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Revista Crítica de Ciências Sociais 

110 | 2016
Número semitemático

Batista, Vera Malaguti (org.) (2012), Loïc Wacquant e


a questão penal no capitalismo neoliberal.
Maria do Carmo de Oliveira Vargas

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/6421
DOI: 10.4000/rccs.6421
ISSN: 2182-7435

Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa
Data de publição: 1 setembro 2016
Paginação: 142-145
ISSN: 0254-1106
 

Refêrencia eletrónica
Maria do Carmo de Oliveira Vargas, « Batista, Vera Malaguti (org.) (2012), Loïc Wacquant e a questão
penal no capitalismo neoliberal. », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 110 | 2016, posto online no
dia 26 setembro 2016, consultado o 25 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/rccs/
6421  ; DOI : https://doi.org/10.4000/rccs.6421
Revista Crítica de Ciências Sociais, 110, setembro 2016: 141‑148

Recensões

Santos, Ana Cristina (2013), Social Movements and Sexual Citizenship


in Southern Europe. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 240 pp.

Social Movements and Sexual Citizenship os movimentos e os contextos LGBT de


in Southern Europe constitui um estudo Espanha e de Itália foram sobretudo uti‑
de grande fôlego sobre o associativismo lizados como contrapontos mais do que
Lésbico, Gay, Bissexual, Transgénero e fontes de dados comparativos para o estudo
Queer (LGBTQ) português, sendo que do associativismo LGBT português. Está
a autora já anteriormente tinha lançado longe de ser abundante a literatura que o
as suas bases em A lei do desejo. Direitos investiga e Ana Cristina Santos é a única
humanos e minorias sexuais em Portugal autora que o abordou extensamente no
(2005),1 prosseguindo­‑o depois na sua tese seu conjunto e da forma mais minuciosa e
de doutoramento, que a obra em análise aprofundada. Mais, além da “tese­‑objeto­
largamente reflete. Não será doravante ‑académico” e acima de tudo, é a única
legítimo, para quem trate do tema, deixar que detém o mérito de ter formulado uma
de passar por Social Movements and Sexual tese teórica de fundo sobre ele. Com efeito,
Citizenship in Southern Europe. Convém após contextualizar o associativismo LGBT
assinalar que esta obra transcende em português no(s) âmbito(s) mais vasto(s)
muito as limitações geralmente inerentes das mudanças políticas, legais e culturais
aos trabalhos académicos. E isto não apenas no próprio país, bem como a nível global,
pela sua excelência intrínseca, mas porque a autora defende que, em Portugal especi‑
vem numa sequência, que é tão biográfica ficamente, o movimento LGBT transcende
como teorética, absolutamente coerente de algum modo a clássica dicotomia entre
com toda a pesquisa anterior de Santos assimilacionismo/integracionismo e radica‑
– desde A lei do desejo, posteriormente lismo/confrontacionalismo, apresentando
prosseguida, até à conceção do projeto caraterísticas singulares que definem um
“INTIMATE – Cidadania, cuidado e ativismo sincrético que uma abordagem
escolha: a micropolítica da intimidade na teórica se tem de obrigar a considerar
Europa do sul”, financiado pelo European para o poder compreender cabalmente,
Research Council, cujas bases teóricas se evitando os enviesamentos decorrentes da
pode depreender que já se encontram, aplicação à realidade nacional de grelhas
em grande medida, em Social Movements teóricas formuladas em função de outros
and Sexual Citizenship in Southern Europe. contextos históricos: “O ativismo sincrético
Teoricamente, o ponto de partida da obra é uma nova abordagem decorrente do seu
encontra­‑se na intersecção dos estudos sobre uso combinado de estratégias orientadas
os movimentos sociais, os estudos Gay, para fins, que de outro modo poderiam
Lésbicos e Queer (GLQ) e os estudos ser vistos como incompatíveis. Aquilo
sobre a cidadania sexual. Paralelamente, que o impulsiona é um alvo estabelecido,

  Santos, Ana Cristina (2005), A lei do desejo. Direitos humanos e minorias sexuais em Portugal.
1

Porto: Afrontamento, 203 pp.


