
cérebro dela. — Mas e Elecia? — Ela sussurrou - só esse nome fez
as bolhas felizes em seu estômago estourarem..
— Venha, — disse Aldrik, pegando as mãos dela enquanto a
levava de volta ao sofá. Desta vez, ela se sentou ao seu lado. —
Quem você acha que Elecia é?
— Eu não sei. — Vhalla não queria ficar fazendo joguinhos de
adivinhação, e suas teorias sobre Elecia eram tão extensas quanto
o Grande Caminho Imperial. Felizmente, Aldrik não insistiu.
— Elecia é minha prima.
— O que? — Vhalla perguntou em uma rápida inspiração.
Um sorriso conhecedor se curvou nos cantos da boca dele
diante de seu choque óbvio. — Minha mãe, como tenho certeza que
você sabe, era uma princesa Ocidental. Quando o Oeste foi
conquistado, seu pai foi destronado como rei. Mas, num esforço
para fazer uma transição pacífica, seu filho mais velho - meu tio
Ophain - foi nomeado como o Senhor do Oeste. Meu tio teve um
filho que mais tarde se casou com uma mulher Nortenha e teve uma
filha.
— Elecia? — Vhalla sussurrou, os olhos arregalados,
acompanhando a história mentalmente. Isso explicava tudo sobre a
mulher. Sua aparência, seu comportamento, sua proteção acerca de
Aldrik. Vhalla entendeu tudo.
Aldrik assentiu. — Ela nasceu quando eu tinha sete anos.
Fizemos uma viagem de volta ao Oeste pouco tempo depois, mas
ela era praticamente um bebê. Eu não a conheci bem até sermos
adultos, — continuou ele.
Houve um zumbido nos ouvidos de Vhalla e um alívio formigou
em sua pele. Elecia não era um interesse amoroso. Ela não era sua
prometida. Ela era da família dele.
— Pensei que você já soubesse.
— Como eu saberia? — Vhalla perguntou, com um toque de
exasperação. Ela leu muitos livros, mas não era como se tivesse
especificamente estudado linhagens e, por acaso, fosse se lembrar
dessa informação.
— Temos o mesmo sobrenome, — disse Aldrik, com
naturalidade.
— O que? — Vhalla o encarou por um segundo como se ele
fosse louco.
— Ci'Dan, o sobrenome da minha mãe.
O misterioso “C” finalmente tinha uma explicação.
— Aldrik Ci'Dan Solaris, — sussurrou Vhalla. — Então, o que ela
estava fazendo no seu quarto - à noite? — Vhalla se absteve de
comentar sobre o estado de vestuário extremamente informal deles.
— Ah, isso. — Aldrik desviou o olhar. — Eu não disse nada antes
porque estava preocupado que não fosse funcionar.
— O que? — Vhalla perguntou, imaginando qual seria a outra
coisa óbvia que ela poderia ter deixado passar.
— Elecia é uma Mestre da Terra. Ela é talentosa em muitas
coisas, mas cura é algo no qual minha prima tem um dom natural.
Ela lê corpos como se fossem livros. — Aldrik sorriu e se levantou.
— Vhalla, olhe para mim. — Ela apertou os lábios, sem ver nada
diferente. — Com sua visão mágica.
Vhalla mudou sua visão e viu algo diferente de tudo o que já
tinha visto antes. O corpo dele estava envolto em uma chama
branca e dourada, tão radiante que sua pele estava iluminada
fracamente. Ela nunca o tinha visto tão brilhante. Foi então que ela
percebeu o motivo. A mancha escura em sua lateral se foi.
Vhalla ficou de pé, estendendo a mão e colocando-a sobre a
cintura dele. Ela mudou sua visão de volta para o estado normal e
olhou para o rosto dele. Aldrik continuou a sorrir diante da surpresa
de Vhalla.
— V-você está curado? — Ela perguntou timidamente.
— Estou, — ele sorriu. — Foi um processo, no entanto; levou
quase dois dias de trabalho conjunto. Ela esteve aqui dia e noite.
Vhalla respirou devagar. Ela nunca tinha visto o príncipe sorrir
tanto. Risos borbulharam em sua garganta e escaparam como uma
melodia alegre. Desde que o conhecera, ele estava sofrendo com
essa ferida. Foi literalmente uma mancha escura na vida dele por
meses. Agora ele estava livre.
— Eu gostaria de poder ter ajudado, — disse suavemente.
— Eu não queria sobrecarregar você, — ele respondeu,
timidamente correndo os dedos sobre a bochecha dela. Eles
deixaram um rubor em seu rastro. — Especialmente depois da
tempestade de areia.
— Da próxima vez, pelo menos me diga, — disse ela com
firmeza.
— Eu prometo, — Aldrik jurou.
— Eu pensei... — Vhalla balançou a cabeça com uma pequena
risada. — Pensei que você estava com ela, — confessou, olhando
para longe.
— Achei que tudo era bastante óbvio para você, — ele disse
suavemente, espantado com a sua confusão. — Não apenas sobre
Elecia, mas... — Aldrik passou a mão pelo cabelo, percebendo com
um pequeno sorriso a bagunça que ela havia feito na parte de trás,
momentos antes. — ...em relação à tudo. Eu tinha certeza de que,
levando em conta o modo como eu agia só com você, você sabia.
Vhalla corou e olhou para os próprios pés. Larel havia tentado
contar a ela. Seria mentira se Vhalla dissesse que não havia tido
esperanças. Mas é claro que ela nunca pensou que fosse verdade.
Sempre havia uma explicação mais provável e conveniente. Algo
mais passou pela sua mente e seus olhos voltaram para os dele
com brusquidão.
— Se você está curado, então o Vínculo... se foi? — Ela sentiu
um pequeno pânico crescer em si.
Aldrik riu. — Ele ainda está aqui. Minhas mais sinceras
desculpas, Vhalla Yarl, mas, segundo o melhor conhecimento da
comunidade acadêmica de feiticeiros, estamos Vinculados por toda
a vida.
— Perdoe-me por não ter ficado arrasada por causa disso. —
Ela sorriu de orelha a orelha.
Ele riu e apertou sua mão levemente.
Vhalla se recostou no sofá com um suspiro aliviado. A última
meia hora a atingiu de uma só vez, e de repente ela se sentia
exausta. Aldrik voltou a se sentar ao seu lado, colocando o braço
atrás dela, suas laterais pressionadas juntas, e ela se inclinou na
direção dele instintivamente. Sua cabeça se apoiou no ombro
masculino e ela ficou satisfeita ao descobrir que ele não fez nenhum
movimento para se afastar.
— Vhalla, — ele sussurrou baixinho.
— Aldrik? — Ela respondeu, com os olhos se fechando a medida
que se permitia apreciar o calor dele.
— Você realmente quis dizer o que disse? Ou foi só uma coisa
do momento?
Vhalla sentou-se ereta para estudar o rosto dele. — O que?
— Mais cedo. — Aldrik desviou o olhar. — Você me disse aquilo,
sobre o que você sentia...
Vhalla fez uma pausa, hesitante. Ele estava dando a escolha à
ela? Ele estava pedindo-a que decidisse? O príncipe parecia
incapaz de encarar os olhos dela, e olhava através da sala para
nada em particular. Vhalla respirou fundo, vacilante. Estendendo a
mão, ela colocou as pontas dos dedos sob o queixo dele e guiou
seus olhos de volta para os dela.
— Aldrik, não foi um impulso, — Vhalla falou lenta e
deliberadamente. — Não foi nem a primeira vez que eu disse isso
em voz alta. — Ela sorriu suavemente com a sua surpresa.
— Quando? — Seus lábios mal se moveram.
— Quando eu admiti? Logo após a tempestade de areia. Quando
aconteceu? Muito antes disso. — Ela encolheu os ombros
levemente; era inútil tentar negar. Vhalla voltou a segurar a mão
dele, olhando para os dedos entrelaçados. Só a simples visão disso
a enchia de alegria.
— Eu tentei, — ele suspirou, a tristeza em sua voz contrastando
fortemente o tom de suas conversas anteriores. — Eu não esperava
por isso, e depois não queria que isso acontecesse. Tentei explicar
para você no dia do veredicto. Estar envolvida comigo de qualquer
modo que seja é perigoso.
— Eu não ligo. — A frase saiu de sua boca antes que tivesse
tempo de filtrá-la. Mas, quando ele balançou a cabeça, ela
descobriu que não se arrependia de ter dito.
Aldrik riu baixinho e se levantou. — Você é mesmo uma mulher
impossível.
— O sujo falando do mal lavado. — Vhalla deu a ele um sorriso
sarcástico.
Ela foi recompensada com o rico som de sua risada enquanto
Aldrik a ajudava a se levantar. — Eu preciso trabalhar, — ele
explicou com um olhar de desculpas.
— Em que? — Vhalla o enrolou, não estando pronta para ser
dispensada.
— Estratégia, planejamento para a adição de tropas, aquisição
de todas rações extras que talvez possamos precisar, — listou
Aldrik.
— Eu posso ajudar? — Vhalla ficou contente por não ter
pensado nas palavras antes, caso contrário não conseguiria tê-las
dito. Oferecer-se para ajudar o príncipe herdeiro em questões de
estado era algo muito atrevido, algo muito além de sua posição. Por
outro lado, beijá-lo também era. Vhalla mudou seu peso de um pé
para o outro, avaliando o olhar surpreso dele.
— Na verdade, — Aldrik pensou em voz alta, — você pode.
Aldrik a guiou até a mesa ansiosamente. Ele espalhou papéis
por toda a superfície e começou a dar a ela uma visão geral das
coisas. Vhalla ficou surpresa ao descobrir como era bom usar sua
mente de novo. Por meses ela esteve fora de sua zona de conforto,
longe dos livros e do conhecimento. Era como esticar um músculo
que esteve definhando por muito tempo.
Ele girou uma pena com pluma de corvo e ponta de ouro entre
os dedos enquanto falava, e Vhalla mordiscou pensativamente o
cabo uma outra pena sobressalente que ela esteve usando. Ela
descobriu que um ponto positivo sobre seu intelecto era o fato de
poder se concentrar no que Aldrik estava dizendo e nos dedos
hábeis dele ao mesmo tempo. Vhalla não deixou passar nada, nem
seu conhecimento, nem a percepção de quão ágeis eram suas
mãos longas.
— Quantas pedras equivalem ao peso de carne defumada que
está sendo fornecida pelo Oeste? — Aldrik perguntou do outro lado
da mesa.
— Duas mil, — respondeu Vhalla, escrevendo rapidamente os
números em uma nova lista como ele a instruiu.
— Isso não é suficiente, — ele murmurou. — Precisaremos pedir
mais aos lordes Ocidentais.
Vhalla parou sua pena, olhando para o príncipe de cabelos
escuros que estava perdido em pensamentos. Ela quase podia ouvir
as palavras ecoando em sua mente. — Eu sei como você poderia
conseguir mais.
— O que? — Aldrik olhou para cima, surpreso.
Ela respirou fundo, esperando que tivesse organizado seus
pensamentos bem o suficiente. — O Oeste sobrevive da coleta e da
pesca que vem do litoral, além de importações do Leste e do Sul. —
Ela lembrou de ter lido isso. — Você não pode pedir mais aos lordes
e ladies tão longe Deserto adentro. Eles provavelmente já estão
preocupados se vão sobreviver às baixas temporadas de comércio.
— Então, o que você propõe? — Aldrik apoiou as pontas dos
dedos na mesa, avaliando-a como príncipe.
Vhalla vacilou, mas apenas de modo breve. Ela sabia o que tinha
lido e o que tinha vivido. — Todo ano em Paca, Cyven, há um
Festival do Sol com porcos premiados. Eles são abatidos logo
depois e defumados no inverno para serem vendidos nas
Encruzilhadas. Faz parte de um tipo de migração de carne que
oferece suporte ao Oeste.
Os olhos de Aldrik brilharam, subitamente seguindo seu
raciocínio.
— O Império compra cerca de oitenta por cento desse afluxo no
mercado e você provavelmente conseguirá o resto dos recursos
para a guerra. Mas, para garantir que os lordes e ladies Ocidentais
não se preocupem com suas estocagens, você deveria enviar os
fazendeiros de volta ao Leste com ordens para retornar com mais
grãos e subsidiar o custo da viagem deles, — concluiu Vhalla.
— Sim, — Aldrik exalou, um sorriso largo se espalhando por
seus lábios. — A dupla rodada de negociações também deve ajudar
ambas as economias, tanto do Leste quanto do Oeste.
Ele estava rabiscando furiosamente, dobrando três cartas
rápidas e selando-as com um pouco de cera quente. Vhalla
observou seu selo dourado se mover, em choque. Ela tinha mesmo
feito isso?
— Eu preciso despachar isso imediatamente. — Aldrik foi até a
porta, parando brevemente para encará-la com o que Vhalla ousava
dizer ser admiração. — Quando eu voltar, gostaria de ouvir a sua
opinião sobre mais algumas coisas.
— Claro, meu príncipe. — Seu próprio sorriso interrompeu o
transe.
Aldrik voltou em tempo recorde e o trabalho deles outrora
silencioso ficou subitamente muito falante. Vhalla aprendeu rápido
que o príncipe queria que ela o desafiasse. Isso ia contra tudo o que
a haviam ensinado sobre se opor à palavra de um príncipe, mas
Aldrik encontrava um prazer enorme ao ser instigado. Ele dava tudo
de si, e Vhalla teve que recorrer a todos os livros que já lera sobre
geografia, história, economia e pessoas do Império para
acompanhá-lo à altura.
Foi emocionante e cansativo.
Vhalla colocou as mãos na base das costas e se alongou. O sol
começou a se pôr, transformando a sala em um caleidoscópio de
cores ricas projetadas pelo vitral. — Você alguma hora para de
trabalhar?
Ele sorriu para ela. Aldrik não conseguiu esconder sua alegria
durante toda a tarde, e nem Vhalla pôde. — Um Império não se
governa sozinho. — Ele bateu a pena na mesa duas vezes. — E
além do mais, sou três vezes mais produtivo com você por perto,
então devo tirar total proveito disso. Não fazia ideia de que estava
com uma estadista nata.
Vhalla corou.
— Está com fome? — Ele olhou para o vitral colorido por um
momento, antes de puxar o relógio do bolso. O tempo também tinha
passado despercebido por ele.
— Um pouco.
— O que gostaria? Vou arranjar qualquer coisa que você deseje.
— Aldrik pegou o casaco que havia jogado no chão em algum
momento da tarde e o vestiu.
— Qualquer coisa? — Perguntou.
— Eu sou o príncipe herdeiro, — ele sorriu.
— Mas que abuso de poder, — ela repreendeu
provocativamente.
Aldrik se endireitou, terminando de abotoar os botões no
pescoço. — As coisas que fazemos por amor. — Ele deu de
ombros, passando as mãos pelos cabelos.
Os olhos de Vhalla se arregalaram. Ela o olhou enquanto ele se
virava para encará-la, lutando com o significado daquelas palavras.
— Aldrik, — ela sussurrou.
Ele fez uma pausa, as mãos caindo frouxas em suas laterais. —
Comida?
— Me surpreenda. — Comida era a última coisa que passava na
mente dela.
Ele assentiu e saiu rapidamente do quarto.
Vhalla olhou para a porta em silêncio antes de se virar para uma
das velas na mesa. Ela observou a chama, perdendo-se em
pensamentos. O fogo parecia irradiar a essência dele, ecoando as
palavras de Aldrik a cada tremulação. Vhalla estendeu a mão,
passando-a por cima da vela distraidamente.
Aldrik voltou mais rápido do que ela havia esperado. — A comida
vai... — Suas palavras vacilaram. — O que você está fazendo?
— Ah, algo que as crianças se desafiam a fazer. Bem, crianças
que não são Domadoras de Fogo. — Vhalla riu, parando
rapidamente quando percebeu que a expressão atenta de Aldrik não
havia mudado. — Não dói, — explicou, imaginando que ele poderia
não ter idéia do quanto os não-Domadores de Fogo poderiam
aguentar quando se tratava do fogo.
— Você tem certeza? — Os olhos dele se voltaram para a mão
dela.
Vhalla voltou sua atenção para o membro em questão e ficou
chocada. Seus dedos tinham estado diretamente sobre a chama
durante toda a conversa, congelados no lugar desde o momento em
que ele a flagrou. Ela olhou, estupefata, vendo o fogo cintilar sobre
sua pele como nada além de um leve calor.
— O que... — ela sussurrou em confusão, afastando a mão da
vela. Vhalla olhou para os dedos; eles nem sequer estavam
vermelhos. Aldrik atravessou o cômodo, inspecionando também. —
Por que não me queimei?
— Provavelmente o Vínculo, — ele sussurrou, de repente
procurando um pedaço de pergaminho em branco para rabiscar. —
Você tem um pouco da minha magia em você e eu tenho um pouco
da sua em mim, talvez mais do que um pouco por causa da Ligação.
Não posso me queimar com minhas próprias chamas, então, pela
lógica, faz sentido que essa proteção possa se estender a você.
— Meu vento nunca afetou você como afeta os outros. — Ele a
considerou pensativamente, e Vhalla usou sua expressão em
branco como um convite para continuar. — O tornado na Noite de
Fogo e Vento.
Surpreendeu a si mesma a facilidade com que o infame evento
poderia rolar de sua língua. Ainda deixava um gosto amargo na
boca de Vhalla, a lembrança de algo horrível. Mas não mais a
repelia.
— Vamos testar? — Ela sugeriu. — Seu fogo é mais fácil que o
meu vento.
Aldrik estendeu uma mão em punho, abrindo-a e revelando uma
pequena chama, majoritariamente vermelha com um toque de
laranja. Ela sabia que ele podia fazer o fogo envolver a mão dela
com a mesma facilidade, mas ao invés disso a faísca permaneceu
na palma de sua mão. Ele a olhou, incerto, e Vhalla percebeu que o
príncipe estava esperando por ela.
Ela quis rir. As coisas não eram sempre assim entre eles? Aldrik
estendia o conhecimento, o poder, o desejo, em sua palma bem
diante dela. Mas ele nunca dava o passo seguinte, nunca forçava
nada disso sobre ela. Em todo o relacionamento deles, ele ficava
esperando. Toda vez, ela o encontrava.
Vhalla afundou seus dedos bravamente no calor convidativo.
Não era nada parecido com o vento, mas algo formigava no limite
de seus sentidos, algo que só poderia descrever como a essência
do fogo. Ela sorriu com reverência.
A mão de Aldrik se fechou de repente em torno da sua. Línguas
de fogo deslizaram entre os dedos, subindo ansiosamente pelo seu
braço, deixando um rastro de cócegas e chamuscando sua túnica.
Com a grande proximidade, elas lançavam uma impressionante
variedade de vermelhos, laranjas e amarelos sobre o rosto angular
do príncipe herdeiro. Ele ergueu a outra mão para a bochecha dela,
o fogo brilhando sob o polegar enquanto o mesmo corria sobre sua
pele.
Os olhos de Vhalla se fecharam, a magia dele esfregando contra
a sua como um sussurro convidativo. Foi uma sensação estranha e
deliciosa que rapidamente a fascinou e a dominou. Ela obedeceu
aos leves puxões que o príncipe dava em seu queixo, guiando-a
para frente e para cima. Os lábios de Aldrik pairaram praticamente
colados aos seus e Vhalla inalou fortemente, respirando fogo
imbuído com a essência crua dele.
Uma batida na porta assustou os dois, fazendo-os se afastarem.
As chamas desapareceram rapidamente. — Não se preocupe, —
ele sussurrou. — Sou sempre uma pessoa privada, para que
ninguém questione quando tenho um motivo para ser. — O príncipe
exibia um sorriso conspiratório. — Deixe isso, — ele disse em
direção à porta.
Vhalla passou os dedos pelos lábios. Comida era a última coisa
na qual ela pensava. Ela tinha encontrado um tipo diferente de
sustento.
Aldrik empurrou para dentro do quarto um carrinho com um
verdadeiro banquete, rapidamente fazendo um gesto em direção à
ele quando viu seu olhar faminto. Vhalla o olhou, testemunhando o
rubor instantâneo nas bochechas, as respirações mais curtas. Ela
sabia que se colocasse a mão sobre o peito dele, seu coração
estaria acelerado - acelerado na mesma velocidade que o dela.
— Vamos desperdiçar tanta comida. — Com uma risada leve, ela
afastou o momento quente.
Acabaram juntando as duas espreguiçadeiras, formando uma
plataforma sobre a qual jantaram. Aldrik estava sentado no canto
em que os recostos se encontravam, e Vhalla ocupava o lugar à sua
frente, a comida entre os dois. Ele mostrou a ela os diferentes
alimentos que cercavam os dois com uma precisão de especialista,
oferecendo informações sobre suas origens ou a melhor maneira de
apreciá-los. Eles conversaram sobre etiqueta durante as refeições e
as diferenças entre várias culturas.
— Você gosta mais do Oeste ou do Sul? — Ela perguntou entre
mordidas.
— Em relação a quê? Comida? — Ele pegou um pouco de arroz.
— Tudo, — ela especificou.
— Essa é uma escolha difícil. Feiticeiros são indubitavelmente
tratados melhor no Oeste; por consequência, sou geralmente mais
amado aqui. Mas cresci no Sul; meus laços aqui se dão apenas
através de visitas. O palácio é a minha casa. — Aldrik jogou a
pergunta de volta para ela. — E você? Leste ou Sul?
Vhalla mastigou a comida por um momento, para dar a si mesma
um tempo para pensar. — Na verdade, não é muito difícil... eu
venho de uma família muito pobre do Leste. — Vhalla olhou para a
comida; ela odiava os lembretes de quem realmente era em
momentos como este. Eles destruíam suas fantasias. — O palácio é
o meu lar também em quase todos os aspectos.
— Como é a casa onde você passou sua infância? — Aldrik se
esticou para pegar um prato.
A ideia de casa tinha um certo tipo de beleza agridoce. — Minha
casa é um lugar pequeno. É feita de pedra, com um telhado que
precisava muito ser substituído na última vez em que estive lá.
Temos um celeiro de madeira onde mantemos um cavalo para o
arado.
— Eu gostaria de conhecê-la, — ele disse casualmente. Vhalla
não pôde evitar rir, e ele franziu o cenho em sua direção. — Estou
falando sério.
— O príncipe herdeiro? Em Leoul? Na minha casa? — O riso de
Vhalla soou novamente. — Meu pai pode me deserdar se eu deixar
alguém como você entrar lá.
O resto da conversa foi descontraída e fácil entre eles. Os dois
tagarelaram, descansaram cercados por comida nas
espreguiçadeiras e na mesa, e conversaram até o cair da noite
sobre tudo e nada. Quando ficou claro que ambos estavam
satisfeitos, ele levantou para limpar os pratos e Vhalla o ajudou.
Velhos hábitos nunca morriam; era estranho ver o príncipe do reino
limpando sua própria bagunça sendo que ela estava lá. Ele insistiu
que poderia fazer isso sozinho - ela insistiu em ajudá-lo.
Ela rondava pelo quarto quando Aldrik voltou, tendo ido colocar o
carrinho no corredor para que a equipe de empregados cuidasse
dele. O lado de fora do vitral estava escuro e Vhalla sabia que era
tarde.
— Eu deveria ir, — ela sussurrou.
Aldrik a olhou em silêncio por um longo momento, segurando
ambas as suas mãos nas dele. — Fique.
— Aldrik? — Vhalla questionou.
— Fique aqui, — o príncipe afirmou. Vhalla mordeu o lábio, sem
saber o que ele realmente estava pedindo. — Aqui tem espaço mais
que suficiente. Elecia disse que as espreguiçadeiras são
confortáveis.
— Por quê?
— Porque eu quero você perto de mim. Não quero que vá
embora. — Sua franqueza a atravessou, e ela sentiu seu coração
começar a acelerar na mesma velocidade que antes.
— Eu não deveria. — Suas palavras eram fracas e débeis. Ele
estava mesmo pedindo o que ela achava que estava?
— Você está certa. — Ele assentiu, sua voz suave e profunda. —
Mas vai ficar, mesmo assim?
Vhalla tentou encontrar motivos para se opor. Fritz e Larel
certamente não se importariam, e haviam poucas pessoas que
notariam sua ausência. Ele não falou explicitamente sobre ela
compartilhar sua cama, mas isso aconteceria? Vhalla engoliu em
seco. Se sim, estava pronta para isso? Se não estivesse, sabia que
Aldrik não iria forçá-la. Todo o raciocínio de Vhalla apontava que
essa era uma decisão ruim.
Mas ela estava muito dominada pela proximidade dele.
— Vou. Vou ficar, — sussurrou.
Ele riu baixinho, balançando a cabeça. — É a primeira vez.
— Como assim?
— Que pedi a uma mulher que ficasse comigo estando
completamente incerto sobre como ela responderia. — Aldrik a
olhou, aliviado. Era uma coisa estranha de se dizer, mas Vhalla se
lembrou das palavras do Príncipe Baldair. Suas histórias sobre a
caçada, de seu irmão sabendo exatamente o que aconteceria,
exatamente o que até mesmo Vhalla faria. No entanto, parecia que
o infame príncipe ardiloso não havia calculado o que estava
acontecendo entre eles. Seu próprio alívio se espalhou sobre ela.
— Quantas vezes você pediu a uma mulher para ficar com você?
— Ela provocou de mansinho.
— Bem, — Aldrik parecia estar sem palavras. — Antes disso?
Não muitas, e nenhuma que fosse importante.
Vhalla sentiu um rubor surgir por todo o seu corpo. Ela deu um
pequeno passo para mais perto, fechando a distância entre eles.
Aldrik inclinou a bochecha em direção aos seus dedos atrevidos à
medida que faziam trilhas leves sobre as pronunciadas maçãs do
rosto dele. Vhalla delineou a sobrancelha masculina, depois desceu
para a pequena protuberância no nariz, o contorno da mandíbula;
ela queria se lembrar de todos os detalhes exatos. Seu polegar
roçou o canto dos lábios dele e ela percebeu que tinha se movido
sem nem pensar.
Aldrik inclinou a cabeça para encontrá-la no meio do caminho,
envolvendo-a em um beijo lento e significativo. Cada movimento de
cabeça, cada breve abertura de sua boca a fazia desejá-lo tanto que
ficava dolorida. Os dedos de Aldrik se enterraram em seus cabelos.
Ela foi puxada contra ele, suspirando em doce libertação ao sentir a
magia dele deslizar sobre sua pele mais uma vez.
O príncipe se afastou de repente.
Vhalla engoliu em seco, piscando desorientada. — Aldrik... —
Sua voz era estranha até para seus próprios ouvidos, o desejo
alterando-a.
— Eu amo você, Vhalla, — Aldrik se forçou a dizer.
Vhalla afastou a cabeça em choque, os olhos arregalados. Seu
coração batia enlouquecidamente e ela repetiu as palavras em sua
mente. — O que? — De alguma forma, ela havia inconscientemente
ignorado a ideia de que ele pudesse ter os mesmos sentimentos por
ela, que ela tinha por ele.
— Eu amo você, — ele repetiu, um fogo decidido iluminando
seus olhos. — É uma das piores coisas que eu poderia fazer, —
confessou Aldrik. — Juro pela Mãe, tentei não te amaldiçoar com
isso. Mas você é uma presença bonita e bastante persistente na
minha vida. E, pela primeira vez, o príncipe ardiloso está farto de ter
que fingir.
V HALLA REAJUSTOU A pilha de cobertores sobre ela. Sua cabeça
estava enevoada com o sono, enquanto ela rolava pela cama.
Dedos longos correram por seu cabelo, agarrando levemente nos
emaranhados. Ela se aninhou no travesseiro, sem abrir os olhos.
Vhalla estendeu a mão, buscando por Aldrik debaixo das cobertas,
encontrando-o, mas incapaz de tocá-lo. Seus olhos se abriram de
supetão.
— Bom dia. — Aldrik estava sentado ao seu lado, só que por
cima dos cobertores. Ele estava recostado nos travesseiros,
apoiado na cabeceira da cama. O joelho oposto estava dobrado,
uma prancha de madeira servindo de apoio para os papéis sobre
ela. Vhalla notou que os dedos da mão direita já estavam
manchados de tinta; ele deveria estar trabalhando já fazia algum
tempo.
— Bom dia, meu príncipe. — Ela sorriu em sua direção. Vhalla
lembrava de se enrolar com ele nas espreguiçadeiras para trocarem
mil beijos na noite anterior, mas não conseguia recordar de como os
dois haviam chegado na cama. No entanto, a dita cuja era uma
montanha de penugens fofas em que ela podia praticamente se
afundar; suas roupas ainda estavam no lugar; e ela não se lembrava
de tirar nada que a fizesse perder a cabeça, então não estava
particularmente preocupada com nada impróprio.
Vhalla se apoiou nos cotovelos, esfregando os olhos. As cortinas
do cômodo adjacente tinham sido levemente abertas, e os raios de
sol que cortavam através do ambiente diziam que já havia
amanhecido. — Que horas são?
Aldrik se remexeu. Ele usava apenas uma camisa de algodão -
preta, desta vez - e calça também preta. Vhalla refletiu sobre o fato
de nunca tê-lo visto com nada menos que mangas longas e calças
compridas, exceto pela noite com Elecia. Ele puxou um familiar
relógio de prata do bolso.
— Pouco depois das oito e meia. — Ele fechou o relógio e o
guardou.
— Pouco depois das oito e meia e você já está de pé e
trabalhando. E você também já tomou banho. — Ela notou que o
cabelo dele estava arrumado. — Você dorme? — O travesseiro
abafou o final de suas palavras quando ela voltou a enterrar a cara
nele.
— Normalmente, não muito. — Sua pena arranhava contra o
pergaminho.
— Normalmente? — Ela repetiu, virando o rosto para olhá-lo por
debaixo dos cobertores.
— Eu dormi bem ontem à noite.
— Como chegamos à cama? — Ela não pôde deixar de
perguntar.
— Eu te trouxe quando notei que você estava praticamente
desmaiada. Suponho que minha história sobre o Reino de Mhashan
fosse mesmo chata. — Aldrik olhou para ela pelo canto dos olhos.
Vhalla riu, culpada.
— Mas Elecia estava certa, — continuou ele. — Não posso
reclamar das espreguiçadeiras.
Vhalla ponderou a informação por um segundo. — Espere, — ela
fez uma pausa, — você dormiu no sofá? — Vhalla rolou de lado
para olhá-lo.
— É claro. — Sua testa franziu levemente. — Você achou que eu
fosse rastejar para a sua cama enquanto você dormia e depois
passaria a noite deitado ao seu lado sem a sua permissão?
Vhalla olhou para ele. Ela tinha assumido que adormecer em
seus braços depois de beijá-lo durante metade da noite fosse ser
permissão suficiente, mas ela notou o cavalheirismo na declaração.
No entanto, qualquer ternura sobre esse sentimento foi rapidamente
perdida quando soltou uma gargalhada.
— O que? — Ele perguntou, olhando-a estranhamente.
— Eu chutei o príncipe herdeiro para fora de sua própria cama.
— Ela rolou de costas com os risos. — Ah, essa é uma história que
eu gostaria de poder compartilhar com alguém.
Aldrik pegou os cobertores e os jogou sobre o rosto dela. —
Você é irritante de manhã, — disse ele com uma pitada de diversão.
Isso a fez ter uma crise de risadinhas. — Ah, me desculpe, ó
todo-poderoso Aldrik. — Vhalla sentou-se, tirando as cobertas de
cima de si. — Eu perturbo a sua rotina? — Vhalla colocou as mãos
na cama entre eles e se inclinou.
— Muitíssimo, — ele sorriu.
— Tudo bem, então eu devo ir embora imediatamente. — Vhalla
botou os pés para fora da cama.
Ela ouviu o farfalhar de seus papéis quando ele a alcançou e
agarrou seus ombros, puxando-a para o seu colo. Ele se inclinou e
seus lábios estavam nos dela. Vhalla suspirou baixinho; ela poderia
se acostumar a acordar desse jeito todos os dias.
— Eu não limpei minha boca ainda. — Ela rapidamente a cobriu
com a mão enquanto ele se afastava.
