Você está na página 1de 8

narrativa 1 _ sem nome

Em visita à Feira Nacional de Artesanatos sediada em Belo Horizonte em 2021, tive


a oportunidade de conversar com artesãs e cooperativistas de vários lugares do
Brasil. Em uma conversa com Maria Soares, artesã cearense que representava ali
sua cooperativa sediada no município de Icó, perguntei curioso o nome dos pontos
que aplicavam em seus panos, pois não os conhecia. Recebi a resposta de que não
tinham nomes, e no lugar dele me deu a descrição de sua execução de uma linha
que em movimento espiral se enrolava a um ponto reto. Comentei que ele me
chamou a atenção por ser bem diferente dos bordados mineiros que conheço e quis
saber onde o aprendeu. Ela me contou que aqueles pontos eram das gerações mais
antigas de sua região, mas haviam sido esquecidos. A cooperativa de que participa,
atuante há 20 anos, busca aprender as técnicas da região analisando e buscando
imitar os panos antigos de seus acervos familiares, os decifrando com olhar,
auxiliadas pelas suas memórias e pelas conversas com as artesãs mais velhas.

O historiador Douglas Libby apontou a dificuldade de se investigar a produção têxtil


pré-industrial por fontes escritas, devido ao escasso registro dela pelos
antropólogos, que ao ver técnicas que se assemelhavam à Europa, realizadas com
instrumentos trazidos de lá, não as consideravam relevantes para registro. No
avesso da ciência moderna as roupas, capas de almofada, tapetes e panos de prato
produzidos são documentos que possibilitam a continuidade dessas histórias. O
olhar treinado para decifrar pontos e tramas pode ler nesses trabalhos narrativas,
possíveis de serem analisadas, replicadas e reinventadas pelas mãos como fazem
essas artesãs cearenses a partir dos próprios objetos de suas antepassadas. Assim
se perpetua a história vital, escondida da humanidade mas conduzida por esses
gestos do cotidiano das plantadoras, tecelãs, tingidoras e bordadeiras que as
escutam e perpetuam. Repenso a minha tentativa de nomear o ponto desconhecido,
a intenção de catalogar e registrar à minha maneira aquela técnica, que se deparou
com um olhar que se atenta mais ao movimento da linha para criar suas imagens,
em me explicar como é feito para eu reconhecer o trabalho sem determiná-lo.

Pelas vias não escritas, técnicas e fazeres atravessaram um século de


industrialização, construindo suas próprias formas de continuidade por fora das
linhas de poder, contrariando um projeto nacional de progresso que projetava sua
absorção pela indústria. Apenas em 1998 um órgão de nível nacional é criado para
auxiliar na estruturação e circulação dessa produção, formando cooperativas que
instituem e potencializam formas de organizar e fazer que se desenvolveram pela
via oral e pelas mãos. Maria Soares é bordadeira e costureira, mas hoje dedica
pouco tempo à prática das mãos pois é atualmente presidenta da Associação de
Icó. Me contou da importância de organizar o trabalho e dividir as tarefas entre
quem corta e embainha, quem desenha, quem borda e quem participa da gestão -
que deve compreender toda produção. Por outras linhas a artesã segue criando
suas redes e tramas para perpetuar suas histórias.
narrativa 2 _ aprender pelo avesso com fibulonomistas e costureirinhas

Acompanhando as viagens de Agnès Varda em sua série “Agnès de Ci de Là’’ ela


nos apresenta o artista Michel Jeannes. A cineasta conversa sobre o interesse do
artista em botões, declarado por ele “o menor objeto cultural do mundo”. Ele nos
apresenta seu método: encontrar botões perdidos nas ruas e catalogar em sua
coleção descrevendo o dia, horário, local e situação em que foi encontrado -
produzindo uma narrativa sobre o que estava em abandono e esquecimento. Em
outras ocasiões recebe doações de pessoas, em maioria mulheres, que, ao saber
de seu trabalho, o entregam botões que são registrados junto com suas histórias,
em um cartão emoldurado. As histórias catalogadas passam de amores de
adolescência, relações familiares, de roupas que marcaram momentos pontuais
mas únicos - aqueles que produzem nossa biografia pessoal.

