Você está na página 1de 2

Podemos entender os direitos fundamentais como aqueles que devem proteger os

indivíduos frente à atuação do Estado, garantindo o mínimo necessário para a existência digna
dentro de uma sociedade. Em nosso ordenamento jurídico, esses direitos estão previstos na
Constituição Federal de 1988, quais sejam, o direito à vida, à liberdade e à igualdade, por
exemplo. Contudo, não raro, nos deparamos com situações nas quais surge um conflito
aparente entre esses direitos fundamentais, como é o caso da transfusão de sangue em
pacientes testemunhas de Jeová.
Nesse sentido, em razão de sua crença religiosa, os pacientes testemunhas de Jeová se
recusam a realizar o procedimento da transfusão sanguínea, mesmo em casos de risco de vida,
pois alegam que tal procedimento viola alguns de seus princípios religiosos. Essa recusa gera
uma série de discussões polêmicas, dividindo opiniões entre juristas, médicos e os próprios
fiéis uma vez que são contrapostos dois importantes direitos fundamentais: o direito à vida e o
direito à liberdade de crença.
Para melhor ilustrar essa situação, tomamos como exemplo o caso concreto que
ocorreu em julho de 2021 no qual a professora J.P, de 58 anos, entrou no hospital Unimed de
Piracicaba em um quadro de hemorragia digestiva. No caso em questão, para a estabilização
da paciente, seria necessário o procedimento de transfusão sanguínea, ao qual a paciente se
opôs pois contrariava os preceitos de sua religião. Após a recusa da paciente, o hospital
recorreu à justiça e o juiz Lourenço Carmelo Tôrres concedeu uma tutela de urgência,
autorizando a Unimed a adotar todos os procedimentos médicos necessários para a
preservação da vida da professora, mesmo contra a vontade dela.
O juiz ainda afirmou que “a escusa religiosa não pode se sobrepor ao direito à vida. “.
Diante desse cenário, ficou nítido o risco iminente de morte que a paciente enfrentava que,
segundo os médicos, teria poucas horas de vida caso não fosse realizada a transfusão. A
conduta por parte dos médicos, embora seja alvo de crítica, encontra respaldo no artigo 22 do
Código de Ética Médica na medida em que proíbe o médico de “deixar de obter
consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o
procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte “. É importante
considerar que mesmo a lei penal não considera a intervenção médica um caso de
constrangimento ilegal conforme dispõe o art.146, §3º, I. Em tal dispositivo, fica salvo
qualquer intervenção médica ou cirúrgica que se justifique por iminente perigo de vida,
mesmo sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal.
A questão se torna ainda mais crítica quando se trata de pacientes menores de 16 anos,
já que, uma vez incapazes de praticar os atos da vida civil, estariam esses indivíduos aptos a
avaliarem a complexidade de seus riscos, ou ainda, a decidirem dispor de suas vidas,
submetendo-se à religiosidade de seus pais? Este foi o caso que aconteceu em julho de 1993
no litoral sul de São Paulo, no qual a menina Juliana Bonfim da Silva, de 13 anos, morreu
após ter sido recusada, por parte dos pais, a transfusão sanguínea considera imprescindível no
momento para salvar a sua vida. A menina, que sofria de leucemia grave, veio a falecer dois
dias após ter dado entrada no hospital São José. Os desembargadores da 9º câmara criminal do
TJ- SP decidiram, por maioria dos votos, que os pais, testemunhas de Jeová, deveriam ir à júri
popular. De acordo com o desembargador Galvão Bruno, havia evidências suficientes que os
pais se opuseram veementemente à transfusão de sangue, mesmo tendo sido alertados de que
não havia tratamentos médicos alternativos.

Casos emblemáticos como esse são discutidos para doutrina e jurisprudência nos
quais, muitas vezes, entende-se que o poder pátrio não é absoluto e pode ser limitado,
principalmente em situações como essa, nas quais o menor não possui capacidade civil para
expressar sua vontade. Nesse sentido, é importante frisar que a Constituição Federal prevê em
seu artigo 227 que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação...”.
O Estado confere ao poder familiar o dever de garantir a vida e a saúde de seus filhos, no
entanto, quando a família se manifestar contrária a esses interesses, o Estado pode e deve
intervir, na medida em que o direito à vida se configura como um direito personalíssimo, ou
seja, só pode ser exercido pelo seu titular, não cabendo aos pais decidirem dispor da vida de
seus filhos.

Você também pode gostar