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Versão final publicada em:


CONSOLIM, M., Pizzaroso, N., WEISS, R. Marcel Mauss: Relações Reais e
Práticas entre a Psicologia e a Sociologia (edição crítica e bilíngue). São Paulo,
Edusp, 2018, pp. 141-164.

Georges Dumas et Marcel Mauss:


diálogo sobre a expressão das emoções e dos sentimentos

Marcia Consolim1

« Nosso encontro, entre Dumas e eu, no


campo do riso, das lágrimas, ou seja, da
expressão dos sentimentos considerados
signos, obrigou-me a tomar posição. (...) O
eterno e um pouco vão debate entre
psicólogos e sociólogos foi renovado pelo
consenso ». Marcel Mauss, em torno de
1930.2

Este artigo pretende analisar algumas das razões pelas quais, nos anos 1920,
período de crescente especialização científica, a psicologia e a sociologia, recém-
instituídas na universidade e relativamente concorrentes, passaram a dialogar em razão
de uma proposta de colaboração elaborada por Marcel Mauss e Georges Dumas. Trata-se
principalmente de analisar as fronteiras acordadas por ambos para tal colaboração, que
focalizava um objeto específico – a expressão das emoções (Dumas) ou a expressão dos
sentimentos (Mauss) –, pensado a partir de pontos de vista distintos e, por isso,
complementares. Para além da análise específica do conteúdo de tais estudos, pretendo
também indicar as condições intelectuais, institucionais e disciplinares que possibilitaram
a emergência de afinidades eletivas entre psicólogos e sociólogos, pois tais condições
explicitam as razões pelas quais tal proposta começou a ser pensada já na década anterior,
desde a publicação das Formes élémentaires de la vie religieuse, em 1912, e porque ela
não foi a única proposição a surgir em tais meios – motivo pelo qual foi criticada pelos
próprios praticantes de ambas as ciências.

1
Este artigo foi resultado de um financiamento da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo – na modalidade Auxílio à Pesquisa Regular.
2
M. Mauss e P. Besnard. “L’œuvre de Mauss par lui-même”. Revue française de sociologie, 20-1, 1979 ;
P. Besnard (org). “Les durkheimiens. Études et documents réunis par Philippe Besnard ”, . p. 219.
2

Se assumirmos, conforme afirma Hirsch3, que a questão da fronteira entre as duas


abordagens permaneceu um objeto de disputa ao longo de todo o período entre guerras, a
proposta de colaboração acordada entre Mauss e Dumas deve ser vista antes como um
caso de exceção do que como um caso típico das relações entre os dois grupos. Os estudos
existentes sobre as relações entre a sociologia e a psicologia afirmam que a aproximação
entre os dois grupos se impôs seja por interesses estratégicos ligados ao combate à
psicanálise ou à sobrevivência da sociologia.4 Entre os estudos “internalistas”, assume-se
frequentemente uma mudança na abordagem de Mauss após o falecimento de Durkheim,
que supostamente o impedira de se aproximar da psicologia5. Se refuto a última
afirmação, uma vez que Mauss dá sinais claros de ser um herdeiro estrito da sociologia
durkheimiana, isso não significa que considere o problema resolvido pelas hipóteses
indicadas por Karady, Heilbron e Pinto. Estas são certamente importantes, mas não
esgotam o problema porque não o consideram sob a ótica de quem incentivou o ingresso
de Mauss nos meios psicológicos, Georges Dumas e, por isso, não imaginam que tal
proposta havia sido gestada por ele já nos anos 1910, ou seja, antes do cenário ameaçador
à sobrevivência dessas ciências, perdendo força justamente quando tal sobrevivência
estava mais ameaçada, nos anos 1930.6 Além disso, é importante observar que há carência
de estudos sobre as relações entre sociólogos e psicólogos, uma vez que os historiadores
da psicologia ou sociólogos da sociologia estão em geral mais atentos à constituição de
suas respectivas disciplinas.
Ao invés, portanto, de fatores conjunturais e estratégicos atuando em prol da
aproximação de dois grupos considerados em princípio heterogêneos, realço, ao
contrário, as afinidades eletivas entre eles dadas por trajetórias intelectuais similares. Pois
é sobre tal fundo comum que se seguiram as disputas pela zona de fronteira entre a