— Eu sei. Você está com bafo, também. O banheiro é ali. — Ele
sorriu e apontou para uma porta adjacente.
Vhalla o fuzilou com o olhar enquanto se levantava. Ela nunca
tinha conhecido um homem que pudesse ser tão escroto ao mesmo
tempo em que era tão bonito. No momento em que a porta do
banheiro se fechou, Vhalla reprimiu outra crise de risadinhas.
Era absolutamente insano o que estava acontecendo. Era
absolutamente insano o quão feliz ela estava. Vhalla cantarolou
enquanto passava a mão pela bancada. Era de mármore preto num
tom escuro, e a torneira era fundida em ouro. A banheira era grande
o suficiente para quatro pessoas sentarem-se confortavelmente,
como uma pequena piscina esculpida em pedra. Havia um armário
adjacente cheio de inúmeras roupas - mais do que ela sabia que ele
carregava consigo na viagem. O cômodo inteiro era tão opulento
quanto o próprio edifício, e Vhalla não podia acreditar que tinha
dormido ali.
Haviam alguns frascos no balcão. Ela notou um ou dois elixires
clericais quase vazios entre eles. Vhalla refletiu sobre qual deles o
príncipe usava nos cabelos, cheirando alguns que tinham o aroma
fresco de eucalipto, enquanto localizava o frasco para lavar a boca.
Vhalla passou um pouco de água no rosto e correu as mãos
molhadas pelos cabelos. Ele ficou domado e levemente arrumado
para trás por conta da umidade, e ela riu.
— Olha, eu sou você. — Vhalla abriu a porta.
Ele a olhou e depois voltou sua atenção para os papéis. —
Parece horrível, — ele murmurou.
— Ei, não seja malvado consigo mesmo, — ela riu levemente,
sentando-se em frente a ele no final da cama. — Eu acho que fica
bem atraente em você. — Vhalla passou os dedos pelos cabelos,
fazendo os fios voltarem à sua bagunça normal. Aldrik a olhou e não
disse nada, embora ela pudesse jurar que havia indícios de um
sorriso em seu rosto.
— Então, o que você fará hoje? — Ele perguntou.
— Não tenho certeza. Suponho que devo voltar e... ver o que
todo mundo está fazendo. — Vhalla deu de ombros.
— Você também virá hoje à noite? — Aldrik fez uma pausa,
buscando sua reação.
— Hoje à noite? — Ela não tinha pensado nisso.
— Sim, meu papagaio. — Ele sorriu com a carranca dela. —
Hoje à noite, você vai voltar? — Aldrik colocou seus papéis
cuidadosamente sobre os travesseiros que ela ocupava
anteriormente. Ele devolveu a pena para o tinteiro na mesa de
cabeceira.
— Você quer que eu volte? — Vhalla queria ouvi-lo dizer
diretamente.
— Quero. — Aldrik assentiu.
— Então eu vou.
— Você quer fazer isso? — Ele rebateu a pergunta.
— Claro que sim. — Aldrik pareceu aliviado por sua resposta. —
Estar perto de você é...
Houve uma batida na porta; os dois olharam para o outro
cômodo. Vhalla voltou-se para ele, e uma carranca profunda estava
gravada nas feições de Aldrik.
— Irmão? — Uma voz ecoou do corredor. — Você está
acordado?
— Fique aqui, — ele disse gentilmente para ela.
Vhalla assentiu em silêncio..
Aldrik tirou os pés de cima da cama e se levantou. Ele foi até a
porta e fez uma pausa breve. Envolvendo a mão na nuca dela,
Aldrik se inclinou para baixo e beijou sua testa levemente. Ela sorriu
para ele e o príncipe deu um sorriso cansado.
Ele fechou as portas deslizantes de papel atrás de si enquanto
saía do quarto. Vhalla caiu na cama com um suspiro contente. Ela
ficaria feliz em nunca mais deixar as Encruzilhadas. A guerra
poderia continuar do jeito que estava e o Imperador poderia voltar
ao Sul para governar. Vhalla ficaria feliz se ela e Aldrik pudessem se
esconder ali para sempre.
Ela prendeu a respiração quando ouviu a porta abrir.
— Bom dia, irmão. — Ela podia ouvir o príncipe Baldair entrando
na sala de estar enquanto falava, embora Vhalla estivesse bastante
certa de que ele não havia recebido permissão de seu irmão mais
velho.
— Baldair, — disse Aldrik secamente. Mesmo ela teve
dificuldade em imaginar aquela voz pertencendo ao homem que a
beijara momentos antes. — A que devo o... prazer?
— Não estou interrompendo nada, estou? — O irmão mais novo
perguntou.
— Obviamente não, — Aldrik suspirou. — Foi só para isso que
você veio?
— Ah não, os batedores chegaram. As forças Ocidentais se
juntarão a nós dentro de uma hora, duas no máximo. — Vhalla ouviu
a voz do Príncipe Baldair se aproximando.
— Ah, é? Excelente, então devo me preparar para a chegada
deles. — A voz de Aldrik também ficou mais alta.
Vhalla sentou-se. Ela deveria se esconder?
A sombra de Aldrik apareceu do outro lado das portas de papel
decoradas, bloqueando o caminho de seu irmão. — Se você me der
licença.
— Bom dia, Vhalla, — o Príncipe Baldair disse.
Seu estômago se transformou em pedra. Uma noite; ela tinha se
dado ao luxo de ter folga por uma noite e o mundo não podia lhe dar
nem isso.
— Você parece um grande tolo gritando com cômodos vazios, —
Aldrik pronunciou lentamente.
Ela se perguntou como ele mantinha sua compostura tão bem.
— Você parece um grande tolo, irmão, por ter sido pego com
algo tão simples, — retrucou o Príncipe Baldair. — Você escolheu
esse lugar por causa da segurança, pela manutenção de registros.
— Sua risada ecoou e Vhalla estremeceu, se perguntando como
tinha pensado algum dia que aquilo era um som encantador. — É
incrível que você tenha cometido um erro tão simples.
— E me diga, por obséquio, qual foi esse erro? — Aldrik rosnou.
O coração de Vhalla disparou. Ela não precisava vê-lo para
saber que sua mandíbula estava cerrada; ele poderia até mesmo
estar com a mão em punho. Aldrik estava dizendo ao irmão
exatamente o que Baldair queria ouvir sem usar uma única palavra.
— Uma Senhorita Vhalla Yarl foi registrada entrando aqui ontem
à noite, mas nunca houve um registro de saída, — proclamou o
Príncipe Baldair, quase de forma vitoriosa. Vhalla queria entrar em
pânico, mas a primeira emoção que a tomou foi uma curiosidade
estranha - o Príncipe Baldair estava investigando seu irmão. Não
era uma informação que ele poderia ter encontrado acidentalmente.
— Realmente, irmão, não é do seu feitio; foi negligente.
— Parece que a única coisa negligente é a manutenção de
registros, — tentou Aldrik.
Ela se perguntou se aquilo soava mais convincente para uma
pessoa que não fosse ela.
— O que vocês dois pensam que estão fazendo? — Príncipe
Baldair retorquiu. Claramente, ele não estava comprando as
mentiras que Aldrik estava disposto a vender.
— Nada com o que você precise se preocupar, — Aldrik rosnou.
Vhalla se encolheu, percebendo o que estava por vir.
— Ora essa? Sem mais negações? — O irmão de Aldrik o havia
pego em suas próprias palavras. — Não se deixe enganar por ele,
Vhalla.
Ela mordeu o lábio para não gritar e colocar o príncipe mais novo
em seu devido lugar.
— Chega disso. Fora, Baldair. — A paciência de Aldrik estava
quase no fim.
— Tudo bem, Aldrik, se você quer que seja assim. — Ela ouviu o
barulho das botas do príncipe Baldair desaparecendo lentamente. —
Mas você deve consultar o livro antes que o Pai tenha a chance de
ver.
— Obrigado, — disse Aldrik de má vontade.
Vhalla piscou. Ele estava agradecendo ao irmão, depois de tudo
aquilo? Ela não conseguia entender a razão.
— Vejo você em uma hora. — O barulho suave da porta se
fechando sinalizou a partida do príncipe mais jovem.
Aldrik abriu as portas deslizantes e Vhalla o olhou com
desespero. Ele percebeu suas emoções e atravessou o cômodo
rapidamente para se sentar ao seu lado, pegando suas mãos.
— Tudo bem. — Ele levou os nós dos dedos dela aos lábios. —
Está tudo bem.
— Mas... — ela protestou fracamente.
— Eu vou alterar o livro. Não será um problema. — Aldrik
segurou ambas as bochechas dela.
— Seu irmão? — Ela perguntou.
— Ignore-o, — Aldrik suspirou.
— Por que ele é assim? — Vhalla perguntou, permitindo que o
toque de seu príncipe a acalmasse.
— Temos uma longa história entre nós. Mas, por enquanto,
preciso ir alterar esse livro antes que esses registros possam cair
nas mãos do meu pai.
A julgar pela maneira como Aldrik falava, era uma longa história
que ela não ouviria tão cedo. — O que aconteceria se seu pai visse?
— Vhalla sabia que o Príncipe Baldair entretinha mulheres o tempo
todo. Embora dificilmente quisesse ser considerada esse tipo de
mulher, especialmente para Aldrik, parecia bastante injusto que um
irmão pudesse se safar de ter mulheres em seu quarto e o outro
não.
— Não se preocupe com isso, — ele suspirou.
— O que aconteceria? — Ela pressionou. — Aldrik, pare de não
me contar as coisas. Mesmo que você pense que é para o meu
próprio bem.
Ele desviou os olhos. — Preciso me preparar para a chegada
das tropas.
— O que aconteceria? — Ela perdeu a cabeça. Ele a olhou,
assustado. Vhalla respirou fundo, se acalmando. — Apenas me
diga.
— Depois que dei meu testemunho no seu julgamento, meu pai
falou comigo. — A voz do príncipe era fraca e seus olhos nunca
encararam os dela. — Ele perguntou se você seria um problema.
— Um problema? — Ela sussurrou. Algo no tom dele a enervou
mais do que toda a conversa com o Príncipe Baldair..
— Uma... distração das minhas obrigações. — Ele finalmente se
voltou para ela. — Eu sinto muito.
— Pelo quê? — Vhalla estava confusa.
O príncipe apenas suspirou e descansou a testa na palma da
mão. — Eu disse ao meu pai que via você pelo que era. Uma
ferramenta da qual precisávamos e nada mais. Que eu tinha você
na palma da minha mão, e que você faria o que eu dissesse. Que
isso - nós - não éramos nada além de um meio para esse fim. —
Seu peito se apertou com a fraqueza na voz dele. — Vhalla, eu
não...
— Eu sei. — Ela o interrompeu. Doía ouví-lo dizer isso, mas
sabia que ele só tinha feito o que achava que era melhor. Ou pelo
menos, era o que esperava. Ele a olhou com ceticismo, e ela
apertou sua mão levemente.
— Meu pai me disse que esperava mesmo que eu estivesse
certo, porque havia muita coisa sobre os meus ombros para que o
Império se exaurisse ou investisse muito em uma plebéia, não
importa quão magicamente especial ela fosse. — Aldrik revirou os
olhos para as declarações parafraseadas.
— Seu irmão estava lá, não estava? — Vhalla percebeu.
Aldrik deu um pequeno aceno de cabeça.
Se não por você, então por ele; as palavras do Príncipe Baldair
ecoaram em sua mente. Ele está usando você, Vhalla. Isso a fez
parar por um momento. Baldair teria visto todas as interações de
Aldrik com ela de uma perspectiva muito diferente da sua - sendo
ela o objeto de afeição do príncipe herdeiro.
— O que seu pai fará? Se ele...
— Se ele descobrir que você passou a noite comigo? — Aldrik
perguntou. — Ou que eu me apaixonei pela plebéia especial? — Ele
sorriu tristemente em sua direção.
— Ambos? — Vhalla lembrou a si mesma que agora não era
hora de ficar toda boba.
— Em relação ao primeiro, talvez eu consiga me safar. — Aldrik
beliscou a ponte do nariz. — Quanto ao segundo, não tenho tanta
certeza.
Vhalla assumiu que o que ele dissera sobre não ter tanta certeza
era verdade, embora algo sobre como seus olhos estavam distantes
a fizesse suspeitar que, na realidade, ele tinha um palpite. Ela
deixou pra lá; talvez fosse melhor deixar algumas coisas não ditas.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por me dizer honestamente. — Não tinha passado
despercebido por Vhalla o quão difícil era para o príncipe fazer isso.
Aldrik riu e balançou a cabeça. Vhalla o puxou para mais perto e
ele obedeceu, inclinando-se para frente. Seus lábios se encontraram
de forma breve, mas foi o suficiente para tranquilizá-la sobre quase
tudo o que ela pensava que sabia sobre o mundo.
— Você precisa se preparar e ir alterar aquele livro.
Vhalla se levantou e ele agarrou seu pulso. — Você ainda vai
voltar hoje à noite?
Ela piscou com a sua pergunta. Depois de tudo o que ele havia
dito?
— Não sei se isso é realmente... — ela começou, sabendo muito
bem agora que não era apenas uma péssima idéia, mas também
uma idéia potencialmente perigosa.
— Há uma entrada secreta, — disse ele rapidamente.
Vhalla olhou incrédula em sua direção. — Se havia uma entrada
secreta, como é que eu não a usei para começo de conversa?
— Porque eu tinha um motivo para vê-la. — Um sorriso torto e
astuto repuxou seus lábios. — E porque eu não estava esperando
que você passasse a noite aqui.
Vhalla corou e desviou os olhos do rosto bonito dele. — Ainda é
uma má ideia, — sussurrou.
— Sempre será. — Aldrik levantou-se. A respiração dela
acelerou apenas com a proximidade dele. Ele colocou os dedos sob
seu queixo e trouxe seu rosto para cima gentilmente. — Se você
quiser tomar a decisão mais apropriada e amplamente aceita, então
vá embora agora, tenha piedade e termine isso antes que você me
seduza ainda mais. Porque posso prometer que isso nunca será
fácil - para nenhum de nós - e me recuso a te amar pela metade.
Mais uma vez, ela sentiu a escolha sendo colocada em suas
mãos. Os problemas não eram nada que Vhalla não tinha dito a si
mesma antes. Os desafios não eram nada que ela já não tinha
percebido. No entanto, ouvi-lo dizer tornou tudo ainda mais
aterrorizante. Ele parecia igualmente assustado, e se as dificuldades
o assustavavam, ela tinha todo o direito de ter medo. Mas ele
também tinha reconhecido isso, dizendo a ela que lutaria se ela
lutasse também. Havia mil coisas que Vhalla queria responder.
— Que horas? — Foram as únicas palavras que deixaram seus
lábios.
— Seis? — O rosto de Aldrik sorriu novamente, e Vhalla sentiu
um calor ao saber que tinha contribuído para isso.
— Combinado.
Aldrik assentiu e a guiou até a sala de estar, por trás do bar que
ocupava o espaço à esquerda da porta. Andando até uma prateleira,
Aldrik puxou uma garrafa e Vhalla ficou surpresa ao vê-la acoplada
à uma alavanca de metal escondida. Houve um clique em algum
lugar da parede, e ele puxou as prateleiras para revelar uma
passagem. À medida que eles desciam a curta distância, um ponto
de luz apareceu sobre o ombro masculino.
— Como você sabia que isso estava aqui? — Ela perguntou.
— Não gosto de me sentir como se pudesse ser encurralado em
algum lugar. Ficamos neste hotel no início da guerra, e insisti em
ficar sempre nele desde que o proprietário me mostrou essa
passagem, — explicou Aldrik quando chegaram ao térreo. — Seis,
— reafirmou.
Ela assentiu.
— Seja pontual, sou o único que pode abrir esta porta.
— Estarei aqui, prometo.
Ele pressionou os lábios na testa dela. — Cuide-se, não quero
ter que reduzir as Encruzilhadas à cinzas num ataque de fúria.
Vhalla riu baixinho, percebendo muito bem que talvez não fosse
apenas uma brincadeira. Ela sorriu para ele, divertida. — Cuide-se
você, não quero ter que mandar as Encruzilhadas pelos ares num
ataque de fúria. — Ela foi recompensada por seu atrevimento com a
risada dele e outro beijo firme.
Aldrik colocou a palma da mão na porta e empurrou. Vhalla
percebeu a verdade do que ele disse antes quando o metal onde a
fechadura ou maçaneta deveria estar começou a derreter em torno
de sua mão. O metal derretido se separou e a porta abriu. Vhalla
entrou na luz do dia. Ela não disse nada e ele assentiu, fechando a
porta que se camuflava na pedra da parede externa.
Vhalla esperou um momento, sua cabeça ainda rodando por
tudo o que havia acontecido. Respirando fundo, ela se virou e
começou a caminhada pelos becos ao redor do prédio, e depois de
volta à praça principal. Em algum lugar ao longo do caminho, se viu
incapaz de conter uma risada extasiada.
O hall de entrada do hotel estava silencioso, e Vhalla agradeceu
por poder subir as escadas de fininho e entrar no quarto. Vhalla
virou-se para a porta, encostando-se nela com um suspiro feliz. Se
isso era um sonho, nunca mais queria acordar.
— Fritz, levante-se; ela voltou. — Larel se agitou, despertando.
— O que vocês dois estão fazendo aqui? — Vhalla piscou para
as duas pessoas que ocupavam a sua cama.
— Fritz, levanta. — Larel empurrou o homem dormindo ao lado
dela.
— Larel, nããão... — Fritz puxou as cobertas sobre a cabeça.
— Ela voltou, — Larel sibilou.
Do nada, Fritz também estava sentado e prestando total
atenção.
— Bom dia, Fritz, Larel, — Vhalla os cumprimentou como se
fosse uma garota que foi apanhada pelos pais ao chegar tarde em
casa.
Fritz estava do outro lado do quarto em um segundo, com as
mãos nos ombros dela. — Você não me venha com “bom dia”. —
Ele a perscrutou. — Você passou a noite toda fora! Nós ficamos
preocupados!
Bem, isso explicava por que eles decidiram acampar em seu
quarto. — Sinto muito, — disse honestamente.
— Não podíamos nem perguntar a alguém porque, bem, não
sabíamos se... — Fritz olhou de novo para Larel.
— Se você tinha ficado com ele, — Larel terminou.
Fritz olhou boquiaberto para a mulher Ocidental, mas depois
voltou-se para Vhalla com um aceno de cabeça. — Então? —
Perguntou Fritz.
Até Larel a analisou interrogativamente.
Vhalla suspirou. Não era como se nunca tivesse planejado
contar a eles, ou que não esperava que os dois soubessem logo,
mas parecia que metade do mundo tinha descoberto seu segredo
logo depois das primeiras horas. — Sim, fiquei.
Fritz guinchou. Ele parecia vibrar de excitação. — Nos - conte -
tudo. — Ele pontuou as palavras, falando cada uma deles como se
fosse uma exigência.
— Ela não precisa nos contar nada, — repreendeu Larel. Ele
choramingou para a outra mulher.
— Sinto muito por fazer vocês se preocuparem, em primeiro
lugar, — se desculpou Vhalla. — Isso só meio que, tipo,
aconteceu… obviamente. — A excitação de Fritz colocou de volta a
sensação boba em seu peito. — Mas não há muito o que contar,
apesar de tudo. Nós não… — Vhalla corou, percebendo o que as
pessoas provavelmente pensariam. — Nós nem sequer dividimos a
cama. — Era uma meia verdade; eles não compartilharam a cama
durante a noite, mas ela dormiu em seus braços e acordou com ele
ao lado dela.
— Elecia? — Perguntou Fritz.
Vhalla balançou a cabeça. — Elecia Ci'Dan é sua prima meio-
Nortenha, meio-Ocidental. Aldrik Ci'Dan Solaris — explicou Vhalla.
Se seu rosto tinha se parecido com o deles diante da revelação do
fato, então não era de se admirar porque Aldrik se divertiu à suas
custas.
— É claro, — Larel gemeu e enterrou o rosto nas mãos. —
Somos tão burros.
— Então, se você não compartilhou a cama dele... o que vocês
fizeram? — Fritz parecia genuinamente confuso.
— Ele trabalhou, nós treinamos um pouco de magia... —
numerou Vhalla de forma vaga.
— Vocês são adoráveis, — disse Larel deliberadamente,
ganhando um olhar tanto dela quanto de Fritz. — Você vai voltar
hoje à noite, não é?
— Como você...? — Vhalla se perguntou se a mulher era
telepata.
— Você vai? — Fritz perguntou, chocado. Vhalla só pôde corar.
— Pela Mãe, essa é a coisa mais louca que eu já ouvi! Príncipe
Aldrik? O Senhor do Fogo? O príncipe das trevas? Aquele cuja
paciência é curta e a ira é longa?
— E o seu ponto é? — Vhalla olhou para ele.
— Ele está agindo como um homem normal! — Fritz riu.
Até Larel compartilhou um sorriso conspiratório. Vhalla escondeu
o rosto, envergonhada.
Vhalla evitou dar a eles mais detalhes. Ela já havia
acidentalmente revelado mais do que pretendia, e queria manter
algumas coisas privadas. Eles a pouparam de mais perguntas e
fizeram companhia à Vhalla enquanto ela enchia sua bolsa com
algumas coisas para a noite.
Horas depois, Vhalla estava entrando novamente em um beco
ao lado de um caminho de carroça. Ela olhou em volta - não havia
sequer uma alma por perto. O coração de Vhalla batia
nervosamente enquanto rezava para que tivesse chegado cedo o
suficiente e que não tivesse se desencontrado com ele.
A entrada da passagem se abriu e Aldrik exibiu um sorriso
animado. Vhalla entrou e ele fechou a porta, soldando-a. Vhalla
colocou as mãos nos quadris dele e se inclinou para cima. Ele
obedeceu, curvando a cabeça para baixo. Beijá-lo tinha inflamado
uma fome que vinha crescendo ao longo do dia. Agora que ela o
tinha, tudo o que queria era ele. Sua necessidade era insaciável.
O príncipe herdeiro suspirou suavemente em sua boca, um ruído
profundo retumbando no fundo de sua garganta, o qual ela
consumiu avidamente. Vhalla colocou as mãos no seu pescoço e
ele a pegou, levantando-a ansiosamente. Vhalla tentou usar o calor
da paixão entre eles para fundir seus corpos dos quadris ao peito.
Aldrik a apertou com mais força, seus dedos pressionando contra a
túnica de lã como se fosse fazer buracos na procura por sua pele.
Os lábios de Vhalla se separaram levemente, mas ele se afastou de
maneira rápida, sacudindo a cabeça.
— Não podemos. — Sua voz era deliciosamente rouca, fazendo-
a querer ficar ainda mais perto dele. — Não agora. Tem alguém que
eu quero que você conheça.
A curiosidade de Vhalla escondeu o ressentimento por terem tido
que parar o que haviam começado. Aldrik entrelaçou os dedos aos
dela enquanto subiam as escadas.
— Quero que você saiba, — ele disse suavemente, — que eu
confio nele completamente, então não se preocupe. Eu teria
contado antes, mas a presença dele também foi uma surpresa para
mim. — Ele não lhe deu a chance de perguntar sobre quem estava
falando quando Aldrik abriu a passagem que dava para o quarto.
Vhalla entrou primeiro, hesitante. Ela colocou a bolsa ao lado da
porta escondida, enquanto Aldrik colocava as prateleiras de volta no
lugar. Vhalla examinou o cômodo, seu olhar caindo sobre um
homem sentado no centro do sofá. Haviam papéis e livros de
registro espalhados sobre a mesa, e Vhalla percebeu
instantaneamente qual espreguiçadeira Aldrik ocupara antes, por
conta da pena com ponta de ouro e do pote de tinta que estavam
apoiados de modo abandonado.
O homem se levantou e Vhalla juntou as mãos, retorcendo os
dedos. Ele era tão alto quanto Aldrik, ou talvez até um pouco mais.
Seu cabelo preto era cortado bem curto e parecia levemente
arrepiado em direções estranhas. Ele tinha uma barba escura bem
aparada que corria ao longo de sua mandíbula e subia o queixo até
o lábio inferior. Nada disso foi o que a assustou, embora. Os olhos
dele eram como olhar para uma imagem refletida de um outro par
muito familiar, um que ela particularmente era apaixonada.
Aldrik andou atrás dela, colocando a palma da mão na base de
suas costas para ajudá-la a sair de seu torpor. O homem a estudou
com um olhar velado enquanto ela contornava o bar e atravessava a
sala até a área de estar. Aldrik estendeu a mão na direção do
homem.
— Vhalla, conheça Ophain Ci'Dan, irmão da minha mãe e
Senhor do Oeste.
Ela olhou para os dois homens; Aldrik tinha um sorriso relaxado,
e o outro homem continuava avaliando-a com interesse.
— Vhalla Yarl — disse o lorde lentamente, e sua voz estava
entre uma das mais profundas que ela já ouviu. — Eu estava
ansioso para conhecê-la.
V BUSCOU POR UMA SEGUNDA CONFIRMAÇÃO,, e Aldrik deu um
pequeno aceno de cabeça. O homem Ocidental estendeu a
mão aberta para ela e Vhalla tentou sorrir educadamente enquanto
aceitava o cumprimento. A pele do lorde era tão quente quanto a de
seu príncipe, e ela se perguntou se ele era um vislumbre do futuro
de Aldrik. Ele estava começando a ficar grisalho perto das orelhas,
mas isso o deixava com uma aparência bonita e imponente. Seus
ombros eram mais largos e pareciam ter mais músculos.
— Meu senhor, é uma honra conhecê-lo. — Vhalla disse a si
mesma para não ficar nervosa.
O homem assentiu e sentou em frente a ela com uma postura
relaxada, os braços abertos nas costas do sofá. Aldrik voltou à
espreguiçadeira que ocupava anteriormente. Vhalla sentou-se na
outra restante e cruzou as mãos no colo, tentando agir
educadamente e não retorcer os dedos.
— Não consigo me recordar de nenhuma outra vez em que uma
das primeiras palavras que saíram da boca do meu sobrinho foi o
nome de uma dama. Somado ao fato de ouvir o mesmo nome nos
lábios do Imperador e do outro príncipe, bem, nem preciso dizer que
não tive outra escolha a não ser conhecer essa mulher.
Vhalla não tinha certeza de como se sentia sabendo que era o
assunto de tantas conversas.
— Ainda assim, se nada disso fosse verdade, eu teria insistido
em conhecê-la de qualquer maneira. — Lorde Ophain apoiou os
cotovelos nos joelhos, cruzando as mãos entre eles e inclinando-se
para a frente. — Afinal, você é a primeira Andarilha do Vento no
Oeste em mais de cem anos que não foi trazida usando correntes.
— Bem, não sei se estou livre de correntes. — Vhalla não
conseguiu impedir que o comentário seco escapasse.
— Por quê diz isso? — Ele perguntou. Até Aldrik estava curioso.
Vhalla se concentrou no príncipe enquanto falava, rezando para
que ele não interpretasse errado suas palavras. — Sou propriedade
da coroa. Minhas correntes são invisíveis, mas igualmente pesadas.
A dor passou rapidamente pelos olhos de Aldrik, mas não houve
hostilidade diante da verdade que ela trouxe à tona.
— Bem que você me disse que ela tinha um pouco de fogo
dentro de si. — Lorde Ophain riu para Aldrik antes de voltar sua
atenção para a garota. — Eu conheço as acusações contra você. E
sei da magia que exerce. Mas o que eu quero conhecer mesmo é a
mulher por trás disso tudo.
Vhalla observou que ele usou a palavra “acusações” ao invés de
“crimes”.
— Bem, eu nasci em uma cidade Oriental chamada Leoul. Fica à
oeste e um pouco ao sul da capital de Cyven, Hastan. Cerca de três
dias de viagem da fronteira Ocidental, acho? — Vhalla nunca fez
essa viagem, mas tinha ouvido falar da jornada pelos agricultores.
— Quando tinha onze anos, fui trazida à capital pelo meu pai e
acabei trabalhando no palácio como aprendiz de biblioteca.
— O que explica como conseguiu entrar em contato com um
príncipe, — ponderou o lorde.
Vhalla assentiu, abrindo e fechando os dedos. — Sim, meu
senhor, embora tudo tenha sido bastante estranho e uma questão
de sorte.
— Não existe sorte, Vhalla. — Ela o instigou a continuar com seu
olhar curioso. — A Mãe nos dá um caminho a seguir até o fim de
nossos dias. Ele está repleto de encontros e despedidas, e nenhum
dos quais acontecem por acaso. — Ele fez uma pausa antes de
acrescentar: — Pelo menos é nisso que escolho acreditar.
Vhalla fez uma pausa, tentando decidir quanto daquela
afirmação curiosa considerava ser verdadeira. — Entendo, meu
senhor. — Ela não tinha certeza do que mais poderia dizer.
— Você é uma cética, — ele afirmou com um sorriso.
— Há muitas coisas que não entendo; seria presunçoso da
minha parte descartar qualquer uma delas de forma superficial —
replicou Vhalla, no que era tanto uma resposta verdadeira quanto
uma resposta educada.
— Tenho certeza de que se tornou mais sábia por conta dessa
atitude. Eu posso lhe oferecer uma prova, no entanto; você deveria
considerá-la. — Ela inclinou a cabeça, ouvindo atentamente. —
Acredito que, se essa teoria não fosse um fato, então alguns
Domadores de Fogo não poderiam usar esses caminhos para
perscrutar o futuro de uma pessoa.
— Domadores de fogo podem fazer isso? — Vhalla interveio
ansiosamente.
— Alguns. — Lorde Ophain assentiu.
— Muito poucos, — Aldrik zombou. — A maioria são charlatões
de lojas de antiguidades com truques baratos usando fumaças e
espelhos.
Vhalla decidiu então manter o incidente com a Domadora de
Fogo chamada Vi para si mesma.
— Ótimo. Já que meu sobrinho parece interessado em descartar
essa teoria... — O lorde olhou entre eles deliberadamente. — Os
laços que Vinculam duas pessoas a ficarem juntas são feitos das
mesmas linhas vermelhas do destino.
Os olhos de Vhalla se arregalaram. Lorde Ophain se permitiu um
sorriso satisfeito. Seu coração começou a acelerar e ela olhou para
Aldrik. Seu príncipe riu baixinho e balançou a cabeça.
— Não se preocupe, Vhalla. Eu confio nele — Aldrik reafirmou.
Ela olhou chocada para o príncipe e depois para Lorde Ophain.
Dizia muito sobre o relacionamento que esses dois compartilhavam
o fato de que Aldrik confiava à ele o conhecimento do Vínculo.
Vhalla começou imediatamente a se sentir mais confortável com
Senhor do Oeste.
— Nem mesmo ter Despertado e já formar um Vínculo. — Lorde
Ophain passou a mão pelo queixo. — Você é de fato uma criatura
curiosa. Estou verdadeiramente empolgado com a sua
demonstração de amanhã.
— É amanhã? — Vhalla perguntou para nenhum dos dois em
particular.
— Meu Pai me informou mais cedo. — Aldrik assentiu.
— Você já pensou em introduzi-la aos cristais, depois de tudo?
— Lorde Ophain perguntou a Aldrik.
— Não, e não diga uma palavra ao meu pai sobre isso, —
ameaçou o príncipe. — Pelo que ele sabe, ela não pode lidar com
eles sem o risco da mancha, como qualquer outro feiticeiro.
— E como você o fez acreditar nisso? — O Senhor do Oeste
pareceu impressionado.
— Eu disse a ele que tentei. — Aldrik deu de ombros. — Tenho
fornecido anotações cuidadosamente escritas baseadas nos meus
próprios registros para pintar a imagem que eu quero que ele veja.
— Inteligente, — elogiou lorde Ophain.
Vhalla ignorou a culpa que sentiu por alguma vez ter suspeitado
que Aldrik iria compartilhar as intimidades do Vínculo dos dois sem
cuidado. — Mas eu posso lidar com eles... — Vhalla lembrou das
pedras que o Ministro Victor usara em seu corpo depois que ela
Despertou. Elas haviam funcionado tão eficientemente com sua
magia que era como se tivessem sido feitas especialmente para ela.