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de preferência a uma posição ideológica. histórica e à ineficácia dos movimentos


O fundamento sobre que assenta o ativismo sociais em Portugal, que, afinal, a academia
sincrético advém daquilo que os ativistas acaba por falsamente reiterar, na medida
constroem como objetivos atingíveis, os em que essencialmente os desvaloriza
quais determinam as estratégias emprega‑ (p. 176). Segundo, que é imprescindível
das e os ativistas percecionam o sucesso levar em consideração as contradições e
do movimento com base nesses objetivos tensões intrínsecas ao próprio associati‑
previamente definidos” (Santos, 2013: 157). vismo LGBT, as quais, no entanto, acabam
Se algum reparo de monta houvesse a por fazer com que o ativismo beneficie
fazer, seria algo que inegavelmente afeta com a sua constitutiva conflitualidade, que
toda a atual pesquisa das ciências sociais dinamiza o seu impacto nas esferas política,
e humanas sobre o movimento LGBT, jurídica e mediática, sem ter de depositar
e que consiste no facto de elas terem de a sua exclusiva confiança numa forçada
confiar de algum modo em pressupostos homogeneidade estratégica e ideológica
não provados ou análises ainda conside‑ (p. 177). Ana Cristina Santos, que sempre
ravelmente superficiais ou insuficientes na prestou uma atenção crucial à relação
sua generalidade sobre questões como o entre a investigação académica e o ativismo
verdadeiro sentido e alcance da religião na político, tem com este livro um contributo
sociedade portuguesa (e nas próprias pes‑ incontornável para a esclarecer, sem exces‑
soas LGBT). Ou da história da perseguição sivas complacências tanto para uma como
legal da homossexualidade, ou das formas para o outro. É importante destacar o facto
e modalidades da homofobia na sociedade de Santos compor o quadro teórico e histó‑
portuguesa e da homofobia internalizada na rico a partir do qual é possível empreender
comunidade LGBT, para dar apenas estes uma análise extremamente produtiva do
exemplos. Nem por isso a investigação fica processo que levou a que o nosso país
comprometida, porém: trabalho para quem tenha sido pioneiro na aprovação de uma
o faça e com exigência não inferior à da lei que permite o casamento entre pessoas
presente obra. A autora retira duas conclu‑ do mesmo sexo, ainda que o âmbito da obra
sões de fundo que resultam da exploração abranja sobretudo uma época anterior e se
teórica respeitante aos movimentos sociais. refira a esse processo de forma muito breve;
Primeiro, que o estudo destes requer uma e ainda que a lei do casamento tenha vindo
moldura teórica capaz de dar conta da a marcar uma alteração histórica radical
diversidade dos seus atores e estratégias, no quadro de funcionamento do associati‑
ao invés de construir os impactos dos movi‑ vismo LGBT em Portugal tal como ele foi
mentos segundo narrativas lineares, o que estudado pela autora.
leva a autora à crítica das explicações socio‑
lógicas dominantes quanto à fragilidade António Fernando Cascais