3
Cf. T. Hirsch, Le temps des sociétés: D'Émile Durkheim à Marc Bloch. Éditions EHESS, 2016, p. 135.
4
Cf. V. Karady. “Présentation”, em Marcel Mauss. Oeuvres I. Les Fonctions sociales du sacré. Paris,
Minuit, 1969; Johan Heilbron. “Les métamorphoses du durkheimisme, 1920-1940”. Revue française de
sociologie, 26, 1985, pp. 203-237; Louis Pinto. “Le tracé des frontières : sociologie et psychologie chez les
durkheimiens”, em A. Boschetti. (org.). L’Espace culturel transnational. Paris, Nouveau Monde éditions,
2010, pp. 243-268.
5
Cf. Debate na “Apresentação” deste volume. Cf. também B. Karsenti. L'homme total. Sociologie,
anthropologie et philosophie chez Marcel Mauss. Paris, PUF, 1997; L. Mucchielli, “Sociologie et
psychologie en France, l’appel à un territoire commun. Vers une psychologie collective (1890-1940)”,
Revue de synthèse, vol. 115, 1994, pp. 445-483; L. Mucchielli, “ Pour une psychologie collective : l’héritage
durkheimienne d’Halbwachs et sa rivalité avec Blondel durant l’entre-deux-guerres”. Revue d’histoire des
sciences humaines, 1999/1, pp. 103-141. J-C. Marcel. Le Durkheimisme dans l’entre-deux-guerres. Paris,
PUF, 2001.
6
Com exceção de Karsenti, que dedica algumas páginas a Dumas, os demais estudos, quando falam da
relação entre a sociologia e a psicologia, consideram a conferência de Mauss sobre essas relações, bem
como o debate entre Charles Blondel e Maurice Halbwachs.
3

psicologia e a sociologia. Tal diferenciação, como se verá, variou conforme a posição que
cada agente ocupou no espaço institucional e disciplinar, associada por sua vez a um tipo
intelectual específico. Para se compreender o significado de tais trajetórias, analiso, em
primeiro lugar, a posição que a sociologia e a psicologia ocuparam no ensino superior
antes e depois da Primeira Guerra, enfatizando as semelhanças entre elas enquanto
ciências do homem. Em segundo lugar, analiso as trajetórias de Mauss e de Dumas a
partir de sua semelhança/diferença com a dos sociólogos e psicólogos de sua geração e,
em seguida, segundo as funções intelectuais que desempenharam em suas carreiras. Em
terceiro lugar, mostro que a proposta de colaboração de Mauss e de Dumas, baseada no
caráter supostamente complementar entre a psicologia fisiológica e a sociologia
durkheimiana representou inegavelmente uma concessão da psicologia científica à
sociologia durkheimiana, sem com isso impedir o descontentamento entre os praticantes
de ambos os lados, seja por subordinação ao polo filosófico, seja pela afinidade com o
polo científico. Finalmente, concluo que a proposta de colaboração de Dumas e Mauss
sofreu constrangimentos devido ao estágio de desenvolvimento de ambas as ciências e
pela posição intermediária que ocupavam no espaço das disciplinas constituídas, a um só
tempo tidas como muito generalistas pelos praticantes das ciências naturais e muito
especializadas pelos filósofos. Assim, nos anos 1930, as novas gerações formadas pelas
faculdades de letras passam a combater as ciências do homem em nome de valores
filosóficos, enquanto por seu turno os cientistas (fisiologistas e patologistas) aderem ao
processo de especialização sem a preocupação de manter um diálogo interdisciplinar.

