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Cintya Karoline Nogueira Santos, graduada em Direito pela Univerisade Anhanguera Uniderp.
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - USP
cintyavieirah@hotmail.com
Resumo: Este trabalho trata-se de um tema de constantes discussões no âmbito dos direitos
fundamentais, qual seja, as transfusões de sangue realizadas contra a vontade de pacientes
adeptos à religião Testemunha de Jeová. Sabemos que a fé deve ser respeitada, mas até que
ponto o direito aos dogmas e crenças devem prevalver ao direito à vida? Este tema é bastante
aprofundado nos julgados, nas doutrinas, e também nas opinões daqueles que se simpatizam
ou não à referida crença. Portanto, abordaremos aqui como o Direito Brasileiro tem se
posicionado ante tal tema, levando em consideração a supremacia da libertade de
manifestação de pensamento, liberdade de consertir, liberdade de crença, mas acima de tudo,
o direito à vida, que é o bem mais protegido na Constituição Federal, mas considerando que
nenhum direito é absoluto.
Abstract: This work is a subject of constant discussions in the scope of fundamental rights,
namely, blood transfusions carried out against the will of patients adhering to the Jehovah's
Witness religion. We know that faith must be respected, but to what extent should the right to
dogmas and beliefs prevail over the right to life? This theme is deepened in the judgments, in
the doctrines, and also in the opinions of those who are sympathetic or not to that belief.
Therefore, we will address here how Brazilian law has positioned itself on this theme, taking
into account the supremacy of freedom of thought, freedom to fix, freedom of belief, but
above all, the right to life, which is the most important protected in the Federal Constitution.
1 Introdução
Este artigo é fruto de um trabalho em grupo para elaboração de um livro acerca da
dignidade da pessoa humana, onde o tema escolhido no presente capítulo é a transfusão de
sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunha de Jeová em procedimento
médico.
O referido tema está abrangido pela bioética e pelos direitos humanos. A palavra
bioética foi vista pela primeira vez na década de 70, especificamente no artigo The science of
survival, sendo que o autor assim a define1:
“Uma ciência de sobrevivência deve ser mais que uma ciência somente, e
por conseguinte proponho o termo ‘Bioética’ para poder enfatizar os dois
mais importantes componentes para alcançar a nova sabedoria que tão
desesperadamente necessitamos: conhecimento biológico e valores
humanos”.
No que tange aos direitos humanos, o tema está inserido nos direitos fundamentais da
dignidade da pessoa humana, da liberdade de consciência e de crença, promanadas do
princípio de que nenhuma pessoa pode ser obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei, estão firmemente asseguradas na Constituição Federal.
Por outro lado temos o direito à vida, que conforme leciona o professor Pedro Lenza3:
“O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º, caput, abrange tanto
o direito de não ser morto, de não ser privado da vida, portanto, o direito de
continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna.”
Por envolver um tema que aborda a Medicina e o Direito, válido mencionar Daniel
Loureiro Lima4:
1
Retirado do artigo Bioethics, the science of survival. “Una ciencia de supervivencia deve ser más que una
ciencia sola, y por consiguiente propongo el término ‘Bioética’ para poder enfatizar los dos más importantes
componentes para lograr la nueva sabiduría que tan desesperadamente necesitamos: conocimiento biológico y
valores humanos”. (POTTER, Van Rensselaer. Bioética, la ciencia de la supervivencia. In: ESCOBAT, Afonso
Llano. Que és la Bioética? – según notables bioeticistas. Bogotá: 3R Editores, 2000. p. 27).
2
HOTTOIS, Gilbert; PARIZEAU, Marie-Hélène. Dicionário de bioética. Tradução de Maria de Carvalho.
Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 58.
3
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 1182.
4
LIMA, Daniel Loureiro. A era da judicialização da Medicina. In: O direito médico e a necessidade de
aproximação entre hospitais e tribunais. Brasília: Anuário Jurídico ANADEM, 2017. p.67-68.
3
“Há uma grande conexão entre Direito e Medicina pela ótica e aspirações
dos sujeitos envolvidos nesses dois campos. No Direito, busca-se a
pacificação social mediante a composição de conflitos, culminando em um
desfecho que seja aceito e acatado voluntariamente pelas partes envolvidas.
