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e formação
o olhar da filosofia
lldeu M. Coêlho
organizador
&
PITc
GOIÁS
Escola e formação de professores
Ildeu M. Coêlho*
M
uito se tem falado, debatido e escrito no Brasil, em especial
desde as primeiras décadas do século XX, sobre formação de
professores. Nos últimos sessenta anos, aproximadamente,
essa questão tem sido posta cada vez mais sob o ~l_!iar da instr1:_mentali-
dede e da 2reocu ação com os resultados, a eficiê~cia e a produtividade
da ~ la. As sucessivas reformas têm pretendido modificá-la, adequá-la
às novas necessidades da sociedade moderna, do mundo do trabalho e da
produção. ~nfase crescente nas questões da estrut~ funcionams;nto,
d-ª administração e, mais recentemente, da gestão da escola e dos sistemas
de ensino, e esta não é uma mera questão de troca de termos, circunscreve
ª discussão aos aspectos operacionais, de poder, competição e sucesso.
. São, então, afastadas e esquecidas as uestões da natureza, do sen-
.
sociedade, a humanidade: a culwr~
-
t ~ da razão de ser e dos fins da escola e sua' e ação intrínsec com a
'
educação, as outras institu.1ções, o
saber, . ' a cienc1a,
ºA · a tecnologia, · as letras, as artes, a fil osofi a, os va 1ores, as
praticas e o 1magmano
· · , · co1et1vo.
· As preocupaçoes- e mteresses
· d a soC1e · d a-
~e, do Estado e dos próprios educadores vão se restringindo à esfera dos
1 st
En ru~entos, das coisas, do fazer, dos resultados, dos objetivos, das metas.
v ssa v1sã · d a e pobre impõe à educação e à esco 1a h onzontes
. 0 1·1m1ta · ca d a
~ez maiso e s · e desprovidas de seu yerda d e1ro · ºfi ca d o...,_ P er d Iºd os
· s1gn1
seu
-
sentid 0 e fi na 1·idade sua razão de ser enfim, sua autonomia, · e d uca-
Çao e esc 0 1 -
--~
----=: a nao passam_' de !J1eios Q_ara se' atmfil . . . •
--
·
ob1.S,t1vos considerados 203
r
importantes no mundo da economia, dos negócios, do dinheiro, d o poder,
do sucesso, do pseudomercado. O trabalho de educar e formar passa a ser
visto pelos que o realizam como uma profissão entre outras, um simples
meio de sobrevivência, no contexto de baixos salários e precárias condições
gerais de trabalho. A escola torna-se um fardo pesado, uma obrigação,
uma imposição enfadonha e cansativa para professores e alunos, também
porque seu sentido e finalidade em parte lhes escapam.
Sem uma discussão rigorosa e crítica dessas questões, envolvendo se-
tores mais amplos da sociedade, do Estado, das instituições, das organizações
e dos meios de comunicação social, não há como buscar e chegar à lucidez, a
ideias, princípios, parâmetros e critérios que contribuam para a compreen-
são, o julgamento, as decisões e a realização dos anseios, ideais, paradigmas
da sociedade e da humanidade, em termos de educação, formação e escola.
Os discursos, as p_ropostas e a.§...E9líticas rç:lativas à formação de professoreJ
freguentemente ficam à deriva, sem rumo, oscilando entre o mirabolante. a
tw=- - ' 1 ._,,
l
vala comum do treinamento, dos rituais, da burocracia, do moralismo e
1; do disciplinamento.
· Assim compreendidos a escola, o ensino, a aprendizagem e a
11
1
degeneram e resvalam em desqualificação dos estudantes, negação de
direitos, ideias e práticas autoritárias. Docentes e discentes se fazem,
verdadeiramente, professores e estudantes à medida q~e, reconhece~do.
sua desigualdade inicial, assumem com lucidez, dedifação e persi stênc~ ª
busca_g,Q saber $,_~trabalho d.0nnação. Além de equivocada, a supos~:
igualdade entre eles não cria direitos e, na vida coletiva e no processo d
formação que dá sentido à educação e à escola, dificulta o surgimento e
exigências éticas . i
fi mar va
À medida que o trabalho de buscar, de formar e de se or d r1l
constituindo relações de igualdade, os professores e os estudantes t~n \.
s igua1
a desaparecer, dando lugar ao surgimento e à afirmação de pessoa . e'
d 'g1co
Com efeito, o fim e a razão de ser da escola e do trabalho pe ago . do
st
208 destruir a desigualdade inicial entre professores e estudantes, con rutn
5
novas relações fundadas ~ álogo, na conversa entr seres autônomo~
no debate e na ação entre iguais. Concluído esse momento propriamente
esc6Íar <lõ processo, os que um dia foram escolares e, tendo adquirido uma
certa autonomia no pensar e no agir, superaram essa condição, continuarão
seus estudos e formação, a seu modo e em outros contextos. A escola não 1
r-...__.--:-;-- - -..---....--,,;,._._J
·seus professores, estarão envolvidos na busca do sabe no cultivo do
pensamento, na formação umana. Otra6a o e cnaçao de uma escola
verdadeiramente diferente da que hoje temos se insere, pois, na luta mais
ampla pela construção da sociedade de iguais, autônoma, livre e justa, duas
faces, aliás, de um mesmo processo.
