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brasileira-ensina-para-as-escolas
Publicado em NOVA ESCOLA 19 de Abril | 2023

Indígenas

O que a cultura indígena


brasileira ensina para as
escolas
Conheça práticas que valorizam os povos indígenas sem
recorrer a estereótipos e que podem inspirar atividades em
escolas dos mais diversos contextos
Jonas Carvalho

Aluna potiguara da EEIEFM Pedro Poti, em Baía da Traição (PB), durante


preparativos para o ritual do toré. Foto: Júlio Cezar/NOVA ESCOLA
A EEIEFM Pedro Poti, em Baía da Traição (PB), é a primeira escola estadual
indígena do território potiguara e um exemplo dos diversos ensinamentos e
contribuições que a cultura indígena brasileira traz para as escolas do país,
independentemente do contexto em que estão inseridas.
Entre eles, está a forte relação que os povos originários têm com sua
identidade, história, modo de vida e território. A ligação está presente, por
exemplo, na própria infraestrutura da unidade escolar: disposta em formato de
oca, o pátio principal, a secretaria, a sala dos professores e a cozinha ficam ao
centro, enquanto as salas, banheiros e quadra se encontram ao redor da
estrutura central.
A quadra, aliás, foi palco para as atividades realizadas pela escola ao longo da
Semana de Conscientização Indígena, que antecede o Dia dos Povos Indígenas,
celebrado em 19 de abril.
O início da Semana foi marcado pelo toré, ritual sagrado que realça o
sentimento de nação, de grupo e de amizade entre a comunidade. Nele, alunos
e corpo docente, munidos de maracás, zabumbas e outros instrumentos,
cantam sobre elementos da cultura potiguara enquanto formam círculos – na
escola, as linhas da quadra poliesportiva servem como referência. Após o ritual,
foram realizados debates sobre temas como educação, saúde, meio ambiente e
território.