Na Medicina, busca-se a pacificação pessoal, por meio do manejo de
recursos técnicos que tragam ao paciente a cura ou a sobrevida digna. Na
prática, em ambos, vemos que o interesse é fornecer ao indivíduo certo tipo
de conforto, de amparo, para que a vida tome rumo de forma razoável. Nessa
toada, temos a sociedade representada pelo paciente, demandando a justiça
para fazer valer os direitos fundamentais, dentre eles o direito à vida e à
saúde, concretizados na Constituição da República Federativa do Brasil de
1998.”
2 Testemunhas de Jeová
Há muito tempo o tema aqui abordado é assunto polêmico no mundo médico, jurídico
e religioso, do qual desperta atenção de pequisadores e leigos.
Ocorrendo a necessidade de transfusão de sangue em pacientes praticantes da religião
Testemunhas de Jeová, temos de um lado o médico, que possui a responsabiliade de salvar
vidas, e de outro lado temos o paciente que se nega em receber a transfusão e ter garantido o
seu direito constitucional à liberdade de crença, e autonomia de escolher o que acha melhor
para si. Sendo que os dois lados creem estar agindo respaldados pela Constituição e pela
legislação pátria.
Mas afinal, quem são os praticantes da crença Testemunhas de Jeová? Por quais
motivos recusam a transfusão de sangue?
Segundo a Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tradados 5 existem por volta de 8
milhões de testemunhas de Jeová no mundo, distribuídos em 236 países, os quais buscam, por
meio dos ensinamentos de Deus, descritos na Bíblia Sagrada. Os testemunhas de Jeová
entendem que a Bíblia não se baseia apenas em um manual de orações, assim como também
5
SOCIEDADE TORRE DE VIGIA DE BÍBLIAS E TRATADOS. Anuário das testemunhas de Jeová. Cesário
Lange, 2010. p. 32-39.
4
não acreditam em curas pela fé, mas que o referido livro serve como um guia de instruções
para que possam levar uma vida mais feliz e completa, e também agradar a Deus.
Os praticantes da religião Testemunha de Jeová respeitam muito a vida, não são
fumantes, não realizam aborto, não usam drogas, enfim, valorizam a vida, pois sabem que ela
foi um presente dado por Deus, a qual deve ser protegida e preservada. Contudo, no que tange
à transfusão de sangue, a Bíblia Sagrada (Gênesis 9:3,4, Levítico 17:10 e Atos 15: 28,29),
proíbe expressamente o procedimento de transfusão de sangue. Decidem não usar o sangue
alógeno, seja pela via oral, seja pela via venal.
Ocorre que é reconhecido pelos testemunhas de Jeová as barreiras que a comunidade
médica enfrenta, não podendo, muitas vezes, oferecer o tratamento adequado de que
necessitam. Mas isso não quer dizer que os testemunhas de Jeová não reconheçam e nem
aceitem a Medicina, pelo contrário, por eles são aceitos diversos tratamentos e procedimentos
médicos disponíveis.
Como forma de oferecer tratamento alternativo e eficaz, existe uma organização entre
os praticantes da religião, a comunidade médica e o Serviço de Informações sobre Hospitais e
as Comissões de Ligação com Hospitais (COLIHs), a qual é uma rede mundial, e oferece
apoio aos pacientes e médicos com informações de medidas alternativas às transfusões,
buscando sempre tratamento de saúde digno ao paciente, respeitando a sua escolha, acima de
tudo. É uma forma de cooperação entre todos, e não de confronto.
violado o seu direito de decidir o que acha melhor para sua vida, garantias estas que são
invioláveis no ordenamento jurídico.
Segundo o ponto de vista do constitucionalista Celso Bastos7:
“(...) o paciente tem o direito de recusar determinado tratamento médico, no
que se inclui a transfusão de sangue, com fundamento no artigo 5º, II, da
Constituição Federal. Por este dispositivo, fica certo que ninguém é obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (princípio da
legalidade). (...) Como não há lei obrigando o médico a fazer a transfusão de
sangue no paciente, todos aqueles que sejam adeptos da religião
Testemunhas de Jeová, e que se encontrarem nesta situação, certamente
poderão recusar-se a receber o referido tratamento, não podendo, por
vontade médica, ser constrangidos a sofrerem determinada intervenção. (...)
Mesmo sob iminente perigo de vida, não se pode alterar o quadro jurídico
acerca dos direitos da pessoa”.
7
BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes, de seus familiares ou dependentes, às transfusões de
sangue, por razões científicas e convicções religiosas. Ministério Público do Paraná: Revista Igualdade XXXV,
2009. Disponível em: https://crianca.mppr.mp.br/pagina-634.html#.
8
Código Civil de 2002.
9
Código Penal Brasileiro.
