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Em minha investigação acerca da produção têxtil e sua relação com territórios e

corpos, a vida cotidiana é um alinhavo para se relacionar a práxis ao


estabelecimento de formas de vidas próprias relacionadas a cada sistema de
produção. A partir da leitura em aula da obra de Lefebvre, articulada às pesquisas
que tenho feito durante o semestre, me surgiu um questionamento: quando o
trabalho cooperativo reflete em transformações em outras esferas da vida de quem
participa dele - o universo doméstico, as relações de família, de vizinhança, de
consumo - e quando o desejo de mudança nessa vida particular leva um grupo de
pessoas a elaborar uma forma de trabalho cooperativo? Compreendo que há uma
dialética nessa questão, na qual a vida compartilhada no trabalho coletivo e a vida
privada de quem dele participa se entretecem, se transformam mutuamente.

Para aprofundar esse questionamento escolhi me debruçar no capítulo 3 do primeiro


livro da Crítica da Vida Cotidiana, quando o autor questiona o que se critica.
Busquei relacionar ponto por ponto do capítulo a algumas entrevistas que já realizei,
depoimentos de artistas, cooperadas e designers, e relatos de minhas vivências nos
últimos 8 anos envolvido no tema.
Passando por histórias de costureiras, as formas de trabalho diversas que se
estabelecem em torno do têxtil e as espacialidades que vão dos panos bordados
que guardam histórias em armário até as plantações de algodão orgânico para
produção de tecelagem, transito por situações diversas. As espacialidades e
temporalidades articuladas a escalas tão variadas me parecem propícias de serem
pensadas na ótica de constelações, proposta por Lefebvre, onde os possíveis
arranjos dos elementos se reconfiguram de acordo com o ponto de vista e
momento. A obra da artista têxtil Mary Ann Bendolph me parece uma boa imagem
para começar a pensar como as tecelãs, costureiras e bordadeiras configuram
novas possibilidades a partir do recorte e montagem de retalhos do mundo. Suas
grandes colchas de retalho refletem o arranjo coletivo na qual são produzidas,
agenciando pessoas e materialidades. Me remetem às várias configurações e
remontagens que a história da produção têxtil ganha em sua própria prática, como
que linhas de diferentes tempos e espaços desfiadas e retramadas por muitas
mãos.

É nessa prática que pensamento e ação não se apartam. Para Lefebvre o senso de
realidade do trabalhador se estabelece em um contato cotidiano com o real e a
natureza através do trabalho. A forma de se elaborar um tecido se confunde às
próprias costuras das demais práticas da vida. Em entrevista ao podcast ModeFica,
a designer Celina Hissa comenta sobre os territórios afetivos que compõe o
cotidiano das mais de 50 artesãs com quem trabalha na marca Catarina Minna em
rede de cooperação no estado de Ceará, para essas mulheres o trabalho artesanal
é muitas vezes uma forma de se garantir a emancipação financeira, se distanciar de
uma relação abusiva sem precisar distanciar-se da vida doméstica e dos filhos - o
artesanato viabiliza essas formas de vida, ao mesmo tempo o fazer coletivo em rede
produz novas formas e compartilhar a vida íntima e outras construções e relações
da ordem o cotidiano. Essa dialética entre os modelos de trabalho cooperativos nos
territórios têxteis e a vida cotidiana dessas cooperadas será o fio para atravessar os
pontos de crítica ao cotidiano estabelecidos pelo autor.

mistificação

As discussões em torno da produção artesanal latino-americana nos anos 60


orbitavam em torno de uma identidade cultural nacional. O antropólogo Nelson
García Canclini aponta que essa homogeneização servia a ideários nacionalistas,
meio de dominação de imaginários a serviço de regimes ditatoriais.

Determinar o que é natural de uma sociedade, leva a regular seus comportamentos


e formas de vida, ou uma mistificação da própria ideia de cultura, em uma
perspectiva folcloricista que ao eleger o que se valia como cultura, recortava a trama
do território têxtil latino, produzindo uma geografia de retalhos desarticulados e
invisibilizados. Neste mesmo período se acentuou a migração de tecelãs de cidades
menores para fábricas, em busca de melhores condições de vida. (>) A necessidade
de uma renda para se escapar de situação de miséria e fome, levou à sujeição a
formas de trabalho que dominava seus corpos e cotidianos - as vilas operárias em
MG organizavam o espaço em torno da fábrica em um modelo panóptico, reforçado
pela Igreja, a Escola e sobretudo o convento, moradia das operárias, que tinham
assim sua vida íntima controlada pelo patrão.
Na década de 70 em viagens pelo sertão brasileiro Lina Bo Bardi registrou e trouxe
visibilidade a uma grande vastidão de produções que atestavam um artesanato vivo
e diversso mas, de acordo com ela, desarticulado. Formas de fazer que
preservavam técnicas não modernas ao mesmo tempo que se utlizavam de
materiais e processos modernos. Essas produções de culturas que decorrem de um
hibridismo moderno e não moderno, como observado por Canclini, revelam outros
programas de mundo que resistiam a este período, ainda que, como apontado por
Lina, sua base era individual ou familiar, não havendo associações entre os
produtores. Para a arquiteta-etnográfa essa deficiência levaria a extinção dessas
formas de fazer, previsão que nunca se realizou.