Alunos e equipe escolar durante o toré, na escola estadual indígena Pedro Poti.
Crédito: Julio Cezar/NOVA ESCOLA
Iratan Ciríaco, gestor escolar da Pedro Poti, explica que a instituição e outras
unidades indígenas atuam de forma a preservar esta cultura. “A escola indígena
tem esse papel: conscientizar e incentivar os alunos para que a luta indígena
não pare. Ações e atividades escolares fortalecem a cultura, o que também
fortalece seu povo”, frisa.
Inaugurada em 2003, a escola está localizada na aldeia São Francisco, uma das
32 que permeiam as cidades paraibanas de Baía da Traição, Marcação e Rio
Tinto. Na instituição, o corpo docente é composto majoritariamente por
indígenas. No caso dos alunos, pessoas indígenas e não-indígenas integram as
turmas dos Anos Iniciais e Anos Finais do Ensino Fundamental, do Ensino Médio
e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Cultura indígena em todas as escolas
Abordar a cultura indígena brasileira em sala de aula é um dever instaurado
pela Lei 11.645/08, que tornou obrigatório o estudo da história dos povos
originários e afro-brasileiros. Elisa Vilalta, integrante do Time de Formadores da
NOVA ESCOLA, lembra que a valorização da cultura indígena está também
presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que reforça a
importância de levar o assunto para a sala de aula.
Leia também: Contos africanos e indígenas permitem trabalhar o gênero
literário e as relações étnico-raciais
Além disso, a educadora lembra que os povos originários devem ser
reconhecidos enquanto parte da sociedade brasileira, assim como sua
influência na cultura do país. “Temos palavras, comidas, costumes e formas de
viver no Brasil que remetem diretamente aos povos indígenas, e levar isso para
a escola é uma maneira de valorizar essa contribuição”, afirma.
Iratan acrescenta: “As escolas, independentemente de serem indígenas ou não,
têm que abordar esses temas [relacionados à cultura dos povos originários],
porque é um assunto de relevância e importância”.
Desde sua criação, a equipe escolar da Pedro Poti se preocupou em elaborar
uma matriz curricular que abordasse a cultura e identidade do povo potiguara,
conforme conta Sonia Potiguara, professora de História dos Anos Finais do
Fundamental e do Ensino Médio, que está na instituição desde sua
inauguração.
“Assim, nós podemos levar aos alunos um ensino diferenciado, que permite o
conhecimento do nosso povo, das nossas origens e antepassados. Não tivemos
isso quando éramos estudantes, por isso, nos preocupamos em levar esse
conhecimento aos nossos alunos”, conta a educadora.
Entender e diferenciar as realidades indígenas
Mas para que essa abordagem faça sentido, Joelma Potiguara, professora de
Etno-história e Arte e Cultura na Pedro Poti, aconselha às escolas e professores
não-indígenas que aprofundem seu conhecimento sobre os povos para além
das referências da região Norte, já que existem povos originários em todas as
regiões do Brasil.
“É preciso conhecer os indígenas do Brasil e não só aqueles de uma
determinada localidade. As etnias brasileiras representam uma diversidade
muito grande, os povos e a cultura indígena não são iguais. Logo, deve-se
respeitar essa pluralidade. Os potiguaras não são iguais aos Xucurus, que não
são iguais aos Kayapós, e assim por diante – mesmo sendo todos do Nordeste”,
explica.
Elisa endossa essa importância. Ela afirma que professores e escolas não-
indígenas devem ter cuidado com generalizações sobre os povos. “Essa ideia
[de unidade] vem sendo quebrada, tanto que o 19 de abril [antigo Dia do Índio]
passou a ser chamado de Dia dos Povos Indígenas. Há um grande número de
etnias indígenas, bem diferentes entre si. As escolas devem ter cuidado para
não ‘comemorar’ o dia pintando rostos, vestindo os alunos com roupas
indígenas ou colocando um cocar”, exemplifica.
Para Iratan, se a escola abordar o assunto de forma superficial ou levar o tema
para as aulas apenas no 19 de abril, a chance de ser um desserviço para o
aprendizado é grande. “A depender da intenção, não sei se mais ajuda ou
atrapalha. Na escola indígena, por exemplo, trabalhamos questões de
identidade e cultura o ano letivo inteiro, tanto nas matérias gerais quanto nas
diferenciadas”, pontua.
Os problemas com estereótipos são comuns a outras etnias indígenas. Maria
Cleidiane Zacarias Santana, professora de Matemática na Escola Indígena
Brolhos da Terra, em Itapipoca (CE), localizada no território indígena
Tremembé, afirma que muitas escolas só lembram dos povos indígenas no mês
de abril e que o assunto não é discutido no restante do ano.
“Algumas vezes, recebemos alunos de escolas não-indígenas e precisamos
quebrar paradigmas. Já escutei estudantes e professores de outras unidades
dizendo que esperavam encontrar indígenas nus ou que se surpreenderam
com uma pessoa do território usando relógio ou celular”, comenta.
Um dos recursos que ajuda o currículo a respeitar a realidade local são as
disciplinas diferenciadas que as escolas indígenas têm em sua matriz, como
tupi-guarani, etnomatemática, etnogeografia, arte e cultura. Enquanto as
disciplinas curriculares abrangem conteúdos de forma ampla, na educação
escolar indígena, os temas são abordados conforme “nossos costumes, crenças,
tradições, espiritualidade e cultura”, explica Marta Domingos, vice-gestora da
Pedro Poti. “Assim, passamos aos nossos estudantes, dentro de um contexto
pedagógico, os ensinamentos dos nossos ancestrais”.