I – Entre a Filosofia e a Ciência: a formação dos sociólogos e dos psicólogos

A sociologia durkheimiana e a psicologia científica floresceram em uma geração


com trajetória intelectual bem específica. Grande parte de seus adeptos fez sua formação
filosófica em ao menos uma das instituições mais reconhecidas no espaço do ensino
superior francês – a École Normale Supérieure de Paris (Rue d’Ulm) e a Faculté de Lettres
de Paris (Sorbonne). Tais instituições dizem muito sobre as chances de carreira docente
em Paris, pois a Sorbonne era o principal centro universitário de formação e titulação de
professores para o ensino secundário nas disciplinas tradicionais (Letras, História e
Filosofia) e onde ingressavam como docentes preferencialmente os que haviam cursado
a Rue d’Ulm. Era também uma instituição central, juntamente com o Collège de France,
no controle da inovação disciplinar e da qual dependia, portanto, o equilíbrio entre cultura
4

literária e cultura científica nas áreas de humanas. Se, com o advento da Terceira
República, houve um primeiro impulso no sentido de aproximar tais disciplinas do
universo científico, a relação de equilíbrio tenso entre, de um lado, o saber filosófico e,
de outro lado, a sociologia e a psicologia, não deixou de contribuir para aproximar os
recém-chegados.7 Se, como afirma Soulié, os filósofos da Revue de métaphysique et de
morale e da Société de philosophie tenderam a defender as ciências do homem à medida
em que elas fossem “moderadas” e admitissem o papel central da “consciência
individual”, a Sorbonne abriu espaço para ao menos um psicólogo e um sociólogo da ala
“extremista”, ou seja, que desconsideravam tal princípio em nome de teorias
deterministas de tipo biológico ou social. Isso porque o apreço pelo capital filosófico dos
candidatos foi maior do que a rejeição a suas teorias científicas “reducionistas”.
Assim, até o fim do século XIX saberes tais como a estatística social ou a
fisiologia humana, por exemplo, não eram reconhecidos como legítimos à formação do
filósofo na Faculté de Lettres de Paris. Por isso, as novas gerações tiveram que buscar em
outras instituições uma formação complementar para se legitimar no campo científico,
tais como a Faculdade de Ciências; a Faculdade de Medicina; o Collège de France ou a
École Pratique des Hautes Études. Isso significa que os novos praticantes das ciências do
homem estavam marcados por uma formação fundamental, filosófica, e por outra
complementar, científica, ocupando posição dominada nas duas ordens do conhecimento.
Outro traço importante da trajetória de tais autores é a área de formação. Nesse
período, a área em que se obtém o título de doutorado não é necessariamente a mesma
em que o docente fará sua carreira, uma vez que é a área do título de agregação que dá
acesso à carreira docente: seja no ensino médio (caso da Filosofia e das Ciências
Naturais), seja no ensino superior (caso da Medicina e do Direito). No caso da carreira na
Sorbonne, esperava-se que um candidato a uma vaga docente no curso de filosofia fosse
portador do título de agregação em Filosofia e do de doutorado em Letras. No caso da
Faculdade de Medicina, do título de agregação em Medicina – a despeito da obtenção de
um doutorado nesta área. Por essa razão, muitos dos psicólogos das novas gerações,
apesar de terem dois títulos de doutorado – em Letras e em Medicina – eram considerados
filósofos por não possuírem a agregação em Medicina. Assim, quando ocupavam algum
posto em instituição hospitalar eram, em geral, postos periféricos em relação àqueles
ocupados pelos agregados em Medicina – por exemplo, em “laboratórios de psicologia”

7
As relações entre a filosofia e as novas ciências do homem, em particular a psicologia e a sociologia,
foram tratadas por vários estudos anteriores. Cf. Pinto 1993; Soulié 2009.
5

de hospitais psiquiátricos. Além disso, a área de medicina mental, em particular a