Reduzida, porém, à condição de coisa, realidade equivalente a ou-
tras, a escola passa a ser vista como 2!_SEnização social, podendo ser gerida
e avaliada do mesmo modo e segundo os mesmos princípios, critérios e
normas usados, por exemplo, nos meios empresariais. Tu,rna-se ~fém da
~gica e das práticas ~ -9~_
do negócios, dªs em12resas. E então as
ideias e as práticas g u~.!:.$.lll E:!f~ ew vogaj ~ar~ a formação j o cidadão,
t, autono~ia, o pensamento e a crítica co5rem ~ rios riscos de 11ªº passar 1
de bo;;fnte~ções, de ~ ~ ~ ~.2,~e·toda 2!~ -:-Reduzida a ~ -
1
ganização, a escola deixa de ser instituição, perde sua força instituinte, seu
sentido, identidade, razão de ser, legitimidade e atribuições publicamente
reconhecidas pela sociedade, pelas outras instituições, entre elas o Estado
e a família.
Diferentemente do que muitos dizem e confirmam em suas ações, a
escola não é uma organização e não pode ser entendida e tratada sob a óti""'.
ca de princípios e critérios próprios do mundo das coisas, da produção e da
circulação dos bens materiais, do consumo, da necessidade e d_a utilidade,
do instituído e da 'diversão. Intrinsecamente constitutivas da escola e dela
inseparáveis, são as ideias de cultura, interrogação, pensamento, sentido e
g~se do real e do imaginário, formação, convivência com o sabe~, parti-
cipação no poder, criação cultural, elevação espiritual e moral dos homens
ern processo de humanização de si e de suas obras.
Reduzido também ele a coisa a objeto a ser guardado, fragamentado,
fatiado, socializado, compartilhado~ apropriado, por alguns em detrimento
da rn aiona,
. · o saber perde sua dimensão cu ltura l e mterrogante.
. Se, na
esfera da produção dos bens materiais, são os meios de produção que devem
ser socializados, e não os produtos que resultam das relações sociais, no 209
e
1
11
,j
mundo do espírito interessa-nos sobretudo a cultura, a educação, a escola
e o saber como criações humanas, atos, fo!:ÇaS instituintes, r~
_e, por isso mesmo, c~pazes de pôr em gg_estão nossas ideias e
assim contribuir para que as superemos. Independentemente de gênero,
nacionalidade e classe social, é preciso criar as ~ondições concretas para
que todos po~am_comEEeender e criar cultura, cultivar a sensibilidãcfe,
a imaginação e o pensamento, bem como aprender a pensar com rig;r,
radicalidade e crítica, des~ brir o prazer da leitura e do estudo, ~m;;=se
1 'I
~orno sujeitos .9ue, de forma autônoma, responsável e livre, pensam e a~,
o que é completamente diferente de saber como as coisas, as organizações,
as empresas e o Estado funcionam e ser capaz de operar o mundo natural
e social. C.011~~ -~'teJ G-sl,;:t;_~ :f (>,~dl,:~ 6.J;~·1uw:s .
A produJão do saber, a criação intelectu~ nas esferas da filosofia,
das letras, das artes, das ciências e da tecnologia, o ensino e a aprendizagem
não acontecem de modo espontâneo, mas supõem trabalho, tempo,
dedicação, dfsciplina e método. Não são, pois, atividades que possam ser
realizadas com rapidez e sem esforço. A redução da cultura e do saber
a coisas, a realidades prontas, instituídas, a produtos a serem fatiados e
repartidos com os indivíduos e os grupos, bem como sua simplificação e
banalização são formas de compreensão e de afirmação da cultura e do
1 pensado, recriado. . ·
_-~-~--º -livro tran~aj~s cg I_?.hecÍII)._9-1~?~-~ informaçõ~s.,.~ escola e a aula
'
.
os conceitos, as teorias, os métodos, os valores, bem como o trabalho de
pensar, de compreender e de recriar a realidade existente, a cultura.
j
Tudo isso é diferente da tão propalada transmissão de conhecimentos,
j
-
da socialização do saber sistematizado e da apropriação do saber acumulado
pela humanidade, que não passam de instrumentalizações da cultura, do
l
saber, da escola e da formação reduzida a treinamento especializado, ou
nao, a preparo d e tecnicos
,, · e d e peritos · em, inc
· 1usive
· nas es1eras
.e - da filosofia,
.