Batista, Vera Malaguti (org.) (2012), Loïc Wacquant e a questão penal


no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 317 pp. Tradução de
Sérgio Lamarão.
Os ensaios reunidos na obra apresentam fazendo com que a leitura completa possa
uma abordagem da sociologia criminal­ prescindir da ordem em que os textos foram
‑punitiva dos mais variados matizes, apresentados. Excetuando­‑se, é claro,
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o ensaio de inauguração, que traz a contun‑ dorsal da obra. Tomando como ponto de
dência do pensamento do sociólogo que partida a reconfiguração social empreen‑
motiva o título – Loïc Wacquant. Voltado dida a partir das décadas de 80 e 90 do
para estudiosos de políticas públicas, sis‑ século passado, tornou­‑se patente a cons‑
temas prisionais, neoliberalismo, estudos trução de um novo governo da insegurança
penais e demais interessados na temática, social, voltado para as tensões inerentes
contribui com rica e diversificada aborda‑ às “populações problemáticas” e com
gem do tema. objetivo unívoco: invisibilizá­‑las. Governar
Característica marcante é o fato de que a a nova insegurança social acabaria por
organizadora do volume, Vera Malaguti imbricar duas variáveis, a desregulamenta‑
Batista, cofundadora do Instituto Carioca ção das relações de trabalho e o desmante‑
de Criminologia, assim como os convida‑ lamento dos serviços de assistência social,
dos à reflexão cumprem dois papéis que como forma de encurralamento rumo
nos parecem essenciais. Primeiramente, a dois inexoráveis caminhos: à incisiva
o volume reúne abordagens que 1) per‑ desqualificação da força de trabalho do
passam por conceitos de Michel Foucault, subproletariado ou ao crime. A nova ges‑
ora aproximando­‑se ora afastando­‑se; tão da insegurança social é a face travestida
2) apreciam as origens protestantes esta‑ da nova gestão da miséria.
dunidenses que sustentam a proposta do Wacquant articula e amplia o conceito de
conceito de estado penal; 3) analisam uma campo burocrático, tão caro que lhe serve
política pública carioca implementada à como início e como arremate do texto.
luz da teoria em análise; 4) trazem à baila Formulado por Pierre Bourdieu, campo
a participação dos espaços acadêmico e burocrático configura­‑se como o locus
científico em âmbito internacional frente das forças sociais, onde são mobilizados
à questão penal, entre outras. A preleção tanto o capital jurídico quanto o capital
do volume reside na postura de diálogo simbólico. Introduz no cerne do campo
aberto, no qual os convidados, mesmo burocrático a polícia, todo o aparato judi-
reconhecendo­‑lhe o vigor teórico e empí‑ ciário e as prisões como espaços essen-
rico, não deixam de sinalizar questões não ciais nas disputas simbólicas.
pacificadas e eventuais silêncios. Trata­‑se, Em perspectiva histórica, detém­‑se na
a nosso ver, de um processo de organiza‑ compreensão da crise mundial concomi‑
ção competente exatamente por agrupar tantemente à desconstrução do welfare
abordagens polifônicas. State, amparada pela organização institu‑
Wacquant, da Berkeley University e do cional e discursiva do Estado penal, con‑
Centre de Sociologie Européenne (Paris), ceito central em toda obra de Wacquant.
trata enfaticamente cor/etnia e classe Com zelo, o herdeiro de Bourdieu desvela
social como categorias de análise essen‑ as teias de análise especialmente quando
ciais para compreensão social e política remete aos estudos de Frances Piven
da desigualdade social, pobreza e pro‑ e Richard Cloward.
cessos de marginalização. “Forjando O tradutor de Vigiar e punir2 para o inglês
o estado neoliberal: trabalho social, também dialoga com outro grande pensa‑
regime prisional e insegurança social”, dor francês – Foucault. Reconhecendo­‑o
assinado pelo homenageado, é a espinha como o mais ambicioso teórico a analisar

2
  Foucault, Michel (1997), Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.
Tradução de Raquel Ramalhete.
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o significado da penalidade, da prisão e “populações problemáticas”. Mas o que