psiquiatria, onde trabalhavam muitos dos psicólogos, deixara de ser uma especialidade
valorizada desde o início do século, seja por sua origem asilar, seja por ser um saber
aplicado.8 Assim, apesar de portadores do doutorado em Medicina e em Filosofia, tais
psicólogos ocupavam uma posição dominada, tanto nas hierarquias filosóficas, quanto
nas médicas. 9 No caso dos sociólogos durkheimianos, a aquisição de um segundo título
de doutorado e de uma segunda área de competência se deu preferencialmente na
Faculdade de Direito – menção “ciências jurídicas” ou “economia política”. A economia
política e o método estatístico eram matérias ensinadas em inúmeras majoritariamente
nas grandes escolas de comércio ou engenharia e, principalmente no caso da estatística,
eram ciências de Estado, ligadas aos interesses da administração pública, e com grande
viés ideológico ou pragmático. Assim, em comparação à agregação em Filosofia e ao
doutorado em Letras, obter um segundo doutorado em direito/economia representava
especializar-se em uma ciência aplicada, ou seja, dominada em relação às hierarquias
filosóficas e jurídicas. Sociólogos-economistas ou estatísticos sociais eram homólogos,
portanto, dos psicólogos, pelo fato de serem também duplamente dominados.
Na Sorbonne, os psicólogos tinham clara vantagem sobre os sociólogos, o que fez
com que os primeiros fossem aceitos aí muito antes do que os psicólogos. Desde 1885,
havia ao menos um curso complementar de Psychologia Experimental na Sorbonne, mas
até a Segunda Guerra nenhum curso foi intitulado de Sociologia. Os filósofos-médicos
eram portadores de um saber científico relativamente mais legítimo porque menos crítico
dos valores filosóficos fundamentais, em particular a crença na autonomia individual em
relação à coletividade10. Estes, por sua vez, se tinham maior capital simbólico no espaço
filosófico por estarem mais apartados dos socialmente dominantes e das dos centros

8
Segundo Weisz, entre 1880 e 1945, houve um intenso movimento de especialização na medicina, em cujo
processo se destacam as seguintes especialidades: cirurgia; ciências mentais e neurologia; doenças da
mulher e pediatria. Em 1884, depois de “cirurgia”, as “doenças mentais” tinham a segunda maior proporção
entre médicos da elite. Contudo, entre 1905 e 1920, a proporção de psiquiatras e de neurologistas da elite
(membros da Academia de Medicina) diminuiu muito. Se, entre 1920 e 1935, ambas as especialidades
ganharam novamente prestígio, o novo recrutamento dos neuro-psiquiatras não veio dos hospitais
psiquiátricos. G. Weisz, p. 202-207. “Mapping Medical Specialization in Paris in the Nineteenth and
Twentieth Centuries” Social History of Medicine, 7(2), 1994, p. 202–207 [177-211]. Cf. também P. Pinell.
“ Champ médical et processus de spécialisation”. Actes de la recherche en sciences sociales, n° 156-157,
2005, pp. 4-36.
9
O caso dos psicólogos foi estudado por J. Ben-David e R. Collins, segundo os quais a inovação no campo
da psicologia resultou, entre outras razões, de uma espécie de compensação pela troca de uma disciplina
com status social e profissional maior (mas com menos chances de carreira) para uma menor. Cf. J. Ben-
David e R. Collins “Social Factors in the Origins of a New Science: The Case of Psychology”, American
Sociological Review, vol. 31, n. 4, 1966, pp. 451-465.
10
Pinto, op. cit., 1993.
6

intelectuais conservadores, tais como o Institut de France, enfrentavam outro tipo de


suspeição: o da filiação ideológica de seus praticantes.
O concurso de Georges Dumas para o curso de Psicologia Experimental na
Sorbonne, em 1902, revela a importância dos títulos e das áreas de formação no âmbito
da tensão entre ciência e filosofia. Dumas foi escolhido, em detrimento de Alfred Binet,
porque era portador da agregação em Filosofia e do doutorado em Letras, enquanto Binet,
apesar de ser doutor em Ciências Naturais e diretor de laboratório de psicologia e de uma
revista científica reconhecida, não tinha nenhum dos dois títulos de Dumas. Ou seja,
mesmo que o concurso fosse para um curso de Psicologia Experimental, negar a vaga a
Dumas, segundo os que o defenderam, seria desvalorizar o título da própria instituição.11
No caso do concurso de Durkheim, também em 1902, para a cadeira de Ciência da
Educação, os candidatos concorrentes – Paulin Malapert e Jules Payot – tinham doutorado
em Letras, motivo pelo qual o apoio à candidatura de Durkheim se deu pelo conjunto da
obra e pela experiência docente na Universidade de Bordeaux.12 Assim, pode-se concluir
que, a despeito das diferenças na formação complementar de psicólogos e de sociólogos,
a formação filosófica era um traço que os identificava e valorizava, mas também seu
ímpeto de renovação das ciências do homem: filósofos de formação e cientistas por
opção, suas estratégias se inscrevem num processo contraditório entre, de um lado, a
valorização de si pelos títulos e competências filosóficas e, de outro lado, a tentativa de
negá-los em sua prática de pesquisa.