Lorde Ophain sorriu de forma ampla para Aldrik, claramente
animado com sua admissão. O príncipe beliscou a ponte do nariz e
suspirou. — Vhalla, não repita isso fora deste cômodo.
— Por quê? — Ela perguntou.
— Você sabe como a Guerra das Cavernas de Cristal foi
iniciada? — Lorde Ophain perguntou a ela.
— Bem, meu pai foi um soldado durante a guerra... — Vhalla
pensou no que ele e sua mãe haviam lhe dito. Aldrik ficou
subitamente fascinado por um canto da sala, evitando a conversa
como se ela não estivesse acontecendo. — Ele disse que foi por
causa do caos contido nos cristais, que escapava e perturbava o
domínio e a ordem da Mãe. Que estávamos lutando contra a
escuridão. Eu li que também tinha algo a ver com feiticeiros se
intrometendo com forças que não deveriam.
— Mas por que eles estavam se intrometendo com essas
forças? O que os levou a estar lá?
Vhalla não tinha uma resposta para a pergunta do lorde.
— Tio, chega disso! — Aldrik estava de pé, as mãos cerradas em
punhos. Vhalla podia sentir o poder irradiando dele.
— Aldrik, relaxe. Sei quando uma história não é minha para
contar. — A voz do homem era severa, mas tinha um toque gentil.
Aldrik ficou rígido por mais um momento antes de suas mãos caírem
frouxamente ao lado do corpo. Seus olhos estavam cansados e
distantes quando ele bufou, caminhando irritado para o bar.
— As Cavernas de Cristal tem sido um enigma misterioso faz
muito tempo, — continuou Lorde Ophain, ignorando seu sobrinho
temperamental. — Alguns afirmam que é a porta para o reino
sombrio que o Pai construiu, para manter nosso mundo separado.
Outros teorizam que é a solidificação da magia bruta de quando os
Deuses criaram a vida. Não importa em que você escolha acreditar,
há algo sobre as propriedades das pedras que são encontradas lá,
algo que pode alterar as habilidades naturais de um feiticeiro. — O
lorde tomou um gole de sua bebida. — A guerra começou porque as
pessoas haviam retornado às Cavernas em outra tentativa
fracassada de reivindicar seus poderes em prol da própria ganância
egoísta - poderes que têm o potencial de distorcer até o mais forte
dos feiticeiros, ainda mais rápido do que os Comuns por causa das
Vias mágicas que ele carrega.
— O que isso tem a ver comigo? — Era uma história
interessante, mas ela não sabia por que era relevante.
— Por que o Oeste queria Andarilhos do Vento? — Lorde Ophain
respondeu sua pergunta com outra pergunta. Ela estava começando
a ver de onde Aldrik tinha tirado seu estilo de ensino.
— Pela magia, — disse Vhalla, incerta. Ela só tinha lido um livro
sobre isso.
— Para acessar as cavernas. — O lorde inclinou-se para a frente
com uma seriedade solene.
Aldrik ficou encarando sua bebida atrás do bar, ainda os
ignorando.
— Por que... — Sua voz tinha virado um sussurro.
— Porque os Andarilhos do Vento são os únicos, de todos os
feiticeiros ou Comuns, que não podem ser manchados pelos
cristais. — Lord Ophain finalmente deu a resposta que ela não
queria ver por si própria.
— Mas, então… — Vhalla olhou para Aldrik e capturou sua
atenção. — Você não quer que seu pai saiba porque não quer que
ele tenha esse poder.
— Se ele pode tê-lo ou não, é irrelevante. — Aldrik encheu o
copo antes de voltar ao seu lugar. — Não quero que você seja
usada por ninguém.
O coração de Vhalla nem pôde errar as batidas por conta das
palavras dele, sua mente estava muito sobrecarregada. Ela tinha um
poder que podia dar acesso a uma magia antiga ainda maior, capaz
de distorcer os corações, mentes e corpos dos homens. Vhalla
apertou as mãos com força. O Ministro Victor tinha pedido que ela o
trouxesse uma arma de cristal. Agora sabia o porquê, e a razão pela
qual tinha que ser ela em específico.
— Mas chega de aulas de história e de indagações sombrias —
Lorde Ophain tentou dispersar a nuvem carregada que agora
pairava sobre o cômodo. — Posso ter uma demonstração de suas
habilidades, especificamente dessa Projeção na qual ouvi falar,
antes de amanhã?
Vhalla acatou ao pedido e foi melhor assim. A admiração e a
animação que Lord Ophain teve em relação à sua magia ajudaram
Vhalla a superar as preocupações e medos invocados pelas
Cavernas de Cristal. A guerra tinha acabado e as pessoas haviam
aprendido suas lições quando se tratava dos cristais. Do mesmo
modo que Vhalla concordou com a decisão de Aldrik de manter em
segredo o fato de que eles não a afetavam negativamente, ela
também decidiu não se preocupar com isso.
Eles conversaram do jantar até a noite. Vhalla começou a
contribuir com mais bocejos do que com palavras em certo ponto da
conversa, e Aldrik finalmente notou a companhia cochilante que ela
era. — Você deveria ir descansar.
— Ah, não, estou bem. — Teria sido mais convincente se ela não
tivesse pontuado a afirmação com um bocejo.
— Você vai precisar da sua energia amanhã. — O príncipe se
levantou, oferecendo-lhe uma mão. — Durma um pouco.
Vhalla percebeu pela maneira com que Aldrik girou seu corpo,
que ele estava prestes a levá-la para o quarto. — Posso voltar para
a estalagem, — ela ofereceu rapidamente.
— Não, eu quero você aqui comigo. — Ele fez uma pausa. — Se
você ainda quiser isso também.
Vhalla sorriu suavemente com a última fala; de certa forma, era
adorável assistir um nobre nascido e criado na realeza tentar ser um
pouco menos principesco. — Claro que eu quero. — Ela apertou a
mão dele levemente. — Vou dormir aqui fora essa noite, — ela
ofereceu.
— Não. — Aldrik balançou a cabeça. — Eu e meu tio vamos ficar
até queimar todo o óleo das lamparinas. Não o vejo faz muito
tempo. Fique com a cama, será muito mais silencioso.
Vhalla assentiu e Aldrik renunciou seu agarre sobre ela, satisfeito
pela garota não estar indo embora. Vhalla virou-se para Lorde
Ophain quando o príncipe foi buscar sua bolsa atrás do bar. O
Senhor do Oeste tinha um sorriso conhecedor em seu rosto.
— Lord Ophain, foi um prazer conhecê-lo, — disse ela
sinceramente.
— Só posso dizer o mesmo, Vhalla. Uma amiga de Aldrik - é
uma amiga do Oeste. Te vejo amanhã.
Vhalla notou seu sorriso e não pôde evitar corar. Ansiosa demais
para esconder o constrangimento, ela pegou a bolsa das mãos de
Aldrik, deu-lhes boa noite e deslizou através das portas de correr
para o quarto escuro do outro lado. Duas chamas tremeluziram ao
lado da cama e no banheiro, pairando acima de um prato de metal
que havia sido posto estrategicamente. Vhalla fez uma anotação
mental para algum dia perguntar a Aldrik como Dominadores do
Fogo deixavam suas chamas à distância, mas, por agora, estava
agradecida pela luz.
Sabendo que o príncipe ia demorar, Vhalla decidiu tomar seu
próprio tempo, aproveitando o luxo do banheiro dele. A água saiu
bem quentinha e ela a deixou penetrar em seus ossos. O calor a
relaxou e evitou que a tensão em seus músculos se transformasse
em medo e preocupação diante da incógnita que a demonstração
iminente para o Imperador traria.
Seus dedos das mãos e dos pés estavam enrugados quando ela
emergiu. Secando-se e vestindo roupas de dormir básicas, Vhalla
arrastou os pés de volta para o quarto. Luzes fracas ainda
tremeluziam por trás das portas de correr, que não faziam quase
nada para bloquear a profunda ressonância das palavras de Aldrik.
— Gostaria de outro? — Ele perguntou, provavelmente de trás
do bar pelo jeito como sua voz soava.
— Não, temos um longo dia amanhã. Você deveria parar
também — alertou seu tio.
— Apenas uma saideira, — Aldrik assegurou.
— Você disse que era uma saideira há duas bebidas atrás. —
Havia um tom de sermão na voz de Lorde Ophain que fez Vhalla
sorrir levemente.
— Não me culpe por isso. — Ela ouviu Aldrik atravessando a
sala, o som de um móvel raspando no chão enquanto ele se
sentava pesadamente.
— Você sabe que eu vou. Principalmente se ainda estiver sob os
efeitos do álcool e não puder desempenhar o papel que precisa
amanhã — disse o lorde severamente. — Não acho que você vá
querer ser o motivo da demonstração dela dar errado.
— Eu nunca faria nada que pudesse colocá-la em risco, — disse
Aldrik afiadamente.
Vhalla deu um passo para mais perto das portas, o coração
acelerado. Sabia que não deveria estar ouvindo, que era uma
invasão da privacidade dele. Mas ela não conseguia evitar que seus
pés a carregassem até as portas de papel e madeira esculpida.
— Você diz como se já tivesse feito. — As palavras de Lorde
Ophain eram fortes, mas seu tom não era.
— Não se atreva a me dizer...
— O que? — O homem mais velho cortou o príncipe. — Que
você transmitiu claramente seu relacionamento com essa mulher
para os seus homens, os seus líderes, o seu pai, de todas as
pessoas?
Aldrik ficou calado.
— Ele mencionou o julgamento em uma correspondência. Me
pediu para vir e botar juízo na sua cabeça.
— E eu aqui pensando que você estava fazendo uma visita
amigável ao seu querido sobrinho. — Aldrik pontuou suas palavras
pousando o copo sobre a mesa com um pouco mais de força do que
o necessário.
— Seu pai me convocou aqui para rejeitar isso. Mas então você
também me convoca buscando o meu conselho e a minha
aprovação. Por que mais você a traria diante de mim como fez? —
Lorde Ophain tinha um ponto.
— Bem, — Aldrik perguntou finalmente, — qual é o seu
conselho?
— Faça dela uma protegida do Oeste. — Vhalla inalou
bruscamente com as palavras de Lorde Ophain. — Mande-a de
volta para Norin comigo para estudar na Academia de Artes
Arcanas. Coloque-a fora do alcance do seu pai, e do seu.
— Isso seria a coisa mais inteligente, não seria? — Aldrik
suspirou.
Vhalla agarrou seus dedos com tanta força que pensou que um
deles poderia quebrar. Ela deveria ficar feliz. Ser enviada a Norin
para estudar em uma das academias mais antigas do mundo -
embora fosse uma academia de feitiçaria -, deveria soar como um
sonho se comparado à marchar para a guerra.
Mas ela não estaria ao lado dele..
— Você não vai fazer isso, no entanto. — Lorde Ophain ouviu
algo nas palavras de Aldrik que Vhalla não tinha ouvido. O barulho
de gelo contra os copos de vidro encheu o silêncio. — O que essa
mulher é para você?
— Vhalla, eu preciso dela de tantas formas, que a Mãe me
ajude, — Aldrik gemeu. — Preciso dela como minha redenção,
preciso de sua bondade, preciso do seu perdão, preciso dos seus
sorrisos, preciso da sua humanidade, preciso da sua ignorância,
preciso da sua inocência e, sim... Mãe Sol, sim, preciso dela como
homem.
A respiração dela estava curta quando se inclinou para mais
perto da porta. O coração de Vhalla ameaçou parar de bater com as
palavras suaves de Aldrik.
— Você a ama.
Não era uma pergunta, mas Aldrik respondeu de qualquer
maneira. — Mais do que eu algum dia pensei ser possível.
— Aldrik, — disse o lorde cuidadosamente. — Você se meteu
numa situação e tanto, não é?
— Não sei o que fazer. — A voz dele soou fraca se comparada à
sua plenitude normal.
— Você sabe qual é o seu papel na vida, o seu dever para com
seu povo. — Vhalla não gostava de onde Lorde Ophain estava
chegando com sua lógica. — Algum dia você será Imperador e
ninguém poderá questionar suas decisões. Ninguém vai questioná-
las se sentirem que suas leis se originam da honra, da sensibilidade
e da compaixão. A coroa é um fardo pesado e você terá que fazer
escolhas entre os seus desejos e o seu Império.
— Sei de tudo isso, Tio. — A voz de Aldrik ficou abafada por um
momento, enquanto ele enterrava o rosto nas mãos. — Mas eu não
posso.
Vhalla soltou o fôlego que não tinha percebido que estava
segurando.
— Eu sei, — disse Lorde Ophain. — Você me lembra muito o
seu pai.
— O que? — A raiva de Aldrik surgiu rápido diante do
comentário.
— Acalme-se. — O lorde riu. — Você nunca os viu juntos, mas
ele estava perdido de amores pela sua mãe. Claro, ela também era
uma princesa, mas a escolha lógica teria sido uma de suas tias mais
velhas. Ele não deveria ser tão duro com você, até porque não é
como se tivesse sido imune à perseguir um coração roubado.
Vhalla piscou, ela nunca tinha ouvido nada sobre a mãe de
Aldrik. Ela deveria se afastar agora; este era certamente um
momento privado.
O lorde suspirou. — Ela era muito jovem, mais nova do que você
é agora...
— Chega — disse Aldrik baixinho. Houve uma longa pausa.
— Ainda temos um longo dia pela frente. — Soou como se
Ophain estivesse de pé. — E você tem uma mulher bonita em sua
cama, — ele acrescentou com uma risada.
Vhalla lutou contra um rubor.
— Onde ela ficará sem mim, — Aldrik parecia resoluto.
Vhalla lutou contra um desapontamento bem impróprio.
— Você e suas nobrezas. Você é um príncipe, Aldrik, as pessoas
esperam que se divirta quando ninguém está olhando. — A voz do
lorde diminuiu enquanto ele se dirigia para a porta. — É uma pena
que a sede do poder não tenha sido mantida no Oeste. Nosso povo
ficaria bastante satisfeito em aceitar uma mulher como ela como sua
princesa.
Vhalla tentou absorver o que o homem estava insinuando, o que
ele estava dizendo abertamente.
— Um passo de cada vez... — A voz de Aldrik desapareceu
quando ela caminhou até a cama.
Vhalla colocou as cobertas em volta de si. Seu sangue parecia
em chamas pela vergonha de ouvir uma conversa que não fora
destinada aos seus ouvidos. Mas essa não era a única coisa que a
fazia queimar. Ela queria tocá-lo, beijá-lo, deixar que ele soubesse
que ela se sentia do mesmo modo e ainda mais, e que nunca iria
deixar o mundo arrancá-lo de suas mãos necessitadas.
O som de madeira contra madeira preencheu o silêncio quando
a porta se abriu, e Vhalla sentou-se.
— Você está acordada. — As bochechas dele estavam
levemente coradas, e seus lábios se separaram.
— Estou. — Toda a eloquência abandonou Vhalla quando ela o
encarou.
— Eu... — Ele olhou entre ela e a área de estar na sala principal.
Vhalla viu o debate em seu rosto e colocou um fim nisso. —
Fique comigo.
— Eu não deveria. — Seu foco agora estava exclusivamente
nela e isso enviou faíscas para o seu peito.
— Você não deveria? Assim como não deveria me ter em sua
cama agora, ou me beijar ou me amar? Não estou, não estou
pedindo para… — Vhalla agarrou as cobertas e corou, forçando a si
mesma a agir como uma mulher, — ...para que você faça amor
comigo essa noite. Mas quero você perto de mim.
Aldrik suspirou profundamente, e Vhalla se preparou para vê-lo
partir para o outro cômodo. Mas ele atravessou o caminho até a
cama, rastejando sobre os lençóis nas mãos e nos joelhos em
direção à ela. Vhalla sentiu-se deliciosamente encurralada, presa
aos travesseiros diante de uma fera predatória.
As luzes se extinguiram magicamente quando ele a beijou, seu
peso atacando os sentidos dela. Vhalla passou a mão em volta do
pescoço masculino, segurando o rosto dele contra o seu. Aldrik
tinha gosto de licor doce e cada sonho sombrio e delicioso que ela
já teve. Ela queria entregar-se a ele, dar-lhe tudo o que tinha.
Quando se afastaram incontáveis beijos depois, não parecia nem
perto de ser o suficiente.
— Aldrik, — ela suspirou sem fôlego.
— Não, não vou. Você disse que essa noite não. — O príncipe
leu sua mente.
— Mas...
— Não, — Aldrik repetiu. Ele a pegou em seus braços e girou de
costas, puxando-a para cima dele. — Também não quero que você
pense que eu levo as mulheres para a cama de modo leviano.
— Você não precisa se preocupar com isso. Eu sei. — Vhalla
acariciou o estômago dele, sentindo através do tecido fino da
camisa as elevações dos músculos esculpidos por anos de serviço.
— Não ligo para quantas foram, ou por quê. Eu só quero estar aqui,
agora.
— Quantas você acha que foram? — Ele realmente parecia
divertido.
— Eu te disse, não me importo. — Os movimentos dela
congelaram.
— Ah-ah, Vhalla, eu praticamente inventei as respostas
evasivas. Você ainda tem muito o que aprender. — Ele colocou
alguns fios de cabelo atrás da orelha dela.
— Eu não sei, — Vhalla se resignou. Ela não queria ofendê-lo
com um palpite que passava muito longe do número real. Ele era
seis anos mais velho do que ela e, a julgar pelos comentários de
seu irmão, tinha sido significativamente mais ativo quando era mais
novo. — Oito? — Ela chutou um número, pensando que seria muito
baixo porque isso implicaria em menos de uma mulher por ano
desde a cerimônia de maioridade dele, aos quinze.
Sua risada ecoou na escuridão.
— Três.
— Três? — Ela repetiu. Era mais do que o seu total geral de um,
mas era bem menos do que estava esperando.
— Isso é uma repetição satisfeita, meu papagaio? — Ele
pressionou os lábios na testa dela.
— Suponho que sim. — Vhalla se remexeu, aproximando-se um
pouco mais dele. — É mais do que eu.
— Imaginei que sim.
— O que isso significa? — Vhalla bufou em um tom falsamente
ofendido.
— Eu usei a sua falta de experiência para te deixar
completamente desequilibrada, lembra? — Ele correu a mão pelo
braço dela para entrelaçar seus dedos.
— Dois nem é tanta diferença assim, — Vhalla murmurou, sem
saber como aquilo havia se tornado um competição.
— Dois. — Aldrik levou muito tempo para fazer uma matemática
simples. — Quer dizer que você já...
Foi a vez de Vhalla rir. — O Leste na verdade não compartilha as
noções Sulistas de vocês sobre o sangue virgem de uma mulher.
Sim, um homem.
— E cá estava eu pensando que estava te levando para o mal
caminho. — Vhalla ouviu o sorriso na voz dele e levou a mão à
bochecha masculina, sentindo como sua boca se curvava.
— Estou bastante certa de que está, — brincou Vhalla
levemente.
— Você está certa, — ele brincou também. — Eu quero comer o
seu coração ainda batendo.
— Se isso era tudo o que queria, deveria saber que eu dei ele a
você já faz um certo tempo. — Vhalla ficou confusa quando sentiu o
sorriso sair do rosto de Aldrik. — O que foi?
— Como você ainda não viu que eu não sou digno de você? —
Ele agarrou a mão dela, pressionando os lábios contra as pontas
dos dedos.
— Como você não viu que é digno disso e muito mais? — Vhalla
retrucou.
Ele deu uma bufada em diversão e apertou a mão dela com
força. — Eu te amo, Vhalla Yarl.
— Que sorte a minha. — Ela bocejou. — Porque eu te amo
também, meu príncipe herdeiro.
A respiração dele bagunçou seus cabelos levemente enquanto
Vhalla se pressionava para mais perto do príncipe, e ele encheu os
seus sentidos enquanto ela dormia.
E LA OLHOU PARA o rosto de um homem que era dolorosa e
terrivelmente familiar, e ainda assim completamente diferente.
Egmun usava o cabelo curto, bem rente à cabeça, embora as rugas
nos cantos dos olhos fossem mais suaves, as linhas ao redor da
boca mais leves, e ele usasse uma sombra de barba ao longo da
mandíbula. A visão do senador mais jovem deixou Vhalla em um
tipo de pavor cheio de fúria, e a emoção conflitou com o que seu eu
onírico estava sentindo - uma sensação tranquila de confiança.
Vhalla lutou com a visão, se debatendo para escapar, para
afastar Egmun. Ela puxou e forçou e se retorceu mentalmente até
algo se partir em seu pânico cru. Ela ficou do lado de fora do corpo
que antes ocupava, o que deveria ter sido seu corpo em todos os
sonhos anteriores.
Aldrik parecia não ter mais de quinze anos. Seu cabelo era mais
comprido, caído até os ombros e amarrado no pescoço. Uma franja
bagunçada emoldurava o seu rosto, e Vhalla olhou com uma
estranha mistura de amor e medo para o garoto de olhos
arregalados, sozinho naquele lugar escuro com um homem que ela
odiava mais do que qualquer um ou qualquer outra coisa.
O cômodo estava cheio de uma névoa que se misturava
sinistramente com a escuridão, tornando apenas certos detalhes
facilmente distinguíveis. Havia uma única chama tremulando no
espaço cavernoso e, onde quer que fosse, nem o teto e nem as
paredes eram visíveis pela luz. O chão era de pedra, incrustado com
o que pareciam ser cacos de vidro cintilante. Ela tentou olhar mais
de perto, mas um nevoeiro os cobria toda vez que tentava se
concentrar. Havia marcas antigas esculpidas sob seus pés,
espiralando em direção ao centro onde um homem estava
ajoelhado, amarrado e com os olhos vendados. Ele estremeceu e
balançou um pouco. O tecido que cobria seus olhos estava molhado
de lágrimas.
— Príncipe Aldrik. — Egmun deu um passo à frente. Ele usava
um casaco preto formal e calça escura; não havia sinal de sua
corrente Senatorial. — Um dia, você será Imperador. Sabe o que
isso significa?
— S-Sei.
Vhalla virou-se para a criança gaguejante.
— Então você sabe que a justiça caberá à você. — Egmun deu
outro passo à frente e o coração de Vhalla começou a acelerar,
sentindo-se desesperadamente presa. Ela não queria estar aqui, ela
não queria ver isso. — Foi o último pedido de sua mãe, que seu pai
lhe poupasse dessas funções pelo maior tempo possível.
— Da minha mãe? — Vhalla viu um triste lampejo de esperança
nos olhos do garoto com a menção da mãe que ele nunca
conheceu.
— Mas em breve você será um homem, não é? — Egmun
perguntou suavemente.
— Sim. — O menino príncipe respirou fundo, como se para
esticar-se em toda a sua altura por um momento.
— É bastante injusto, não? Que seu pai trate-o como uma
criança? — Vhalla observou o homem sorrir, e ela soube que esse
Aldrik ainda não havia aperfeiçoado seus poderes de percepção e
manipulação. Se ela podia ver Egmun pelo que realmente era
naquele momento, não tinha dúvidas de que o Aldrik adulto também
o faria. — Você está preparado para ser o príncipe herdeiro que
este reino precisa?
— Estou, — repetiu Aldrik, apesar de sua dúvida óbvia. Embora
o lugar estivesse frio, suor pontilhava sua testa.
— Então, meu príncipe, pela justiça, pela força de Solaris, pelo
futuro do seu Império, mate esse homem. — Egmun abaixou
dramaticamente sobre um joelho. Ele puxou a corda que prendia
uma espada curta ao seu próprio cinto, e estendeu a lâmina com
expectativa.
Vhalla não tinha certeza se era seu coração que estava
disparado, ou se era o do jovem Aldrik.
— Mas...
— Este homem roubou da sua família; é um crime e uma traição.
Ele não é um inocente — garantiu Egmun.
— Meu pai não deveria...
— Pensei que você fosse um homem e um príncipe. E não
alguém que recua diante da justiça ou do poder, Príncipe Aldrik. —
Egmun pareceu esticar os braços para estender a espada ainda
mais. — Por quê você está aqui?
— Para o meu pai, para conquistar o Norte, — disse Aldrik,
incerto. A guerra no Norte havia começado apenas quatro anos
atrás. Aldrik deveria ter vinte anos, e não ser uma criança.
— Com isso, todos irão se curvar diante de você. — Egmun
sorriu de modo encorajador, e Vhalla lembrou de uma serpente.
Aldrik pegou a espada, hesitante.
Não, sussurrou mentalmente. Foi inútil, e, é claro, ela não foi
ouvida. Aldrik virou-se para o homem ajoelhado.
— M-meu príncipe, m-misericórdia, por favor. P-pegue minha
mão pelo m-meu roubo. P-Poupe-me. — Vhalla ouviu a voz áspera
do homem através das lágrimas. Aldrik olhou de volta para Egmun.
— Ministro... — ele disse fracamente.
— Os culpados o dirão qualquer coisa, meu príncipe, para salvar
a própria pele. Isso também é uma lição. — Egmun voltou a ficar de
pé, e ele parecia estar prendendo a respiração.
Aldrik desembainhou a espada, passando a bainha de volta às
mãos ansiosas de Egmun. A lâmina brilhava como se emitisse luz
própria.
Egmun, pare. Vhalla gritou.
— M-misericórdia, — o homem implorou. Aldrik olhou para
Egmun em desalento.
— Mate-o, Aldrik.
Vhalla ficou boquiaberta com a repentina rispidez no tom de
Egmun. A paciência dele finalmente se esgotou. Aldrik não pareceu
notar. Ela só teve um momento para contemplar o que, exatamente,
deixava o senador tão ansioso antes que Vhalla visse o garoto
apertar a mandíbula com uma determinação sombria.
Não. Ela sentiu o terror de Aldrik, sua incerteza, sua esperança
juvenil, o fim eternamente invasivo de sua inocência, e sentiu-se a
ponto de chorar.
Aldrik levantou a lâmina. Ela pairou, apenas por um momento,
acima de sua cabeça. O jovem príncipe olhou para o homem
indefeso diante dele, a vida que ela sabia que estava prestes a ser
ceifada. Vhalla viu o flamejar da luz do fogo na superfície da espada
enquanto ele a descia desajeitadamente sobre a cabeça do homem.
Não, ela repetiu ao ver o indivíduo estremecer violentamente
com o balanço fraco e desajeitado da lâmina de Aldrik. Aldrik
levantou a espada novamente.
Não! Vhalla gritou quando ele abaixou a espada de novo, sangue
espirrando em seu rosto jovem e perfeito. Aldrik levantou a espada
novamente.

— Não! — Vhalla gritou, se lançando para frente, em direção à uma


figura que desapareceu assim que ela abriu os olhos.
Um braço envolveu seus ombros, segurando-a firmemente
contra um peitoral masculino. Uma mão se apertou contra sua boca
com firmeza. Sua mente estava atordoada e ela gritou de novo, o
som abafado pelos dedos que cobriam seus lábios. Ela se retorceu
e chutou para tentar se libertar das garras da pessoa,
instantaneamente pensando em Egmun, com as bochechas
molhadas de lágrimas.
— Vhalla. — Uma voz que era feita da própria meia-noite a
acalmou, soando por trás dela. O som rompeu o caos em sua
cabeça. — Vhalla, pare. Está tudo bem. Sou eu.
Ela deu um pequeno gemido de alívio e suspirou uma vez pelo
nariz. Depois outra vez, até Aldrik finalmente tirar a mão de sua
boca, quando teve certeza que ela não alertaria o mundo inteiro
sobre a presença dela em sua cama. Enquanto dormia, ela rolou
para o seu lado da cama e Aldrik se aconchegou por trás dela, de
conchinha. Vhalla girou para encará-lo.
— Aldrik, — ela disse fracamente. Vhalla examinou o rosto dele.
Depois de ver seu eu mais jovem, ele de repente parecia mesmo ter
a idade que tinha e muitos mais. Ela engoliu um pequeno choro de
alívio ao ver as bochechas dele livres de sangue. — Aldrik, — Vhalla
choramingou antes de usar o peito dele como um escudo contra o
mundo.
Os braços do príncipe se fecharam em torno dela e ele beijou o
topo de sua cabeça. — Estou aqui. Você está segura. Foi só um
sonho. Não é real — ele a tranquilizou, passando a mão por suas
costas.
— É sim. — Vhalla engasgou entre respirações trêmulas e
resquícios de suas lágrimas. Ela não podia mais negar isso. Os
sonhos anteriores haviam sido misturados demais à consciência
dele para saber ao certo, mas agora ela tinha certeza.
— Vhalla, eu conheço muitos poderes nesse mundo... — Ele se
afastou e passou o polegar sobre suas bochechas molhadas. — Sei
de poderes que veem o futuro em chamas e cinzas. Sei de poderes
que ouvem os ecos do passado em ondas. Sei de poderes que
podem curar quase qualquer doença. Sei de poderes em que você
pode andar fora de seu próprio corpo. — Aldrik sorriu gentilmente
para ela. — Mas nunca ouvi falar de um poder dos sonhos.
— Isso-Isso foi real.
— Acalme-se, você não está falando coisa com coisa. Respire
fundo e volte a dormir. Já é quase de manhã, e meu pai não planeja
fazer a sua demonstração até o meio dia. — Ele beijou sua testa
suavemente, e a culpa de Vhalla a fez se afastar dele para se
sentar.
— Você não entende. Isso foi real. Meus sonhos, eles não são…
— Um arrepio percorreu seus braços. — Eles não são sempre
sonhos.
— Venha aqui, você está com frio, — Aldrik suspirou. — O que
você pensa que eles são? — Ele bocejou, piscando para afastar o
sono e erguendo sua cabeça com a ajuda do cotovelo.
Ela cedeu, deitando-se nas cobertas, mas evitando o abraço
dele. — Eles, — Vhalla suspirou e fechou os olhos, preparando-se.
— Eles são suas memórias.
— O que? — Aldrik a estudou.
— Meus sonhos, pelo menos às vezes, são as suas memórias.
Não sei como, nem porquê, nem quando vão acontecer, mas
acontecem. — Ela engoliu em seco diante do seu silêncio.
— Por que você pensa isso? — Ele perguntou, ficando sério.
— Porque não há nenhuma razão para que eu sonhe com algo
parecido com o que vejo, — ela sussurrou.
— Sonhos são estranhos, Vhalla. Ninguém sabe por que a gente
sonha com determinadas coisas. — Aldrik deitou-se novamente.
— Não, — ela retrucou abruptamente; ele não estava a levando
tão a sério quanto ela queria que estivesse. Vhalla recordou um
sonho vívido anterior. — O homem que esfaqueou você era da
guarda do seu irmão, ele era Ocidental e o filho dele estava na
cidade que você atacou.
Os olhos de Aldrik se arregalaram. — Baldair te contou isso?
— Não! — Vhalla lutou para impedir que sua cabeça se
transformasse em uma confusão emocional. — Aldrik, eles são os
meus sonhos! Você estava em um jardim, no Oeste, com a escultura
de uma mulher em um obelisco e um sol de ouro e rubi. Havia um
homem lá que disse para você - dentre todas as pessoas - parar de
torcer os dedos.
— O túmulo da minha mãe. — Os lábios de Aldrik mal se
moveram. De repente, seus olhos ardiam com uma intensidade
sombria e ele a agarrou pelo ombro. — O quê mais? — Ele exigiu.
— O que mais você viu? — Os dedos dele cravaram na pele dela.
Ela lutou para se lembrar de qualquer outra coisa além de seu
sonho mais recente. — Você no escuro, com outra mulher...
— Mãe acima... — Ele abaixou a cabeça, com vergonha.
— E, quan-quando Egmun fez você… — Vhalla lutou para
encontrar palavras, ainda se recuperando da experiência.
— Quando ele o quê? — Os dentes de Aldrik estavam cerrados.
— Quando ele o quê?
Pela primeira vez, Vhalla sentiu uma pequena pontada de medo
diante das mãos trêmulas dele. — Quan-quando ele fez você matar
aquele homem — sussurrou Vhalla, os lábios quase imóveis.
Aldrik olhou para ela. — Isso é tudo? O que você sabe? Diga-
me, Vhalla, e não minta para mim. — Sua voz era áspera e sem
compaixão.
— Eu nunca menti para você!
— Claro que não, só vasculhou na minha cabeça, — ele se
enfureceu.
