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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(2) 2001

O EDUCADOR
magnanimidades e ambigüidades

FERNANDO JOSÉ DE ALMEIDA


Filósofo e Pedagogo, Professor de Didática no curso de Pedagogia e no Programa de Pós-graduação em Educação da PUC-SP.
Secretário da Educação do Município de São Paulo, gestão Marta Suplicy

Resumo: No interior das práticas institucionais, como realização de governo, o artigo apresenta – dentro deste
cenário – projetos sobre a formação do educador, do currículo e as novas tecnologias de educação.
Palavras-chave: educador; currículo; tecnologias.

não –, autoridades eclesiásticas, aposentados de todas as


Não nos faltam vontade e determinação;
falta-nos grandeza de objetivos que espelhem o tamanho categorias, líderes sindicais, jovens de todas as idades.
de nosso poder de agir e iniciar o novo. As experiências educativas e pedagógicas da rede mu-
nicipal de São Paulo estão entre as mais ricas em criativi-
Jurandir Freire Costa (Folha de S.Paulo, 17/6/01)
dade e em enfrentamento de problemas reais e graves, que
abrangem os campos da aprendizagem, da sociologia, da
política, assim como da psicologia. Ao mesmo tempo em

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ste ensaio não pretende teorizar sobre a formação que há uma grandiosidade nesses professores e educado-
de educadores ou mostrar caminhos consolidados res, não há em nosso país sonhos e utopias que elevem essa
sobre tantos descaminhos da educação, nem mes- tarefa de educar acima das questões pedagógicas marcadas
mo apresentar uma visão catastrófica do que está por vir. por um imediatismo pequeno, embora criativo e generoso.
É fruto de uma avalanche de dúvidas e de uma dezena de É dentro desse cenário, rústico e ainda embrionário,
reflexões de um educador que, enquanto tranqüilamente que são apresentadas as reflexões.
desenvolvia sua pesquisa num programa de pós-gradua-
ção em educação da PUC-SP, foi surpreendido pelo con- TODO SER HUMANO É EDUCADOR
vite para ser Secretário de Educação da terceira maior (PARODIANDO ANTÔNIO GRAMSCI)
cidade do mundo, a cidade de São Paulo.
É apenas um levantamento de questões de quem inicia Por quê? Porque se todos têm um projeto de ser huma-
um trabalho à frente de uma escola com 1 milhão de alu- no e de sociedade ideal para se viver, a simples exigência
nos, 40 mil professores, 20 mil servidores com tarefas desse projeto e do relacionamento com pessoas automati-
educativas, e além disso, contando com 10.500.000 téc- camente pressupõe haver aí uma ação educativa. Nossas
nicos para lhe propor soluções e encaminhar críticas, como ações sociais estão sempre cercadas do caráter de con-
se propõem soluções ao técnico da Seleção Brasileira. vencimento. Por isso, pode-se dizer que todos são dota-
Todos torcem para que a vitória seja da Educação, por dos de um certo “educere” (tirar de um lugar para levar a
isso mesmo todos têm propostas e análises críticas (na outro). As ações humanas de convívio estão carregadas
maioria das vezes corretas). Nessa pletora de “técnicos” de intencionalidade “convencedora”. Mesmo que se pen-
estão pais, políticos, jornalistas bem-intencionados – ou se nos atos aparentemente mais distantes dos educativos,