Em uma cena seguinte Agnès e Michel vão se encontra com outras duas
fibulanomistas, a palavra francesa para colecionadoras de botões. Uma delas diz
que Michel quem lhe deu a ideia de colocar em palavras as emoções que lhe
traziam seus botões, “são tão pequenos mas repletos de memórias, de cultura, de
tantas coisas” uma delas diz. Colecionando esses botões, elas preservam em suas
memórias as histórias vitais, aquelas das quais nos conta Ursula Le Guin que,
apesar de terem garantido a sobrevivência da espécie, foram ocultas nos registros
hegemônicos da história da humanidade - a humanidade que nos foi escondida é
assim preservada nessas preciosas coleções de pequenos objetos. O artista,
quase-etnógrafo de uma vida cotidiana, compartilha com elas a possibilidade de
registrar e circular em outras epistemes a carga enorme contida em pequenos
objetos. Os botões se tornam “diplomatas na mediação de mundos” (MARQUEZ),
participando da produção de um mundo onde essas colecionadoras de botões - e
das suas histórias ocultas - se reconhecem e compartilham seus segredos.
Penso assim que os botões são objetos culturais, acredito que não no sentido
criticado por Roy Wagner ao discorrer sobre a sobrecarga do conceito de cultura,
mas ao receber uma significação simbólica pessoal e coletiva, permitindo seu
agenciamento e partilha. Se esses pequenos objetos do cotidiano têxtil (os botões,
as linhas que os costuram, o tecido de suporte e sua trama, o corte, as costuras, as
aplicações) registram memórias, eles permitem acessar - ou decifrar, ou inventar -
histórias, tempos e espaços que se neles se cruzam. Assim reflito sobre meu
trabalho nos últimos oito anos em procurar peças de roupa antigas e dar a elas um
novo ciclo. Ainda que muitas peças sejam encontradas nesse lugar de
esquecimento, é possível encontrar caminhos para entrar nelas e desfiar suas
memórias.

Tenho aprendido isso continuamente com as muitas pessoas que guardam os


segredos deste mundo de botões, linhas, fibras, bordados, costuras, tecelagens,
tingimentos e tanto mais. Lembro que logo em uma de minhas primeiras feiras Dona
E. apontou para a peça da ponta de minha arara e afirmou que a roupa vinha de sua
terra, o Ceará. Me explicou que olhando com atenção identificou o bordado
artesanal em ponto crivo, técnica que consiste em desfiar e remendar o tecido com
outra linha, e que sua aplicação em curvas era tradicional de seu estado. Em outras
conversas assim aprendi a ler costuras, fibras e etiquetas que permitem hoje
destrinchar mais a história dessa mesma peça: seu trabalho foi realizado por alfaiate
de ateliê, produção de pequena escala que era forte no Brasil até os anos 90. Seu
tecido é um linho da fábrica Braspérola, que era produzido em Pernambuco até a
mesma década. Traçando sua matéria prima, a fibra do linho vem da linhaça que no
contexto dessa fabricação era plantada na Bélgica, onde o clima é mais adequado
para essa espécie desenvolver plenamente. Olhos atentos conseguem ler nos
detalhes de um objeto sua história, geografia e relações que o mediaram.
Investigando o ciclo das roupas usadas em Salvador (a cidade-resto), a
pesquisadora Marina Cunha conhece a costureirinha que reforma e customiza
peças usadas para uma loja que as revende. O apelido foi adotado como referência
ao filme ‘Balzac e a Costureirinha Chinesa’, no qual a aprendiz de alfaiata inventa
roupas a partir das descrições dos vestuários nos livros de Balzac, proibidos
naquela época pela revolução. Costurar e customizar são práticas de conhecimento
e subjetividade com uma episteme própria, as criações da costureirinha elaboram
um conhecimento proibido mas que passa despercebido pelo aparato de controle e
vigilância do regime.

