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CURSO: PEDAGOGIA

DISCIPLINA: CURRICULO E CONHECIMENTO ESCOLAR

Revista PÁTIO, nº 45, ano 2008 – www.revistapatio.com.br

DESAFIOS NAS RELAÇÕES ENTRE INTELIGÊNCIA E CURRÍCULO


Lino Macedo1

A idéia de uma escola para todos combina com uma visão de inteligência também pensada
para todos
O objetivo desta reflexão é analisar dois desafios nas relações entre currículo e inteligência.
Minha hipótese é a de que o sucesso escolar - que todos desejamos - depende do modo como
esses desafios são enfrentados, compreendidos ou superados nos planos propostos. Primeiro
desafio: coordenar currículo e inteligência considerados em sua perspectiva geral, abstrata,
com a prática dessas relações, que só podem ser particulares, singulares, encarnadas naquilo
que faz uma escola, um professor, um aluno e os meios ou recursos mobilizados para isso.
Como fazer corresponder - e bem - um currículo para todos e uma inteligência de todos se, de
fato, só existem escolas, gestores, professores, alunos e meios singulares no espaço, no
tempo e nos modos de se envolverem? Segundo desafio: coordenar a idéia de inteligência ou
aprendizagem como processo de desenvolvimento com a idéia de inteligência ou
aprendizagem como processo de ensino. Ou seja, como articular aprendizagem-
desenvolvimento e aprendizagem-ensino?
Dadas as duas questões, consideremos o problema de uma inteligência de todos. Segundo
Piaget (1996), todos nós temos uma inteligência. Por intermédio dela, não importa em que
nível, podem-se formular ou identificar problemas - concreta ou simbolicamente - e também
construir, pouco a pouco, procedimentos para a sua solução ou representações para a sua
compreensão. Crianças têm questões muito importantes. Onde está? Quantos são? Como
relacionar isto com aquilo? Como interagir em um contexto de trocas, que pedem regras ou
combinações? Como amar e compreender, ou seja, assimilar (tornar suas) as coisas do
mundo?
Classificar, ordenar, abstrair, cooperar, dominar códigos, tomar consciência, compreender, etc.,
são formas (construção de procedimentos) individuais e coletivas de aprender a lidar com
esses problemas, encarnadas nos objetos ou conteúdos a que se aplicam. Piaget (1996)
estudava a inteligência das crianças na condição de um sujeito epistêmico, porque
descentradas de suas características pessoais, sociais ou culturais. Ele considerava a
inteligência de todos, isto é, de um sujeito do conhecimento analisado pelas estruturas que vai
construindo pouco a pouco para dar conta do que necessita realizar e compreender.
A maneira como Piaget analisava a inteligência pode ser-nos muito útil hoje. A idéia de uma
escola que se quer para todos, que não mais se restringe aos privilegiados de uma classe,
escolha religiosa ou condição intelectual, combina com uma visão de inteligência também
pensada para todos (Macedo, 2005). Mas considerar as pessoas - e não apenas seus modos
de compreender e resolver problemas - implica valorizar a inteligência de cada um. Inhelder,
co-autora de Piaget, propôs um sujeito psicológico, não rival do epistêmico, mas expresso no
plano singular, funcional (Inhelder et al., 1996). Assim, diante do plano macrogenético de
Piaget, ela propôs outro, um microgenético, por intermédio do qual analisa as dificuldades e os
progressos de uma criança em particular. O problema proposto faz sentido para ela? Como
sustenta seus esforços na realização de tarefas? Como constrói procedimentos orientados na
direção daquilo que quer alcançar? Como constrói representações? Como se beneficia das
intervenções ou colaborações? A perspectiva construtivista de Piaget e Inhelder considera a
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Lino de Macedo é professor do Instituto de Psicologia da USP.lmacedo@usp.br

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inteligência das crianças e a da criança de uma forma irredutível, complementar e