— Como você ousa! — Vhalla se libertou do agarre dele,
ofendida por suas suposições. — Eu acabei de perceber isso. Foi só
agora, nessa manhã, que eu fui capaz de me separar o suficiente de
você nas lembranças para perceber. — Ela viu a percepção desses
fatos acalmar a raiva dele um pouco.
— Isso foi tudo o que você viu? — Ele repetiu com mais calma.
— Desse sonho? Sim — ela suspirou. — Eu não sei nem onde
aconteceu. Estava tudo escuro.
O príncipe sentou-se e levou a testa à palma da mão com um
suspiro pesado.
— Aldrik, — ela sussurrou. — Teve outro...
— Deuses, o que? — Ele suspirou. — Vhalla, — ele insistiu
suavemente.
Vhalla mordeu o lábio. Ela não tinha certeza de como dizer as
palavras. Algo sobre tudo o que foi dito, o sonho recente dela, a
opinião negativa dele sobre si mesmo, colocou essa lembrança
singular em primeiro plano em sua mente. Vhalla sentou-se e pegou
a mão dele gentilmente nas suas, levando-a aos lábios primeiro num
gesto de conforto. Ele a olhou, uma mistura de dor, vergonha e raiva
franzindo sua testa. Ela suspirou e virou a mão, para que o interior
de seu pulso ficasse voltado para cima. Com a mão livre, ela
colocou o dedo indicador logo abaixo da palma, passando-o pelo
antebraço dele. A ponta de seu dedo encontrou a manga da blusa e
a empurrou para cima, revelando o fantasma de uma cicatriz que ela
sabia que estaria ali. Era tão fraca que, na pele pálida dele, era
quase invisível; mas ela sabia onde procurar. Vhalla trouxe seu olhar
lentamente para o dele.
O rosto de Aldrik foi drenado de todas as outras emoções exceto
o horror, à medida que seus lábios se separavam. Vhalla prendeu a
respiração, deixando que o choque o atingisse em silêncio. Ele
arrancou a mão dos dedos dela, como se a garota tivesse realmente
cortado a extensão de seu antebraço. Vhalla só podia olhá-lo com
tristeza, antes dos olhos dele a observarem por tempo suficiente
para que fosse forçada a desviar sua atenção.
Eles se sentaram de frente um para o outro na cama enquanto o
silêncio se arrastava pela eternidade. A respiração dele estava
agitada, e Aldrik apertou o braço que ela tocara como se sentisse
dor. Vhalla não conseguiu olhá-lo enquanto esperava o veredicto.
— Eu nunca quis violar você assim, — disse fracamente.
Intencional ou não, o fato era que ela se forçou nos espaços mais
privados dele, roubando coisas que não foram dadas livremente.
Aldrik não disse nada; ele continuou tentando controlar a
respiração enquanto olhava fixamente para ela. Vhalla sentiu o
poder irradiando dele; o príncipe estava bravo, magoado, e isso a
fez se sentir ainda mais horrível.
— Eu nunca quis. — Ela tentou explicar: — Eu nunca teria feito
alg...
— Claro que não, — ele cuspiu. — Quem iria querer ver as
coisas doentias e deturpadas que se escondem na minha cabeça?
Apenas uma pessoa neste mundo deveria merecer suportar isso. —
Essa frase trouxe seus olhos de volta para ele.
— Aldrik, não diga isso, — Vhalla sussurrou suavemente,
quebrando sob a raiva no olhar dele quando percebeu que a mesma
não era realmente dirigida à ela.
— Ah? — Ele riu secamente. — Como você pode pensar assim?
Você sabe o que há aqui dentro agora. O que é pior, você já viveu a
coisa toda. Diga-me, Vhalla, qual a sensação de descobrir que seu
príncipe é um covarde? Que é um fraco? Que é um medroso? Que
é cruel? Que é...
— Humano, — disse ela com firmeza, interrompendo-o. Aldrik
congelou. — Aldrik, eu não sei o por que... — Ela pegou a mão dele
na sua novamente, olhando para o braço do príncipe.
— Eu não vou te contar, — disse ele de modo afiado. Vhalla deu
um pulo, assustada, porque dificilmente teria coragem de perguntar.
— Droga. — Ele ficou de pé, andando de um lado pro outro no
quarto. — Mesmo que eu não conte, toda vez que você dorme é
uma roleta russa para ver se você descobrirá. — Ele cuspiu uma
série de palavrões.
Vhalla agarrou o cobertor com força; ela nunca o ouvira falar
esse tipo de vulgaridade. — Eu não diria nada para....
— Nem o meu irmão sabe, Vhalla. — Ele se virou para ela. —
Nem mesmo Larel sabe, e ela é a pessoa mais próxima que já tive
de chamar de uma amiga de verdade. Tentei contar a ela uma vez e
as coisas acabaram ficando horríveis. — Ele suspirou e esfregou os
olhos com as palmas das mãos.
Vhalla pensava em Aldrik como uma das pessoas mais fortes
que conhecia. Vê-lo tão perto de seu ponto de ruptura a fez ficar de
pé.
— Acabe com a Ligação.
Ele fez uma careta, balançou a cabeça e beliscou a ponte do
nariz.
— Essa coisa só começou depois da Ligação. — Ela implorou:
— Aldrik, por favor, eu não quero te machucar. Quero que você
feche o que foi aberto.
— E eu quero que você sobreviva a esta guerra! — Ele quase
gritou. Vhalla piscou quando as palavras dele ardiam nos cantos de
seus olhos. Mesmo assim, ele ainda assim estava preocupado com
o bem-estar dela. Mesmo quando estava sofrendo muito, mesmo
quando ela havia roubado suas informações mais íntimas, ele se
recusou a ter seu próprio alívio para o bem dela.
— Mãe Sol, mulher, — Aldrik gemeu. Ele atravessou o quarto e
ficou diante de Vhalla, liberando sua tensão com um suspiro. Lenta
e suavemente, Aldrik enxugou as bochechas dela. — Porque você
está chorando?
Vhalla soluçou. — Porque acho que você é a pessoa mais
incrível que eu já conheci.
— Não sou. Se tivesse sido alguém que não fosse você, eu
provavelmente teria matado a pessoa no mesmo segundo e
queimado o corpo até que não restasse nada além de cinzas —
Aldrik praguejou sombriamente.
Ela sabia que não deveria, mas só de ouvir isso dessa maneira
fez com que um pequeno sorriso surgisse em seus lábios.
Aldrik suspirou. — Eu não sei se algum dia vou estar disposto a
falar sobre essas coisas.
— Tudo bem.
— Diga-me, de agora em diante, e não importa o que seja. O
que quer que você veja, eu preciso saber — ele disse gravemente.
— Eu prometo. — Ela assentiu, apreensiva com o que ele estava
trancado em suas memórias que o fazia ter tanto medo.
Aldrik suspirou e se afastou. — Vhalla, preciso de um tempo. —
Ele esfregou os olhos, cansado. — Entendo que você não escolheu
isso. — Ele engoliu em seco. — E-Eu não estou bravo com você por
isso. Não estou te culpando. Mas, isso... isso, deixar alguém se
aproximar já é algo muito além do que estou acostumado.
— Eu não percebi. — Vhalla esfregou os olhos, abaixando a
cabeça.
Aldrik ergueu seu queixo, chamando sua atenção. — É bom.
Tem sido mais do que bom. — Ele balançou a cabeça. — Eu não
consigo nem... por em palavras. Isso, você e eu, ser empurrado
para fora do inferno pessoal que construí para mim mesmo, tem
sido bom. Me senti mais como um homem nos últimos meses,
semanas, nos últimos dias estando com você, do que me senti em
anos. Como se pudesse apreciar as coisas sem… culpa. Bom não é
nem a palavra certa, porque não chega nem perto. Você me permitiu
ser a pessoa que eu sempre desejei ser e eu...
— Entendo. — Vhalla poupou-lhe de ter que explicar. — Vou
esperar, leve o tempo que precisar.
— Eu só preciso realmente entender como é ter alguém - alguém
em quem eu confie. — Aldrik evitou o olhar dela, fazendo uma
carranca para si mesmo. — Alguém que conhece os meus segredos
mais sombrios e que não está querendo algo ou tentando usar isso
contra mim.
Vhalla assentiu, respirando fundo para reunir coragem. Ela
pressionou as mãos contra os olhos brevemente para conter mais
lágrimas de dor e frustração. Intencional ou não, ela o machucara e
isso moeu seu coração até que o mesmo virasse pó. E agora tinha
que deixá-lo a pedido dele; mesmo que o príncipe precisasse de
tempo, deixá-lo sozinho não a agradava.
O corpo de Aldrik estava curvado e seus olhos estavam
sombrios quando ele a conduziu pela passagem. Havia uma
resignação dolorosa entre eles com a supressão de algo que
acabara de começar a florescer. Poderia estar interrompido por
agora, mas Vhalla jurou que não deixaria que a chama que ardia
entre eles fosse extinta.
Como se estivesse lendo sua mente, Aldrik se virou. —
Obrigado.
— Pelo quê? — Ela piscou para ele.
— Por não me abandonar depois que você... teve que vivenciar
tudo isso. — Aldrik esfregou o antebraço.
Vhalla se perguntou se ele percebia que estava fazendo isso. —
Eu posso não entender tudo, — ela sussurrou, corajosamente
dando um passo para mais perto dele. — Mas quem você foi o
tornou quem você é agora. Eu queria que você nunca tivesse
sofrido. Mas vou aceitar o passado de bom grado se puder
compartilhar o presente.
Ela viu o começo de um sorriso que ele abandonou rapidamente.
Aldrik a puxou para um abraço apertado, e ela ouviu a respiração
dele tremer. Antes que o príncipe pudesse perder a compostura, ele
se virou e abriu a porta secreta.
— Volte ao meio-dia. Meu pai estará esperando você nesse
horário. — Sua voz estava distante.
— Vejo você mais tarde, então, — disse Vhalla, esperançosa.
Mas a porta já tinha se fechado.
Larel e Fritz estavam jogando Carcivi quando Vhalla
inconscientemente entrou tropeçando no andar de baixo da
estalagem. Ela deu uma olhada para os dois, apenas reconhecendo
que eles estavam lá, antes de arrastar os pés em direção às
escadas. Uma cadeira raspou contra o chão.
— Nós terminaremos mais tarde, — Vhalla ouviu Larel dizendo.
A mulher rapidamente estava nos seus calcanhares.
— Larel, — Vhalla sussurrou fracamente.
— O que foi? O que há de errado? — Larel apoiou as mãos
levemente nos ombros trêmulos de Vhalla.
— Eu o magoei, Larel... — A fraqueza irrompeu dentro dela, e
Vhalla contou com o apoio da outra mulher mais uma vez para fazê-
la se recompor a tempo de encarar o Imperador.
V ABRIU SEUS olhos e encarou os rostos atordoados dos membros
da realeza, lordes e ladies. A única pessoa no cômodo que não
estava impressionada era Aldrik. Apesar de sua demonstração ter
sido melhor do que esperava, o príncipe manteve seu olhar retraído
e ambivalente. Ela sabia que ele não podia mostrar apoio à ela na
frente dos nobres, especialmente depois de ouvir Lorde Ophain falar
sobre o quão descuidado tinha sido com os sentimentos que já
mostrou, mas havia um muro muito maior entre eles do que apenas
a atuação. Seja por causa da Ligação, do Vínculo, do tempo que
passaram juntos ou uma combinação de tudo isso, Aldrik não estava
conseguindo mais esconder seus sentimentos dela, e Vhalla podia
ver a mágoa e o medo nas profundezas de seus olhos toda vez que
ele olhava em sua direção.
Todos se afastaram enquanto ela levantava da mobília macia e
confortável. Ninguém disse nada. Os majores que haviam sido
reunidos - os mais altos na linha de comando do Imperador -
olharam dela para o seu líder, reservando todo o seu julgamento até
ouvir a avaliação dele.
O homem mais poderoso do mundo se inclinou para frente, seus
olhos brilhando. — Bem, Senhorita Yarl, isso foi certamente
impressionante.
— Obrigada, meu senhor. — Vhalla baixou os olhos em respeito.
— Essa demonstração é replicável numa quantidade infinita de
vezes? — O Imperador virou-se para seu filho mais velho.
— Contanto que a Via mágica dela não esteja bloqueada de
alguma forma, como por exaustão ou Erradicação, — Aldrik afirmou
com um aceno de cabeça.
O Imperador acariciou a barba e virou-se para os nobres
reunidos. — Meu filho já formulou alguns planos sobre como
poderemos usar esse poder efetivamente no Norte. No entanto,
gostaria que cada um de vocês montasse sua própria estratégia
antes de chegarmos à fronteira Nortenha.
Eles falavam como se ela não estivesse lá. Vhalla se remexeu
em seu assento, abrindo e fechando as mãos no colo. Ela era uma
ferramenta para essas pessoas, projetada para ser usada da
maneira que eles quisessem.
Um par de olhos chamou sua atenção. A única pessoa focada
nela era o príncipe mais jovem. Ela encontrou o olhar do Príncipe
Baldair e ficou surpresa ao ver simpatia ali. Vhalla desviou os olhos.
Ela não queria a pena dele.
— Muito bem, isso é suficiente por hoje. Você está dispensada,
Senhorita Yarl. — O Imperador acenou com a mão em sua direção.
— Obrigada, meus lordes e ladies. — Vhalla ficou de pé,
mantendo os olhos baixos.
— Ah, mais uma coisa — interveio Lorde Ophain.
Vhalla procurou-o com um olhar interrogativo. O que ele estava
fazendo?
— Esta é a primeira Andarilha do Vento no Oeste em décadas.
Os outros nobres estavam confusos; nem Aldrik parecia
entender por que seu tio estava se aproximando dela.
— Vhalla Yarl — começou Lorde Ophain, olhando-a. — Não
posso corrigir os erros dos meus antepassados. Não posso
expurgar o sangue dos Andarilhos do Vento das pedras do meu
castelo. O que os Cavaleiros de Jadar fizeram com seus irmãos
nunca poderá ser remediado.
Vhalla mudou seu peso de um pé para o outro. Falar sobre o
genocídio de seu povo depois de aprender mais sobre as razões por
trás dele causava uma sensação desconfortável em suas entranhas,
que formigou até os dedos dos pés. Era algo que ela nem sequer
gostaria que fosse mencionado.
— Mas o que posso fazer é ser um catalisador para um futuro de
esperança, paz e prosperidade entre feiticeiros de todos os tipos e
os Comuns. Mostrar que o valor que vejo em você vai muito além de
sua magia.
Ela se perguntou se ele estava sendo sincero. Mas no segundo
em que os olhos do Lorde Ophain dispararam para os do Imperador,
ela não teve dúvida. Essa foi uma demonstração, uma na qual
Vhalla não tinha certeza se estava preparada para se envolver ou
sequer entender completamente as implicações.
— Portanto, é uma honra conceder-lhe uma Proclamação
Escarlate.
Murmúrios encheram o ar no momento em que as palavras
deixaram os lábios do lorde Ocidental. Vhalla se remexeu, incerta.
Até Aldrik exibia uma expressão muda de choque no rosto. Alguns
nobres ficaram confusos, mas os outros Ocidentais foram rápidos
em entender a constatação.
Lorde Ophain concentrou-se apenas em Vhalla, enquanto tirava
uma fita escarlate do bolso interno do casaco. Tinha pouco mais da
metade do comprimento do seu antebraço e tinha três dedos de
largura. Ele a entregou a ela, e Vhalla instantaneamente passou os
dedos sobre a seda. Bordado nela, haviam símbolos Ocidentais em
fios de prata, e no final havia um selo de nanquim retratando a fênix
flamejante do Oeste.
Vhalla olhou de volta para ele interrogativamente.
— Na verdade, este é um título vazio. — Lorde Ophain
respondeu sem que ela tivesse que perguntar diretamente. Com um
aceno de cabeça na direção do Imperador, ele continuou: —
Somente o Imperador pode elevar os lordes e ladies ao status de
nobreza. Mas o Oeste mantém suas tradições e honra os costumes
antigos. Qualquer um que consiga ler essas palavras saberá que
Lady Vhalla Yarl é considerada Duquesa do Oeste por Ordem do
Lorde Ophain Ci'Dan.
Vhalla olhou com admiração. Título vazio ou não, isso era uma
estima maior do que jamais contemplara em toda sua vida. Ela
cometeu o erro de olhar para o Imperador, e resistiu à vontade de
empurrar o tecido de volta para as mãos do Lorde Ophain. Os olhos
do Imperador Solaris pareciam feitos de aço. Ela agarrou a fita com
mais força. Isso não significava nada, era um símbolo de boa fé,
uma tentativa de corrigir os erros do passado. Não representava
nenhuma ameaça de mudança em seu status atual. Certamente o
Imperador sabia disso?
— Você me honra, meu senhor — murmurou Vhalla, baixando os
olhos.
— Se você já terminou, Lorde Ophain — disse o Imperador
friamente — A Senhorita Yarl tem outros lugares em que precisa
estar.
Vhalla não tinha, mas estava ansiosa para sair da sala
repentinamente opressiva. Ela fez uma última reverência e notou
que, de repente, a nobreza Ocidental deu a ela um pequeno aceno
de cabeça em resposta. Todos, exceto um; um major de bigode,
quem Vhalla nunca viu antes da demonstração, que a encarava com
um desprezo mal disfarçado.
Foi quase impossível sair daquele cômodo rápido o suficiente, e
praticamente bateu em retirada de volta para sua estalagem.
Larel e Fritz estavam esperando por ela quando voltou. Eles
descansavam em uma área de estar à esquerda do hall de entrada
do saguão. Daniel e Craig ocupavam o tabuleiro de Carcivi à direita.
Todos eles a olharam com interesse no momento em que passou
pelas portas.
— Como foi? — Fritz foi o primeiro a perguntar.
— Bem, — Vhalla segurou a fita num agarre que deixava os nós
de seus dedos brancos. — Recebi uma Proclamação Escarlate.
— Uma o quê? — Perguntou Larel.
Daniel e Craig pareciam igualmente perdidos.
— Uma Proclamação Escarlate? — Fritz estava de pé, correndo
em sua direção. — Eu não sabia que o Oeste ainda concedia essas.
— O que é isso? — Larel perguntou, atravessando o cômodo
para chegar até Vhalla e Fritz.
— Proclamações Escarlates eram como os velhos reis do Oeste
construíam sua corte. Eles elevavam as pessoas a um status nobre
com elas, — explicou Fritz.
— Então, você é uma nobre agora? — Daniel foi para dar uma
olhada.
— Na verdade, não — Vhalla lembrou o que Lorde Ophain disse.
— O Imperador aboliu a Corte Ocidental, — continuou Fritz. —
Quando Mhashan foi absorvida pelo Império e se tornou apenas 'o
Oeste', o Imperador não queria uma rebelião das pessoas que eram
da velha nobreza. Então ele formou a Corte Imperial como uma
maneira de apaziguá-los, dando aos antigos nobres novos títulos
Sulistas e elevando seus próprios lordes e ladies para que se
sentassem entre eles.
— Ele assumiu o controle sobre o poder deles, então? — Craig
esfregou o queixo.
Fritz assentiu. — E, de fato, absorveu as fortunas das famílias
mais antigas do Oeste. Mas por que você conseguiu uma dessas?
— Lord Ophain disse que foi um gesto de boa fé, por conta de
Os Tempos Incendiários, — resumiu Vhalla.
A compreensão afundou no rosto de Fritz.
— Os Tempos Incendiários? — Daniel perguntou.
Isso lançou Fritz em uma outra aula de história. Uma que, dado o
interesse de Daniel nos Andarilhos do Vento, durou muito mais
tempo. Vhalla ouviu em silêncio, ainda digerindo a tarde.
O Imperador parecia satisfeito com a demonstração dela... mas
os olhos dele. Ela suprimiu um arrepio. Os olhos dele estavam
vazios de toda e qualquer emoção cada vez que caíam sobre ela.
Quanto mais interações tinha com o Imperador Solaris, menos
dúvida Vhalla tinha de que seu lugar sob ele nunca mudaria.
— Então, eles só, tipo, mataram todos eles? — Craig recostou-
se em sua cadeira, chocado.
— Aham. — Fritz assentiu. — E Vhal é a primeira desde então.
Ela respondeu ao sorriso orgulhoso do amigo com um curvar
cansado de lábios.
— Por mais... horrível que isso seja, não podemos mudar o que
aconteceu, e acho que deveríamos celebrar a proclamação de
Vhalla. — Daniel se inclin.
— Não sei se aguento mais uma noite de comemoração, —
disse Larel desconfortavelmente.
— Algo mais calmo. Há um delicioso restaurante Ocidental não
muito longe daqui. — Daniel ficou de pé. — Eu adoraria bancar a
Andarilha do Vento e seus amigos.
Daniel estendeu a mão para ela e Vhalla encarou o membro. Ela
desejou poder sentir a alegria dele. Ela queria de volta a animação
que tinha sido evocada nela em sua primeira noite nas
Encruzilhadas; animação, apesar do mar de jogos de poder e
manipulação no qual ela agora se via à deriva. Vhalla pegou a mão
de Daniel, permitindo que ele a ajudasse a se levantar. Ficar
sentada remoendo as coisas não ajudaria a encontrar aquela alegria
novamente, e Daniel havia sido um catalisador para aquela
sensação antes - talvez ele pudesse convocá-la novamente.
As Encruzilhadas não decepcionavam. A noite estava quente,
interrompida por uma brisa fresca que flutuava pelas ruas e becos
empoeirados. Cores estavam espalhadas por todos os edifícios nas
formas de murais brilhantes, tapeçarias e toldos. Música e risos
podiam ser ouvidos por toda parte, em harmonia com os salões de
aposta e os espaços de prazer - era um bom lugar para esquecer
quem você era, decidiu Vhalla.
O restaurante era mais agradável do que Vhalla esperava, e ela
ficou instantaneamente impressionada com o menu e o conjunto de
mesa. Fritz parecia igualmente perdido e Larel estava
surpreendentemente confortável. Vhalla só podia suspeitar que
crescer como amiga do Príncipe Herdeiro deu à mulher Ocidental
noções sobre etiqueta que ela não teria de outra maneira.
Vhalla recostou-se na cadeira, tomando sua bebida entre os
diferentes pratos. Ela estava à beira de ficar bêbada, o que parecia
muito convidativo e, ao mesmo tempo em que não queria instigar
dores de cabeça na manhã seguinte, ela também queria aliviar as
tensões do dia. Daniel também se inclinou para trás, permitindo que
a conversa na mesa continuasse diante deles.
— O que você acha da comida Ocidental? — Ele perguntou
baixinho o suficiente para ser ouvido apenas por ela.
Vhalla foi arrancada de seus pensamentos anteriores. — O que?
Ah, é deliciosa.
— Também acho, — ele concordou. — Eu não sabia o que
esperar na primeira vez que experimentei.
— Quando foi isso? — Ela perguntou.
— Minha primeira marcha. — Ele tomou um gole do copo,
pensativo. — Foi a primeira vez que vim ao Oeste. Minha família
nunca foi de viajar muito.
— Como você acabou no palácio?
— Eu me alistei. — Daniel deu de ombros e acrescentou: —
Pensei que seria uma chance para melhorar de vida.
— E não foi? — Ela ouviu indícios de decepção no tom dele.
— Em teoria, sim, suponho. Sou um lorde agora, afinal de
contas. — Ele tinha o olhar de alguém que estava vendo as
sombras de seu passado, e não o esplendor brilhante que o cercava
no presente. — Mas à noite eu fico me perguntando, se eu nunca
tivesse deixado o Oriente, se ainda teria ela.
Seu tom de voz fez o peito de Vhalla doer. — Não pense desse
jeito. — Vhalla mudou de posição na cadeira para poder olhar
melhor seu colega Oriental. Daniel a considerou pensativo, e sua
atenção completa era um fardo muito pesado. Vhalla engoliu em
seco, esperando encontrar a coisa certa a dizer para apoiar o
amigo. — E-Eu quase erradiquei minha magia.
— Erradicar?
— Me livrar dela. — Daniel a encarou chocado e boquiaberto,
como se a ideia fosse incompreensível para ele. — Fiquei assustada
quando descobri que era uma feiticeira. E então, na Noite de Fogo e
Vento, pensei - pensei que tudo era culpa da minha magia. — A
comida foi colocada na frente deles, mas nenhum dos dois fez
nenhum movimento em direção à ela. — Meu amigo morreu por
causa disso.
— Vhalla... — ele disse, com um tom compreensivo.
Ela balançou a cabeça, dispensando a simpatia dele. — Não
posso voltar atrás e você também não. Nós dois temos que seguir
em frente e encontrar a beleza que pudermos no mundo exatamente
como ele é.
Daniel a olhou com veneração. O olhar dele aqueceu suas
bochechas, e Vhalla rapidamente colocou o copo na mesa,
mergulhando no prato diante de si. Ela sentiu o peso de um
segundo olhar em seus ombros, e Vhalla olhou para cima, surpresa
ao encontrar os olhos pacientes de Larel. A mulher Ocidental sorriu
gentilmente para Vhalla.
Quando terminaram o jantar e retornaram ao hotel, Larel a
seguiu até o quarto, após o banho. Vhalla estava sentada na cama,
a outra mulher atrás dela, penteando seus cabelos molhados com
os dedos mágicos. — Você falou sério quando disse aquilo no
jantar?
— Para Daniel? — A pergunta era inútil, Vhalla sabia do que
Larel estava falando.
Larel murmurou suavemente atrás dela em confirmação,
enquanto continuava a secar os cabelos de Vhalla.
— Falei. — Vhalla assentiu.
— Fico feliz. — Larel a puxou para um abraço apertado. — Eu
tenho andado preocupada com você.
— Sério? — Era uma pergunta idiota e Vhalla sabia disso. Era
essa mulher que a abraçava diante dos calafrios e tremores. Foi
Larel quem juntou seus cacos e a remendou depois da Noite de
Fogo e Vento. Ela conhecia cada pedaço irregular e afiado que
ainda cortava o coração de Vhalla.
— Você não é alguém que deva viver na escuridão ou na
tristeza. — Larel reclinou-se na cama, convidando Vhalla a fazer o
mesmo. — Você é uma luz que pode brilhar mais do que o próprio
sol.
— Isso soa como traição, — brincou Vhalla.
— Não deixa de ser verdade. — Larel se inclinou para frente e
pressionou a testa contra a de Vhalla por um breve momento. —
Você tem algo em você, Vhalla, algo que a maioria nunca vai
conseguir ter ou que, se têm, perdem rapidamente. Mal posso
esperar para ver quando se der conta disso.
— Não sou nada... não sou nem eu mesma, sou propriedade da
coroa. — Quanto mais ela dizia, mais profundamente essa noção se
enraizava nela. Vhalla precisava aceitar essa verdade para
sobreviver à guerra.
Como se sentisse esse fato, Larel não objetou imediatamente. —
Você é, por enquanto. Mas em breve estará de volta à capital
estudando e fazendo grandes coisas.
— Mas eu não posso...
— Ah, pare de discutir. — Larel riu levemente, passando os
dedos pelos cabelos de Vhalla amorosamente. — Você vai perceber
isso mais cedo ou mais tarde.
Vhalla fechou os olhos. — E se eu não conseguir?
— Você vai.
— Você ainda estará lá para me ajudar? Mesmo que eu não
consiga? — Vhalla perguntou suavemente, sentindo-se como uma
criança que ainda precisava de seu cobertor para enfrentar os
monstros que espreitavam na noite.
— Você sabe que sim, — prometeu Larel.
— Obrigada, — sussurrou Vhalla. — Boa noite, Larel.
— Boa noite, Vhalla. — Sua amiga respondeu, segurando
firmemente a mão de Vhalla enquanto dormia.
A porta se abriu silenciosamente e o suspiro suave das
dobradiças permaneceu nos ouvidos de Vhalla. Fritz ficou fora com
Craig e Daniel depois do restaurante. Vhalla se perguntou o quão
bêbado ele devia estar para entrar novamente rastejando em seu
quarto. Ela rolou, pressionando o rosto no travesseiro.
Os passos mal emitiram som. Seus ouvidos captaram mais o
movimento do ar do que o barulho no chão. Havia algo errado, mas
sua mente cheia de sono não conseguia identificar rapidamente o
que era. Algo sobre os passos…
Passos. Dois conjuntos de passos.
Vhalla bocejou, levando a palma da mão aos olhos. Ela esperava
ver Craig e Daniel, ou alguma combinação deles com Fritz. Mas
quando Vhalla piscou, afastando o sono dos olhos, a figura de pé ao
lado da cama era um pesadelo que ganhava vida.
Ela reconheceu o Nortenho que a olhava de cima. Vhalla
lembrou-se de uma noite de fogo, uma noite correndo pelas ruas em
chamas com um príncipe em seu encalço. Lembrou-se de ter sido
atacada, mas também de advertir o príncipe que, apesar de haver
quatro assassinos, dois ainda estavam faltando.
A luz da lua brilhava perversamente na lâmina ondulada que o
Nortenho ergueu. Vhalla olhou em um choque congelado.
Outra espada cortou o ar, e Vhalla se virou instintivamente em
direção ao som. A primeira lâmina cortou profundamente suas
costas, por pouco não a empalando devido ao seu movimento
repentino e imprevisível. A dor da arma cravando em sua carne nem
se registrou enquanto a mente de Vhalla tentava processar o que
estava ocorrendo.
Ela olhou para a lâmina de outro espadachim, mergulhada
diretamente no estômago de Larel. Sangue, negro como tinta na
escuridão, jorrava da ferida. Os olhos escuros de Larel foram
abertos abruptamente, em choque. Um barulho estrangulado e
gorgolejante acompanhou o rolar dos olhos de sua amiga enquanto
as órbitas dela se dirigiam para Vhalla, o sangue borbulhando em
sua boca aberta.
Vhalla gritou.
O GRITO QUE VHALLA deu soou mais animalesco do que humano.
Foi um som agudo, sem palavras, mas que expressava
perfeitamente a agonia que corria em suas veias por trás da
adrenalina. A espada foi retirada do estômago de Larel e o
assassino a ergueu no ar rapidamente, preparando-se para um
segundo ataque. A mulher atrás dela estava fazendo o mesmo.
Uma sensação singular tomou conta de Vhalla: o instinto de
sobrevivência. Ela se lançou em direção ao agressor à sua frente,
atravessando a cama e o corpo de sua amiga. A lâmina da
espadachim quase acertou um golpe fatal pela segunda vez,
cortando Vhalla profundamente na panturrilha enquanto ela estava
no meio de sua investida.
Vhalla caiu com o espadachim, mordendo e arranhando como
um animal raivoso. Um batimento cardíaco dominou seus sentidos,
e Vhalla permitiu que o conhecimento de combate de Aldrik
assumisse o controle. Ela queria saber de todos os jeitos horríveis
que ele pudesse conhecer para semear dor e torturar essas
criaturas vis.
Ela moveu uma de suas mãos, desarmando rapidamente o
homem. Ele era bem treinado e golpeou com a mão oposta, tirando
Vhalla de cima dele com um soco no rosto. Ela rolou, se
recuperando rapidamente apesar da dor lancinante na panturrilha.
A mulher já estava bem em cima dela, e Vhalla mal teve tempo
de acenar a mão no ar para desviar a lâmina no meio do balanço.
Esse movimento permitiu que o homem recuperasse sua arma, e
Vhalla foi forçada a se abaixar para evitar outro ataque. Ela estava
sem espaço de manobra e era superada em número no pequeno
quarto.
Vhalla correu para a porta, tendo que abri-la com os joelhos para
evitar a lâmina que afundou na madeira onde sua cabeça estivera
segundos antes. Vhalla disparou pelo corredor, os outros hóspedes
da estalagem abrindo as portas em confusão enquanto a Andarilha
do Vento corria escada abaixo no espaço estreito. Adrenalina era a
única coisa que a mantinha de pé.
A agressora soltou um grito de frustração, rapidamente ficando
nos calcanhares de Vhalla. — Morra, Demônio do Vento!