das formas de controlo no decurso dos particulariza o ensaio em análise são os
séculos e, como lhe cabe, de sua expansão contrapontos por elas colocados diante
no século xx, abre também pontos de dis‑ dos argumentos litigiosos de Wacquant
cordância. Apresentamos, sumariamente, quanto a Foucault, problematizando o
as arestas levantadas. fato de a prisão ser colocada como o cerne
A primeira foi a aposta foucaultiana de que da lógica prisional que, em última análise,
as prisões seguiriam rumo à extinção, fato robustece o papel do Estado em (não) gerir
que a atual demografia do sistema carce‑ as tensões sociais.
rário contradiz. Em seguida, não obstante Já em “Punir os pobres: óbvio ululante!
a difusão das “técnicas de adestramento” Ou não? Sociologia crítica da ‘onda puni‑
visando os “corpos dóceis”, Wacquant tiva’”, de autoria dos professores Gisálio
sustenta que, na prisão, bem mais que o Cerqueira Filho e Gislene Neder, ambos
adestramento, empreende­‑se a “neutraliza‑ da UFF, surge a aposta na compreensão
ção brutal” do indivíduo. Diverge também do “grande encarceramento” como sin‑
quanto à capilaridade dos “dispositivos toma evidente da crise do petróleo, de
de normalização”, os quais, a seu ver, são 1973, o qual impactou ostensivamente
especialmente contundentes no espaço nas relações de força política em âmbito
penal, bem mais que na sociedade como internacional e contribuíram para a trans‑
um todo. Essa aresta nos parece existir figuração do Estado caritativo (termo
em virtude da força das duas categorias caro aos autores) para o Estado penal.
contundentes em sua análise, qual seja: A riqueza do ensaio também se reflete
classe social e cor/etnia. A quarta aresta diz ao se abordar a influência “não intencio‑
respeito ao fato de que, no último quartel nal” das ideias de Karl Marx, Friedrich
do século xx, a punição continua visível Hegel e demais membros da Escola
ao público, sob a legitimação do Estado, de Frankfurt sobre o pensamento de
e com a mídia fazendo preponderar a Wacquant, Bourdieu e Foucault no trato
subjetivação coletiva da punição. Nesse da questão da criminalidade.
último aspecto, Wacquant reconhece que, Em “Merci, Loïc”, o professor Nilo Batista,
tendo sido publicado na década de 1970, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Foucault não poderia prever que o Estado subdivide seu o artigo em oito itens. Com
viria a compartilhar a espetacularização base nas correntes teóricas e na historio‑
punitiva com a mídia hegemônica. grafia do direito penal, Batista demonstra,
A diversidade de abordagens reunidas na em síntese, o persistente afastamento entre
obra fica expressa nos capítulos seguin‑ a política criminal e a ciência política.
tes. Arbitrariamente começamos por Como consequência, o grande encarcera‑
“Subjetividades punitivo­‑penais”, de auto‑ mento imanente ao Estado punitivo tende
ria de Cecília Coimbra, da Universidade a persistir, como tem previsto Wacquant,
Federal Fluminense (UFF) e Estela enquanto a política criminal não assumir,
Scheinvar, da Universidade do Estado do em alguma medida, o ethos da ciência polí‑
Rio de Janeiro. Ambas concordam com o tica do poder punitivo, focalizando uma
autor de As prisões da miséria quanto às política pública implementada na cidade
formas de escamotear as tensões sociais do Rio de Janeiro, através da Secretaria
por meio da apologia e da regulamenta‑ Municipal de Assistência Social, onde se
ção da punição, especialmente no tocante promoveu um programa compulsório de
à invisibilização e ao silenciamento das internação da população de rua: pobres,
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viciados em crack, etc., evidenciando­‑se do duo crime­‑castigo, Malaguti coaduna


uma política de assistência social dominada com Edson Lopes (2009).3 Para ambos,
pela lógica policialesca e pan­‑óptica. Por a sociologia brasileira tem sucumbido à
fim, Batista dedica­‑se à realidade social à “obsessão pela segurança”, mas por meio
luz da teoria de Wacquant, sem melindres da prestação de estudos técnicos e “neu‑
e sem disfarce sob discursos neutros e tros”, suprimindo e/ou omitindo­‑se da
tecnicamente construídos. crítica desse novo fenômeno social e, como
Vera Malaguti Batista encerra a obra por ela consequência, entregando­‑se ao inexorável
organizada com o ensaio “Adesão subjetiva funcionamento do status quo; na hipó‑
à barbárie”. Nele, levanta­‑se a seguinte tese mais eufêmica, silenciando­‑se e/ou
pergunta: qual papel a Academia, por meio fugindo ao debate, o que se resumiria, nos
das universidades e de centros de pesquisa, termos da autora, nos seguintes termos:
tem assumindo frente ao processo de sub‑ “O estado agencia o extermínio do coti‑
jetivação punitiva em curso? Depois de diano e a intelligentzia trata de mascará­‑lo”
todo o esforço da obra em problematizar, (p. 309).
(re)formular e propor reflexões acerca da
apropriação discursivo­‑institucional acerca Maria do Carmo de Oliveira Vargas

Duque, Eduardo (2014), Mudanças culturais, mudanças religiosas – Perfis


e tendências da religiosidade em Portugal numa perspetiva comparada.
Vila Nova de Famalicão: Editora Húmus, 338 pp.

