Antropologia I - V1 2020.2 Letícia Marques Pinto A análise da cultura nas sociedades complexas
Resenha crítica do documentário “Edifício Master” de
Eduardo Coutinho
O documentário “Edifício Master” de 2002, dirigido e roteirizado por Eduardo Coutinho,
aborda o cotidiano dos moradores do Edifício Master, um prédio com 276 apartamentos e cerca de 500 habitantes, situado em Copacabana. Durante uma semana, Eduardo Coutinho e sua equipe acompanharam o interior do edifício, entrevistando 37 moradores. Entre eles, uma ex-costureira da alta sociedade, um casal de meia-idade que se conheceu pelos classificados de um jornal, um ator aposentado, uma jovem mãe renegada pelos pais, um ex-jogador de futebol e um síndico responsável por transformar o Master, que era um prédio de péssima reputação, em um local familiar. Nesse contexto, de forma simples, real e cotidiana, a câmera passeia de apartamento a apartamento, buscando entender a vida dentro de cada residência. Assim, por meio das histórias íntimas e pessoais relatadas pelos entrevistados, o filme coloca o espectador de frente a figura do “Outro”, evidenciando a diversidade presente neste único edifício em Copacabana. Ademais, nota-se que o documentário possui um forte viés antropológico, já que, segundo o texto “Observando o familiar” de Gilberto Velho, a antropologia, embora sem exclusividade, tradicionalmente, identificou-se com os métodos de pesquisa ditos qualitativos. Desse modo, a observação participante, a entrevista aberta, o contato direto, pessoal, com o universo investigado constituem sua marca registrada. No entanto, é necessário destacar, a partir da análise do texto “O conceito de cultura e o estudo das sociedades complexas: uma perspectiva antropológica” de Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de Castro, a importância de reconhecer as distâncias entre pesquisador e objeto de estudo e, portanto, esforçar-se por superá-las cientificamente, seja no caso de uma sociedade “exótica” ou “familiar”. Contudo, a noção de familiar deve ser examinada com cuidado, pois o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido. Dessa forma, Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de Castro explicam que estamos, no nosso cotidiano, como membros de uma sociedade, lidando com situações e pessoas com que ou quem podemos estar acostumados, habituados, mas isso não significa que saibamos, conheçamos a sua inserção na vida e no processo social, que entendamos a lógica desta inserção. Em suma, a familiaridade pode ser, em muitos casos, uma fonte de distorções, pois os nossos mapas sociais são, em grande parte, construídos em cima de estereótipos e rótulos. Diante disso, podemos observar a relação desse conceito com o documentário “Edifício Master”, que surpreende o espectador com a revelação de um mundo inteiro de subjetividade e particularidade dentro de cada apartamento, que permaneceria no anonimato, se não pela investigação de Eduardo Coutinho e sua equipe. Assim, vemos que o filme desconstrói estereótipos e impressiona com tanta verdade, ao nos colocar em contato com tanta vida, tanta normalidade convivendo paralelamente com o absurdo mais irreal possível. E tudo ali, no apartamento ao lado. Visto isso, torna-se evidente que um aspecto significativo e surpreendente do filme é a profusão de sentimentos e humanismo contidos em cada depoimento. Um dos momentos em que essa sensibilidade pode ser observada é na declaração “A solidão machuca muito”, da ex-costureira da alta sociedade Esther, uma senhora simpática e vaidosa que pensou em se atirar do Master após um assalto, mas que reencontrou a felicidade no companheirismo do namorado. Além disso, vale ressaltar a importância do olhar solidário e atento de Eduardo Coutinho, que, a partir da direção e do roteiro, moldou o resultado final do documentário. Dessa forma, observa-se que a subjetividade de Coutinho também está presente no longa metragem, funcionando como uma espécie de filtro. Ademais, é possível constatar que a vivência e a individualidade do espectador também influenciam a interpretação do longa. Isso porque, segundo Gilberto Velho, a realidade, familiar ou exótica, sempre é filtrada por um determinado ponto de vista do observador, assim, ela é percebida de maneira diferenciada. Desse modo, o filme “Edifício Master” de Eduardo Coutinho é um retrato fiel de uma parcela do povo brasileiro que raramente possui chances de ser ouvida. Assim, captando, de forma sensível, a essência da vida metropolitana carioca e do cotidiano dos 37 moradores entrevistados. Portanto, também demonstrando que nem sempre conhecemos o que é familiar e comprovando que familiaridades e exotismos não correspondem, respectivamente, a fontes de conhecimento ou desconhecimento. Visto isso, podemos inferir que estes pedaços de vida estão por aí, no cotidiano de cada um, esperando apenas pela pergunta certa para virem à tona.