das letras e das artes, bem como <Je e~~ctpores ,._, çl~ consumidores de ideias,
informações, conhecimentos e técnicas.
e ompreen d e-se, pois, . a necessidade
. .e
de pensar a 1ormaçao - e a açao
d
dos docentes e discentes no sentido da instituição de uma outra socieda e,
.
do reconhecimento e da afirmação de todos como seres h u rnanos
214 ,..
autonomos e 1·1vres, su1e1tos
. . d a cu 1tura, do saber, d a açao- e d 0 poder, o
ue somente é possível à medida que, no plano pessoal e coletivo, cada um
~ontribua efetivamente para a afirmação da autonomia e da liberdade do
outro. Essa é uma exigência ética e política que se impõe a todos, nas várias
dimensões da existência pessoal e coletiva, na esfera profissional ou fora
dela. À formação universitária cabe, pois, contribuir ara ue os jovens
possam artici ar a vi a pohuca com uci ez, no exercício mesmo de
sua cidadania e profissão, no senti o ~cn!! na sociedade novas formas
d~ xercício .(ll~~l c7;""~izent~om ~a exis~ ia --;~ial, T:e
pressupõe e visa a autonomia e a liberdade. -
- Tr7ra-se de formar pessoas livres, que vivam e construam a
liberdade pessoal e coletiva, a igualdade, a justiça, a criação de direitos,
a democracia, a fraternidade, a ética, a felicidade; enfim, de formar o
humano em cada um dos que, tendo nascido homens, são chamados a se
humanizar, a confirmam sua humanidade, a criar formas verdadeiramente
outras, diferentes, de existência individual e coletiva, na esfera da família e
da humanidade, passando pelas instituições e pelas sociedades.
Não sendo um distribuidor do saber sistematizado, reduzido a
coisa, a verdade pronta e acabada, rofessor é sobretudo aquele que lê,
estuda, pensa e ensina a ler, a estudar, a pensar; é quem comereen
recna o trabalho aocenTe, estabek~o ~ ndo e como ~nsinar. Por
~ lfíor q~p~sa- ser, seu ensino não substitcinem dispens; ; leitura, o
e~ do persistente e rigoroso, a bu5 o cultivo do pensamento por parte
dos que, a cada momento, se fazem estudantes, discentes, educandos.
Preparar professores para desempenharem o papel de socializadores
do saber é reduzir os cursos de licenciatura ao ensino de conteúdos a
serem posteriormente transmitidos aos alunos do ensino básico de forma
simplificada e banalizada. É ensinar aos futuros docentes a didática, muitas
vezes sob a forma grosseira de "dicas" para se dar "boas" aulas, incluindo
os objetivos gerais e específicos, além das formas consideradas modernas e
corretas de motivação, ensino, avaliação e gestão. ·
Finalmente, mais do que ·currículos desatualizados, inexistência
ou precariedade de recursos tecnológicos, midiáticos, aliado a um
razo ave
' l despreparo para operá-los, como se msiste
· · em d izer · e fazer na
escola
_ . , temos sa beres nao
- pensa d os e que nao- respeitam,
. - provocam,
nao
nao instigam a inteligência de docentes e discentes. Temos sobretudo
graves deficiências na formação da ueles aos uais, or dever de ofício
e profissão, será confiada a iniciação rigorosa e crítica das crianças, 215
e
usual por virtude, termo que em português é bastante vago e ambíguo, é sugeri-
da pela tradução latina de areté por virtus que significa força, qualidade especial
do corpo e do espírito, vigor, coragem, virtude, mérito, perfeição moral.
5 Cf. Chauí (1980). O diálogo não se confunde com uma simples troca de opiniões,
em que cada um diz o que acha, defende ou acredita, opiniões essas que podem
ser equivocadas, preconceituosas e absurdas. Pelo contrário, envolve um rigor-
oso cultivo do pensamento que possui suas regras e exigências, conforme se vê,
por exemplo, nos diálogos de Platão, em que Sócrates, para que se possa dar à
luz o pensamento, impõe o rigor e a crítica aos interlocutores e não admite a
repetição das ideias do senso comum, da dóksa, nem daquilo em que acreditam.
6 Privilegio aqui a leitura dos textos escritos.
Referências
ARISTÓTELES. Metafísica: texto grego com tradução ao lado. São Paulo: Loy-
ola, 2002, v. 2.
DUPAS, Gilberto. O mito do progresso ou progresso como ideologia. São Paulo: Ed.
Unesp, 2006.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Valério Rohden e Udo Baldur
Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 2000 (Os Pensadores). 217
~ ,
• D · U · rsidade
outor em Filosofia. Professor da Faculdade de Educação da nive
218 Federal de Goiás.