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Em uma cena seguinte Agnès e Michel vão se encontra com outras duas
fibulanomistas, a palavra francesa para colecionadoras de botões. Uma delas diz
que Michel quem lhe deu a ideia de colocar em palavras as emoções que lhe
traziam seus botões, “são tão pequenos mas repletos de memórias, de cultura, de
tantas coisas” uma delas diz. Colecionando esses botões, elas preservam em suas
memórias as histórias vitais, aquelas das quais nos conta Ursula Le Guin que,
apesar de terem garantido a sobrevivência da espécie, foram ocultas nos registros
hegemônicos da história da humanidade - a humanidade que nos foi escondida é
assim preservada nessas preciosas coleções de pequenos objetos. O artista,
quase-etnógrafo de uma vida cotidiana, compartilha com elas a possibilidade de
registrar e circular em outras epistemes a carga enorme contida em pequenos
objetos. Os botões se tornam “diplomatas na mediação de mundos” (MARQUEZ),
participando da produção de um mundo onde essas colecionadoras de botões - e
das suas histórias ocultas - se reconhecem e compartilham seus segredos.
Penso assim que os botões são objetos culturais, acredito que não no sentido
criticado por Roy Wagner ao discorrer sobre a sobrecarga do conceito de cultura,
mas ao receber uma significação simbólica pessoal e coletiva, permitindo seu
agenciamento e partilha. Se esses pequenos objetos do cotidiano têxtil (os botões,
as linhas que os costuram, o tecido de suporte e sua trama, o corte, as costuras, as
aplicações) registram memórias, eles permitem acessar - ou decifrar, ou inventar -
histórias, tempos e espaços que se neles se cruzam. Assim reflito sobre meu
trabalho nos últimos oito anos em procurar peças de roupa antigas e dar a elas um
novo ciclo. Ainda que muitas peças sejam encontradas nesse lugar de
esquecimento, é possível encontrar caminhos para entrar nelas e desfiar suas
memórias.
Foram dois anos de espera para reencontrar minha tia Vilma e seguir aprendendo com ela
as aulas de costura que havíamos iniciado um pouco antes do início da pandemia de
covid-19. Pela sua idade avançada foi necessário um cuidado a mais nos períodos mais
críticos de contaminação. Vilma é a irmã mais velha de minha mãe e, apesar de todas
opiniões e perspectivas políticas que nos divergem, habitamos um lugar comum no trabalho
com roupas, costuras, tecidos e artesanias.
Se Strathern nos provoca a se livrar do conceito de casa com medição de nosso grau de
proximidade com nossos interlocutores, penso que investigar dentro de nossa própria
família seja uma experiência exemplar para se sentir os desentendimentos e dificuldades de
se compartilhar mundos com quem sempre esteve próximo de nós. No caso, o terreno da
casa de minha tia se tornou um campo minado no período que antecedeu as eleições de
2022. Ainda assim, nosso reconhecimento sobre o fazer um do outro e a curiosidade pelas
formas tão diferentes com que trabalhamos sobre a mesma matéria torna possível criarmos
pontes e diálogos, aprendermos mutuamente, uma convivência antes de tudo, mas porque
não uma etnografia de mão dupla.
Devo dizer que a investigação sobre o têxtil aqui nunca é um objetivo principal. O que está
em primeiro plano é o partilhar do fazer e técnicas. As ligações que faço para ela
perguntando como chegar a certa cor com tingimento natural, perguntando dos pontos
adequados para chegar a certo efeito visual, perguntando sobre qual agulha comprar para
fazer algo em crochê ou a visitando para aprender a cortar e costurar peças que não
consegui fazer sozinho, tudo aciona algo em sua memória. É nesse convívio pelo fazer que
por acaso surgem histórias do universo têxtil, de como ela aprendeu sozinha aos 7 anos a
fazer roupas, como fazia os tingimentos junto de minha avó antigamente (os materiais que
usavam, as técnicas, o uso delas para sua própria confecção e quando passou a terceirizar
para uma casa de tingimento). de como de um fazer para a família se tornou sua fonte de
renda, os processos que mudam ao longo dessas décadas, como prosperou ao colaborar
com outras mulheres - costureiras, bordadeiras, rendeiras e tantas outras histórias que vão
se remendando nessa trama. Lembro de um encontro em que me contando suas histórias
Vilma pegou no fundo do armário um livro com fotos de criações suas dos anos 60-70 e
uma caixa contendo várias golas grandes que fez para casamentos, parecia que estavam
paradas há anos e cada uma a rememorava de uma história, uma parceira, uma cliente. Ela
sempre me conta com orgulho as histórias que não despertam interesse de nossos outros
parentes. Conversei com outras parentes e ninguém sabia da existência desses registros,
nem de como foi a vida de minha tia, nem que ela chegou a fazer uma encomenda para
Princesa Diana - acho que suas irmãs mais novas não valorizavam seus grandes feitos
artesanais. Estavam ali relíquias e histórias escondidas numa caixa em um armário
esperando um dia alguém com olhar e interesse para reavivá-las. Penso que nas histórias
da vida que Ursula Le Grin diz que sempre estiveram escondidas e que caminham assim,
no encontro de gerações e as histórias que as atravessam entre um pontinho de costura e
outro, mas também entre um tempero no prato e outro, uma rega nas plantas e outra e
tantas outras atividades que podem nos conectar.