Joseph Schumpeter, em Capitalisme, socia‑ podemos perceber nesta estrutura um


lisme et democratie (1990 [1942]),4 foi dos esforço de aproximação de espaços (e de
primeiros autores a referir que as mudanças dimensões). Portanto, encontramo­‑nos
económicas – refira­‑se, as grandes mudanças perante uma obra de fronteira metodológica
económicas – ultrapassam as contingências e de fronteira disciplinar.
dos ciclos estruturais e são desencadeadas O capítulo introdutório (pp. 7­‑16), além
sobretudo pelas mudanças de valores que de enunciar o plano geral da investiga‑
os agentes expressam. Eduardo Duque, ção, tem uma atenção meritória sobre a
em Mudanças culturais, mudanças religio‑ revisão das tensões político­‑religiosas em
sas – Perfis e tendências da religiosidade em Portugal, desde o período da Monarquia
Portugal numa perspetiva comparada, estuda Constitucional até estes primeiros dez anos
sobretudo a mudança dos nossos valores, do século xxi. Esta é uma revisão suportada
enquanto europeus e enquanto cidadãos nas leituras de Oliveira (1994)5 ou Ramos
que expressam (ou não) atitudes religio‑ (1983)6 que, na análise da integridade da
sas. Estudando o “Índice” (pp. 337­‑338), obra, se compreende essencial para lançar

3
  Lopes, Edson (2009), Política e segurança pública: uma vontade de sujeição. Rio de Janeiro:
Contraponto.
4
  Schumpeter, Joseph (1990), Capitalisme, socialisme et démocratie. Paris: Payot [orig. 1942].
5
  Oliveira, Miguel (1994), História eclesiástica de Portugal. Mem Martins: Publicações
Europa-América.
6
  Ramos, António Jesus (1983), “A Igreja e a I República: a reação católica em Portugal às leis
persecutórias de 1910-1911”, Didaskalia, 13, 251-302.
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o quadro de modernidade – ou melhor, agentes oscilem numa tensão permanente


de complexidade – que o investigador entre centro(s) e periferia(s).
Eduardo Duque encontrou na análise dos Os capítulos III e IV (pp. 57­‑158) são, clara‑
dados do European Values Survey, nomea‑ mente, capítulos de análise empírica. Desde
damente na edição mais recente (datada logo, principiam por uma atenção crítica
de 2008).7 sobre os métodos de recolha, amostragem
O segundo capítulo (“Enquadramento e compilação do European Values Survey
Teórico da obra”, pp. 17­‑54) começa por (pp. 58­‑60) ou de fontes complementares
colocar ao leitor uma pergunta desafiadora: (como o Anuário Católico, os Censos da Prática
“Tem o sociólogo um método para estudar a Dominical, ou a Base de Dados do Instituto
Religião mais adequado do que o do teólogo, Nacional de Estatística). Posteriormente,
filósofo ou psicólogo?” (p.17). Entende­‑se avançamos para a explicitação dos instrumen‑
que a elencagem destas quatro expressões tos de análise comparativa que Duque (2014)
de cientista social não é restritiva do leque vai usar, sempre numa base comparativa
de outras expressões, onde cabe o econo‑ (2008 face a 1990): distribuição das frequên‑
mista, o gestor ou o politólogo (Kumar, cias de resposta (complementadas com uma
2009).8 O capítulo progride para uma dis‑ discussão dos coeficientes de contingência),
cussão detalhada sobre a “emancipação da análise de componentes principais, análise da
Razão”, alcançando uma discussão muito consistência interna dos fatores, correlação
estimulante sobre a Crítica da Racionalidade entre constructos e esboço de regressões
Instrumental (pp. 29­‑30), recheada de obser‑ bivariadas. Duque (2014) observa aqui um
vações pertinentes de reflexão metodológica largo conjunto dimensional: a autoidenti‑
transversal às Ciências Sociais. ficação religiosa; a assistência aos serviços
Este capítulo apresenta ainda uma discussão religiosos; e a dimensão religiosa e institucio‑
sobre a secularização/dessacralização das nal. Algumas observações empíricas merecem
figuras do Divino (pp. 30­‑38). Enquanto ser destacadas. Dada a extensão dos desafios
na esteira da Epístola de Tiago poderíamos emergentes, permito­‑me destacar três: a crise
considerar o Próximo como o Sacrário do de fé na população sénior, a forte correlação
Deus Cristão, as novas “multiculturalidades entre a importância atribuída ao Divino
religiosas” (pp. 36­‑37) caminham para uma e ao Outro, e a relação interinstitucional.
religiosidade de fragmentos (onde o Ócio Os capítulos V e VI detalham um conjunto
ou o Prazer, partilhados ou não, se afigu‑ de evidências complementares, especial‑
ram, também, como espécies substitutas mente a diminuição entre a priorização
de Deus). Duque (2014) termina o capítulo das preocupações materialistas (“manter a
II com uma discussão sobre os Centros de ordem no país” e “combater a subida de
Galtung (pp. 50­‑54). Percebemos a rele‑ preços”) e as preocupações pós­‑materialistas
vância desta referência a Galtung (1971),9 (capacitação política e proteção da liberdade
na medida em que a dinâmica dos centros de expressão). Nomeadamente, o gráfico
(por definição, os espaços de concentra‑ 5.4 intitulado “Pós­‑materialismo, no con‑
ção dos pontos referenciais) leva a que os junto, segundo as gerações (Diferenças de