Marina acompanha em sua dissertação o cotidiano da costureirinha de Salvador em


seu ateliê, me chamou atenção a passagem que descreve um de seus trabalhos:
receber etiquetas de marca para serem adicionadas às peças que iriam para venda
em outra loja. O procedimento de excerto é uma estratégia de venda em uma
sociedade que valoriza mais o branding do que as histórias, reflexo de um hábito de
consumo que se preocupa mais com marcas do que com a qualidade de tecidos,
costuras e modelagem. Histórias tão ricas do cotidiano têxtil elaboradas pelas
fibulanomistas e costureirinhas são apagadas por etiquetas que revelam mais da
publicidade na qual a peça se insere do que sobre seu modo de produção. A tática
das grandes multinacionais é justamente apagar os traços de uma produção
fragmentada territorialmente, que estabelecem seus pontos de produção nos locais
onde as leis ambientais e trabalhistas são frágeis, os recursos são abundantes e o
conhecimento têxtil é vivo e desvalorizado. Se os valores dessas peças são baixos,
seus custos ambientais e humanos são imensuráveis: se esgotam os recursos,
precariza o trabalho e corrói as formas de fazer próprias a cada território.
Aprendi com as pessoas mais velhas que recebi em meu brechó a sempre analisar
uma peça pelo seu avesso. É ele que revela a qualidade do tecido, dos
acabamentos, a generosidade nos reforços de linha ou numa sobra de tecido para
eventuais ajustes. Em outro trabalho, Michel Jeannes convida as colecionadoras a
escreverem seus segredos (vindos das caixas de botões) em um tecido para em
seguida ocultá-los costurando por cima um conjunto de botões. A obra é exposta em
seu avesso, revelando sua técnica e ocultando seu sentimento, assim como as
peças de costureiras e alfaiatas, há um compartilhamento e um segredo no mesmo
ponto, acessível apenas aos atentos olhos das costureirinhas e fibulanomistas.
Quem sabe se aprendermos com elas a ler esses trabalhos do avesso, enxergar as
linhas que revelam processos, territórios e pessoas, não conseguimos também
reelaborar nosso hábito de consumo?
narrativa 3 _ familiaridades

Foram dois anos de espera para reencontrar minha tia Vilma e seguir aprendendo com ela
as aulas de costura que havíamos iniciado um pouco antes do início da pandemia de
covid-19. Pela sua idade avançada foi necessário um cuidado a mais nos períodos mais
críticos de contaminação. Vilma é a irmã mais velha de minha mãe e, apesar de todas
opiniões e perspectivas políticas que nos divergem, habitamos um lugar comum no trabalho
com roupas, costuras, tecidos e artesanias.

Se Strathern nos provoca a se livrar do conceito de casa com medição de nosso grau de
proximidade com nossos interlocutores, penso que investigar dentro de nossa própria
família seja uma experiência exemplar para se sentir os desentendimentos e dificuldades de
se compartilhar mundos com quem sempre esteve próximo de nós. No caso, o terreno da
casa de minha tia se tornou um campo minado no período que antecedeu as eleições de
2022. Ainda assim, nosso reconhecimento sobre o fazer um do outro e a curiosidade pelas
formas tão diferentes com que trabalhamos sobre a mesma matéria torna possível criarmos
pontes e diálogos, aprendermos mutuamente, uma convivência antes de tudo, mas porque
não uma etnografia de mão dupla.

Devo dizer que a investigação sobre o têxtil aqui nunca é um objetivo principal. O que está
em primeiro plano é o partilhar do fazer e técnicas. As ligações que faço para ela
perguntando como chegar a certa cor com tingimento natural, perguntando dos pontos
adequados para chegar a certo efeito visual, perguntando sobre qual agulha comprar para
fazer algo em crochê ou a visitando para aprender a cortar e costurar peças que não
consegui fazer sozinho, tudo aciona algo em sua memória. É nesse convívio pelo fazer que
por acaso surgem histórias do universo têxtil, de como ela aprendeu sozinha aos 7 anos a
fazer roupas, como fazia os tingimentos junto de minha avó antigamente (os materiais que
usavam, as técnicas, o uso delas para sua própria confecção e quando passou a terceirizar
para uma casa de tingimento). de como de um fazer para a família se tornou sua fonte de
renda, os processos que mudam ao longo dessas décadas, como prosperou ao colaborar
com outras mulheres - costureiras, bordadeiras, rendeiras e tantas outras histórias que vão
se remendando nessa trama. Lembro de um encontro em que me contando suas histórias
Vilma pegou no fundo do armário um livro com fotos de criações suas dos anos 60-70 e
uma caixa contendo várias golas grandes que fez para casamentos, parecia que estavam
paradas há anos e cada uma a rememorava de uma história, uma parceira, uma cliente. Ela
sempre me conta com orgulho as histórias que não despertam interesse de nossos outros
parentes. Conversei com outras parentes e ninguém sabia da existência desses registros,
nem de como foi a vida de minha tia, nem que ela chegou a fazer uma encomenda para
Princesa Diana - acho que suas irmãs mais novas não valorizavam seus grandes feitos
artesanais. Estavam ali relíquias e histórias escondidas numa caixa em um armário
esperando um dia alguém com olhar e interesse para reavivá-las. Penso que nas histórias
da vida que Ursula Le Grin diz que sempre estiveram escondidas e que caminham assim,
no encontro de gerações e as histórias que as atravessam entre um pontinho de costura e
outro, mas também entre um tempero no prato e outro, uma rega nas plantas e outra e
tantas outras atividades que podem nos conectar.