A partir disso penso nas várias ocasiões que, em meu trabalho procurando roupas antigas,
tive acesso aos armários de mulheres mais velhas, algumas que queriam me confiar
pessoalmente o que viveram em suas roupas e sempre me parece que ninguém da família
compreendia a estima delas pelo vestido que acompanhou a primeira ida ao teatro, a
camisa que atesta uma viagem marcante ou a calça que veio de alguma parente querida.
Me contam histórias que se confundem na minha memória, todas entre si e cada uma com
as de minha tia, que também é minha história e por isso me torna apto para compartilhar
dessas outras memórias familiares. Há vezes que essas pessoas se vão sem a chance de
confiar a ninguém as histórias e conhecimentos. Determinada ocasião encontrei centenas
de panos e toalhas bordadas e crochetadas à mão por uma avó que estava adoecida, a
neta que me recebia disse que ninguém queria aquilo que era uma lembrança ruim da
família. Aquela fala me rememorou a minha avó e lembrou que o trabalho têxtil muitas
vezes está implicado em histórias de opressão de uma estrutura patriarcal, eu entendo a
necessidade de se pôr fim nelas. Mas na tentativa de se apagar a história do assassino
também se desfaz as histórias da vida que as mãos registraram ali. Eu não perguntei o
porquê, mas talvez por isso a neta me permitiu pegar aqueles tantos trabalhos que iam para
o lixo e dar a eles outros destinos, me contando antes que a avó trocava bordados e
crochês com suas amigas, várias histórias se cruzavam em anonimato naquele armário.
Creio que revisitando esses encontros com minha tia Vilma e seus desdobramentos em
meu trabalho e pesquisas, e pensando essas experiências enquanto uma possível
etnografia familiar, posso tirar alguns aprendizados. O primeiro é sobre certa urgência de
nos sensibilizarmos a esses mundos que existem tão próximo de nós, na família ou suas
extensões, onde habitam histórias às vezes escondidas em roupas, paninhos, livros de
receitas, arquivos de fotos e tantas outras miudezas guardadas em armários. Um segundo
possível aprendizado é lembrar que se tratam de relações humanas antes de ser uma
pesquisa, e aí se faz importante encontrar essas tangências do convívio. Acredito que estar
fazendo algo que faça sentido a todos envolvidos ali facilita as trocas nesse encontro. Se
engajar em uma atividade em comum me parece ser uma forma de criar colaborações em
campo, nos colocando enquanto sujeitos - antes de pesquisadores - que compartilham de
interesses e que podem aprender um com o outro.
Levando esse aprendizado para outros campos, fora dessa experiência familiar, repenso
minha participação em alguns processos que envolveram coletividades durante minha
graduação e minha vida profissional. Estar atuando junto para fazer uma comida coletiva,
uma feira auto-organizada ou uma horta comunitária me parece desse ponto de vista
formas de instaurar um ambiente familiarmente estranho, onde nos sentimos em casa mas
precisamos organizá-la, se tornando necessário colaborar e trocar para fazer algo, e daí se
desdobrarem experiências e trocas muitas vezes imprevistas.
Um exemplo que me vem à memória ocorreu durante uma extensão para investigar
autoconstrução em uma ocupação por moradia. Minha vontade de conversar e escutar
histórias fazia eu desrespeitar o roteiro que me foi entregue, por isso meu trabalho rendia
pouco se comparado ao dos colegas. Por outro lado com minha falta de profissionalismo
chegava a lugares não previstos: aprender e fazer receitas com moradoras, visitar
diariamente por duas semanas uma moradora para preparar vinho de laranja, auxiliar no
manejo de plantas para a horta, descobrir e engajar em urgências para as quais o tempo da
universidade seria lento demais. Pelo convívio nessas atividades tão corriqueiras ali se
construía confiança (ou familiaridade), e isso abriu uma abertura para um engajamento em
pesquisas que passamos a propor acerca do cotidiano de algumas famílias. A falta de um
diário de campo - necessidade que não me ocorria na época - me priva de revisitar com
maiores detalhes e analisar essa experiência. Mas pensando na diversidade de linguagens
possíveis para registrar o encontro etnográfico é possível reler as fotografias, vídeos e
entrevistas que fizemos com nossos parceiros como o que se fez possível ali pelo fazer
como contato, como experiência e como a própria etnografia.