Vhalla virou-se para desviar de uma adaga lançada contra ela,
tropeçando pelos degraus que faltavam. As pessoas de hábito
noturno empoleirados no saguão foram rapidamente pressionados
contra as paredes externas enquanto a assassina Nortenha e a
Andarilha do Vento rolavam loucamente. Algumas dessas eram
soldados, que rapidamente buscaram por armas que não estavam
lá. Um deles se lançou para a frente, mesmo de mãos vazias,
apenas para ser assassinado pelo homem Nortenho.
Ela não teve tempo de considerar a morte do Sulista
desconhecido. Sua panturrilha queimava com o que Vhalla
suspeitava ser mais do que dor. Seus movimentos estavam ficando
fracos e lentos, apesar dos instintos de Aldrik permanecerem
afiados a cada pulsar de seu coração. Ela esbarrou em uma cadeira
e perdeu o equilíbrio. O espadachim ergueu a espada enquanto a
assassina se recuperava de uma rajada de vento que Vhalla havia
mandado em sua direção.
Uma mulher se atirou contra a lateral dele, desequilibrando o
Nortenho e fazendo sua lâmina girar em um amplo arco. Vhalla
encarou o par de olhos desconhecidos. — Corra! — Essa foi a
última palavra que a corajosa mulher disse conforme o Nortenho
mergulhava uma lâmina curva em sua garganta.
Vhalla não sabia de que adiantaria correr, mas ela correu
qualquer maneira, disparando pelas portas da estalagem e entrando
na praça. O exército estava desarmado e com a guarda baixa. Os
soldados ficaram gordos e preguiçosos por conta dos dias de paz e
relaxamento que as Encruzilhadas haviam proporcionado. Era tão
longe do Norte que todos assumiram muito erroneamente que
estavam seguros. Mesmo se eles estivessem armados, metade das
Encruzilhadas estava bêbada a essa hora da noite, de qualquer
modo.
Mas havia um aliado pronto e ao seu dispor. Vhalla sentiu o
vento e rapidamente o mandou em direção ao homem que corria
atrás dela. O golpe enviou o Nortenho rolando compulsivamente
para trás, a cabeça batendo e estalando com força contra a parede
da estalagem.
Ela esperava que isso fosse matá-lo, nocauteá-lo, pelo menos
atordoá-lo, mas o homem parecia ser feito de metal ou pedra, pois
ele apenas piscou e se levantou de novo. Vhalla deu um passo para
trás, enviando outra rajada de vento contra ele, mas foi igualmente
ineficaz. Ela já tinha matado essas pessoas antes - por que não
conseguia matá-los agora?
Um grito sanguinário chamou a atenção de Vhalla para a mulher
Nortenha que estava quase sobre ela. Vhalla estendeu a mão,
preparando-se para desviar o ataque. A dormência que vinha se
infiltrando por sua panturrilha se espalhou por seus dedos, e o vento
não ouviu seu chamado.
— Os olhos! — Uma voz gritou atrás dela.
Uma adaga feita de gelo azul se despedaçou no rosto da
assassina, errando por pouco sua bochecha. A distração deu à
Vhalla tempo o suficiente para rolar para fora do caminho de sua
lâmina. Vhalla se virou, sem fôlego, em direção à voz.
Fritz afastou a mão, outra adaga de gelo aparecendo entre seus
dedos. Ele jogou e errou novamente, fazendo com que Vhalla só
tivesse a opção de rolar impotente entre os golpes da espada.
Daniel atacou quando a mulher se lançou pela terceira vez. Ele
mostrava um comando impressionante sobre o próprio corpo à
medida que cada passo firme antecipava por pouco os movimentos
da assassina. Vhalla reconheceu a adaga que ele empunhava como
uma das que tinha comprado quando foram às compras. O soldado
a esteve usando sob a calça desde então.
O Oriental demonstrou como ganhou uma braçadeira de ouro
quando nem sequer piscou enquanto afundava a adaga até o punho
no olho da Nortenha. A mulher estremeceu, mas não soltou um pio
enquanto seu corpo caía frouxamente no chão, deslizando pela
lâmina de Daniel. Vhalla olhou para o corpo sem vida, mas não
encontrou simpatia em si. Em vez disso, ela voltou sua raiva para o
alvo restante.
O outro assassino, vendo-se em menor número contra o exército
que rapidamente se reunia com armas em punho, virou-se para
correr.
Vhalla tentou se levantar, estendendo a mão inutilmente. Seja
qual fosse o veneno que eles tivessem atado à lâmina, enviava
arrepios pela sua espinha que bloqueavam suas Vias. No entanto,
como se fosse convocado por seus dedos, um inferno surgiu,
fazendo o Nortenho cair para trás enquanto tentava evitar ir em
direção às chamas.
Ela se retorceu no chão, procurando pela origem do fogo. A
multidão se dispersou como ratos, temendo a luz ofuscante do fogo
que ardia dos punhos de Aldrik até seus cotovelos, queimando a
camisa amarrotada que ele usava. Seus olhos escuros estavam
ardentes com chamas e pura malícia. Vhalla não reconheceu o
homem diante dela como sendo o homem que havia a abraçado e
beijado um dia antes.
Este era o Senhor do Fogo..
O foco de Aldrik estava além dela, brincando com o Nortenho ao
fazer o assassino correr desesperadamente para evitar uma chama
mágica incrivelmente poderosa após a outra. Baldair estava logo
atrás do irmão, congelando quando observou a carnificina diante de
si. Vhalla empurrou as mãos contra o chão, tentando se erguer pelo
menos um pouco. Ela estava a salvo agora, e o batimento cardíaco
em seus ouvidos estava começando a desaparecer. Por trás dele,
se escondia uma agonia que ameaçava despedaçá-la.
Aldrik finalmente chegou até ela, e Vhalla viu os ombros dele
tremerem de raiva quando olhou para seu corpo mutilado e
machucado. — Lorde Taffl, Baldair, — Aldrik falou com Daniel e seu
irmão, mas seus olhos nunca se desviaram dela. — Capturem
aquele homem e traga-o aqui - vivo.
O príncipe se ajoelhou ao lado dela. — Vhalla, — ele sussurrou.
— Aldrik, — ela engasgou, as emoções a dominando. O rosto de
Vhalla se contorceu em agonia. — Aldrik, ela está, e...ela… eu, é
minha culpa, é minha culpa.
— Vhal... — Fritz tinha sido o único dos espectadores que se
amontoavam cada vez mais a se aproximar dos dois. Ele caiu de
joelhos também.
Vhalla pendurou a cabeça entre os ombros e chorou de luto.
— Mãe, não... — Fritz ofegou. Vhalla esperava que ele estivesse
olhando-a horrorizado. Mas ele olhava para um lugar além.
Ela seguiu o olhar do Sulista sobre seu ombro, passando por
onde Baldair e Daniel estavam arrastando o assassino subjugado
em direção a Aldrik. Seus olhos seguiram a trilha sangrenta que ela
deixou até a estalagem, que agora precisava de reparos onde ela
tinha batido um Nortenho de pele de pedra contra as paredes. Os
olhos de Vhalla caíram sobre uma pequena fileira de corpos que
estavam sendo alinhados diante da entrada. Havia o homem que
tinha sido cortado ao meio no abdômen, a mulher com o ferimento
no pescoço, outros dois que Vhalla nem se lembrava de terem caído
na briga e depois uma mulher Ocidental.
Vhalla se levantou, cambaleando, e Aldrik e Fritz estavam muito
entorpecidos para detê-la. Mancando e ignorando a dor, ela
começou a correr desajeitadamente. Daniel tentou agarrá-la quando
passou, mas suas mãos estavam muito ocupadas mantendo o
Nortenho sob controle.
Ela empurrou o homem que estava colocando o corpo de Larel
na linha dos falecidos, caindo ao lado de sua amiga. — Não, não,
não, não, não Larel. — Vhalla pressionou as palmas das mãos
contra o ferimento mortal da mulher, como se de alguma forma
pudesse curá-lo agora. — Você não pode, você não pode fazer isso
comigo!
Sua garganta estava crua de tanto gritar, mas os ouvidos de
Vhalla mal conseguiam captar qualquer som. Ela se inclinou para
frente, pressionando o rosto no ombro ainda quente de Larel,
agarrando-se à sombra de sua amiga. Era demais. Ela balançava
para frente e para trás com cada soluço. Era demais.
— Vhal, — Fritz colocou as mãos nos ombros dela. Vhalla não
se mexeu. — Você… você precisa tratar suas feridas.
— Não me toque! — Ela gritou, girando para fora de seu
alcance, pressionando-se mais perto de Larel.
— Vhal. — Ele a agarrou.
— Eu disse, não me toque! — Vhalla se retorceu, balançando
contra ele. Ela não tinha forças sequer para um ataque
minimamente decente, mas Fritz ainda recebeu os golpes, mesmo
com as bochechas manchadas de lágrimas. Soluços silenciosos
erguiam seus ombros.
Vhalla olhou para ele com um sentimento de perda absoluta.
— Traga a Andarilha do Vento. — A voz do Imperador cortou a
comoção crescente da praça. Seus olhos azuis gélidos encontraram
os dela.
Vhalla agarrou o braço de Larel com mais força. — Não, — ela
sussurrou.
— Vhal, você precisa ir — implorou Fritz, ajoelhando-se
rapidamente para bloquear a visão do Imperador da desobediência
dela.
— Não, — ela implorou para Fritz, balançando a cabeça. — Não
posso, não posso deixar Larel assim. Ela precisa de mim.
— Ela está morta, Vhalla. — As palavras cruéis de Fritz foram
como uma faca que cortou as últimas migalhas de esperança do
coração de Vhalla. — E você também vai estar se não atender ao
chamado do Imperador.
Fritz a puxou para cima e a conduziu na direção de seu
soberano.
— É minha culpa... é minha culpa... — Vhalla sussurrou,
repetindo o mantra de novo e de novo em sua cabeça.
— O que aconteceu aqui? — O Imperador exigiu quando ela se
aproximou.
Os olhos de todo mundo estavam sobre ela. Vhalla engoliu em
seco e virou-se para o Nortenho. — Ele era um malabarista, no
festival.
— Fale claramente, garota! — O Imperador deu um passo à
frente.
Aldrik deu um passo à frente também, colocando-se
protetoramente entre seu pai e Vhalla.
— As pessoas que atacaram na Noite de Fogo e Vento, eles
eram os malabaristas do festival, aqueles que vieram para a capital.
Haviam dois faltando naquele ataque. — A voz de Vhalla ecoou
inutilmente em seus ouvidos.
— E nosso ataque foi um sucesso! Não tínhamos ideia de que o
Imperador Solaris estava cultivando Demônios do Vento, — o
homem cuspiu. Seu sotaque era forte e pesado, e teria sido difícil
entender se sua entonação já não tivesse sido gravada nos ouvidos
de Vhalla por conta daquela noite fatídica há muito tempo.
— Você fala bem vigorosamente para um homem que está
prestes a morrer, — disse o Imperador calmamente.
— Um guerreiro não teme à morte, — respondeu o homem,
arrogante.
— E quanto a morrer com a vergonha de falhar ao matar o
responsável pelo abate de seus camaradas? — O Imperador
inclinou a cabeça em direção a Vhalla.
Isso desencadeou a fúria do homem, e de repente ele ficou
violento contra o agarre de Craig, Daniel e Baldair, que lutavam para
mantê-lo de joelhos.
— Solte-o, — ordenou o Imperador.
— Pai... — Baldair começou a dizer em choque.
— Eu disse, solte-o! — O Imperador Solaris não estava para
brincadeiras, e eles libertaram o Nortenho.
O assassino saltou para frente como um velocista. Mas ele não
foi em direção ao homem mais poderoso de todos os reinos, o
homem que matara seu povo e invadira sua terra natal. O Nortenho
se lançou para Vhalla.
A garota nem sequer vacilou quando as chamas irromperam
bem diante dela. Elas chamuscaram suas roupas de dormir
esfarrapadas e lamberam seu rosto. Mas não a queimaram.
O homem parecia resistir ao calor também, mas apenas por um
breve momento, até ser dominado magicamente e começar a se
contorcer e a rolar no chão. Sua carne borbulhava e queimava.
O Nortenho começou a falar, a voz rouca e áspera, colocando-se
em uma posição sentada. — Tiberum Solaris, o poderoso
Imperador, o escolhido do sol, se escondendo atrás de seu filho e
uma criança.
— Não sou uma criança, — avisou Vhalla. Seu sussurro foi
ouvido por todos, e até mesmo o Imperador não disse nada.
— Você acha que os levará à vitória? — O homem zombou dela,
seu rosto uma bagunça de carne mutilada. — Enviamos pássaros,
relatamos à todos, temos amigos aqui no Oeste que também não
morrem de amores por você. Cada sentinela; cada soldado; cada
homem, mulher e criança apontará suas flechas, suas lâminas, suas
pedras, seus machados, seus punhos, suas picaretas e seus
venenos para você. Você não faz ideia do nosso poder, e você
morrerá.
— Daniel, me dê sua adaga, — exigiu Vhalla suavemente.
— Vhalla...
— Me dê! — Ela desviou os olhos do Nortenho, sua dor se
manifestando como raiva quente.
Daniel olhou desesperadamente para Baldair, que se voltou para
o Imperador. O membro da realeza considerou o pedido apenas por
um curto momento, antes de acenar para o Guarda Dourado. Daniel
inverteu a arma, agarrando cuidadosamente a lâmina para estender
o punho na direção dela.
O metal do cabo a fez se sentir do mesmo modo que sua magia
na primeira vez em que abriu a Via. Foi um pico de poder. Mas isso
era mais sombrio, de natureza mais distorcida e primordial. Vhalla
mancou para a frente, em direção ao homem incapacitado, sua
panturrilha começando a protestar contra o seu peso. Suas roupas
estavam ensopadas de sangue, tanto seu quanto dos outros, e seus
ombros estavam pesados com a culpa.
O Nortenho apertou os olhos para ela, com ódio e raiva. Pelo
mais breve dos momentos, Vhalla se perguntou se ele teria amado
aqueles que ela matou na Noite de Fogo e Vento - da mesma
maneira que ela tinha amado Larel. Era como olhar para um reflexo,
e ela apenas calhou de estar do lado sortudo do espelho.
O homem rosnou e se lançou para frente. Vhalla avançou para
encontrá-lo. Ela não precisava da Ligação; ela faria isso sozinha.
Vhalla lembrou-se do que Daniel havia dito ao sentir a resistência da
lâmina afundar diretamente nos olhos do homem, incorporando-se
ao crânio dele.
Não houve outro som além do barulho do vento enquanto Vhalla
permanecia congelada no tempo, encarando o olho arregalado
remanescente e o rosto sem vida do homem que tinha matado. Não
havia sido raiva cega, não foi uma explosão de poder e não era uma
memória que sua mente mais tarde iria bloquear. Foi o fim
deliberado de uma vida - e foi terrivelmente simples.
Vhalla de repente sentia-se doente, e balançou enquanto todo o
seu corpo tremia. Ela se sentia vazia e ao mesmo tempo tão cheia
de agonia que tinha certeza de que iria se partir em mil pedaços e
morrer.
Sua panturrilha cedeu com o fim de sua determinação, e Vhalla
cambaleou, caindo.
Daniel se moveu para segurá-la, mas Aldrik foi mais rápido. O
príncipe a pegou e a girou. Vhalla se viu flutuando quando Aldrik a
ergueu, pegando a garota no colo, segurando-a contra seu peito.
Ela fez uma careta quando ele passou o braço em volta da carne
cortada de suas costas, encontrando uma maneira de segurá-la com
a menor quantidade de dor possível.
Quando o príncipe se virou, Vhalla pôde ver o rosto do
Imperador. A face dele ainda estava mortalmente imóvel, e a malícia
em seus olhos ao vê-la nos braços de Aldrik era palpável, mas o
príncipe não disse nada. Ele olhou para além de seu pai e foi em
direção ao hotel no qual estava hospedado. Vhalla sentiu cada olhar
arregalado e viu cada queixo caído enquanto as pessoas se
separavam para abrir caminho para o príncipe herdeiro e a
Andarilha do Vento.
— Aldrik, — ela sussurrou, tentando falar baixo o suficiente para
que apenas ele pudesse ouvir. — Aldrik, você… eu… eles...
— Deixe que digam alguma coisa, — Aldrik disse através da
mandíbula cerrada. — Deixe que uma só pessoa diga alguma coisa
e me dê um motivo para queimar tudo.
Vhalla sentiu o calor em suas mãos, a força bruta que ele
detinha que prometia cumprir cada ameaça. Ela fechou os olhos.
Vhalla encostou-se ao ombro do príncipe herdeiro enquanto ele a
carregava para a morada temporária da família Imperial. Ela
pressionou o rosto contra ele e permitiu que a força de Aldrik
protegesse a fraqueza dela quando seus ombros começaram a
tremer e as lágrimas caíram mais uma vez.
A LDRIK A COLOCOU gentilmente em uma espreguiçadeira, uma
concha quebrada e vazia de dor, lágrimas e luto. Vhalla se
encolheu em posição fetal, quase sufocando enquanto soluçava.
Aldrik sentou-se ao lado dela, os dedos acariciando levemente seus
cabelos.
Qualquer paz que ele pudesse oferecê-la foi rapidamente
arruinada pela porta se abrindo estrondosamente.
— Você perdeu a cabeça? — Lorde Ophain deu passos
gigantescos em direção ao sobrinho.
— Deixe-nos, Tio. — Aldrik não desviou os olhos dela, seus
dedos se perdendo nos cabelos de Vhalla.
— Eu pensei que você queria protegê-la...
— E claramente o lugar mais seguro em que ela pode estar é ao
meu lado. — Havia uma calma agourenta nas palavras de Aldrik.
— Não, o que você fez agora foi colocar um alvo ainda maior nas
costas dessa garota ao mostrar a todos que ela é a falha na
armadura do príncipe herdeiro! — Lorde Ophain implorou: — Aldrik,
você precisa levá-la à uma sala clerical e ir encobrir suas ações.
Falar que você agiu daquele jeito apenas porque precisamos dela
para a guerra. Que você quer que ela pense que…
Fogo irrompeu ao lado deles quando a espreguiçadeira oposta
explodiu em chamas. O brilho repentino e a labareda atrás de Aldrik
fizeram Vhalla se agitar.
— Tio, juro pela Mãe, se você ou qualquer outra pessoa tentar
tirá-la de mim...
— Já chega, Aldrik. — Vhalla colocou a mão sobre um dos
punhos cerrados do príncipe. As chamas se apagaram
instantaneamente. Ela tombou contra ele, o braço masculino
envolvendo rapidamente seus ombros. Vhalla não sabia quem deles
dois estava tremendo. — Ele está tentando ajudar. Eu deveria…
Aldrik apertou mais o braço, praticamente colocando-a em seu
colo. Ele a segurou contra si, como se estivesse tentando
desesperadamente remendar a coisa quebrada que ela era agora
com suas carícias trêmulas. Um braço agarrou a cintura dela e ele
respirou de forma instável. — Não, eu não vou. — Ele fez uma
careta para o Senhor do Oeste, enquanto falava com ela. — Não
vou soltá-la.
— Você vai precisar soltá-la se não quiser que ela morra de
infecção. — O Príncipe Baldair estava parado na porta. — Vou
cuidar dela aqui mesmo. — Ele atravessou o cômodo, colocando
uma das maiores caixas clericais que Vhalla já vira na vida no chão,
perto da espreguiçadeira.
Os dois irmãos se entreolharam, e Vhalla começou a pensar que
Aldrik cumpriria sua promessa. Mas os braços dele finalmente
relaxaram, e ele a colocou novamente em uma posição reclinada.
Aldrik rapidamente se realocou para que a cabeça dela pudesse
descansar em sua coxa.
O príncipe mais jovem puxou a barra da túnica, cortando o tecido
já em frangalhos da bainha até o colarinho. Vhalla não tinha energia
para se preocupar com pudor. Ela não tinha energia para fazer outra
coisa senão chorar e deixar Aldrik enxugar suas lágrimas.
— O Pai está reunindo os majores, — disse Baldair finalmente.
— Você precisa ir.
— Eu não vou deixá-la, — repetiu Aldrik.
— Ela precisa descansar, — respondeu o Príncipe Baldair.
— Você deveria ir, Aldrik. — Lord Ophain estava muito mais
calmo. — Se quer protegê-la, precisa ir. Você é o único que pode
representar os interesses dela naquela mesa, os interesses de
ambos.
As mãos de Aldrik pararam de se mover. A dor palpável dele
praticamente se derramou sobre ela, entorpecendo a sondagem de
Baldair no grande corte em suas costas. Vhalla agarrou a coxa do
príncipe herdeiro com as juntas brancas. Seus dedos deixariam
contusões em seu rastro.
Ele a deixaria. Ela sabia que ele precisava ir, mas isso não
facilitava as coisas. O mundo estava tirando-o dela também. Vhalla
não aguentaria.
— Baldair, — Aldrik soou estrangulado no a, mas se recuperou
rapidamente.
Larel tinha sido amiga dele também, a única amiga dele de certa
forma. Vhalla a havia tirado de Aldrik também. Foi tudo culpa dela.
Vhalla fechou os olhos com força, seu corpo inteiro tremendo.
— Não a perca de vista. Proteja-a com tudo o que tem. Faça ela
ficar curada e bem. Faça isso por mim e nunca mais vou pedir
sequer uma única coisa a você, — a voz de Aldrik era crua como se
fosse forçada através das lágrimas que ele não estava deixando
cair.
As ministrações do Príncipe Baldair pararam quando os dois
príncipes compartilharam um olhar de entendimento que não tinha
estado ali há algum tempo. — Você tem minha palavra, irmão. Pela
minha honra.
Aldrik começou a se afastar. Vhalla agarrou suas mãos com
ambas as dela, desejando que ele ficasse. — N-não, Aldrik. Por
favor, não me deixe ainda. Eu sei que você precisa, mas não vá,
ainda não.
Os olhos dela quase o quebraram.
— Aldrik, por favor, — ela implorou, com lágrimas escorrendo
pelo rosto.
Ele a colocou de volta na espreguiçadeira, ficando de pé ao lado
da mesma. Aldrik se inclinou para frente, afastando os fios de
cabelo do rosto dela mais uma vez e pressionou os lábios em sua
têmpora. Vhalla soluçou.
— Voltarei o mais rápido que puder.
— Prometa-me. — Ela agarrou os dedos dele novamente. —
Prometa, e eu vou acreditar.
— Eu prometo, e nunca vou quebrar uma promessa para você,
minha Vhalla. — Ele tirou a mão do seu agarre e se endireitou.
Vhalla observou a fachada dura como pedra do príncipe herdeiro
voltar ao lugar. Ele vestia a distância da nobreza, a ferocidade do
Senhor do Fogo e a armadura de seu título. Ele era um guerreiro
pronto para a batalha.
Vhalla cerrou os punhos e enterrou os olhos na parte inferior das
palmas das mãos, soltando um lamento no momento em que a porta
se fechou atrás de Aldrik e seu tio. — A culpa é minha, a culpa é
minha.
— Não é. — Ela não estava falando com o príncipe mais jovem,
mas ele respondeu mesmo assim.
— O que você sabe? — Vhalla cuspiu amargamente. — Você
não sabe nada sobre seu irmão, nada sobre mim. Você nunca nem
sequer tentou saber. Você estava muito ocupado com seus avisos
equivocados. Então apenas fique quieto pelo menos uma vez.
O príncipe a obedeceu por um tempo, enquanto colocava gaze
sobre a ferida, revestindo-a com uma substância pegajosa que
ficava gelada à medida que endurecia. Ele pressionou seu ombro
levemente e Vhalla entendeu que ele precisava que ela ficasse de
bruço para ter acesso ao ferimento na panturrilha. O príncipe
começou a suturar a ferida profunda sem sequer avisá-la primeiro.
— Tinha veneno na lâmina que fez essa aí, — ela murmurou.
— O que? — Os dedos dele congelaram. — Você tem certeza?
— Estava afetando minha magia. — Vhalla assentiu, suas
lágrimas cedendo à dormência.
— Vou precisar ir buscar alguém para cuidar disso. — O príncipe
se atrapalhou entre os frascos de elixires, pomadas e antídotos. —
Não faço ideia de qual é qual para combater venenos.
— Aldrik saberá. — Vhalla tinha certeza. O Príncipe Baldair
voltou a dar pontos e encheu a ferida com uma pomada espessa.
Quando terminou, deu a volta na espreguiçadeira para se ajoelhar
diante do rosto dela. O príncipe enfiou os dedos indicadores e médio
na lata e começou a massagear a pomada sobre o olho roxo de
Vhalla. — Obrigada, meu príncipe, — ela agradeceu relutantemente.
— Baldair, — ele corrigiu.
— Baldair? — O nome soou surpreendentemente fácil em sua
língua.
— Você chama Aldrik pelo nome dele; é estranho você continuar
me chamando pelo meu título. — Baldair arrumou sua caixa e se
levantou. — Vou buscar Elecia; ela vai saber o que fazer sobre o
antídoto.
— Eu disse que Aldrik saberia. — Vhalla não tinha interesse em
ver a mulher Ocidental.
— E Aldrik não voltará por muitas horas, — retrucou Baldair com
firmeza. Seu tom se suavizou quando a viu murchar. — Elecia irá
ajudá-la.
Vhalla assentiu e começou a se preparar mentalmente para
suportar o ataque que Elecia provavelmente daria ao vê-la. Fazia
dias desde que se falaram, e nesse meio tempo Vhalla se tornou a
amante secreta do príncipe herdeiro, primo de Elecia. Vhalla fechou
os olhos e tentou não pensar em nada.
Quando a porta se abriu novamente, Vhalla nem sequer virou-se.
Ela se segurou com força, tentando lutar contra os tremores. Sua
culpa, sua culpa, era tudo sua culpa.
— Vhalla. — Elecia tocou seu ombro gentilmente e Vhalla se
assustou, quase dando um pulo com o contato. — Deixe-me vê-la.
Os métodos de Elecia não deixaram espaço para objeções, e as
mãos da Ocidental estavam subitamente enroladas cuidadosamente
em volta do pescoço de Vhalla. Ela moveu os dedos por sua
bochecha, a outra mão pairando sobre os ombros, depois pelo meio
do peito e em sua coxa.
Vhalla fechou os olhos com força.
— É o mesmo absurdo que eles usaram em Aldrik, — Elecia
suspirou. — Mas muito mais fraco. Não deve ser um problema.
Era mais fraco do que o veneno que Aldrik havia suportado? Ele
fora submetido à mais e ainda assim conseguia usar sua magia,
enquanto a dela já havia falhado. Vhalla admirou a força do príncipe
herdeiro por um ponto de vista totalmente novo.
— Onde está Aldrik? — Ela não conseguiu evitar perguntar.
Elecia suspirou, vasculhando a pequena bolsa que trouxera.
— Tentando descobrir como mantê-la segura. — Elecia sentou-
se ao lado dela, inspecionando o trabalho de Baldair e fazendo suas
próprias adições. — Você e ele...
— Eu o amo. — Vhalla tremeu novamente, as palavras trazendo
uma nova remessa de lágrimas aos seus olhos. — Eu o amo, mas
sou apenas morte. Sou a morte de todos com quem me importo. Um
dia serei a morte dele.
Elecia agarrou seu rosto com força, virando Vhalla para encará-
la. Os olhos esmeralda da mulher ardiam em vermelho nas bordas,
por exaustão ou lágrimas. — Não será. Não vou deixar que seja.
— Mas... — ela choramingou.
— Se vai ficar com ele, então vai encontrar forças para carregar
esse fardo. Você não tem outra opção, Vhalla Yarl — disse Elecia
ferozmente. — Ele está arriscando tudo por você esta noite, então é
melhor estar pronta para fazer o mesmo. Porque se machucá-lo,
juro que vou te matar.
Vhalla soltou um ruído estrangulado quando seus lábios não
conseguiram formar palavras. Elecia colocou a mão em suas costas
com um suspiro frustrado, criando um formigamento quando a
própria magia ativou a pomada que aplicou antes. Ela repetiu o
processo na panturrilha e forçou o líquido de mais dois frascos na
garganta de Vhalla antes de empurrar o terceiro em suas mãos.
— Sono Profundo? — Vhalla reconheceu instantaneamente o
cheiro do elixir que Baldair havia lhe dado meses atrás, durante o
julgamento.
— Você não pode se curar se não dormir. Descanse enquanto
pode. — Elecia se levantou.
— Espere, não me deixe. — Elecia era a última pessoa a quem
Vhalla algum dia já cogitou agarrar-se. Mas dor e luto não eram
coisas que obedeciam à lógica.
— Não posso fazer mais nada por você. — Elecia franziu o
cenho para a mulher Oriental, mas não afastou a mão dela.
— Não me deixe sozinha, por favor. — Vhalla inclinou a cabeça
novamente. Larel, ela queria Larel. Ela queria se sentir segura e
aconchegada e amada incondicionalmente. Ela queria Larel.
— Deite-se, — Elecia suspirou e sentou-se. A mulher não lhe
ofereceu mais nenhum conforto. Ela não sussurrou palavras
calmantes ou enxugou as lágrimas de Vhalla. Mas ela ficou até o
Sono Profundo fazer efeito, e a mente de Vhalla foi finalmente
forçada a desligar. E Elecia nunca desvencilhou os dedos da
Oriental em luto.
Vhalla despertou algum tempo depois, quando foi levantada nos
braços de alguém. O pânico momentâneo foi rapidamente reprimido
no segundo em que sentiu o calor dele, que ouviu seu batimento
cardíaco lento e forte através do peitoral masculino. Aldrik a
carregou da espreguiçadeira para a cama, colocando-a debaixo das
cobertas.
Ela choramingou pateticamente. Doía muito estar acordada
depois do sono ser tão abençoadamente vazio de tudo. A cama
cedeu quando ele se curvou ao seu redor.
— Aldrik, — murmurou Vhalla, pressionando-se contra ele.
— Minha Vhalla, — ele suspirou pesadamente. — Durma, ainda
não amanheceu.
Vhalla balançou a cabeça, recebendo outro suspiro. Ela
precisava saber o que tinha acontecido. Abrindo os olhos com
firmeza, encontrou apenas uma sombra exausta do príncipe que
conhecia. Círculos escuros situavam-se acima de suas bochechas,
residindo sob os olhos cansados. Seu cabelo estava desleixado e
emaranhado. Ela viu os indícios de um hematoma em sua
mandíbula, um que ela não tinha certeza se queria saber como ele
havia conseguido.
— Aldrik. — Um dos maiores pedaços remanescentes de seu
coração rachou e se partiu ao vê-lo. Era culpa dela, era culpa dela
ele estar assim; ela o colocou nessa posição.
— Durma. Você precisa descansar, — ele insistiu novamente.
Apesar do estado de sua aparência, a voz dele era calma e
nivelada.
Vhalla se afastou. — Você não se importa?
— O que?
— Larel, Larel está morta e eu a matei! — As palavras de Vhalla
foram encharcadas com as lágrimas. — Você não se importa?
Aldrik sentou-se de supetão, olhando-a de cima. — Se eu não
me importo? — Ele perguntou afiadamente.
Ela podia ouvir a tensão trêmula que ele mal conseguia controlar.
Vhalla se arrependeu instantaneamente de suas palavras, mas ele
falou rápido demais para que ela as revogasse.
— Você ainda acha que eu sou o Senhor do Fogo sem coração?
Só o olhar em seu rosto fez Vhalla soluçar com lágrimas. —
Aldrik, não... — Ela balançou a cabeça.
— Claramente deve achar, se você de alguma forma pensa que
eu, abençoadamente, não fiquei afetado pela - pela morte dela, —
ele retrucou, as palavras soando como uma chicotada.
— Me desculpe, não quis dizer isso.
— Você ao menos sabe como nos conhecemos? — Aldrik se
levantou e começou a andar de um lado para o outro no quarto. —
Como eu conheci Larel?
— Ela me disse uma vez, — sussurrou Vhalla, sentindo a raiva
irradiando dele.
— Ela me disse que eu a salvei, que eu era o príncipe de todas
as histórias, aquele que salva a garota indefesa. — Aldrik riu; a
tristeza travou uma guerra contra a auto-aversão na escuridão de
seus olhos. — Eu sempre disse a ela que ela era tola, e nunca disse
o quanto eu precisava daquelas palavras. Nunca sequer a agradeci
por elas. Quão boba ela era por pensar que eu a salvei, quando na
verdade foi ela quem me salvou.