Lições da cultura indígena para as escolas


Vale também reforçar que não é preciso estar dentro de uma
instituição indígena para aprender e disseminar seus valores e saberes.
Práticas escolares ligadas à educação indígena podem inspirar
atividades e ações em escolas dos mais variados contextos, como
mostram os exemplos abaixo.
Realização de alinhamentos pedagógicos
Iratan Ciríaco, gestor escolar da Pedro Poti, afirma que as ações da
escola, como a Semana de Conscientização e outras ações similares, só
acontecem após reuniões com a equipe. Dessa maneira, nada é feito
sem objetivos ou intencionalidade pedagógica previamente definidos.
Isso é importante para que as práticas respeitem a diversidade das 32
aldeias que compõem o território. “Aqui, antes de qualquer atividade, o
corpo docente realiza uma reunião de alinhamento pedagógico. A
partir desse momento, elaboramos as ações, baseadas na realidade
[do povo potiguara]”.
Marta Domingos, vice-gestora da escola, conta que a unidade escolar
também atualiza o Projeto Político-Pedagógico a cada dois anos para
enriquecê-lo, sempre considerando e colocando o povo potiguara no
centro do documento e das decisões escolares.
Respeito às crenças indígenas
Joelma Potiguara cita que educadores podem, de forma equivocada, se
referir às crenças indígenas como se fossem lendas.
“Quando se fala de Mãe d’Água, Iara, Pai do Mangue ou de outros
encantados, para muitos povos esses seres são reais e sagrados, não
são folclore. [A escola] não pode contar essa história como se fosse
algo que não existisse”.
Fim dos estereótipos
Mostrar a realidade concreta no lugar dos estereótipos é essencial para
escolas não-indígenas proporcionarem aprendizados significativos para
seus alunos sobre os povos originários. “Muitos ainda têm uma visão
de que o indígena anda nu, dentro das matas”, exemplifica Marta.
A realidade não poderia ser mais diferente nos arredores da Pedro Poti
e na Baía da Traição, onde as ruas de terra, os comércios de bairro e as
casas de alvenaria são similares a tantas outras cidades do interior do
Brasil.