7
  GESIS (2008), European Values Study. Consultado a 30.06.2013, em http://www.europeanva‑
luesstudy.eu/page/survey-2008.html.
8
  Kumar, Vikas (2009), “Law, Economics, and Religion”, Indira Gandhi Institute of Development
and Research. Consultado a 15.09.2015, em http://works.bepress.com/vikas_kumar/36.
9
  Galtung, Johan (1971), “A Structural Theory of Imperialism”, Journal of Peace Research, 8(1), 81-118.
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percentagens)” (p. 167), mostra a diminui‑ que procuram serviços ou expressões orga‑
ção das diferenças de percentagens entre os nizadas do religioso) e não tanto o foco da
dados de pós­‑materialistas recolhidos em oferta de religiosidade (igrejas, confissões,
2008, face aos recolhidos em 1990 (sobre‑ instituições religiosas). A exploração deste
tudo para os indivíduos nascidos em 1971 supply­‑side do religioso deve ficar como uma
ou em 1981). Explicação que converge com motivação/ um desafio para a continuação
a explicação clássica de Inglehart (1977: 33) da investigação das mudanças religiosas dos
sobre a dinâmica das diferenças percecio‑ europeus (na esteira de Mourão, 201111 ou
nadas nos valores de grupos de diferentes Bezjak, 201212).
idades.10 Outra evidência relevante surge Outro desafio possível emerge da noção
com o gráfico 6.1, intitulado “Posição reli‑ matemática do complemento do con‑
giosa, segundo índices” (p. 194), no qual junto fechado – ao definirmos (isto é, ao
as confissões não católicas em Portugal são fecharmos) o conceito de “religiosidade”
identificadas como mais conservadoras do temos consciência de que existe um espaço
que no resto da Europa. conceptual da não religiosidade? Quais as
Com o capítulo conclusivo, reconhecemos fronteiras do que é não religioso? Quais os
que estamos perante uma obra que prima pontos internos deste espaço não religioso?
desde logo por uma qualidade académica: São questões que emergem naturalmente da
a humildade. A polidez do texto também riqueza derivada das discussões inerentes a
pode ser identificada como mais uma das esta obra de Eduardo Duque.
forças da obra. Percebe­‑se o foco no lado
da procura de religiosidade (foco naqueles Paulo Reis Mourão

António Fernando Cascais


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
Avenida de Berna, 26­‑C, 1069­‑061 Lisboa
Contacto: afcascais1@gmail.com

Maria do Carmo de Oliveira Vargas


Universidade Federal de Minas Gerais
Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha, Belo Horizonte, MG CEP 31270­‑901, Brasil
Contacto: mcvargas@ufmg.br

Paulo Reis Mourão


Departamento de Economia, Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
Campus de Gualtar, 4700­‑015 Braga, Portugal
Contacto: paulom@eeg.uminho.pt

10
  Inglehart, Ronald (1977), “The Silent Revolution in Europe: Intergenerational Change in Post-
industrial Societies”, American Political Sciences Review, 65, 991-1017.
11
  Mourão, Paulo Reis (2011), “Determinants of the Number of Catholic Priests to Catholics in
Europe – An Economic Explanation”, Review of Religious Research, 52(4), 427-438.
12
  Bezjak, Sonja (2012), “Catholic Women Religious Vocations in the Twentieth Century: The
Slovenian Case”, Review of Religious Research, 54(2), 157-174.

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