indissociável.
O pressuposto curricular também é assim: a escola, o gestor e o professor devem saber
converter o "aluno epistêmico" da proposta no "aluno psicológico" da sala de aula. Damos
conta disso? Temos condições para isso? Quando políticas públicas aprovam um currículo, só
podem fazê-lo em sua perspectiva genérica e abstrata. É certo que estão referindo-se à
realidade brasileira, a uma dada seqüência de conteúdos e expectativas de aprendizagem. É
certo que estão considerando características e condições sociais, afetivas e cognitivas dos
alunos que serão beneficiários da proposta. Princípios e orientações didáticas somente podem
ser de ordem geral. Trata-se de propor um percurso de conhecimento a ser feito por alunos e
professores, que deve resultar em um saber escolar válido e reconhecido.
Propõe-se um bom currículo a ser seguido por todos, em razão dos valores e conteúdos a
serem aprendidos ou ensinados. Os proponentes de um currículo são especialistas nas
diferentes áreas ou disciplinas, mas só trabalham com uma visão geral. O problema é que, na
escola, esses especialistas são substituídos por professores e gestores encarnados. Eles são
responsáveis pela proposição de um projeto pedagógico condizente com as orientações
curriculares. Em sua realização, um projeto acontece em determinado espaço ou tempo,
implica relações positivas ou negativas entre pessoas, requer atividades motivadas,
sustentadas, orientadas e conclusivas, de algum modo.
O mesmo vale quanto aos recursos de inteligência e afetividade dos alunos que realizarão tal
percurso de aprendizagem escolar. Conteúdos curriculares supõem, de preferência com base
em pesquisas e teorias bem fundamentadas, uma correspondência entre o nível de dificuldade
ou exigência para a aprendizagem de um conceito e os recursos de inteligência do aluno.
Inteligência, nesse sentido, significa poder realizar e compreender lições, exercícios, tarefas e
problemas propostos pelo professor. Inteligência, nesse caso, é considerada simultaneamente
de dois modos: um pré-requisito ou condição para aprender e, ao mesmo tempo, recurso que
se modifica, que se aperfeiçoa, graças ao próprio funcionamento requerido ou proporcionado
pelas atividades a serem realizadas.
Abordemos agora o segundo desafio: como articular aprendizagem (desenvolvimento da
criança) e aprendizagem (ensino do professor), ou seja, inteligência em uma perspectiva
psicológica e inteligência em uma perspectiva pedagógica? Piaget, o maior estudioso da
inteligência da criança, não considerava em seus estudos experimentais a relação entre
processos de desenvolvimento e aprendizagem escolar. Neles, professor, currículo, disciplinas
escolares, transposição didática, etc., estão ausentes. Será por isso que suas contribuições
estão sendo descartadas como "uma pedagogia esquecida da escola" (Carvalho, 2001)? Essa
questão é muito importante. Articular domínio de conteúdos disciplinares com desenvolvimento
de competências, habilidades e valores implica coordenar características do desenvolvimento
da criança com processos de ensino do aluno. Desenvolvimento da inteligência e
procedimentos de ensino são partes de um mesmo todo. São irredutíveis, mas se
complementam em favor de algo indissociável: as formas de aprender e os conteúdos e
métodos que as possibilitam.
Piaget analisava o desenvolvimento da inteligência por estruturas variáveis (sensório-motora,
simbólica e operatória) e funções constantes (assimilação, acomodação, regulação,
equilibração). Por esse intermédio, pôde demonstrar como a criança, gradativamente, ia
construindo conhecimentos sobre problemas muito importantes. Para ela, o saber científico ou
social, formalizado pelos adultos, disponível em seu tempo, não pode ser assimilado
diretamente, pois precisa desenvolver estruturas que dêem sentido a esse conhecimento. Daí
que para Piaget o processo de desenvolvimento é obrigatório (necessário, como um direito de

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todos), progressivo (orientado em sua melhor expressão) e exaustivo (tudo pode ser retomado
no nível ou estrutura seguinte). Esse é o grande desafio dos professores: como comunicar ou
"traduzir" tais saberes em algo passível de ser aprendido pelas crianças? Como retomar,
repetir, sem ser chato ou sem sentido? Como dividir os conteúdos em partes que se sucedem
e que se aprofundam em direção ao que se deseja compreendido no final do percurso?
Repito, para concluir, o que já foi mencionado. Para Meirieu (2005), "a especificidade da
transmissão escolar é que ela se faz de maneira obrigatória, progressiva e exaustiva". Esse é o
pressuposto de um currículo. O que ali se propõe é necessário para ser aprendido por todas as
crianças, o que implica considerar a condição de sua inteligência. Na escola se aprende o que
é obrigatório (sua falta será grande e desastrosa para todos). Mas, para isso, esse ensino deve
ser progressivo, dividido em partes segundo tempos, conteúdos e orientações que tornem
possível sua assimilação. A transmissão deve ser exaustiva, pois não se aprende uma coisa de
uma única vez, tudo é retomado, aprofundado, criticado, estendido. Graças a isso, os alunos
ganham competência e habilidades e aprendem a valorizar o que se ensina na escola. Afinal,
isso será de grande valor para sua vida e para a vida de sua sociedade.

REFERÊNCIAS
CARVALHO, J.F.S. Construtivismo: uma pedagogia esquecida da escola. Porto Alegre:
Artmed, 2001.
INHELDER, G. et al. O desenrolar das descobertas da criança: um estudo sobre as microgê-
neses cognitivas. Porto Alegre: Artmed, 1996.
MACEDO, L. Ensaios pedagógicos: como construir uma escola para todos? Porto Alegre:
Artmed, 2005.
MEIRIEU, P. O cotidiano da escola e da sala de aula: o fazer e o compreender. Porto Alegre:
Artmed, 2005.
PIAGET, J. Biologia e conhecimento: ensaio sobre as relações entre as regulações orgânicas e
os processos cognoscitivos. Petrópolis: Vozes, 1996.

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