— Eu sei, vocês eram próximos... — Vhalla se colocou em uma
posição sentada.
— Você não tem ideia. — Ele se virou para encará-la. — Você
provavelmente cresceu cercada por amigos e pessoas que
gostavam da sua companhia. Mesmo nos meus melhores anos, eu
era estranho e segregado pela nobreza e pela magia. Havia apenas
uma pessoa entre os meus colegas que me via como algo além de
seu príncipe. Eu tinha Larel. E mes-mesmo depois que eu a afastei,
ela voltou. Ela era uma amiga muito melhor do que eu algum dia já
mereci.
— Isso não é ver...
— E quando ela veio até mim, com o papel na mão para marchar
com você, eu disse a ela que não estava pronta.
A culpa era dela..
— Eu sabia que ela não era treinada o suficiente, ela não era
feita para a guerra. Mas eu pensei… — As mãos dele agarraram
seus ombros de repente. — Eu pensei que poderia protegê-la.
Assim como eu pensei que poderia te proteger.
Vhalla não tinha palavras.
— Mas aqui está você, machucada e cheia de cortes enormes
por conta de um atentado contra sua vida. Não há outra razão além
de... pura sorte que você também não esteja em uma poça de
sangue ao lado dela. Acha que eu não vi isso? — Ele a sacudiu e
isso fez Vhalla estremecer com a dor em suas costas. Aldrik parou e
olhou para os seus olhos arregalados, abaixando a cabeça. — Larel
está morta e você poderia ter morrido também - e eu não protegi
ninguém.
Ele sentou segurando os ombros dela, o cabelo cobrindo seu
rosto. No primeiro suspiro, ela pensou que ele falaria mais, porém o
príncipe exalou lentamente e deu outro suspiro instável, cheio de
mais silêncio. Os tremores foram pequenos a princípio, começando
nos ombros antes de encontrarem seu caminho para as mãos dele,
apesar da luta de Aldrik para que isso não acontecesse.
Então ela ouviu, aquela respiração, aquela na qual suas lágrimas
escaparam. Vhalla ouviu o barulho estranho e sufocado surgir na
garganta dele quando o príncipe finalmente cedeu à sua própria dor
avassaladora. Ele estava cansado, estava sobrecarregado e havia
perdido a pessoa que considerava sua melhor amiga. Aldrik - o
príncipe herdeiro, o futuro Imperador, Senhor do Fogo, comandante
da Legião Negra, feiticeiro - era apenas um homem. E homens
podiam ser quebrados.
Seu aperto se afrouxou e suas mãos deslizaram pelos braços
dela, mas ele ainda a segurava. Foi a primeira lágrima que caiu no
lençol que finalmente tirou Vhalla de seu próprio choque e dor. Ela
estendeu os braços e o puxou em sua direção sem hesitar,
pressionando o rosto dele contra seu peito para escondê-lo. Ela
sabia que, com toda sua teimosia, Aldrik provavelmente estava
envergonhado por simplesmente mostrar seu luto.
A medida que as lágrimas do príncipe começaram a aliviar um
pouco do sentimento em seu peito, ela viu sua própria dor ser
reabastecida pela dele. Ela o abraçou com força, acariciando seus
cabelos, querendo oferecer todo o conforto que ele nunca pediria.
Seus braços se moveram e envolveram a cintura dela quando ele
finalmente cedeu. O ferimento em suas costas protestou quando
Aldrik a agarrou, mas Vhalla não disse nada. Ela percebeu que ele
poderia não se permitir uma segunda chance para chorar, então não
faria nada para impedir sua dor.
Ela nunca cumpriu a ordem inicial dele para que dormisse, a
medida que a luz do sol começava a encher o quarto. Mesmo
depois que as lágrimas cessaram, o príncipe herdeiro permaneceu
enrolado nos braços dela. Vhalla sabia que a posição na qual ele
estava retorcido não tinha como ser confortável, mas ela estava
sendo consolada tanto quanto estava o consolando, então Vhalla
não fez nenhuma sugestão para que se movessem.
Quando Aldrik finalmente se afastou, ele desviou o olhar antes
de se levantar. Ele levou a mão ao rosto e Vhalla afastou o olhar,
permitindo-o ter sua privacidade. Ele voltou-se para ela.
— Teremos um longo dia hoje. — Sua voz soou vazia e distante.
— O que vai acontecer? — Na verdade, ela não tinha certeza se
queria saber.
— Você mesma ouviu; os ataques à você serão frequentes e
impiedosos. — Ele se inclinou sobre ela, erguendo o queixo de
Vhalla para que olhasse para ele.
Seu rosto já havia se recuperado e, além do vermelho em seus
olhos, ele não tinha a aparência de um homem que havia chorado
por mais de uma hora. Sua mandíbula estava firme com
determinação, sua testa franzida pelo peso do planejamento
calculado. Vhalla não tinha certeza do que sentia quando essa
mistura desesperada de emoção era dirigida a ela.
— Hoje vamos fazer três doppelgangers para você.
— Doppelgangers? — Ela piscou.
— Ontem à noite, os majores debateram quem dentre o exército
eram mais próximas da sua aparência, tamanho e construção
corporal. Essas mulheres virão hoje, uma a uma, e nós as
transformaremos em você. — Ele falou com tanta precisão que
Vhalla sabia que esse não era o plano dos majores, mas sim o dele.
— Cada uma delas vai cavalgar comigo, com meu irmão ou com o
meu pai, então desde o princípio sua localização exata será um
mistério para todos, incluindo os soldados.
— Se haverão três mulheres, onde eu estarei? — Ela perguntou
corajosamente.
— Você estará escondida bem debaixo do nariz de todo mundo.
— Ele acariciou sua bochecha gentilmente. — A partir de hoje, suas
sósias possuem o seu nome. Ele não é mais seu.
— O que? — Vhalla estava sobrecarregada e confusa.
— Amanhã, uma delas será a verdadeira Vhalla Yarl. Mas
nenhuma delas será a verdadeira Vhalla Yarl. Você será uma
espadachim sem mérito ou valor. Você supostamente terá chegado
com os soldados de infantaria Ocidentais, para que ninguém
questione o fato de não te conhecerem. Invente qualquer nome e
história que queira, mas precisará deles em breve.
— Eu não posso... — Vhalla choramingou suavemente; ela não
sabia nem mesmo como segurar uma espada.
— Você pode, e você vai, — disse ele com firmeza. Aldrik
sacudiu a cabeça. — Essa é a melhor opção que temos agora, e eu
não vou te perder.
— E as outras mulheres? Eles serão alvos, — ela sussurrou.
— Exatamente, e se uma delas for morta o Norte talvez
simplesmente acredite que mataram a Andarilha do Vento, — disse
ele de modo frio.
— Aldrik, elas são a filha de alguém, talvez a mãe de alguém ou
alguém...
— Eu não ligo! — Vhalla deu um pulo com a repentina
intensidade dele. Aldrik foi impetuosamente até o lado oposto do
quarto. — Eu tenho que fazer uma escolha, Vhalla. Essa escolha é
entre a sua vida ou a delas, e não há dúvida para mim. Se elas
morrerem, morrerão honrosamente por seu Imperador. — Ele virou-
se para ela novamente e ela viu - para o seu horror - que as
palavras dele eram verdadeiras, ele realmente não se importava
com a vida daquelas mulheres. Elas foram consideradas como
dispensáveis.
Ela retorceu os dedos.

— Você vai marchar com Baldair...

— O que? — Vhalla exclamou, pulando de pé. Sua panturrilha


deu uma fisgada de dor e Aldrik foi rápido em apoiá-la. — Aldrik,
não, não me deixe. Não me deixe sozinha!
— Quieta. Acalme-se. — Era um comando, mas seu tom
tranquilizador teve o efeito desejado. — Você precisa marchar lá
para manter a ilusão de uma espadachim. Mas é só até chegarmos
ao Norte. — Aldrik afastou os cabelos dela da frente de seus olhos.
— Quando chegarmos à fronteira, o exército se dividirá em grupos
menores para se deslocar pela floresta. Você ficará comigo, então.
Ela fungou alto, as lágrimas voltando novamente.
— Você ficará comigo então, minha Vhalla, minha lady, meu
amor. — Aldrik pressionou seus lábios firmemente contra os dela,
silenciando outras objeções.
— Você... — ela fungou.
— Eu prometo. — A mandíbula de Aldrik tremeu de forma breve,
e ele a beijou novamente. Sua boca tinha gosto de resignação, e
Vhalla sabia que era esse o sabor com o qual ele a deixaria. —
Agora, prometa-me que você será forte.
— Eu prometo. — O rosto dela se contorceu em agonia.
Aldrik a pressionou contra ele, e Vhalla se agarrou ao príncipe
com tanta força que suas mãos tremiam. Os dedos longos dele
serpenteavam por seus cabelos. — Vou sacrificar tudo o que deve
ser sacrificado para mantê-la segura.
Ela acreditou nele completamente - evocando um novo terror
para nadar em suas veias.
Ele a levou para um cômodo diferente no mesmo andar, e
instruiu que aguardasse. Vhalla não tinha ideia do que esperar
quando ele reapareceu mais tarde com o Imperador.
Ela agarrou a manta que Aldrik havia colocado sobre suas
roupas esfarrapadas. O Imperador a olhou com desprezo velado.
Aldrik estava completamente impassível.
— Bem, vamos começar. — O Imperador Solaris caminhou até
uma mesa, abrindo um livro que estava carregando, sentando-se
diante de um punhado de papéis.
Um de cada vez, Aldrik trouxe majores que escoltavam mulheres
sob seu comando. E, uma de cada vez, Vhalla disse a elas o que
significava ser Vhalla Yarl. Contou a elas sobre sua infância, sobre
sua casa em Cyven. Contou a elas sobre a biblioteca, Mohned, seu
aprendizado, Roan e Sareem. Contou a elas sobre a Noite de Fogo
e Vento e sobre seu julgamento. Ela se desnudou para aquelas
garotas com o Imperador e os majores observando.
Parecia uma Projeção. Ela falou e se mexeu, mas sua mente
estava mais e mais desconectada a cada coisa que dizia. Cada
palavra entregava pedaços de si mesma e ela se tornava cada vez
menos Vhalla Yarl.
A última era uma mulher quase idêntica à sua baixa estatura. Ela
parecia ser uma mistura de Sulista e Oriental, com longos cabelos
loiros escuros. Vhalla sentiu que aquela era a mais próxima de sua
aparência, apesar dos cabelos mais claros e olhos azuis. Aquela a
agradeceu antes de ser levada para fora da sala. Vhalla tinha
certeza de que a mulher não ouvira nada do que tinha dito sobre
sua vida se estava agradecendo-a pela oportunidade de ser ela.
Entre Vhalla recontando sua história para cada doppelganger e o
sigilo necessário para esgueirar cada uma das mulheres para dentro
e fora da sala, foram necessárias a manhã toda e boa parte da tarde
para concluir a tarefa. Quando a última mulher foi levada para sua
respectiva sala de espera, Vhalla estava exausta.
Aldrik e o Imperador preferiram a mesma mulher que Vhalla, o
que significava que essa seria a sósia que cavalgaria na companhia
de Aldrik. Vhalla recebeu a bolsa da mulher para que essas fossem
suas roupas novas. Aldrik também enfiou uma adaga e um frasco de
tinta preta em suas mãos, dizendo-lhe para fazer tudo o que
pudesse para mudar a aparência.
Trêmula e sozinha no lavabo, Vhalla limpou cuidadosamente a
sujeira e o sangue da noite anterior. Observou atentamente
enquanto aplicava a tinta no cabelo, mudando a coloração dos fios
de marrom para preto. Depois de deixá-la penetrar por um
momento, ela enxaguou e repetiu o processo três vezes. Ela
inspecionou o progresso no espelho; seus cabelos haviam de fato
mudado de cor.
Vhalla mordeu o lábio, lembrando-se de quão lisas e domadas
suas madeixas tinham ficado quando Larel usara seu calor nelas.
Ela engoliu um soluço e passou os dedos pelos fios com bolsões de
vento presos embaixo. Foi desajeitado e levou alguns minutos para
alcançar algum sucesso. Mas ele secou mais reto, parecendo mais
Ocidental, tirando sua textura ondulada natural. Ficou mais longo
desse jeito, e Vhalla tomou a decisão consciente de não cortá-lo
curto de novo. Ela tinha feito isso uma vez e não se tornou ninguém.
Dessa vez, ela cresceria em sua nova pele.
Mas Vhalla ainda assim pegou a adaga. Puxando a franja na
frente, fez um corte horizontal reto logo abaixo da sobrancelha. Pela
segunda vez em um ano, Vhalla foi incapaz de reconhecer a pessoa
que a olhava de volta no espelho. Ela se inclinou sobre o lavatório,
abafando a boca com a mão enquanto lutava para reprimir as
lágrimas pela mulher cuja memória havia decidido honrar.
Controle-se. A amiga de Vhalla Yarl morreu, e Vhalla Yarl
choraria. Ela não era Vhalla Yarl. Ela olhou de volta para o espelho,
fortalecendo sua determinação. Olhando para os olhos duros e o
rosto estranho, ela repetia para si mesma: ela não era Vhalla Yarl. A
garota limpou o lavabo rapidamente, tirando as roupas e colocando
as da outra mulher - suas, ela se corrigiu.
Ela saiu do lavabo e voltou para onde o Imperador e Aldrik
esperavam. Os dois homens a olharam de cima a baixo. O
Imperador recostou-se em sua cadeira.
— Vai servir, — disse ele, esfregando um dedo nos lábios.
— Qual o seu nome? — Aldrik perguntou a ela.
— Serien, — respondeu sem hesitar.
— Serien, qual é o seu sobrenome? — Ele questionou.
— Serien Leral, — disse ela e notou o momento em que ele
reconheceu o nome.
Aldrik lutou para manter a compostura. — De onde você é? —
Sua mandíbula se apertou com firmeza.
— De uma cidade chamada Qui. É uma cidade mineradora que
eu espero que você nunca tenha que ir, — recitou ela. Sua história
já tinha sido construída para ela.
— Onde fica Qui? — O Imperador se inclinou para frente,
cruzando as mãos entre os joelhos.
— É a meio caminho de Norin, se você seguir as estradas
antigas.
— Seus pais? — Aldrik perguntou.
— Meu pai era mineiro e um bêbado. Minha mãe era uma mulher
quebrada que deixou sua casa no Leste porque achava que era
amor. Eles morreram quando eu era jovem, e eu trabalhei nas
minas. — Apesar das pequenas mudanças para explicar a cor de
seus olhos, ela se perguntou se o Imperador perceberia a fonte de
inspiração para sua história. Ela sorriu friamente; claro que ele não o
faria. Larel não significava nada para ele, ela duvidava que ele
sequer lembrasse da garota que seu filho salvou das minas de prata
de Qui.
— Por quê você está aqui? — O Imperador a questionou com
seu olhar confiante.
— Para uma vida melhor, para servir o Imperador, — disse ela
com facilidade.
— Bom trabalho, Senhorita Yarl. — O Imperador voltou a se
recostar na cadeira.
Ela o encarou com curiosidade. — Senhorita Leral, — corrigiu.
O homem simplesmente riu.
— Sua armadura está aqui. — Aldrik deu um passo para o lado e
permitiu que ela se aproximasse da mesa que estava atrás deles.
Couraça de metal básica e cota de malha prateada estavam postas
sobre ela. Vhalla ficou atordoada por um momento, uma das
mulheres usaria a armadura que Aldrik havia feito para ela. Não,
lembrou a si mesma, Aldrik havia feito aquela armadura para Vhalla
Yarl, e ela não era Vhalla Yarl.
Ela pegou a cota de malha. Essa era a armadura de Serien,
simples e sem adornos. Era o tipo de armadura que se disfarçaria
em uma massa de soldados e seria indistinguível entre eles. Aldrik
silenciosamente ajudou a mostrar-lhe como amarrar a couraça. Era
mais pesada do que sua malha de escamas, e o peso a fez
favorecer a perna não machucada enquanto colocava as manoplas.
Ele se virou e deu a ela uma espada. Felizmente, ficava presa à
sua perna esquerda, sua perna boa, então ela podia desembainha-
la com a mão direita. Ela se remexeu, se ajustando ao peso extra no
quadril.
— Alguma pergunta?
Houve uma pausa notável e seus olhos se encontraram. Ela
então se perguntou o que ele viu nela, quem ele viu.
— Serien?
O nome era estranho de ouvir vindo dele, referindo-se à ela. Mas
se tinha alguém que poderia dizê-lo e fazê-la acreditar que era sua
nova identidade, esse alguém era Aldrik. Ela balançou a cabeça
negativamente.
— Ótimo, você se apresentará sob o comando da Guarda
Dourada. Você está dispensada.
Ela assentiu. Seus olhos refletiam a distância vazia que ela via
nos dele. Agarrando sua bolsa de lona do chão, ela se virou e fez
uma breve continência. Os nós de seus dedos estavam brancos por
tentar descer as escadas vestindo a armadura com a perna
machucada. Ela estava determinada, mas tomou cuidado para não
rasgar os pontos.
Era quase pôr do sol quando Serien saiu do hotel pelas portas
dos fundos.
A CONDOLÊNCIA AOS CAÍDOS foi realizada ao pôr do sol, para que a
Mãe pudesse conduzir as almas dos mortos para os reinos
eternos do Pai. Serien compareceu junto às massas na praça
central das Encruzilhadas, embora ninguém tenha olhado duas
vezes em sua direção. Ela olhou para a plataforma cuidadosamente
construída que continha cinco corpos envoltos em tecido vermelho.
Um deles era Larel Neiress, a mulher que passara inúmeras
horas reunindo os pedaços de Vhalla Yarl depois que o mundo havia
a quebrado. Mas desta vez, suas mãos não estavam lá, e Vhalla
Yarl se partiu em três pedaços.
O príncipe herdeiro estava diante dos corpos, estoico enquanto
um ancião encapuzado realizava o canto fúnebre. Serien rangeu os
dentes e endureceu seu coração. Ela não choraria. Ela não podia
chorar por uma mulher que nunca conheceu.
Mas seus olhos estavam atentos, e ela viu como o príncipe
herdeiro estava focado no quarto corpo. Ela sentiu o modo como
suas chamas se moviam em direção àquele corpo em um nível
básico que não podia ser explicado. Ela finalmente saiu da multidão
quando seu estômago começou a dar um nó.
Ela era uma nômade, uma solitária, o fantasma das
Encruzilhadas; sem nenhum lugar para estar e sem ninguém para
procurá-la. Serien se empoleirou sob a arcada de um dos muitos
prédios, retornando duas vezes depois de ser enxotada. Por fim, o
proprietário finalmente desistiu de tentar.
Ela observou as multidões se moverem, felizes quando a vida
voltou ao normal. Ela viu um Sulista de cachos bagunçados ir ao
hotel com três grandes janelas umas quatro vezes, retornando para
uma estalagem familiar desanimado e sozinho a cada tentativa.
Uma pontada de tristeza surgiu no fundo de sua garganta, uma que
ela esmagou rapidamente - emoções de outra mulher.
Quando o exército finalmente se reuniu na praça, preparado para
marchar, Serien era apenas a casca de uma mulher exausta. Ela
mal dormiu por conta do medo; medo do que sua mente traiçoeira
poderia inventar e medo de dormir ao ar livre. Ela não tinha montaria
para reclamar como sua, mas instintivamente se encaixou no centro
da fileira. Era estranho estar cercada por tantas armaduras de prata,
mas rapidamente trabalhou para aceitar essa realidade como sendo
sua nova noção de normal.
Aplausos surgiram para a família Solaris à medida que eles
deixavam o prédio com plenos privilégios reais. Seis corcéis haviam
sido alinhados diante do hotel; três eram para a realeza, e os outros
três eram para as figuras encapuzadas que caminhavam ao lado
deles. Três mulheres, quase idênticas em estatura, em mantos
pretos de capuz que cobriam seu rosto, caminhavam ao lado de
cada um dos nobres reais. Na parte de trás de suas capas havia
uma asa prateada. Elas eram um alvo bonito.
Com interesse insípido, ela viu uma delas montar um cavalo
preto que tinha uma faixa branca que corria pelo rosto do animal,
como Relâmpago. A mulher estava situada à direita do príncipe
herdeiro, e Serien observou o príncipe olhar para essa mesma
mulher antes de trotar em direção ao seu lugar na fila.
— Eles poderiam pelo menos tentar disfarçar, — observou um
dos soldados ao seu redor.
— Não é muito difícil dizer qual é a Andarilha do Vento, —
concordou outro.
— Como se o Senhor do Fogo fosse deixar sua amante das
trevas fora de vista.
— Como se o Senhor do Fogo fosse deixar sua amante das
trevas fora de vista. Serien não se uniu às especulações deles sobre
o real relacionamento entre o príncipe herdeiro e a Andarilha do
Vento Vhalla Yarl, mas seus ouvidos estavam atentos. A maioria
parecia concordar que havia algo entre os dois, mas suas teorias
eram amplas. Dois homens e uma mulher juntaram-se ao príncipe
mais jovem quando ele entrou em linha ao lado da Andarilha do
Vento encapuzada.
— Já chega, todos em formação! — Um Oriental ordenou.
Serien o olhou quando seu cavalo chegou perto dela. O homem
com braçadeira de ouro olhou para baixo, encontrando o seu olhar.
Os olhos dele se apertaram um pouco e ele abriu a boca para dizer
algo.
— Daniel, o que foi? — Um Sulista à sua esquerda perguntou.
Serien rapidamente voltou a atenção para a frente. Ela não
deveria ter escolhido o centro da fileira. Serien tentou juntar as mãos
para retorcer os dedos, mas era difícil por conta das manoplas mais
pesadas. Ela mordeu o lábio, ao invés disso.
— Nada, — respondeu o Oriental. — Desculpe, não era nada.
Acompanhar o ritmo dos cavalos era difícil, uma vez que
marchavam duas vezes mais rápido e em trajes completos, saindo
das Encruzilhadas. A panturrilha de Serien gritava de dor, e o suor
vertia de seus poros por conta do esforço de sufocar os gritos.
Mesmo quando a ordem para diminuir a velocidade foi emitida, a dor
não suavizou. Ela estava certa de que tinha rasgado os pontos.
Serien manteve os olhos para a frente o dia inteiro. O Grande
Caminho Imperial acabaria em breve. Eles alcançariam o último
posto avançado antes do Norte, e então seria território perigoso.
Seu humor sombrio não combinava com nenhum dos outros
soldados, e ela permaneceu em transe até a ordem para parar.
Esse foi o primeiro momento em que Serien se sentiu perdida.
Todos os outros sabiam o que fazer, para onde ir. Eles tinham suas
tendas e suas atribuições. Não houve nenhuma hesitação quando
se dissolveram na rotina normal dos espadachins.
Ela se moveu devagar, tentando ouvir algum pedaço de
conversa que confirmaria se poderia ou não ir até a carroça de
tendas e pedir uma.
— Soldada, — um homem chamou atrás de si.
Serien virou-se e seu peito doeu diante dos olhos familiares.
— Você é uma nova recruta, não é? — Daniel parou diante dela,
uma mão no quadril.
— Sou, — murmurou Serien.
— Seu nome? — A pergunta foi claramente forçada.
— Serien Leral, — respondeu, esperando que ele percebesse.
— Deixe-me vê-la usar essa coisa. — Ele apontou para a
espada dela.
Ela olhou novamente para o Oriental. O que ele estava
pensando? Ele iria arruinar o disfarce dela em menos de um dia. Um
ou outro soldado olhou para o Guarda Dourado que se dirigia a ela,
mas parecia uma coisa normal o suficiente para que eles não
dessem muita atenção.
Serien sacou a espada, determinada. Era pesada demais, e ela
ficou instantaneamente sem equilíbrio. A garota a segurou com as
duas mãos, tentando se equilibrar. Daniel sacou a espada e, em um
movimento fluido, enviou a arma dela voando de suas mãos para a
areia.
— Isso não foi justo! — Ela protestou.
— Acha que nosso inimigo será justo? — Daniel deu um passo
para mais perto. — Há quanto tempo você pratica?
Serien desviou os olhos. Ela não deveria ter dito nada. — Não
muito. — Soou muito melhor do que “nunca”.
— O Oeste realmente está deixando o nível cair. — Ele
embainhou a lâmina, cruzando os braços sobre o peito. Serien o
observou com cautela. — Você é do Oeste, não é?
— Sou.
— Achei que sim. — Ele suspirou dramaticamente com um
revirar de olhos. — Tudo bem, eu vou te ensinar.
— O que?
— Não vou deixar um soldado sob o meu comando entrar numa
guerra indefeso. — Um tom familiar ecoou sob suas palavras. —
Vamos sair do espaço das tendas.
Ela o seguiu para dentro do deserto, fora do limite do
acampamento do exército. Eles não foram longe, apenas o
suficiente para que houvesse espaço para se mover em um amplo
círculo sem precisar ter medo de balançar as lâminas.
— Você não segura uma espada daquele jeito. Veja como eu
seguro a minha. — Ele demonstrou em sua própria lâmina e por fim
acabou posicionando a mão dela também. — Aqui, assim.
— É pesada, — ela sussurrou.
— É aço forjado. — Daniel riu. — Agora, sobre balançar.
Se antes Serien achava que tinha estado exausta, com dor e
encharcada de suor por causa da marcha, não foi nada se
comparado à trabalhar com Daniel até o pôr do sol. Cada membro
doía, seus ombros gritavam em protesto, e ela mal conseguia
segurar a lâmina para embainhá-la.
— É o suficiente por hoje. — Daniel percebeu a condição em que
ela estava.
Serien assentiu em agradecimento. — Daniel, — ela disse
suavemente quando eles começaram a voltar para o acampamento.
— Sim? — O tom dele mudou para um que ela conhecia.
— Eu posso simplesmente pegar uma barraca qualquer?
— Você ainda não pegou uma? — Ele pareceu assustado.
— Não, não peguei. Ninguém me disse nada. — Ela mordeu o
lábio.
— Não vai ter sobrado nenhuma. — Daniel passou uma mão
ainda com a manopla pelos cabelos. — Você gostaria de ficar
comigo? — Sua pergunta foi tão suave que ele claramente tinha
dúvidas quanto a isso.
— Não posso.
— Por quê? — Daniel perguntou sinceramente. — Por que você
não pode?
— Porque eu...
— Não vou deixar você dormir na areia, sozinha. — A idéia
também não parecia atraente para ela. — Você está viajando com
alguém, Serien?
Daniel a encarou, e Serien lutou para encontrar uma resposta. —
Sinto muito, não posso.
Serien seguiu em frente, se afastando dele, e não olhou para
trás.
Foi exatamente como ele havia dito. Ela dormiu ao ar livre com
sua bolsa como travesseiro. Embora o Sul estivesse no auge do
inverno, fazia calor no Oeste - e esse calor persistiu durante uma
parte da noite. Não foi até a lua estar na metade do céu que ela
começou a tremer.
Quando Serien acordou, uma manta cobria seus ombros. Não
havia nenhum nome bordado nela, mas tinha uma qualidade melhor
do que as cobertas padrão. Serien olhou em volta, como se pudesse
encontrar o fantasma que a havia colocado sobre ela durante a
noite. Mas ninguém se manifestou.
Ela a usou na noite seguinte e na noite posterior a essa. Certa
vez, Serien pensou brevemente nos poderes da outra mulher,
pensou em estender sua mente para fora de seu corpo no disfarce
da escuridão para alcançar um certo príncipe. Mas a ideia foi
rapidamente reprimida. Aquele príncipe não pertencia a ela, ele e
Serien não eram nada. A garota custou a dormir naquela noite,
debatendo consigo mesma. Se Serien e o Príncipe Aldrik não eram
nada, então por que ela estava dormindo sozinha no frio?
Na terceira noite, os outros soldados começaram a notar que ela
estava distante e diferente.
— Você pratica muito com Lorde Taffl, — comentou um dos
soldados que marchavam ao seu lado.
— É uma honra, — disse Serien secamente.
— Você é alguém especial para o lorde? — Eles perguntaram.
Ela não disse nada.
— Ei, eu te fiz uma pergunta. — O soldado acenou uma mão na
frente do rosto dela.
Ela continuou olhando para frente.
— O que há de errado com você? — O homem bufou.
— Deixe a dama em paz — ordenou Daniel do alto de seu
cavalo.
— Definitivamente alguém especial, — o soldado murmurou para
o amigo.
As palavras martelaram na mente de Serien o dia inteiro, e ela
confrontou Daniel sobre as mesmas mais tarde. Serien jogou a
espada na areia. Sua perna latejava, provavelmente por não tirar as
grevas por quase uma semana inteira. Sua panturrilha estava uma
bagunça que ela não conseguia nem se obrigar a olhar.
— Eles acham que há algo entre nós.
— E? — Daniel embainhou sua espada, pegando a dela do
chão.
— Nós não podemos continuar fazendo isso ou eles vão
pensar...
— O que? — Ele devolveu a espada a ela. — O que eles vão
pensar?
— Que há algo entre nós. — Serien não pegou a arma.
— E daí?
— Eles não podem, — ela insistiu.
— Por que não? — Daniel deu de ombros, mas seus olhos
traíram sua dor.
— Porque nós somos... — Sua voz desapareceu quando ele deu
um passo para mais perto dela.
— O que? O que nós somos? — Ele perguntou suavemente.
Ela finalmente pegou a espada, embainhando-a com frustração.
— Ainda não tenho palavras para definir isso, também. — Daniel
se despiu emocionalmente diante dela. — Mas quero ajudá-la,
quero cuidar de você. Sei que não deveria nem saber quem você é,
mas sei e sou grato por isso.
Serien balançou a cabeça, tentando fingir que não ouvira suas
palavras.
— Olhe para mim, — ele disse suavemente. Ela balançou a
cabeça de novo. — Vhalla, olhe para mim.
Sua atenção voltou-se para ele bruscamente com a menção de
seu nome verdadeiro. Isso desintegrou sua máscara e demoliu os
muros que ela tentou tanto construir. Isso fez a dor piorar e a
verdade ser mais difícil de suportar.
— Não me chame assim, — ela implorou. — Por favor, Daniel,
não me chame assim.
— É o seu nome. — Ele rapidamente tirou a manopla. Ela
congelou quando a pele dele fez contato com a sua, a mão dele
correndo ao longo de sua mandíbula. — Por que eles o tiraram de
você?
— Para me manter segura, — ela soluçou suavemente,
perdendo a luta contra as lágrimas.
Ele suspirou, incapaz de discutir. — Então me deixe mantê-la
segura também. Não durma lá fora no chão de novo essa noite. Isso
tem aberto um buraco no meu peito que fica mais profundo a cada
momento em que penso em você lá.
— Você sabe por que eu não posso. — Ela não tinha certeza se
era Vhalla ou Serien quem olhou para Daniel naquela hora, mas ele
não foi capaz de encará-la.
— Ele iria querer você em segurança, — Daniel murmurou. Sua
mão caiu do rosto dela com o peso da resignação. — Não vou tocar
em você, eu juro.
O sol estava se pondo sobre as dunas, deixando a pele Oriental
dele dourada. Vhalla engoliu em seco, tentando encontrar Serien
nela mais uma vez. Seu coração doía, sua mente estava pesada
com culpa, mas ela não queria dormir no frio outra noite e ela estava
tão cansada.
Serien assentiu.
Daniel olhou para ela incrédulo por um longo momento. Ele foi
rápido em levá-la de volta ao acampamento. O coração de Serien
disparou enquanto ele a guiava em direção a uma tenda de
tamanho modesto, perto do centro. Duas similares foram colocados
perto da mesma, e a de Baldair não estava longe.
Seus olhos se demoraram na tenda do príncipe mais jovem. Ele
iria saber. Ele descobriria sobre ela e Daniel, se já não tivesse
descoberto. E se ele dissesse a Aldrik?