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como os amorosos, micropoliticamente são atos de envol- tidades, produzindo um tipo de conhecimento pasteurizado,
vimento, sedução, educação. homogêneo e indefinido. Muitos dos olhares que se têm di-
A dimensão do projeto humano que cada um tem situa- rigido às questões da educação em nome da interdis-
se no espaço do senso comum, evidentemente envolto pe- ciplinaridade não passam de um emaranhado de boas inten-
las forças ideológicas dos pensamentos que dominam essa ções misturadas a falsos problemas, ausência de profundidade,
sociedade concreta, datada e marcada por uma dada eco- falta de rigor, perda de identidade epistemológica das ciên-
nomia. O mesmo se pode dizer do projeto de sociedade que cias envolvidas. O resultado dessas investigações e práticas
povoa o dia-a-dia de cada um de nossos cidadãos, os quais é um atraso no que diz respeito ao entendimento do ato edu-
se movem por causa dele e em sua direção. cativo. É como se criássemos paulos coelhos do processo de
No entanto, nem todos, o tempo todo, têm a consciên- ensino e aprendizagem e do refletir sobre os problemas hu-
cia clara do que é esse projeto nem que ser humano se manos, sociais e políticos da educação. A chamada inteli-
quer formar. Nesse sentido, não há nitidez e continuidade gência emocional, por exemplo, tornou-se uma espécie de
da função educativa dessa prática diária. (Essa falta de “ficção explanatória”, como diz Skinner, para explicar tudo
clareza do projeto pelo qual se vive não o torna inexistente, o que não se consegue explicar dos atos de aprendizagem e
simplesmente o faz mais forte ainda, porque dele não po- da relação de tecnologia, professor-aluno, problemas so-
demos fugir!). É o que se faz em casa com as crianças, no ciais, etc.
trabalho, no clube, no lazer, ou nas atividades religiosas. Embora não se tenha aqui a finalidade de definir
Mas, o que há de confuso na afirmação: “Todos os interdisciplinaridade, vão apenas ser delimitados seus es-
homens são educadores”? É que nem todos são educado- paços, insistindo nos que não são.
res profissionais. Alguns se especializam nessa prática, As diferentes ciências podem contribuir para esclare-
outros não. Aperfeiçoar-se significa estudar, desenvolver cer os problemas da educação. O educador, em geral, pela
atividades cotidianas e científicas, transformar a pedago- sua aligeirada formação, passa superficialmente pelas áreas
gia (que pode se chamar “andragogia”, educador profis- de conflito e de afinação com as ciências da política, da
sional, etc.). economia, da biologia, da matemática, da psicologia e
Na Europa, o pedagogo é muito valorizado, pois é um transforma tudo em questão de vocação, dedicação, ou
profissional que organiza as instituições no que elas têm mera vontade política para resolver esses conflitos. Outra
de educativas, para si e para o exterior. Seja uma empresa saída histórica dada pelos educadores tem sido a flutuação
de vendas, de produção ou de serviços, todas se relacio- da consciência pedagógica que ora explica tudo pela psi-
nam com atividades pedagógicas básicas. cologia, ora pela sociologia, ora pela história, ficando
Negociação, visão de conjunto, sentido de ética, de- sempre o cerne do pedagógico descoberto ou desfocado.
senvolvimento do senso estético, dimensão política, socio- Cai nos “ismos” falseadores das amplitudes que os atos e
lógica, econômica, capacidade de argumentação, sabedo- a reflexão da educação exigem.
ria de pesquisar, continuamente saber negar o óbvio, ser O aporte das disciplinas humanas ou das “duras” para
criativo, ter múltiplas saídas para os mesmos problemas com a educação tem de ser reprogramado social e concei-
são possíveis funcionalidades de um educador numa equipe tualmente sob pena de se ter sempre na pedagogia uma
de trabalho, afastando a idéia de que ninguém chegou a prática social de segunda categoria e de efeitos sacerdo-
isso até hoje. tais, voluntaristas ou duvidosos.
Parece uma espécie de super-homem? No entanto, não Neste momento em que o Brasil repensa a formação de
é coisa ambiciosa, apenas extremamente complexa. seus professores, abre-se um grande espaço para nos ali-
nharmos com países onde a pedagogia se revê, para bus-
O EDUCADOR É UM PROFISSIONAL DA carmos um novo currículo conceitualmente moderno e
INTERDISCIPLINARIDADE eficaz que permita cientificizarmos a formação e a práti-
ca dos educadores.
Por interdisciplinaridade entenda-se a capacidade exercida Vê-se, freqüentemente, médicos que afirmam ser sua
por um educador em detectar filosoficamente problemas da função mais forte a educativa, em todas as áreas de sua
educação e depois dar a eles um tratamento a partir do ponto especialização. Existem economistas, políticos e engenhei-
de vista de múltiplas ciências. O que não quer dizer colocá- ros que têm como meta de suas vidas profissionais pensar
las num liqüidificador epistemológico retirando-lhes as iden- e produzir conhecimento sobre o que é o saber e como se