10
Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções
nº 2.222/2018 e 2.226/2019.
6
11
PACHECO, Alexandre. Segurança do paciente e qualidade em saúde. In: Termo de consentimento livre e
Esclarecido: Faculdade ou obrigação? Brasília: Anuário Jurídico ANADEM, 2018. p. 19-21.
7
autonomamente, sua vontade.”12 Ocorre que o referido dispositivo legal menciona que: “o
médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou
representante que, em análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código
de Ética Médica”.
O Portal Carta Capital (CARTA CAPITAL, 2015) publicou um artigo destacando que
o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende que em caso de iminente risco de morte, sendo
necessária a transfusão de sangue em paciente testemunha de Jeová, “a invocação religiosa
deve ser indiferente aos médicos, que têm o dever de salvar vidas”, e que “os médicos é que
devem agir e cumprir seu dever legal, mesmo diante da resistência da família.”13
Tema muito debatido na jurisprudência brasileira, e, em que pese algumas
divergências, o entendimento mais adotado nos tribunais de justiça é de que o direito à vida se
sobrepõe ao direito de liberdade de crença, eis que o bem maior é a vida, e não seria crível
que tal garantia ficasse em segundo plano.
Portanto, havendo iminente risco de vida de praticante de religião Testemunha de
Jeová, e o médico necessitando realizar transfusão de sangue, ou qualquer outro procedimento
cirúrgico ou terapêutico, mas não havendo consentimento do paciente ou de seus familiares
ou responsável, deverá o profissional optar por salvar a vida do paciente empregando o
tratamento que ache necessário para tanto.
Para o professor Pedro Lenza:14
“Estamos diante da concorrência entre dois direitos fundamentais de igual
hierarquia: o direito à vida e à liberdade religiosa, sendo que, como se sabe,
nenhum deles é absoluto. Luís Roberto Barroso, ao tratar sobre o tema em
interessante parecer jurídico, observa que a dignidade humana apresenta
duas perspectivas que se complementam: dignidade como autonomia: ‘tutela
a capacidade de autodeterminação e a responsabilidade moral do indivíduo
por suas escolhas, notadamente as de caráter existencial, dentre as quais se
inclui a liberdade religiosa’; dignidade como heteronomia: ‘envolve a
imposição de padrões sociais externos ao indivíduo, o que, no caso concreto,
significa a proteção objetiva da vida humana, mesmo contra a vontade do
titular do direito.’ Apesar de completarem, entende ser ‘possível afirmar a
prodominância da ideia de dignidade como autonomia, o que significa dizer
que, como regra, devem prevalecer as escolhas individuais. Para afastá-las,
impõ-se um especial ônus argumentativo’. E conclui: ‘ legítima a recusa de
tratamento que envolva a transfusão de sangue, por parte das testemunhas de
Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito
fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura todos o
direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a
12
Resolução nº 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina. Disponível em:
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2012/1995
13
CARTA CAPITAL. A fé na justiça dos homens. Portal da internet Carta Capital, 30 de março de 2015.
Disponível em: http:justificando.cartacapital.com.br/2015/03/30/a-fe-na-justica-dos-homens.
14
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 1221-
1222.
8
Como visto, ao citar obra do professor Luís Roberto Barroso, vimos que este entende
que a autonomia da vontade deve ser considerada e respeitada, a qual emana da dignidade da
pessoa humana, não devendo o Estado impor procedimento médico recusado por paciente.
Para Lenza “o tema é extremamente polêmico e, sem dúvida dividirá o SFT em
hipótese de eventual e futuro enfrentamento”.15 (grifei)
O Recurso Extraordinário nº 121227216, que trata de direito de paciente testemunha de
Jeová em submeter-se a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue em respeito à
convicção religiosa, aguarda julgamento, e certamente dividirá muitas opniões, seja de
juristas, médicos, ou pacientes.
Mas enquanto não houver um posicionamento unânime da Suprema Corte, não
havendo iminente risco de vida de paciente Testemunha de Jeová, necessitando este de
transfusão sanguínea, o entendimento atual adotado, e de que o médico deverá oferecer
tratamento substitutivo ou alternativo. Mas em caso de iminente risco de vida do paciente,
deve o médico optar pela vida e contrariar a vontade do paciente ou de seus familiares e
responsáveis, caso não consintam com a transfusão.
Considerações Finais
15
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 1223.
16
Recurso Extraordinário nº 1212272. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?
incidente=5703626.
9
Referências
10
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 24. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2020.