individualidade e dinheiro

O Museu da Gente Sergipana em Pernambuco é um projeto potente ao reunir na


mesma trama as artes ditas eruditas e populares do estado. Em seu acervo ele
apresenta a renda irlandesa, patrimônio nacional de técnica que chegou a nós na
violência colonizadora e, nas terras de quem nos dominou, foi extinta pelo
progresso. Nessa parte é possível escutar um depoimento de Natália, a fundadora
da Associação de Rendeiras na cidade de Maruim. A artista conta que aprendeu a
renda aos seus 6 anos de idade, mas foi na adolescência que almejou sua
independência através do artesanato. A sua vontade de permanecer solteira e
prosperar de seu próprio trabalho a fez aprimorar a renda e entender que a arte que
ela e suas vizinhas produziam eram comprados a valores desproporcionais ao
trabalho demandado, por estrangeiros que lucravam sob esses produtos. Natália
movimentou, com apoio de outros agentes, a reunião das rendeiras para
estabelecerem acordos sobre valor de venda dos trabalhos, o que levou à fundação
de uma associação. À medida em que foi sendo apropriada, a técnica da renda
ganhou sentidos culturais e sociais bem próprios no Brasil. A renda, que se tratava
de um trabalho individual na europa, é hoje no país uma atividade coletiva. Segundo
a mestra rendeira Raimundinha, um dos cinco pilares da técnica é o fazer em roda:
o encontro entre as mulheres lhes permite trocar informações, criações, técnicas e
pontos.
Desde os anos 90 a ação de artesãs, com o apoio de ONGs, vêm articulando e
coletivizando as formas de fazer do universo têxtil. A tomada do trabalho enquanto
esfera coletiva permite compartilhar dele e de seus frutos em grupos envolvidos em
seus processos. Nesse passo as cooperativas também discutem em sua prática a
relação entre trabalho e valor, entre meios de produção e consumo, ou a crítica ao
dinheiro como colocado por Lefebvre. Em depoimento da artesã Lucia da
cooperativa de tecelagem Central Veredas ela conta sobre seu trabalho em fiar o
algodão plantado pela cooperativa, para em seguida tingir e tecer os fios e
desenvolver seus produtos, em seguida comenta sobre não entender como as
pessoas da cidade compram coisas que não sabem como são feitas. A relação de
posse em uma sociedade regulada pela propriedade nos parece natural, a crítica de
Lefebvre (e de Lourdes) provoca a repensar nosso envolvimento com os objetos a
partir do usufruto, estabelecendo relações ricas com sua materialidade através da
qual podemos entrar em uma complexa rede de relações humanas e não-humanas.

Mais uma vez a marca Cearense Catarina Mina é um caso que exemplifica como a
crítica pode transformar nossa relação com os objetos. A designer Celina Hissa
adotou uma postura radical ao iniciar o projeto Uma Conversa Sincera, nele ela
compartilha de forma extremamente transparente os detalhes, custos e
remunerações envolvidas na marca, como uma forma de convidar sua comunidade
de apoio (como chama seus clientes) a compreender a cadeia que suas compras
sustentam, e cada agente nela envolvida. Nas palavras da própria Celina, o que se
busca com isso é valorizar as cadeias produtivas artesanais ‘não é só sobre
artesanato, é muito mais sobre as artesãs - o tipo de vida que tem ali por trás, uma
economia local do Ceará'.

Necessidades

Esses discursos insurgentes do trabalho cooperativo nos levam a questionar um


sistema da moda que nos produz desejos e vende promessas de vida - a crítica das
necessidades. Por trás das imagens publicitárias e etiquetas de marca se ocultam
modelos de produção cruéis na exploração da força de trabalho e irresponsáveis do
ponto de vista ambiental. O estímulo ao desejo de participar de tendências cada vez
mais passageiras se soma à oferta de peças a valores baixos só possíveis pelos
altos custos humanos e ecológicos, induzindo o consumidor a comprar a um ritmo
tão acelerado quanto o sistema fast fashion que produz mais de 32 bilhões de
roupas por ano. Em uma pesquisa recente da Vogue Business sobre
comportamento de consumo mais de 50 % dos entrevistados da Geração Z
responderam que seguirão consumindo fast fashion mesmo cientes das condições
de trabalho violentas envolvidas.