Ela vasculhou os soldados em paranóia. Mas ninguém prestava
atenção. Ela era invisível, uma ninguém. Daniel poderia ser um
lorde e um major, mas era um recém-nomeado e claramente não
era considerado muito acima de um soldado comum. Ninguém se
importava com quem entrava em sua tenda ou por que ele os levava
até lá.
Por dentro, era maior que a de um soldado médio, confortável
para três pessoas. Serien sentou-se em silêncio, seus olhos
ajustando-se à luz fraca. Daniel não era um Domador de Fogo, ele
não podia invocar chamas para ajudar na iluminação, então os dois
tinham que se virar com a luz remanescente do sol e a luz crescente
da lua.
— Você sabe como tirar isso? — Ele já tinha tirado metade da
própria couraça.
— Na verdade, não. — Ela havia esquecido o que Aldrik havia
lhe mostrado. Era mais complexo do que as travas simples que ele
criara para a cota de malha dela.
— Deixe-me te mostrar. — Daniel se moveu devagar, como se a
menor das ações pudesse fazê-la sair correndo. No momento em
que ele tirou a couraça dos seus ombros, ela deu um suspiro de
alívio. A garota tinha esquecido o quão pesada era a maldita
armadura. Serien foi rápida em tirar a cota de malha.
— O que... — Daniel levantou a perna de sua calça antes que
tivesse tempo de se opor. Serien viu o que havia chamado a
atenção dele. Sua panturrilha estava coberta de sangue, as
ataduras pendiam frouxas e inúteis, e sua carne estava retalhada
por causa dos pontos que ela rasgou. — Pela Mãe, como você
ainda está andando?
— Eu já me acostumei com isso. — Havia um certo fascínio
horrível em ver seu próprio corpo mutilado. Serien se perguntou se a
sensação de calma era porque nem seu corpo parecia pertencer a
ela. Nada lhe pertencia mais, nem mesmo seu próprio nome.
— Não, isso é ruim. — Daniel vasculhou sua bolsa. — Eu
preciso procurar um clérigo.
— Não! — Ela agarrou o pulso dele. — Eles vão fazer perguntas.
— Não, eles não vão. — Daniel a assegurou. — Serien, você
não é ninguém. Eu sou quase um ninguém. Soldados se machucam
o tempo todo. Pare de se preocupar. — Ele apoiou a palma da mão
na cabeça dela e partiu rapidamente.
Serien lutou com as emoções que guerreavam silenciosamente
dentro de si que surgiram com a ausência dele: culpa, vergonha,
dor, exaustão e alívio. Ela estava feliz por não estar sozinha.
Daniel re-enfaixou sua perna e se recusou a treinar com ela por
uma semana depois disso. Ela passava a maior parte do tempo
recuperando as horas de sono perdidas. Assim que a barraca dele
era erguida, ela desaparecia e se escondia do mundo. Na
escuridão, não precisava ser Serien ou Vhalla. Ela podia ser
ninguém, e essa era a única coisa que lhe trazia paz o suficiente
para fechar os olhos.
Patrulhas e sentinelas aumentaram ao redor do exército, mas
não houveram mais ataques. A marcha em direção ao Norte parecia
tão pacífica que era enervante. Os soldados estavam começando a
ficar entediados, e com o tédio vieram as fofocas.
— Ouvi dizer que ele finalmente começou a levá-la à sua tenda
novamente. — A tagarela ao lado de Serien estava muito
empolgada com essa fofoca em particular.
— Quem?
— O príncipe herdeiro e a Andarilha do Vento. Quem mais?
Serien olhou na direção dos soldados falantes.
— Mas ouvi dizer que ele anda bebendo duas vezes mais.
— Bebendo o suficiente para os dois?
— Bem, eu não posso culpá-la. Eu teria que ficar muito bêbada
para sequer pensar em dormir com o Senhor do Fogo! — Todos
riram.
Ela se perguntou como Vhalla Yarl tinha sido tão cega em
relação aos comentários. Mas aquelas palavras permaneceram em
sua mente. Permaneceram até praticar com Daniel naquela noite,
quando as deixou irem embora através de seus movimentos de pés
e balanços de espada gradualmente menos desajeitados.
— Você está melhorando, sabe, — ele encorajou mais tarde,
enquanto descansavam lado a lado.
— Estou? — Ela rolou para encará-lo.
— Está. — Ele sorriu.
Serien fez algo que ainda não tinha feito. Ela sorriu em resposta.
A expressão derreteu dos lábios de Daniel enquanto ele a
encarava, como se percebesse a mesma coisa. — Vha-Serien, —
ele se corrigiu, lembrando de como ela implorou para que ele não
fizesse isso na última vez em que usou o seu nome. Isso tirou a
força de Serien e a lembrou de todas as coisas que estavam
quebradas no mundo. Ser Serien estava se tornando mais fácil.
— Sim?
— Posso tocar em você?
A pergunta a pegou de surpresa e ela piscou na direção dele,
tentando ver seu rosto melhor através da escuridão. Ela se
aproximou mais em sua tentativa, mas foi inútil. A lua estava
começando a minguar e, com isso, as noites se tornavam mais
escuras.
— Que tipo de pergunta é essa? — Ela sussurrou.
— Jurei que não iria, — ele a lembrou. — Mas eu quero.
— Quanto? — Seu coração estava começando a bater
furiosamente no peito.
— Ainda não sei. — Daniel se aproximou. — Mas quero
descobrir. Posso?
Ela engoliu em seco, sua garganta grudenta. — Pode.
A palavra escapou... Serien nem sequer sabia que ela estava
escondida dentro de si. As pontas ásperas dos dedos dele,
calejadas por anos de espada, roçaram sua testa, sentindo onde
seu rosto estava na escuridão. Eles congelaram, traçando
lentamente sua têmpora, indo para baixo, sobre a curva da
bochecha, ao longo da mandíbula, até o queixo. Eles roçaram os
lábios e o nariz, como se ele fosse um artista tentando recriar a
imagem dela.
— Daniel... eu... — sua voz falhou. Lágrimas ameaçaram brotar
da dor em seu peito que poderia dividi-la em duas. Ele era muito
gentil.
— O que? Você o que? — Areia afundou embaixo do corpo
masculino quando ele se aproximou ainda mais. Serien podia sentir
seu calor agora. Ele era mais quente do que ela esperava que
fosse, e isso era um conforto muito tranquilizante. — O que nós
somos?
Serien abriu a boca, tentando formular uma resposta - mas não
tinha uma. Ela não sabia como deveria chamá-lo, chamá-los. Ele foi
além de seu dever como amigo e, sem que notasse, começou a
preencher os buracos que sua vida anterior deixara nela. Ele a
confortava durante a noite e acalmava os medos que surgiam
durante o dia.
Ela fechou os olhos e se afastou. — Estou cansada.
Daniel não fez a pergunta novamente.
Demorou pouco mais de duas semanas para Craig finalmente
confrontar Daniel sobre sua nova indiferença e hábitos estranhos.
Em certa altura, Craig finalmente fez parte do complô. Chocou
Serien o fato dele precisar se sentar bem diante de si e
praticamente terem que dizer a ele para notar a mulher cujo corpo
ela estava habitando.
No momento em que percebeu quem era, ele jurou protegê-la
também, e ela teve dois professores depois disso. Serien não tinha
percebido que sua monopolização sobre o tempo de Daniel estava
fazendo-o ficar sobrecarregado, mas no momento em que não
precisou mais estar com ela a cada segundo após a marcha, o
Oriental estava ocupado fazendo outras coisas - atendendo às
demandas de Baldair ou ajudando a administrar o acampamento.
Ela estava zangada com ele por não ter dito-lhe que tinha sido um
fardo, e se certificou de que ele soubesse disso.
Daniel apenas riu. Teria feito isso por ela independentemente do
que custasse, ele a assegurou.
Serien tinha nascido de sangue e morte, mas até mesmo ela
estava começando a ver o sol nascer em todas as suas cores.
Talvez tenha sido o apoio incansável de Daniel - e Craig. Ou talvez
fosse porque cada dia a levava para mais perto do último posto
avançado do Oeste, onde o exército se dividiria e ela estaria com
Aldrik novamente.
Alguns soldados haviam chamado o último posto avançado de
“forte”, mas esse termo era muito vago. Tinha um muro improvisado
construído com gigantes barrotes de madeira e argila prensada,
mas por dentro havia pouca coisa diferente dos aglomerados de
tendas gloriosas que ela já conhecia. Não havia pompa ou
formalidade aqui, nem aplausos, bandeirolas ou cerimônia. Esta era
a borda da guerra, e não havia tempo para tais idéias frívolas.
— Vamos descansar aqui essa noite, — o Imperador gritou para
as tropas, sua voz sendo transmitida pelo deserto. — Quando
marcharmos amanhã, avançaremos como três exércitos.
Os filhos do Imperador o flanqueavam à esquerda e à direita.
Cada um dos membros da realeza tinha a figura sombria que nunca
saía do lado de nenhum deles. Além da poeira em suas capas, as
Andarilhas do Vento não pareciam diferentes do que tinham estado
quando deixaram as Encruzilhadas.
— Cada legião será dividida entre meus filhos e eu. Cada um de
nós seguirá uma rota separada para Soricium para aumentar nossas
chances de sucesso.
Serien reconheceu o nome da capital do Norte, o último grande
bloqueio à vitória do Império. Ela cruzou os braços sobre o peito.
Usando as memórias da outra mulher, um sorriso apareceu em seu
rosto sabendo que Vhalla Yarl uma vez aconselhou o Imperador
sobre dividir a realeza.
— Seus majores e comandantes anunciarão suas designações
amanhã. Preparem-se para a guerra.
S ERIEN ESTAVA DEITADA E ACORDADA, ouvindo a respiração de Daniel.
Ela observou o peito dele subir e descer à luz do luar, pontuado
pelos suspiros suaves da terra dos sonhos. Ela se perguntou o que
ele via por trás dos olhos fechados. Seus sonhos não poderiam ser
tão torturados quanto os dela.
Estar perto dele estava se tornando dolorosamente normal. Ela
sentia falta de Fritz e Larel com uma dor que nunca poderia ser
preenchida. Mas Daniel era gentil e cuidadoso. Ele era atento e
antecipava suas necessidades de um jeito surpreendente.
Serien rolou em seu lado da tenda. Se as coisas tivessem sido
diferentes, o que eles seriam? Ela mordeu o lábio.
— Tem certeza de que essa é uma boa ideia? — Mesmo como
um sussurro abafado, a voz do Príncipe Baldair foi carregada pelo
vento.
— Quantas vezes eu preciso te dizer? — Uma voz profunda e
sombria como a meia-noite retrucou - seus tons sussurrantes
ecoando diretamente através de Serien e atingindo uma mulher que
estava sendo reprimida por semanas. — Não vou aceitar de outra
maneira.
— Você e ela... — As vozes aumentaram ao se aproximarem, e
Serien ouviu dois pares de passos na areia passando pela tenda de
Daniel.
— Mais uma vez, quantas vezes eu preciso te dizer? — Ela
podia vê-lo beliscando a ponte do nariz em sua mente.
— Eu sei, — Baldair murmurou em descrença. — Você pensou
bem nisso, certo?
A pergunta foi ignorada. — Como ela está? — As vozes
começaram a enfraquecer.
— Bem cuidada. Eu tenho meus próprios homens cuidando dela.
Eles estão reportando para mim e eu cumpri minha promessa,
irmão: ela teve tudo o que precisava para ficar bem.
Serien olhou para Daniel.
— Você quer dizer o Oriental.
— Como você sabia? — Baldair parecia tão surpreso quanto
Serien.
— Eu preciso falar com... — Seus sussurros silenciosos estavam
quase fora do alcance dos ouvidos dela.
Ele estava ali. Ele estava bem ali, uma voz no fundo de sua
mente ecoou. Se saísse agora, o veria. Serien sabia que não podia
se permitir fazer isso. Ela tinha sido tão cuidadosa em evitar a
Legião Negra a todo custo... sabia o que vê-lo faria com a outra
mulher dentro de si.
Quando a voz dele desapareceu completamente, seus pés
estavam sob si, movendo-se sem pensar. Serien se apressou para
fora da tenda, rezando para que não tivesse acordado Daniel. Ela
viu ambos à distância, os dois príncipes lado a lado, caminhando em
direção à tenda de Baldair. Uma pequena chama iluminava o
caminho deles, e Serien cambaleou em direção a ela, hipnotizada.
O corpo esbelto dele estava envolto em preto como se fosse
feito a partir da própria noite. Seus dedos elegantes curvavam-se
em torno de si mesmos às suas costas. Sua presença irradiava a
essência da elegância para todos que o contemplassem.
— Aldrik, — ela sussurrou.
Deveria ter sido impossível que ele a ouvisse, mas o príncipe
herdeiro virou-se de qualquer maneira. Ele congelou como se
estivesse vendo um fantasma. Baldair se virou também, curioso
para ver o que havia cativado tanto seu irmão. No segundo em que
a viu, ele soube.
Ela deu outro passo à frente, e Aldrik não disse nada, seus
braços repentinamente flácidos ao lado do corpo. Serien cambaleou
através do espaço entre eles. Seus olhos estavam perdidos nos de
Aldrik e o príncipe herdeiro também parecia não enxergar mais
nada. Ambos estavam alheios aos olhares nervosos de Baldair em
todas as direções procurando por algum espectador.
— Vhalla, — ele sussurrou, estendendo a mão em sua direção.
O príncipe Baldair agarrou o pulso do irmão. — Na minha tenda.
— Ele deu à ela um olhar aguçado, e a garota rapidamente seguiu
atrás deles.
No momento em que ambos estavam dentro, as mãos de Aldrik
estavam no cabelo dela. Seus longos dedos entrelaçaram-se nos
fios escuros, como se ele tentasse se envolver na própria essência
da garota. Ela sentiu Serien derreter e, sem a armadura da outra
mulher, Vhalla estava tão nua quanto um bebê, exposta para o
mundo e para as emoções que guerreavam dentro de si.
Ela inclinou a cabeça para cima, agarrando o rosto de Aldrik e
puxando-o em sua direção. O príncipe obedeceu, mergulhando seu
corpo alto para colidir os lábios contra os dela. A cota de malha dele
cravou em seu peito, e os dedos dela arranharam contra os elos,
procurando por aderência para agarrá-lo. Ela estava desesperada
por ele, pela vida que somente o príncipe poderia suscitar em si.
Baldair pigarreou, tentando chamar a atenção dos dois. Aldrik se
afastou por apenas uma fração, seus olhos procurando o rosto dela.
Suas mãos correram pelas bochechas de Vhalla, depois pelo
pescoço e pelos ombros. Ele olhou para ela, para a criatura
quebrada e cheia de cicatrizes que ela era agora, maravilhado.
— Vou ficar com Raylynn essa noite, acho, — anunciou Baldair.
Ambos se viraram para ver a aba da tenda se fechando
novamente. Vhalla sentiu um rubor esgueirar-se pelas bochechas
por conta de seu atravimento diante do irmão de Aldrik. Mas a mão
que agarrou seu queixo trouxe os lábios do príncipe aos seus mais
uma vez, apagando todo e qualquer pensamento restante.
Cada ligeiro virar de cabeça dele, cada movimento dos lábios
úmidos sobre os seus, era um êxtase que ela não tinha conhecido
até a primeira vez em que o beijou. Era o sabor mais doce que já
havia experimentado, que só ficava melhor a cada segundo que
passava. Era a coisa perfeita para se perder e esquecer a dor. Aldrik
afastou o corpo, provocando um gemido dela.
O príncipe arrogante sorriu contra sua boca. As mãos dele se
atrapalharam com a própria cota de malha, puxando-a sobre a
cabeça entre beijos. A vestimenta caiu pesadamente na areia, e ele
pressionou o corpo contra o dela mais uma vez.
Era uma dança que somente eles conheciam os passos, cada
movimento proposital. As mãos dele, as mãos dela, a boca dele, a
boca dela, seus corpos, todos se moviam com perfeita precisão. A
parte de trás de seus tornozelos atingiram a cama de Baldair e
Vhalla foi empurrada sobre ela. Carregar uma coisa dessas na
marcha agora parecia muito pragmático, e ela tinha que se lembrar
depois de dar os créditos ao príncipe mais jovem.
Suas mãos caíram sobre os quadris de Aldrik, os polegares
passando sob a bainha da camisa masculina. Macia, Mãe acima, a
pele dele era macia. A palma dele corria preguiçosamente para cima
e para baixo na laterais de seu corpo, se agarrando à blusa de vez
em quando, empurrando-a para cima e expondo sua própria pele
nua às pontas quentes dos dedos dele.
Aldrik interrompeu o beijo, sem fôlego e corado. O peito de
Vhalla arfava quando o encarou, os rostos próximos. Ele não disse
nada, mas seus olhos prometiam um mundo de desejo quase
impossível de conter. Vhalla agarrou o pescoço dele e puxou seus
lábios de volta para os dela. Ele não podia olhar para ela assim sem
beijá-la. Aldrik obedeceu ao seu comando avidamente, e descartou
qualquer idéia anterior de invadir sua boca de forma tímida.
Seus dedos passaram em volta do pescoço dele, descendo pela
clavícula e mais abaixo, pela grande abertura da camisa. Ela
acariciou a pele exposta do peitoral. Aldrik inclinou a cabeça,
devorando sua clavícula.
— Eu quero sentir você, — ela gemeu suavemente. Era um som
que deveria ter vergonha de fazer. Mas sua cabeça estava muito
nublada para isso. Não era sua mente que estava no controle.
Aldrik se endireitou, os joelhos em ambos os lados das pernas
dela, ainda na beira da cama. Ele a olhou, incerto, inseguro,
processando suas palavras. Agarrando as costas da camisa, ele se
inclinou para frente, puxando-a sobre a cabeça e descartando-a
junto com a cota de malha no chão.
Vhalla o olhou. Seu coração podia bater ou ela podia respirar,
fazer as duas coisas era demais para o seu corpo agora. Ele era
esbelto, com músculos sinuosos e definidos que curvavam-se sob a
palidez fantasmagórica de sua pele. A pequena chama projetava
sombras profundas em seu abdômen. Havia uma cicatriz feia na
parte direita da cintura, outra em seu ombro e algumas pequenas
aqui e ali. Ele estava quase magro demais e o brilho que o fogo
evocava em sua pele podia beirar ao doentio. O nariz era um
pouquinho torto e seu rosto era anguloso e afiado.
— Você é perfeito, — ela sussurrou.
Aldrik parecia ter sido pego completamente de surpresa. Outras
mulheres claramente não pensavam assim.
Vhalla ergueu as mãos, procurando por ele, e o príncipe herdeiro
concedeu seu pedido, erguendo-a e realocando o corpo dela de
forma mais apropriada na cama. Sua boca estava sobre ela mais
uma vez, as mãos explorando a forma feminina.
— Eu quero você, — ele disse com a voz rouca.
— Me tenha. — Vhalla nunca foi tão descarada. Mas este
homem era o próprio fogo. Ele era vida. Ele era a única coisa que
era boa ou parecia certa em semanas, e ela o amava tão
profundamente que a deixava dolorida pensar em se separar dele
novamente algum dia.
— Não, — ele disse, como se a palavra fosse uma maldição.
— O que? — Os olhos dela se abriram, trêmulos, apenas para
encontrá-lo encarando-a.
Os olhos dele também estavam pesados com o desejo. Aldrik
estava tão bêbado de paixão quanto ela. — Eu não vou tomá-la
assim. — Ele acariciou sua bochecha.
— Por quê? — Ela gemeu.
— Porque me importo muito com você para tê-la de maneira tão
arbitrária. — Ele traçou beijos pela mandíbula dela, suas ações
contradizendo completamente suas palavras.
— E se eu quiser que você faça isso? — Vhalla não podia
acreditar que estava quase a ponto de implorar.
Ele também não, e Aldrik riu sombriamente. — Você vai me
querer menos quando amanhecer?
— Pela Mãe, não. — Ela fechou os olhos com força - pensar no
amanhecer, em ser Serien novamente, em estar distante dele,
ameaçava esmagar seu espírito.
— Você vai me querer menos no amanhecer seguinte? — Ele
mordeu levemente sua clavícula, afastando a blusa dela com os
dedos gananciosos. — Ou no próximo?
— Não, não, não, — Vhalla proferiu, rezando para que ele nunca
parasse o que estava fazendo.
— Então esse deverá ser um fruto que vai amadurecer com
tempo e paciência. — Aldrik pressionou a bochecha sobre a dela,
seus lábios movendo-se contra a orelha de Vhalla enquanto falava.
— E será ainda mais doce quando finalmente for colhido.
Haviam promessas sombrias acumuladas entre suas palavras
que foram seladas com ações. Com nada mais que beijos e
explorações tímidas, ele instigou um rubor que ia de seu peito até as
bochechas, e que tornava sua respiração pesada. Vhalla ficava
louca toda vez que seus dedos corriam sobre os músculos tensos
nos ombros dele. Ela estava pronta para gritar o nome do príncipe
quando seu fogo brilhou através da pele dela, crepitando contra a
magia de Vhalla.
Eventualmente, ele rolou para o lado, puxando-a para cima dele
com os braços em volta do seu quadril. Aldrik passou a mão pela
extensão de suas costas enquanto ela o beijava lentamente. Vhalla
não tinha certeza de quando ou por que o calor desapareceu, mas
quando isso aconteceu ela se viu enrolada contra o peito nu do
príncipe, a cabeça aconchegada entre o pescoço e o queixo dele, e
o braço de Aldrik em volta dela. A paixão se transformou em um mel
quente, que fervia na boca de seu estômago.
— Aldrik... — Seu sussurro se transformou num bocejo.
— Sim, minha Vhalla? — Ele respondeu.
Ela sentiu a voz dele reverberar em ambos seu pescoço e peito,
e isso a fez tremer. — Nada... eu só queria ouvir você dizer o meu
nome.
— Vhalla, Vhalla, Vhalla, — ele disse, pontuando cada palavra
um com um beijo em sua testa.
— Se a manhã nunca chegasse, acho que tudo ficaria bem... —
Seu corpo estava começando a relaxar, e os bocejos se tornando
mais frequentes.
— Acho que ficaria, — ele concordou, puxando-a para mais
perto.
— Estaremos juntos, a partir de amanhã? — Ela não tinha
ousado perguntar até então, com medo da resposta. Mas se tivesse
que esperar o pior, queria saber logo. Ela precisaria da noite para se
preparar.
— Eu mesmo escrevi a lista de soldados. — Aldrik assentiu. —
Não vamos nos separar nunca mais a partir de amanhã.
— Esse não é um sonho agradável? — Ela bocejou novamente.
— Minha Vhalla, minha lady, meu amor. — As palavras dele
suavizaram as arestas ásperas do seu coração. — Você me faz
fazer coisas muito mais perigosas do que sonhar. Você me faz ter
esperança, você me faz querer. — Ele suspirou, um som que era
parte felicidade e parte dor. — Mãe acima, ainda não descobri se
você será minha salvação ou a minha ruína.
Ela se contorceu para olhá-lo, e seus olhos escuros eram
intensos.
— Eu nunca te machucaria. — Ela apertou os lábios contra os
dele.
— Salvação, então. — Ele sorriu contra a boca dela.
A manhã ameaçou queimar através das abas da tenda, e Vhalla
sentiu como se o mundo começasse e terminasse com o homem no
qual ela estava enrolada. Sua respiração e batimentos cardíacos
estáveis estavam em perfeita sintonia com os dela, e criaram uma
melodia que tinha um timbre doce. Não completamente acordada,
mas também não mais dormindo, Vhalla flutuou através de uma
névoa feliz.
Uma névoa que foi abruptamente interrompida por um príncipe
de ombros largos entrando na tenda. Vhalla sentou-se rapidamente,
como se fazer isso pudesse esconder a verdade de passar a noite
nos braços do príncipe herdeiro. Era uma competição para ver qual
o rosto estava mais vermelho - o dela ou o de Baldair.
— Bons deuses, vocês ainda estão aqui? — Ele tapou os olhos
com as mãos quando Aldrik sentou-se também, as cobertas se
concentrando em sua cintura e revelando que ele estava apenas
parcialmente vestido. — Irmão, sua dívida comigo é grande em
níveis colossais.
Vhalla olhou para Aldrik alarmada, apenas para ver que ele tinha
um sorriso preguiçoso se espalhando de bochecha a bochecha. Ele
virou-se para ela, parecendo cinco anos mais jovem com uma boa
noite de sono. Aldrik a agarrou para um breve beijo - surpreendente
apaixonado, dada a platéia.
— Meu irmão está certo, — Aldrik sussurrou. — Eu preciso ir ou
eles vão se perguntar onde estou.
Ela assentiu.
— Espere por mim até esta noite?
— Esta noite? — Ela piscou para o príncipe.
— Estaremos juntos de novo com muito menos olhos sobre nós.
— Aldrik sorriu.
— Em território inimigo! — Ela deu um soco no ombro dele,
surpreendentemente brincalhona, dado o assunto.
— Vou botar os melhores homens de vigia. — Ele agarrou a mão
dela e levando-a à boca, beijando os nós dos dedos.
— Quando quiserem, sabe, — murmurou Baldair, claramente
desconfortável pelos amantes apaixonados que haviam
compartilhado sua cama.
— Infelizmente, ninguém sequer vai pensar duas vezes sobre
uma mulher saindo da sua tenda, — Aldrik murmurou, ficando de pé
e se vestindo. — Então eu vou primeiro. — Ele virou para Baldair. —
Obrigado, irmão.
Havia uma sinceridade crua que Baldair claramente não estava
acostumado a receber de seu irmão. Trouxe um sorriso aos lábios
de Vhalla poder ter presenciado isso. Os dois não eram tão ruins
quando paravam de brigar.
Aldrik lançou a ela um último olhar, como se estivesse
memorizando-a. Vhalla assentiu. Ela só tinha que ser forte por mais
um curto tempo, ela poderia fazer isso. Então, naquela noite,
encontraria o caminho para os braços dele novamente. Só de saber
esse fato, já a mantinha sã.
Baldair foi até a cama no segundo em que seu irmão saiu,
avaliando-a. Vhalla o olhou com cautela. — É real, então.
— O que?
— Você e Aldrik. — Baldair mal conseguia dizer isso, como se
proferir as palavras pudesse trazer a ira da Mãe sobre ele.
— Eu o amo. — Ela assentiu. — E ele me ama.
— Vhalla... — Baldair suspirou e sentou-se ao lado dela na
cama. — Por favor, tenha cuidado.
— Mais avisos? — Ela fez uma careta.
— Não como antes. — Baldair balançou a cabeça. — Nunca vi
Aldrik assim, e sei que os sentimentos dele não são fingimento ou
manipulação.
— Eu tentei te dizer isso. — Ela não conseguiu esconder a
frustração. — Ele nunca me machucaria.
— Não é disso que eu tenho medo agora. — Baldair balançou a
cabeça. — Vhalla, ele é o príncipe herdeiro.
— Eu sei disso. — Ela agarrou o lençol com as juntas brancas.
— Por que você pode ser o príncipe mulherengo, pode perseguir
qualquer coisa que lhe apeteça, e ele é castigado por passar um
tempo comigo? Nós nem sequer… — Ela conteve a si mesma,
corando.
— Porque não herdarei a coroa. — O príncipe a considerava
com uma sinceridade intensa. — Sou um suplente, Vhalla. Ninguém
se importa com o que eu faço, eles se importam com o que ele faz.
— Mas eles amam você. — Não era segredo quem era o favorito
das pessoas Comuns.
— Eles me amam porque eu nunca tenho que aplicar punições,
realizar execuções ou cobrar impostos. Eu organizo festas e abro
tonéis de vinho. — Baldair balançou a cabeça. — Eles não gostam
dele porque Aldrik será um governante justo. Ele não se importa em
ser amado, ele se importa em fazer o que é certo.
— E o que há de errado com...
— Até você. — Baldair colocou a palma da mão no topo da
cabeça dela. — Você é a primeira coisa que eu já o vi querer tomar
para si.
— Onde você quer chegar? — Vhalla já sabia que não iria
gostar.
— Isso também significa que você é a primeira coisa que o
mundo sabe que pode tirar dele.
Ela congelou no lugar e lembrou-se das palavras de Lorde
Ophain: a falha na armadura dele. Tão profundo quanto o Vínculo
deles era, ela ainda estava aprendendo sobre seu príncipe, e Vhalla
viu o homem conhecido como Senhor do Fogo por uma outra
perspectiva. Sua reputação, seus títulos - eles o elevaram e o
protegeram melhor do que qualquer aço forjado ou couro fervido.
— Mas vou tentar garantir que isso não aconteça. — Baldair
ficou de pé, a ajudando a se levantar.
— Por quê? — Ela olhou para ele com ceticismo. — Não tenho
interesse em criar dívidas.
Ele riu alto. — Essa não é a razão de eu estar fazendo isso.
Tenho muito para redimir quando se trata do meu irmão. Talvez não
tenha percebido o quanto, até vê-lo feliz novamente. De qualquer
maneira, considere-me sua espada, Vhalla Yarl.
Ela o avaliou de modo pensativo. Ele poderia estar mentindo.
Mas Baldair nunca pareceu ser intencionalmente maldoso. Mesmo
com as ações que anteriormente a desagradaram, ela não podia se
ressentir dele. Se pudesse acreditar em sua palavra, ele tinha boas
intenções.
Vhalla ergueu a mão. — Então considere-me o seu vento.
Baldair sorriu e apertou a mão contra a dela.
Era difícil ser Serien quando Vhalla estava tão feliz, mas ela
vestiu o disfarce da outra mulher - mentalmente, de qualquer
maneira. Serien era o que ela tinha que ser, tudo o que podia ser à
luz do dia. Ser qualquer outra coisa a faria ser notada, e ela estava
começando a descobrir que gostava de não ser importante.
— Aí está você! — Daniel acenou, chamando-a para tomar café
da manhã, e Serien sentou-se entre ele e Craig. — Eu estava
preocupado.
— Me desculpe por isso. Eu fui dar uma volta, — ela mentiu
facilmente e nenhum dos homens a questionou. Serien se
perguntou se os velhos amigos de Vhalla a chamariam de péssima
mentirosa agora.
Daniel e Craig permaneceram tranquilos enquanto os outros
soldados estavam começando a ficar com medo. Esta era a terceira
viagem dos dois homens, e eles sabiam o que esperar. Serien
pensou em perguntar o que encontraria lá, mas fazer isso era inútil.
O que a esperava estaria lá de qualquer modo, não importando
quais palavras eles compartilhassem com ela. Mas ela sabia quem
iria enfrentar.
Então, quando o exército estava sendo dividido, Serien
caminhou com confiança para o grupo de Aldrik. Nenhum dos
majores a havia instruído a fazer isso, mas um vislumbre dos olhos
do príncipe e ela sabia que estava no lugar certo. Eles enfrentariam
o Norte juntos. Serien fechou as mãos em punhos, abrindo uma Via
que ela não deveria possuir.
O exército começou a se acalmar e o Imperador cavalgou para a
frente. — Antes de marcharmos, houveram algumas mudanças nos
agrupamentos visando potencializar as habilidades dos nossos
soldados, — anunciou ele. — As seguintes pessoas mudarão para o
grupo do príncipe Baldair...
O Imperador listou alguns nomes e um punhado de soldados dos
grupos dele e de Aldrik tomaram seus novos lugares.
Ele listou mais alguns nomes, — ...irão passar para o grupo do
príncipe Aldrik. — Mais barulho de armaduras em movimento se
seguiu. Serien mudou o peso de um pé para o outro. Ela estava
pronta para ir.
O Imperador continuou a falar mais alguns nomes, de repente
chamando sua atenção, — ...e Serien Leral. Vocês estarão sob meu
comando.
O homem mais poderoso de todos os reinos de algum modo a
encontrou entre as centenas de soldados, embora não pudesse ter
sido tão difícil assim, pois, como uma tola, ela se colocou ao lado de
Aldrik. Serien olhou para o príncipe, o pânico proveniente da outra
mulher e se erguendo como bile em sua garganta.
O príncipe alternou entre olhar furioso para o pai e olhar
desesperadamente para ela.