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transforma uma economia ou um país pela educação. Tudo como processo contínuo de formação do professor enquan-
isso mostra o redimensionamento da educação no país. to ensina. Todas são questões que amesquinham e rou-
Os programas de pós-graduação são respostas cada vez bam o caráter filosófico da educação.
mais freqüentes a esses tipos de questões postas por esses Ser professor é conseguir ter uma causa política e pe-
profissionais, que em muitos países do mundo já se for- dagógica de tal tamanho que represente um processo
mam em cursos interdisciplinares. civilizatório. Inexiste atualmente esse processo que requei-
Resta, no entanto, o problema da instrução inicial dos ra heroísmo dos educadores, mas só assim conseguiriam
educadores, professores e pedagogos. trazer para seus alunos a mesma mística de generosidade
Pela interdisciplinaridade, o educador em sua fase ini- e dedicação da qual merece estar imbuída a educação. E
cial deve munir-se da perspectiva de várias ciências para nossos alunos seriam influenciados por ela!
iluminar os problemas com os quais a educação se depara. Nossa escola tem exercido funções quase heróicas,
A formação do educador não é apenas uma questão de quando se fala das universidades, das escolas públicas e
didática ou de psicologia do desenvolvimento. Vem de uma de muitas escolas particulares deste imenso país. Existem
questão de perspectiva. De um problema? Qual é ele; sua procedimentos criativos e pertinazes marcando nossos
dramaticidade; seu teor filosófico? Ou, antes, o que é produtos e práticas educativas que são absolutamente ino-
problema filosófico em educação? vadores, frutos de imaginação sensível e muita dedicação
de indivíduos e grupos organizados.
A FILOSOFIA COMO PROBLEMA Mas voltando a Freire Costa, houve um fascínio pelas
quinquilharias da pedagogia assim como pelas minudências
A epígrafe de Jurandir Freire Costa serve para iniciar dos cartões de crédito pedagógicos, dos jargões de um
esta questão. O que é um problema filosófico? É aquele “construtivismo fácil”, das progressões numa carreira que
capaz de mobilizar todas as energias mais íntimas do ser é mais uma corrida do que um projeto de crescimento so-
humano para sua solução. Se não resolvido, compromete cial e antropológico. Isso leva a pensar que não conhece-
a própria razão de ser. A vida não vale a pena sem suas mos a nós mesmos. Desenvolve-se uma imensa libido, uma
respostas. vontade apaixonada, mas se desconhece a sua força, dissi-
“Por que existimos? É possível a comunicação verda- pada em pequenas coisas do dia-a-dia, um quase nada. Toda
deira entre os homens? Em que podemos nos comunicar? essa imensa energia posta nos dínamos e represada em gran-
A verdade pode ser conhecida? Ela existe? De onde vie- des causas poderia produzir um verdadeiro renascimento
mos? Qual nossa origem mais primitiva? Etc.”. da educação e por conseguinte da cultura e da civilização.
Se as questões que colocamos a nós mesmos não va- A escola de turnos integrais, a abertura às questões
lem pelo que são ou se para resolvê-las não convém dar a sociais da ciência, o currículo montado por projetos, a
vida, elas não são filosóficas. quebra das grades das instituições, a construção das dife-
Freire Costa nos coloca diante da questão que marca rentes identidades epistemológicas das novas áreas do
esse momento da história de todos os que se dedicam à saber e suas interfaces com as já existentes poderiam vir
causa da educação: nós temos “estado mobilizados no que a ser uma forma de redignificar a função e formação do-
há de maior – nossas maiores sublimações do espírito – cente e do próprio sistema escolar. Os políticos de todos
para servir ao minúsculo”. os países sabem disso e seus planos e promessas de go-
O que é o minúsculo? São as disputas por organiza- verno atestam isso. Felizmente, nenhum desses muitos
ções curriculares aprisionadas em “grades”; são as for- aventureiros soube montar essa equação. Já tivemos
mas de controle dos alunos por sistema de avaliação in- fernandos de azevedo e anísios teixeiras que concretiza-
justo; são as lutas sindicais que, na maioria das vezes, não ram planos de forma adequada. Darcy Ribeiro tentou ser
lutam por qualidade mas se reduzem a questões salariais um teórico dessa inovação civilizatória que poderia ser
(quanto aos alunos, por exemplo, nunca foram vistos fa- um modelo de formação de uma nação. Seu projeto polí-
zendo greve pela melhoria da qualidade de ensino); são tico, no entanto, não deu conta de forjar tal tipo de educa-
as aposentadorias malplanejadas e imprevidentes; são os ção, mas deixou construídos os Cieps, às vezes confusos
sistemas de formação de professores que se recusam a e marcados por “politicagem”.
discutir e aprender o que é aprender; é o pouco cienti- Poderia-se dizer também que Paulo Freire em suas
ficismo da formação do professor; o descuido do pesquisar obras, principalmente em “Educação como prática da li-