A partir disso penso nas várias ocasiões que, em meu trabalho procurando roupas antigas,
tive acesso aos armários de mulheres mais velhas, algumas que queriam me confiar
pessoalmente o que viveram em suas roupas e sempre me parece que ninguém da família
compreendia a estima delas pelo vestido que acompanhou a primeira ida ao teatro, a
camisa que atesta uma viagem marcante ou a calça que veio de alguma parente querida.
Me contam histórias que se confundem na minha memória, todas entre si e cada uma com
as de minha tia, que também é minha história e por isso me torna apto para compartilhar
dessas outras memórias familiares. Há vezes que essas pessoas se vão sem a chance de
confiar a ninguém as histórias e conhecimentos. Determinada ocasião encontrei centenas
de panos e toalhas bordadas e crochetadas à mão por uma avó que estava adoecida, a
neta que me recebia disse que ninguém queria aquilo que era uma lembrança ruim da
família. Aquela fala me rememorou a minha avó e lembrou que o trabalho têxtil muitas
vezes está implicado em histórias de opressão de uma estrutura patriarcal, eu entendo a
necessidade de se pôr fim nelas. Mas na tentativa de se apagar a história do assassino
também se desfaz as histórias da vida que as mãos registraram ali. Eu não perguntei o
porquê, mas talvez por isso a neta me permitiu pegar aqueles tantos trabalhos que iam para
o lixo e dar a eles outros destinos, me contando antes que a avó trocava bordados e
crochês com suas amigas, várias histórias se cruzavam em anonimato naquele armário.

Creio que revisitando esses encontros com minha tia Vilma e seus desdobramentos em
meu trabalho e pesquisas, e pensando essas experiências enquanto uma possível
etnografia familiar, posso tirar alguns aprendizados. O primeiro é sobre certa urgência de
nos sensibilizarmos a esses mundos que existem tão próximo de nós, na família ou suas
extensões, onde habitam histórias às vezes escondidas em roupas, paninhos, livros de
receitas, arquivos de fotos e tantas outras miudezas guardadas em armários. Um segundo
possível aprendizado é lembrar que se tratam de relações humanas antes de ser uma
pesquisa, e aí se faz importante encontrar essas tangências do convívio. Acredito que estar
fazendo algo que faça sentido a todos envolvidos ali facilita as trocas nesse encontro. Se
engajar em uma atividade em comum me parece ser uma forma de criar colaborações em
campo, nos colocando enquanto sujeitos - antes de pesquisadores - que compartilham de
interesses e que podem aprender um com o outro.

Levando esse aprendizado para outros campos, fora dessa experiência familiar, repenso
minha participação em alguns processos que envolveram coletividades durante minha
graduação e minha vida profissional. Estar atuando junto para fazer uma comida coletiva,
uma feira auto-organizada ou uma horta comunitária me parece desse ponto de vista
formas de instaurar um ambiente familiarmente estranho, onde nos sentimos em casa mas
precisamos organizá-la, se tornando necessário colaborar e trocar para fazer algo, e daí se
desdobrarem experiências e trocas muitas vezes imprevistas.

Um exemplo que me vem à memória ocorreu durante uma extensão para investigar
autoconstrução em uma ocupação por moradia. Minha vontade de conversar e escutar
histórias fazia eu desrespeitar o roteiro que me foi entregue, por isso meu trabalho rendia
pouco se comparado ao dos colegas. Por outro lado com minha falta de profissionalismo
chegava a lugares não previstos: aprender e fazer receitas com moradoras, visitar
diariamente por duas semanas uma moradora para preparar vinho de laranja, auxiliar no
manejo de plantas para a horta, descobrir e engajar em urgências para as quais o tempo da
universidade seria lento demais. Pelo convívio nessas atividades tão corriqueiras ali se
construía confiança (ou familiaridade), e isso abriu uma abertura para um engajamento em
pesquisas que passamos a propor acerca do cotidiano de algumas famílias. A falta de um
diário de campo - necessidade que não me ocorria na época - me priva de revisitar com
maiores detalhes e analisar essa experiência. Mas pensando na diversidade de linguagens
possíveis para registrar o encontro etnográfico é possível reler as fotografias, vídeos e
entrevistas que fizemos com nossos parceiros como o que se fez possível ali pelo fazer
como contato, como experiência e como a própria etnografia.

Você também pode gostar