Ela não podia recusar, e seu príncipe não podia falar em seu
nome, não na frente de todas essas pessoas. Serien obrigou os pés
a voltarem à vida. Eles estavam sendo separados. O Imperador
havia feito isso apenas para irritá-los. Serien queria gritar, queria
derrubar o Imperador de cima do cavalo de guerra gigantesco com o
vendaval mais forte que ele sentiria na vida.
As emoções de Vhalla surgiram dentro de si: o medo do
abandono, o medo de seus amigos morrerem enquanto ela estava
longe e impotente. Mais tarde, Vhalla e todas suas emoções
escapariam. Aquela mulher trêmula e agitada romperia a força de
Serien e abriria caminho com suas garras afiadas até a superfície.
Ela choraria pela injustiça de tudo isso, pelos avisos que ignorou e
por sua esperança cega.
Mas, naquele momento, ela se manteria no controle. Ela seria
Serien, e ela manteria sua dignidade. Serien ergueu a cabeça o
mais alto possível, alto o suficiente para esticar sua garganta e
conter as lágrimas e os gritos. Ela não daria ao Imperador a
satisfação de ver seu último fragmento de esperança sendo
esmagado sob a bota dele.
A S FLORESTAS DO Norte eram diferentes de tudo o que Serien já
tinha visto antes. As Florestas do Sul tinham troncos altos, com
alguns matagais e árvores baixas, mas sua característica principal
era o tapete de galhos e folhas que cobria o chão. O Norte era um
contraste denso e opressivo. Arbustos e árvores se fechavam em
todos os níveis possíveis, trepadeiras tão grossas quanto seus
braços se enroscavam como teias de aranha pelos galhos acima.
A cobertura que as árvores criavam era espessa, e tudo era
projetado com uma sombra verde nebulosa. Apesar de estar no
meio do inverno, a umidade do ar instantaneamente tornava o clima
um pouco quente demais para a quantidade de armadura que ela
usava.
O terreno os atrasou, e todas as pessoas ficaram mortalmente
silenciosas desde o momento em que entraram na floresta. Havia
um limite abrupto nas areias do Deserto Ocidental. Um sinal claro
criado por árvores queimadas e cortadas marcava onde o Império
terminava. Era estranho pensar em si mesma não mais estando no
Império Solaris.
Com um passo, o mundo que ela conhecia terminou.
Mas não tinha sido apenas um passo. Foram inúmeros passos
que a levaram até ali, e todos começaram com uma noite chuvosa e
um príncipe ferido. Nem todos eles foram dados com confiança, e
alguns a levaram à armadilhas, mas ela estava estranhamente feliz
por tê-los dado.
Agora, porém, ela não sabia onde seus pés a levariam. Serien
estava a poucos passos do Imperador e da falsa Andarilha do
Vento. Ela olhou para o homem pelos cantos dos olhos. Ele
cavalgava confiante no topo de seu garanhão de guerra, mas seus
ombros o traíam. Apesar da idade, ele estava atento, alerta, de olho
em todos os lugares em que uma ameaça poderia aparecer.
Guerra era o seu domínio, sua arte e seu legado. Ele tinha
sitiado um continente inteiro e o varrido sob sua bandeira em uma
só vida. Serien se virou para frente novamente antes que ele tivesse
a chance de notar que o estava encarando. Ela desejou que um
ataque acontecesse. Ela queria ver esse homem em ação com seus
próprios olhos.
Mas o dia transcorreu sem intercorrências e, quando a noite
caiu, não houveram ataques. Eles dormiram sob as árvores caídas e
se amontoaram debaixo dos arbustos. Não houveram fogueiras ou
discussões joviais. Não haviam sequer tendas montadas. Serien se
encolheu debaixo de uma árvore jovem, puxando o musgo em sua
direção. As noites que dormiu ao ar livre a haviam preparado para
isso. Ela endureceu a si própria e aprisionou as lágrimas por mais
uma hora, e depois mais outra e então também na hora seguinte.
No terceiro dia, ela ainda não tinha chorado. Suas emoções em
relação ao Imperador e a alteração que ele fizera estavam
começando a esfriar e a imitar seus sentimentos em relação ao
Chefe Eleito do Senado, Egmun. Ela já tinha visto isso como Vhalla,
e agora como Serien - as ações de homens que queriam quebrá-la.
Infelizmente para eles, não se podia quebrar o que já estava
quebrado.
Foi no sexto dia que os ouvidos de Serien perceberam um
movimento nos arbustos acima. Ela ergueu a cabeça e viu correntes
de ar movendo-se pelos galhos das árvores. Havia algo antinatural
que pairava na borda do vento, e Serien percebeu um momento
tarde demais que era o som de respirações.
Os Nortenhos desceram sobre eles em queda livre. Choveram
punhais que imediatamente encontraram os crânios de soldados
infelizes. Serien tentou pegar seu capuz de cota de malha, soltando
uma maldição por ter esquecido que não estava mais na armadura
de Vhalla Yarl.
— Domadores de Fogo! — O Imperador gritou.
Os soldados da Legião Negra correram pelo perímetro, criando
um muro de chamas. Os Nortenhos foram atacados por flechas e
línguas de fogo mágicas que tinham como objetivo queimar o
arbusto alto que crescia de modo não natural para ampará-los. Um
deles caiu diretamente diante dela, o corpo quase explodindo por
conta do impacto no chão após uma queda tão longa.
Serien respirou fundo, tentando avaliar a situação deles. O vento
sussurrou para ela mais uma vez.
— Preparar, à esquerda! — Ela gritou. Serien sacou a espada
enquanto todos, incluindo o Imperador, a olhavam confusos.
Mas seu aviso foi validado no segundo em que mais Nortenhos
foram carregados pelas chamas, montados nas costas de feras
gigantes que eram diferentes de tudo que Serien já vira. Era uma
criatura parecida com um gato, com articulações duplas nas pernas
traseiras e garras maiores que a coxa de um homem. Seu pelo
grosso era liso e o que quer que estivesse sobre ele era
impenetrável às chamas pelas quais o animal saltou.
Mais dois chegaram, carregando ainda mais condutores, que
rapidamente desmontaram, entrando na briga com suas posturas de
espada dupla. O primeiro estava correndo em direção ao Imperador
e à Andarilha do Vento, ambos sendo seu alvo claro. O Imperador
sacou sua espada, posicionando a montaria de modo destemido
para a enfrentar o Nortenho de frente.
Não houve sequer um combate. O cavalo moveu-se sob o
comando de seu cavaleiro, e o Imperador Solaris moveu-se como se
os inimigos tivessem contado a ele todos os ataques que fariam. Ele
arrancou a cabeça do homem com um só golpe, esquivando-se de
todas as lâminas.
Os Nortenhos não pareciam interessados em se envolver com
nenhum dos soldados comuns, e coube ao exército Imperial lutar
para impedir os avanços e os saltos dos inimigos em direção à
Andarilha do Vento. No entanto, em algum lugar no meio do caos,
ela conseguiu ouvir o som de uma corda do arco sendo esticada.
Serien virou-se, encontrando imediatamente o arqueiro empoleirado.
A flecha estava mirada diretamente para o Imperador, que
estava envolvido em um combate acalorado. Ela engoliu o orgulho e
estendeu a mão. A flecha parou no momento em que o Imperador
estava prestes a virar o rosto na direção do projétil. Ele não foi
capaz de esconder o espanto quando a flecha caiu no chão
inofensivamente.
Dois olhos cerúleos encontraram os dela. Não havia apreço lá,
nem um pingo de gratidão. Serien apertou a mandíbula e perdeu o
som de outra flecha sendo atirada.
Quando eles ouviram, já era tarde demais.
A falsa Andarilha do Vento foi derrubada de sua montaria, e ela
caiu para trás e para fora da sela, com uma flecha projetando-se
para fora do rosto. A comitiva Imperial olhou em choque, e os
Nortenhos rugiram diante da vitória, fazendo um recuo calculado.
Um a um, os soldados Imperiais se voltaram para o Imperador com
apreensão.
— Deixe-a aí. — O Imperador virou o cavalo para a frente.
Serien permaneceu, mais do que provavelmente deveria ter
permanecido, para encarar o corpo da mulher morta. Poderia ter
sido ela. Aquela mulher tinha morrido por Vhalla Yarl, e Vhalla Yarl
nem sequer sabia o seu nome.
A terra ficou mais rochosa à medida que se elevava. Serien
sabia que não havia montanhas no Norte, não como o Sul, mas
alguns dos penhascos estavam começando a crescer em uma
escala impressionante. Naquela noite, eles tiveram a sorte de terem
grutas e cavernas para se esconderem. Foi a primeira vez que os
soldados puderam relaxar e a oportunidade foi aproveitada.
Serien se amontoou em um recanto da superfície rochosa,
protegida por todos os lados. Ela apoiou os cotovelos nos joelhos e
olhou apática para a bruma do pôr-do-sol. Eles já estavam em
marcha fazia uma semana. Mais duas e deveriam chegar a
Soricium. Ela apertou os braços com força. Ela veria Aldrik, então.
Considerar a outra alternativa seria demais para até mesmo Serien
suportar.
Dado o fato que essa era sua primeira oportunidade de
privacidade, ela não deveria ter ficado surpresa quando um
mensageiro a rastreou pouco depois do entardecer, guiando-a pelos
cantos das rochas em direção à uma pequena gruta. Ele saiu
rapidamente logo depois.
— Você queria me ver, meu senhor? — Ela disse, fazendo uma
continência formal - a continência de um soldado, não a da Legião
Negra.
— Sim. — O Imperador ficou de pé, colocando as mãos atrás
das costas. — Suponho que você queira agradecimentos por seu
ato de heroísmo.
Ela apertou os lábios, esperando que ele chegasse ao ponto;
esperando que chegasse na parte em que ele explicava a razão
pela qual esperou dias depois daquela batalha, do por que ele
esperou até que tivessem privacidade.
— Não é todo dia que um plebeu tem a oportunidade de salvar a
vida do Imperador. — Ele caminhou para o lado oposto de sua
pequena fogueira. Pelo modo como a luz iluminava seu rosto, ela
quase podia ver o rosto de Aldrik no dele.
— Foi uma honra. — Ele ia fazê-la jogar o jogo.
— De fato, — o Imperador concordou. — Foi mesmo, porque
você é minha. Sua liberdade, sua vida, seu futuro descansam em
minhas mãos, Vhalla Yarl.
O uso de seu nome deixou Serien em farrapos e minou a força
de seu alter ego.
O Imperador não perdeu o vacilar em seus olhos. — Quero que
o motivo pelo qual está aqui esteja muito claro para você.
— Eu sei o motivo.
— E qual é? — ele pressionou.
— Ganhar sua guerra. — Ela nem se incomodou em citar a
baboseira sobre expiar seus crimes. Serien - Vhalla - se perguntou
se ele havia decidido seu destino no momento em que pôs os olhos
no vendaval.
— Sim, muito bem. — Ele começou a andar mais uma vez. —
Eles disseram que você era inteligente.
Havia um brilho predatório em seus olhos que fez as mãos de
Serien se fechar em punho.
— Você sabe quem “eles” são? — O Imperador perguntou.
— Quem? — Ela tentou se esticar em toda a sua altura, para
que ele tivesse que olhá-la de cima da menor distância possível.
— Meu filho mais velho. — O desafio foi lançado.
O sangue de Serien ferveu. Era disso que se tratava. — Ele é
muito inteligente, meu senhor.
— Normalmente sim, — o Imperador murmurou enquanto a
inspecionava dos pés à cabeça. Ela já sabia que não estaria a
altura. — Falando nele, nossos dois grupos vão se fundir novamente
após o desfiladeiro, durante a etapa final da viagem.
Serien lutou para manter o rosto neutro; ela tinha certeza de que
falhou. O Imperador continuou a encará-la de cima. — Foi por isso
que me chamou aqui, meu senhor? Para me dizer isso?
O Imperador riu, divertido, por conta de sua atitude ousada. —
Não, eu simplesmente queria agradecê-la por sua atenção. É bom
saber que, quando se concentra no seu dever, você não é, de fato,
inútil.
— Obrigada. — Ela deu um passo para longe, fingindo ouvir a
dispensa que não estava na voz dele.
— Ah, e Senhorita Yarl. — Ela fez uma pausa. — Eu recomendo
que você mantenha essa concentração onde ela realmente deveria
estar, que é em chegar à frente de batalha e me dar a minha vitória.
Não vou tolerar suas diversões e fantasias femininas, ou suas ideias
equivocadas.
Serien cerrou os punhos com tanta força que as presilhas de
suas manoplas ameaçaram quebrar. Ela cerrou os dentes e apertou
a mandíbula. Ela ouviu as ameaças dele, em alto e bom som.
— Você me entendeu? — A voz do Imperador estava
mortalmente baixa.
— Perfeitamente.
A conversa martelava na mente de Serien enquanto andava
tempestivamente pelo acampamento, de volta ao seu esconderijo. O
diálogo passou repetidamente em sua cabeça enquanto ela lutava
para encontrar uma posição confortável o suficiente para dormir. E,
quando de fato adormeceu, o Imperador a cumprimentou em seus
sonhos…

O Imperador estava sentado ao lado dela. Não, não dela. Vhalla se


empurrou para fora do corpo onírico de Aldrik. O rosto dele estava
duro como pedra, e o fogo iluminava seus olhos. Ela seguiu o foco
da atenção dele e viu a si mesma, parte etérea e parte concreta, em
uma jaula familiar. Ela estava encolhida e trêmula, com sangue
pingando da parte de trás de sua cabeça e ao longo da mandíbula
em direção ao chão. A força que brilhava em seus olhos castanhos
era um truque de sombras; faltava a substância verdadeira por trás
da emoção. Isso era aparente, não apenas para ela, mas para o
homem cuja memória ela estava ocupando.
A mão dele se apertou em punho com tanta força que a pele
ficou pálida por conta da falta de circulação sanguínea. Foi
impossível para Vhalla ter visto isso do outro lado do tribunal
durante o julgamento original, mas a mandíbula dele estava cerrada
ao ponto de seu rosto tremer e ter espasmos. O Imperador estava
falando, mas aos ouvidos de Aldrik as palavras ficaram embaçadas
por causa da onda de raiva quente que inundava sua cabeça.
As emoções de Aldrik irradiavam claramente, não sendo filtradas
através da memória induzida pela Ligação, a medida que ele saía
do salão de audiências. Ele não podia olhar para ela. Se olhasse
para ela, ele quebraria. Se olhasse para ela, todos saberiam de sua
preocupação.
No momento em que as portas para os aposentos Imperiais se
fecharam atrás dele e de sua família, Aldrik aumentou seu ritmo,
dobrando a distância entre ele e o pai. Vhalla podia sentir sua magia
tremulando e pulsando com uma necessidade inegável -uma
necessidade de chegar até ela.
— Aldrik, — o Imperador chamou.
Ele congelou, virando-se. Seu rosto estava inexpressivo, mas ela
podia sentir o tornado de emoções rasgando seu peito. A visão do
pai o encheu de pânico.
— Preciso de você no conselho de guerra; o Norte está ficando
ousado demais e precisaremos combater essa agressão com força
bruta.
— Eu estarei lá em breve, — respondeu Aldrik rigidamente.
— Você virá agora. — O tom do Imperador era casual o
suficiente, mas algo perigoso brilhou em seus olhos.
Ela podia sentir Aldrik reunir sua coragem, uma coisa estranha
que ela nunca pensou que o homem conhecido como o Senhor do
Fogo precisaria fazer. — Claramente, a definição de zelo dos
guardas é deficiente, — a voz de Aldrik pingava veneno. — Eu
pretendo educá-los.
— Isso não te diz respeito. — O Imperador dispensou a ideia
com um acenar de mãos, seguindo em frente em um outro corredor.
— Diz sim. — Desespero inundou o peito de Aldrik e transbordou
no dela. — Eu te disse, ela pode ganhar sua guerra para você.
Estou apenas protegendo nossos interesses.
— E é por isso que eu não matei aquele monstro antes que
pudesse ver a luz do dia novamente. — O Imperador fez uma
pausa, olhando para o filho. — Os interesses do Império, Aldrik?
— Sempre pelo bem maior do nosso Império. — As palavras
eram ensaiadas. Elas foram ditas tantas vezes que eram vomitadas
da boca de Aldrik sem ele nem pensar, completamente vazias de
emoção. Elas eram tão ocas que Vhalla podia sentir a represa que
tremia no príncipe, segurando uma súplica, deixe-me ir até ela. —
Você não quer que ela morra, pai. Já te disse, posso treiná-la,
moldá-la…
— Certo, certo. — O Imperador virou-se para Baldair, que Vhalla
quase tinha completamente esquecido que estava lá. — Baldair,
chame um clérigo para cuidar do animal de estimação de Aldrik.
— Pai... — Baldair franziu a testa.
— Obrigado. — O Imperador ignorou completamente os tons de
reprovação na voz de seu filho mais novo.
Aldrik continuou de pé em silêncio enquanto o Imperador se
afastava. Vhalla sentiu sua resignação. Ela teve conhecimento de
sua aceitação sobre uma verdade mais profunda: que, apesar de
todos os seus desejos, ele não podia ir até a mulher a quem
desejava estar mais próximo do que qualquer outra pessoa.
— Baldair, — Aldrik sussurrou quando o Imperador estava longe
o suficiente.
— O que você quer? — Vhalla sentiu uma pontada de decepção
em Aldrik em relação ao desgosto que se entrelaçava às palavras
de Baldair.
— Vá até ela você mesmo, — exigiu Aldrik.
— O que?
— Vá até ela você mesmo, droga, — Aldrik sibilou. — Você me
deve.
— Eu não te devo nada. — Baldair cruzou os braços sobre o
peito.
— O que aconteceu com o cavaleiro nobre que proclama sua
proteção aos fracos e inocentes? — Aldrik zombou. Vhalla sentiu
sua satisfação quando viu a expressão de Baldair mudar. O príncipe
sabia exatamente quais palavras dizer para instigar seu irmão na
direção que ele queria. — Você me deve pelos últimos seis Elixires
da Lua que roubei dos clérigos sem que eles percebessem. A
menos que você queira que eu reconsidere esse acordo.
— Tudo bem, mas não por você, — Baldair bufou. — Pela
garota.
— Tudo bem. — Aldrik se afastou, satisfeito por um momento.
Seu pai estava poucos passos à frente, aparentemente alheio à
troca de palavras abafadas entre os filhos. Aldrik abriu e fechou os
punhos.
Ele amaldiçoou tudo o que já amou. Como algum dia poderia ter
pensado que estar perto dela poderia terminar bem? Como ele pôde
se permitir cruzar a linha com a garota até esse ponto?
As perguntas irradiavam pela mente de Aldrik e entravam na
consciência de Vhalla enquanto ele seguia pelo corredor
impetuosamente. Uma cadeira explodiu em chamas, um rompante
de emoção que não podia ser domado. Aldrik fez uma careta em
direção a ela e apagou o fogo.

Vhalla acordou tremendo no Norte com os pensamentos


surrupiados da consciência onírica de Aldrik. Ele tinha que manter o
controle. Ele não podia deixar que vissem. Ele não podia deixar que
soubessem o que ela era.
O SOLDADO DISSE que “o desfiladeiro” anteriormente era o maior rio
do mundo. Mas há muito tempo secou. Era difícil para Serien
acreditar que o cânion profundo e rochoso diante de si poderia
algum dia ter retido água.
Mas em algum lugar do outro lado do abismo, estava Aldrik. O
Imperador talvez pudesse ter desejado ameaçá-la em busca de sua
submissão, mas tudo o que fez foi dar-lhe um momento específico
ao qual esperar. Mais um dia, talvez dois, e eles estariam do outro
lado do desfiladeiro; ela estaria com ele mais uma vez. Tomaria
cuidado, mas contaria a ele sobre as ameaças de seu pai, e de
alguma forma eles as superariam.
Serien olhou para o Imperador pelo canto dos olhos. Ele não
seria um obstáculo, não importa por quanto tempo ou o quanto
tentasse. Ele não conseguia compreender o que seu filho sentia por
ela e o que ela sentia por ele. Mas um dia ele veria.
Já estava na metade do dia quando ela ouviu pela primeira vez
os golpes de aço contra aço e os sons de combate ecoando pelos
ventos do desfiladeiro. Serien estremeceu, subitamente com frio
apesar do calor da selva.
Aldrik.
Ela queria correr, sair em disparada, seu coração começando a
acelerar com uma batida selvagem. Ele precisava dela. Precisava.
Ela simplesmente sabia. Vhalla podia sentir isso através do Vínculo.
Nem Vhalla e nem Serien estavam preparadas para o momento
em que as tropas fizeram uma curva no desfiladeiro. Fogo queimava
as copas das árvores à medida que os soldados se envolviam no
confronto no lado oposto do cânion. Era um ataque generalizado, e
ela estava inutilmente longe. Vhalla procurou freneticamente para
tentar encontrar Aldrik entre o caos.
O Norte, no entanto, não estava disposto a correr riscos ao
escolher apenas um lado pelo qual se aproximar, e o choque dos
soldados Imperiais foi a oportunidade ideal para um segundo ataque
surpresa. Homens e mulheres, guerreiros em couro fervido,
atacavam vindo dos arbustos diante deles.
O Imperador tentou freneticamente gritar ordens, mas o exército
estava muito desorganizado, além de terem sido pegos de surpresa.
Os Nortenhos cortaram através das linhas de frente com facilidade.
Os soldados Imperiais tentaram se recompor, a segunda e a terceira
linha de homens e mulheres sacando suas espadas. Mas o choque
os deixou desajeitados, e as pontas de suas lâminas quebravam e
lascavam diante da pele petrificada por magia de seus inimigos.
O que era uma unidade organizada estava rapidamente se
transformando em caos. Soldados treinados tentavam exigir que os
novos recrutas mantivessem a posição, mas o campo de batalha já
estava manchado com sangue, o que estava deixando os homens
loucos. O Imperador rugiu do alto de sua montaria, tentando
recuperar a ordem. O poder do Norte os pressionava, determinado a
fazer o contrário.
Uma calma estranha a dominou. As explosões de chamas
através da ravina brilhavam em seus olhos, iluminando uma verdade
mais profunda que ressoava dentro dela. Você é um símbolo, as
palavras de Baldair ecoaram em seu subconsciente. Os dedos de
Vhalla foram para o cinto que segurava sua espada, esquivando-se
da primeira lâmina Nortenha no processo.
Ela não encararia essas pessoas aterrorizada. Se ia morrer,
então morreria com dignidade. Vhalla se lançou para trás e arrancou
as manoplas, sentindo o vento sob seus dedos enquanto eles
destravavam sua couraça. Ela não morreria como Serien. Se ela ia
morrer, então morreria como a Andarilha do Vento.
A Nortenha que a atacava arremeteu em sua direção, e a mão
de Vhalla avançou para encontrar a mulher. Era como se o vento
tivesse sentido falta de seus comandos e respondesse com força
total, derrubando a mulher e varios outros Nortenhos junto com ela.
Vhalla balançou outro braço, fazendo mais Nortenhos desabarem.
— O Demônio do Vento! — Um gritou, apontando para ela.
Vhalla não recuou; ela avançou. O vento estava sob seus pés e
as batidas do coração de Aldrik em seus ouvidos. Ela se espelhou
na força dele. Juntos, eles enfrentariam seus inimigos. Juntos, eles
seriam invencíveis.
Ela se moveu sem esforço pelas lâminas a medida que as
mesmas surgiam. Eles não podiam tocar o vento. Vhalla os
desarmou com movimentos de pulsos e com o ondular de seus
dedos.
Foi a primeira vez que ela realmente lutou sem medo. Todas as
vezes anteriores, mesmo durante os treinos, ela tinha medo. Seu
poder tinha sido estranho, e então teve a Ligação, e depois o medo
de matar mais uma vez... Mas ela havia aprendido a proteger seu
coração como Serien, e agora ela era realmente uma emissária da
morte.
Ela mostraria ao Imperador, mostraria ao mundo que eles
finalmente tinham conseguido o que queriam dela.
Vhalla se lançou para um dos guerreiros, e sua mão cobriu a
boca dele. Foi como Aldrik matou a Nortenha na Noite de Fogo e
Vento. Mas, dela, não haveriam chamas. O ar preso no pescoço do
homem se moveu ao seu comando. Os olhos dele reviraram em sua
cabeça enquanto o ar se pressionava para fora, esticando a pele ao
limite. O vento explodiu, livre, levando tiras de pele e pedaços de
carne com ele, borrifando sangue sobre seu rosto e braço.
O homem caiu diante dela e houve um silêncio quase audível
enquanto todos pareciam parar e encará-la, horrorizados. Vhalla
olhou para os soldados, seus aliados. Seus olhos encontraram os
do Imperador, que parecia igualmente atordoado.
— Lutem comigo! — Ela gritou. Eles precisavam de um líder,
precisavam de um símbolo que fosse mais do que um homem em
uma armadura dourada. Eles precisavam de um Senhor do Fogo.
Ou de um Demônio do Vento. — Lutem comigo! — Vhalla pontuou
sua declaração se lançando para outro Nortenho, que explodiu em
sua mão.
Soldados Imperiais ganharam vida ao seu redor, fluindo em
conjunto com seus ventos, atentando-se para levar em
consideração todos os seus movimentos. O Imperador queria que
ela lhe trouxesse a vitória. Ela mostraria a ele quanto isso custaria.
Todo o resto desapareceu perante as batidas em seus ouvidos.
Ela se entregou à sua Via com o vento, e à sua Via com seu
príncipe. Ela se esquivava mais rápido do que uma pessoa deveria
ser capaz de fazer, ela pulava mais longe, e Vhalla perdeu a conta
de quantos morreram pela sua mão.
Mas ela nunca tinha usado a magia assim antes -
deliberadamente - e Vhalla finalmente sentiu seu poder vacilar. O
que deveria ter atirado para trás vários soldados, apenas os fizeram
tropeçar. Ela fez uma pausa, inspecionando a mão, como se o
membro a tivesse traído conscientemente.
Uma grande chama do outro lado do abismo chamou sua
atenção e, pela primeira vez desde o início da luta, ela olhou para
Aldrik. Todo mundo, mesmo daquele lado do desfiladeiro,
cambaleou com a onda de calor. Vhalla deu um passo em sua
direção. Haviam mais Nortenhos, muito mais, do outro lado do
abismo. Ela se perguntou o que tinha acontecido com todos os
outros soldados. Aldrik parecia estar lutando com cinco ao mesmo
tempo.
Ele era como poesia através do fogo. Seu corpo se movia
primorosamente, combatendo e atacando com chamas. O fogo
rodopiava ao redor dele, e sua armadura preta parecia estar viva
enquanto Aldrik girava, comandando o incêndio com suas mãos e
pensamentos.
Ela esticou a mão, a visão dele inspirando seu poder novamente.
Um soldado foi jogado nas chamas, e elas arderam em torno do
cavaleiro quando seu ar e o fogo dele se misturavam. Aldrik virou-se
instintivamente e seus olhos encontraram os dela.
A expressão dele rapidamente se transformou em horror, e
Vhalla sentiu a lâmina se mover através do ar às suas costas. Ela
abaixou o ombro e levantou a mão, perguntando-se se Aldrik viu o
rosto do Nortenho explodir. Vhalla virou-se para checar, e seu
coração começou a acelerar por um motivo completamente
diferente.
Ele estava sendo derrotado por dois combatentes, um de cada
lado. Aldrik desviou e girou, se esquivou, mas ambos eram
claramente combatentes muito experientes. Vhalla deu um passo à
frente. Foi então que ela notou que mais quatro haviam se
aproximado, fazendo um semicírculo em torno do príncipe e dos
dois Nortenhos. Ele estava encurralado à beira do penhasco,
ocupado inteiramente pelos dois que investiam e buscavam por
qualquer abertura que viam na defesa do príncipe.
Vhalla viu quando Aldrik foi forçado a recuar mais um passo. Os
outros na beira do semicírculo moviam os lábios com fervor.
Ela deu outro passo à frente. Aldrik não os notou. Ela tinha que
avisá-lo.
De repente, os dois combatentes saltaram para longe, caindo
para trás. Todos os seis ergueram os punhos em harmonia. Aldrik
parecia atordoado demais para se mover. Ele mal conseguiu dar um
passo quando todos os Nortenhos socaram as mãos fechadas em
punho no chão.
Um gemido, um estrondo, e o chão ondulou sob os pés dele.
— Não, — ela sussurrou.
Aldrik tentou correr quando a beirada do penhasco rachou
embaixo de si. Ele gritou, pesado em toda a sua armadura.
— Não! — Vhalla gritou, correndo desesperadamente para a
frente, passando por todo sangue e carnificina na tentativa de
alcançá-lo. As espadas e os gritos dos soldados desapareceram.
Ela só viu o seu príncipe, perdendo o equilíbrio quando a primeira
grande pedra deslizou no desfiladeiro abaixo.
— Não! — Vhalla gritou ao ver Aldrik cair para trás.
Os próximos trinta segundos se transformaram numa eternidade.
Vhalla correu cegamente para seu príncipe, não pensando em nada
além de chegar até ele. Os pés dele finalmente deixaram o chão
quando o penhasco inteiro desabou diante do semicírculo de
Mestres da Terra. Aldrik estava caindo, despencando em queda livre
entre os pedaços de terra em direção ao chão bem abaixo.
Os pés dela aceleraram embaixo de si, levando-a para longe dos
gritos dos soldados Imperiais às suas costas. O vento estava
enrolado em torno de seus tornozelos e preso sob seus
calcanhares. Ela tinha que chegar até ele, ela o salvaria. Vhalla
saltou no ar, o vento às suas costas a empurrando para frente.
Aldrik estava do lado oposto da ampla foz do que antes era um
grande rio. E, ainda assim, com uma expulsão de seu poder, ela
atravessou a distância na direção dele, propulsada no ar, inclinando-
se para frente. Os cabelos dele chicoteavam em torno do rosto, e
seus olhos escuros encontraram os dela em choque.
Seus lábios formaram uma única palavra. — Vhalla, — ele
sussurrou na onda de vento ao redor de seu corpo em queda. Vhalla
estendeu a mão para frente, desesperada. Ela o alcançaria. O chão
estava se aproximando rápido, e Aldrik finalmente começou a tentar
alcançá-la também.
O corpo dele girou e torceu sobre os bolsões de ar que ela
tentava criar embaixo dele. Haviam muitos fatores imprevisíveis, ela
não era forte o suficiente, e ela não era hábil o suficiente para parar
um corpo desse jeito. Pânico a impeliu a esgotar o resto de sua
magia tentando desacelerá-lo.
A mão dele tateou o ar. Vhalla estendeu o braço, ela tinha que
alcançá-lo. As pontas dos dedos dela tocaram as dele e Vhalla
sentiu seu corpo magicamente começar a reduzir a velocidade, o
vento se recusando a prejudicá-la. Aldrik a olhou, e ela viu uma
emoção consumi-lo completamente; uma que ela nunca tinha visto
nele antes: medo. O braço de Vhalla ameaçou rasgar das
articulações, a mão dele estava tão perto. Ela quase conseguiu, um
momento a mais, um momento além, um pingo de energia que não
foi usada para empurrar o vento ao redor tanto dele quanto dela. O
chão era implacável em seu desejo de encontrar violentamente seus
corpos em queda, e ela só teve uma última tentativa antes deles
serem esmagados sobre ele.
Vhalla aproveitou a chance.
Ela agarrou o ar vazio, os dedos dele escorregando por conta
dos seus sangrentos, e ela gritou. A última coisa que Vhalla viu foi o
momento em que o corpo de Aldrik encontrou o chão, o sangue se
empossando instantaneamente sobre sua forma quebrada e sem
vida, antes que tudo escurecesse.
EM BREVE

Uma mulher despertada no ar, uma soldada forjada pelo


fogo, uma arma nascida do sangue.

Vhalla Yarl chegou à frente de guerra no Norte. Forjada por


sangue e fogo, ela transformou seu coração em aço para a
batalha final da conquista do Império Solaris. As escolhas
diante de Vhalla não são mais servidão ou liberdade; são
servidão ou morte. Os riscos nunca foram tão altos à
medida que o Imperador mantém seu domínio de ferro
sobre o destino dela, mantendo tudo o que Vhalla ainda
tem a perder pendurado por um fio.

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