Chegada de alunos na Pedro Poti. Créditos: Julio Cezar/NOVA ESCOLA


Outro equívoco, segundo Joelma, é tratar os indígenas como uma
população que não “existe mais” ou “um ser do passado”.
“Os indígenas não habitavam um lugar, nós habitamos aqui. Me
incomoda muito tratar os indígenas assim, como se não existíssemos
mais. Para ser potiguara, não há necessidade de nos vestirmos ou
vivermos como vivíamos há 500 anos”, diz.
Exemplos de atividades da escola indígena
Durante o ano letivo, a escola Pedro Poti realiza outras ações que visam
fortalecer a cultura potiguara como os Jogos Indígenas internos. Além da prática
de modalidades como arco e flecha, corrida e arremesso de lança, os
professores aproveitam a ocasião para contar aos alunos aspectos históricos e
culturais dessas atividades e sua importância para a comunidade.
Diversas disciplinas também podem usar elementos indígenas locais para
potencializar a aprendizagem. Antes de ser gestor escolar da unidade, Iratan foi
professor de Matemática e conta como a casa de farinha, local da aldeia onde a
mandioca é transformada em ingredientes e que promove a reunião das
pessoas, pode proporcionar situações de aprendizagem.
“Recebemos os livros didáticos [de Matemática] e adaptamos algumas
atividades conforme a Etnomatemática. Trabalhar a casa de farinha é
interessantíssimo, pois podemos abordar formas geométricas da estrutura
como o forno, que é circular. É possível abordar também ângulos de 90º,
formados quando se coloca a massa no forno, entre infinitas possibilidades de
outros conhecimentos”, afirma o educador. Isso tudo valendo-se de um local
que está conectado à realidade dos alunos indígenas por ser parte do seu
cotidiano.
Leia também: Sugestões para aliar Geometria e povos indígenas
Joelma Potiguara menciona o ensino de Arte Indígena como algo que deve
explorar a diversidade dos povos e desmistificar, por exemplo, a ideia dessas
produções apenas como artesanato. “Temos 32 aldeias aqui [na Baía da
Traição]. Há diferenças entre o tipo de arte feito por cada uma delas. Algumas
produzem mais cestarias, outras trabalham mais colares e plumagens”, conta a
educadora.
Ela também gosta de levar para a sala de aula trabalhos de arte de outras
culturas, como pinturas e músicas, e promover comparativos com a arte feita
pelo povo potiguara. “Não fechamos os olhos para outras culturas e as
valorizamos, mas também valorizamos o que é nosso. A dança, por exemplo, é
importante, mas também é importante [para os estudantes] saber como é a
nossa dança e a nossa música”, explica.
Outro tema que é apontado pela educadora como exemplo de atividade que
pode ser adotada por outras escolas é a abordagem das cores primárias nos
Anos Iniciais do Fundamental. “Podemos falar das cores que utilizamos para
nos pintar, como o vermelho, o preto e outras. Também é possível ensinar
sobre a forma como a pigmentação é feita, como no uso de urucum, jenipapo e
do açafrão”, indica.
Ampliar repertório para mudar percepções
Fazer paralelos entre a cultura indígena e outros sistemas de conhecimento
ajuda a aprendizagem. Créditos: Julio Cezar/NOVA ESCOLA
A professora Joelma Potiguara conta sobre as mudanças que percebeu em
turmas dos Anos Iniciais do Fundamental ao propor, no primeiro dia de aula,
uma atividade simples na disciplina de Arte e Cultura.
Ela pedia aos alunos para desenharem, primeiramente, uma fruta. “Qual fruta
você acha que os alunos desenhavam? 90% dos alunos desenharam uma
maçã”, conta. Depois, ela pedia para desenharem uma casa, momento em que
a maioria traçava uma residência com chaminé.
Por fim, ao pedir para que desenhassem uma planta ou árvore, os alunos
representaram árvores com maçãs ou laranjas. “Nisso, percebemos que há um
entrave”, afirma Joelma, aludindo ao fato de que os estudantes sempre traziam
referências europeias nas ilustrações, desconectadas de sua realidade local.
“Passei a questioná-los: quais frutas temos aqui? Quem desenhou uma manga,
uma acerola ou um coco?”. Se, no começo, a educadora contava nos dedos
esses casos, hoje, com o passar dos anos, o cenário mudou. “Sempre que repito
a dinâmica, os alunos desenham outras frutas, como mangaba”, diz a
educadora.
A professora de História Sonia Potiguara sempre busca levar para os alunos a
memória do povo indígena e contar, por exemplo, a origem de rituais, a
trajetória dos caciques das aldeias e os conhecimentos compartilhados por
anciões da comunidade. Inclusive, uma das atividades conduzidas pela
educadora foi promover encontros entre essas referências para os potiguaras e
os estudantes.
“Já vimos pesquisadores [de fora] vindo à terra indígena para conversar com os
anciãos. Depois, levei alunos para fazer entrevistas e ouvi de um ancião:
‘Contarei tudo para vocês. Para o pesquisador, eu não conto tudo’”, relembra,
reforçando a riqueza de aprendizado de encontros assim.
O território também está presente nas aulas da professora, que utiliza prédios
dos arredores da escola em atividades voltadas para os Anos Finais do
Fundamental sobre patrimônio ambiental, cultural e histórico. “Temos a Igreja
de São Miguel, na aldeia São Miguel; temos os canhões localizados na aldeia do
Forte; temos os desmatamentos causados pela monocultura da cana-de-açúcar.
Todos esses são elementos da região que contam histórias”, exemplifica.
A educadora também costuma fazer paralelos entre a cultura indígena e outros
sistemas de conhecimento. Por exemplo, para falar de Absolutismo, sistema
político europeu que ocorreu entre o século 16 e 19, ela faz a seguinte analogia
com a vivência potiguara: “Discuto com os alunos a figura do rei e faço relação
com o cacique da aldeia, para falarmos sobre questões de poder e
administrativas”.
A criação desses paralelos, acredita, contribui tanto para a aprendizagem de
temas gerais quanto para conhecer realidades políticas de povos indígenas ou
outros grupos sociais que possuem semelhanças e diferenças entre si.

"A escola indígena tem esse papel: conscientizar e incentivar os alunos para que
a luta indígena não pare", diz gestor escolar potiguara. Crédito: Julio
Cezar/NOVA ESCOLA

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