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berdade”, iria iniciar este caminho libertador da educa- da interpretação do mundo e da economia cristã e de seus
ção. Mas foram vistos apenas como uma metodologia de valores.
trabalho com educação popular, quando na verdade têm O instrumento das novas tecnologias da informação
uma dimensão mais ampla, não apenas a que foi para paí- (NTI) não é apenas mais uma forma de ilustrar as aulas
ses emergentes ou em dependência quase bélica como os dos professores com informações que entram das formas
países da África – Cabo Verde, Guiné-Bissau ou Angola –, mais diferenciadas pelos cinco sentidos dos alunos. Os
onde suas idéias foram aplicadas. Paulo Freire ressurge recursos audiovisuais tinham essa função no início do sé-
como modelo no programa de governo democrático de São culo XX e aí residia toda a sua valorização. Já as NTI são,
Paulo. elas próprias, as formas de conhecimento, pois criam uma
O nosso mundo educacional merece uma releitura e nova linguagem e novos conteúdos plásticos de nossos
uma reescrita. Um renascimento cultural, quantitativo e processos mentais.
qualitativo, em que cultura e educação e relações huma- Uma rede de computadores pode vir a ser uma inova-
nas sejam repensadas a partir de um novo padrão antro- ção de qualidade, criar uma documentação sobre o modo
pológico. de pensar e os produtos cognitivos de professores e alu-
O que é ler o mundo e escrevê-lo? nos, que poderão produzir uma nova formação de educa-
O Mundo São Paulo é um microcosmo de civilização, dores, além de uma nova estrutura de conhecimento, um
de criatividade, de humanismo, de barbárie, de estéticas novo paradigma educativo e uma função de educador que
próprias, com um sombroso hermetismo. Sua leitura não crie uma nova profissão de pedagogo.
é transparente, nem se têm os códigos de sua decifração. Por que afirmar isto? Porque permite desvendar um
processo de memória, de arquivamento e de trocas imedia-
Escrevê-lo, então, é mais difícil ainda. O aprendizado de
tas de produtos do conhecimento. Diferentemente dos sis-
sua leitura tem nas escolas públicas desta fantástica cida-
temas arquivísticos em papel (ou em pedra) que exigiam
de uma chave de interpretação e escrita.
cópias corrigidas, sempre com destruição das que conti-
Ler São Paulo, escrevê-la, interpretá-la à moda de uma
nham erros os novos sistemas de arquivo digital têm uma
possível civilização brasileirista é tarefa que pode ser
plasticidade móvel e reformulável como o pensamento.
desvelada pela inserção de uma nova escola no currículo
Além do mais, o sistema digital facilita que se deixem
desta cidade-emblema.
rastros do processo de nosso estilo cognitivo. Sendo as-
Abrir as escolas nos fins de semana, criar uma gestão
sim, fica documentada, dia a dia, passo a passo, nossa his-
democrática, com os pais e a comunidade, estar aberto ao
tória evolutiva do pensamento e das descobertas. Isso é
orçamento participativo, ver na questão das drogas um sinal
ímpar e único como instrumento de análise crítica do que
de que a sociedade precisa reconhecer o grau de prazer e
penso e de como o faço. É uma forma tecnológica de
rejeição que traz a seus 10.500.000 habitantes, sobretudo disponibilizar o pensamento sobre o próprio pensamento,
aos das classes mais carentes, e trazer os problemas so- pois temos diante de nós continuamente nossa pré-histó-
ciais para o centro do currículo. Estes são alguns do pro- ria documentada, suas voltas, revoltas, seus meandros, seus
blemas que a escola pública municipal quer encarar nesta titubeios, seus temores, suas constâncias...
gestão de governo popular para recolocar o ato de educar Se uma rede inteira de educadores toma consciência
no centro do debate político. de seus processos de identidades pedagógicas, cognitivas
e epistemológicas teremos um mapeamento de como é
REDE DE COMPUTADORES E ANTROPOLOGIA produzir saber sobre o ato de pensar, de aprender e de
construir conhecimento.
Sem querer exaltar demais os aparatos tecnológicos, Pode-se imaginar...
não se pode deixar de antever seus impactos para além Esse é o desafio que vamos enfrentar. Trazer o desejo,
daqueles magnificados pelos meios de comunicação e a libido de criar uma utopia que povoe nossas imagina-
pelos vendedores do Vale do Silício. A imprensa de ções e nossas novas competências científicas. Se a educa-
Gutemberg teve repercussões maiores que as previstas ção não conseguir construir a sua, as redes globais televi-
pelas adesões de primeira hora. O importante foi o povo sivas a produzirão para nós, assim como os american
poder dali em diante ler a Bíblia em alemão e pensar so- express, os mc donalds, as heinekens nos encherão de
bre ela individualmente. A reforma protestante suportou- sonhos feitos de isopor e prestações a perder de vista, por
se nesse aparato tecnológico que reverteu na prática o curso todos os séculos dos séculos.

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