Pensar e analisar como essas roupas, e nosso desejo por elas, são produzidos é
confrontar o conforto do consumo rápido, barato e imediato. Implica deixar de
participar da máquina que produz tendências e desejos, potencializada por mídias e
trends das redes sociais que incentivam a compra veloz e em quantidades. A
mesma pesquisa citada aponta que hoje uma mulher jovem consome de 50-60
peças de roupa por ano, enquanto um século atrás a média de roupa de uma
mulher em seu guarda roupa era de 12 itens. Como aponta Lefebvre em uma
sociedade em que ter mais significa ser mais, a qualidade fica esquecida em prol da
quantidade. Prezar por tecidos, panos, itens de casa e roupa bem produzidos é
afirmar outra relação com nossas necessidades, com o próprio consumo e com a
cadeia de produção.

Trabalho e Liberdade

Ao estabelecer a crítica ao trabalho a partir do cotidiano Lefebvre aponta que “os


objetos não são simples implementos; ao produzi-los, homens estão trabalhando
para criar o mundo; pensam que estão moldando um objeto, ou uma série de
objetos - mas é a si mesmo que estão criando”. O processo de construção das
imagens dos bordados da cooperativa Central Veredas atravessa gerações,
envolvendo alunos das escolas públicas que, em contato com a comunidade,
elaboram imagens que são reinterpretadas pelas bordadeiras. No exercício coletivo
de construção de imagens e fazeres têxteis essas artesãs se produzem enquanto
coletividade capaz de acolher suas singularidades: a cultura, a identidade regional e
a história não estão dadas, mas são construídas a partir de uma prática consciente,
em seu ato, e inconsciente, pois estabelecida na ordem do sensível. Em um sentido
foucaultiano a estética de si amplia as “possibilidades do indivíduo para efetuar
mudanças em si mesmo, bem como em sua situação histórica”.

Na cooperativa a representação imaginária nos objetos têxteis se entrelaça com a


própria construção das representações institucionais. No que diz respeito a
organização do trabalho, o território é composto por cooperativas estabelecidas em
8 municípios, que se organizam coletivamente em torno da Central Veredas que, por
sua vez, foi desenvolvida com apoio da Artesol, rede nacional de artesanato criada
pela antropóloga Ruth Cardoso em 1998. Ressalta-se a importância de
compreender as institucionalidades envolvidas não como categorias fixas, mas
como arranjos sempre em movimento. É pelas histŕorias particulares e coletivas das
próprias artesãs e pesquisadoras envolvidas que se produz o trabalho manual, as
redes de organização e instâncias de representação. Na análise dessa rede de
representações no contexto da Central Veredas, suas agentes incorporam figuras
híbridas, como comum em cooperativas de trabalho: tecelã-gestora,
fiadeira-coordenadora, costureira-comunicadora. Reunindo nos mesmos corpos
(individuais e coletivos) gestos artesanais, cotidianos e políticos. Num mesmo
trabalho se tecem fios e se desenvolvem redes entre mulheres, natureza, território,
sociedade e política. A crítica ao trabalho pela práxis testa as possibilidades para
além do que se dá como naturalizado, se constrói coletivamente a representação e
a realidade, sempre em movimento. Essa própria práxis instituinte se aproxima da
crítica à liberdade proposta por Lefebvre, da ampliação das possibilidades pela
ação. Nessas linhas coletivas das tramas têxteis e institucionais esses grupos
exercem poder ao reivindicar suas próprias narrativas, imaginários e formas de vida.
Rompendo com a mistificação folcloricista ao reivindicar identidades plurais,
estabelecendo outras relações entre produção e consumo em um pensamento
crítico sobre necessidades, trabalhando em prol da prosperidade coletiva e das
boas condições de produção que se aliam ao ritmo da comunidade, da terra e da
roda. Com essas primeiras aproximações acredito que o desejo de mudança
individual que se coletiviza nas cooperativas de trabalho alimentam outras
transormações em outras esferas da vida, pois essas delimitações entre sujeito e
coletivo, privado e público, se reconfiguram nessa práxis, instituindo outras
maneiras de se organizar em coletivo, comunidade e vizinhança elaboradas em
corpos que experimentam outras formas de vida.

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