II – Durkheim e Mauss : a aposta de Georges Dumas

Durkheim e Dumas não apenas ingressaram no mesmo ano na Sorbonne, mas


eram ambos produtos da École Normale Supérieure – promoção, respectivamente, de
1879 e 1886 – instituição prestigiada na qual o ingresso era extremamente difícil, pois
aceitava apenas em torno de 20 alunos por ano e, durante três anos, mantinha-os sob

11
Brochard, professor que arguiu em nome da candidatura de Dumas, afirma o seguinte: “[...] o sr. Binet é
doutor em Ciências, o que é sem dúvida muito louvável, mas não é doutor em Letras; sem pretender se
apegar ao fetichismo dos diplomas e reconhecendo que em casos excepcionais pode-se suspender a
exigência do doutorado em Letras [...], não cabe à faculdade depreciar ela mesma o grau que ela confere e
que cria um vínculo moral entre todos os seus membros.” Segundo o professor Egger, a “cultura filosófica”
de Dumas lhe parece superior à de Binet. Cf. Ata do Conselho da Faculdade de Letras, Archives Nationales,
AJ 16 4749, pp. 67-68. Cf. também Ata do Conselho da Universidade. Archives Nationales, AJ 16 2587,
p. 230.
12
Cf. Ata do Conselho da Faculdade de Letras. NA AJ 16 4749, p. 72. Cf. também Marcel Fournier, Émile
Durkheim (1858-1917), 2007.
7

regime de internato com dedicação exclusiva aos estudos. Tornar-se um “normalista” era,
definitivamente, ser portador de uma distinção intelectual, marcada por uma cultura
específica e pelos privilégios que a acompanhavam, tais como a função pública precoce
e as maiores chances de carreira no ensino superior em Paris. No caso da área de Filosofia,
um normalista tinha acesso preferencial à Sorbonne ou ao Collège de France, de modo
que muitos psicólogos e sociólogos egressos da École Normale se reencontraram
naquelas instituições13. A convivência entre Dumas e Durkheim parece ter sido pacífica
e amistosa: compartilharam inúmeras atividades, entre as quais reuniões do Conselho da
Faculdade, bancas de doutorado e de concurso de agregação.14 Fundadores de duas
revistas científicas, de L’année sociologique (1898) e do Journal de psychologie normale
et pathologique (1904), procuraram arregimentar colaboradores entre seus alunos e tornar
alguns deles seus discípulos.
Em 1911, Dumas faz pela primeira vez menção à obra de Durkheim, referência
que se repetirá de maneira tópica em obras posteriores, e que ajudam a entender sua
admiração pela sociologia durkheimiana e o diálogo com Mauss nessa mesma época. Em
artigo sobre o contágio mental, defende Durkheim contra Tarde. Ainda que, em seu estilo
eclético, aceite que a teoria da “imitação” de Tarde possa ser adotada nas situações em
que não existe uma sociedade constituída, as expressões emocionais de “delírio coletivo”
devem ser analisadas como um fato social, da maneira durkheimiana, toda vez que se
constatar que os indivíduos fazem parte de um mesmo “meio social”15. Em 1912, Dumas
demonstra que conhece as Formes élementaires de la vie réligieuse e, mais do que isso,
defende a sociologia em detrimento da psicologia com base na definição de psicologia de
Auguste Comte : à sociologia caberia o estudo das funções mentais superiores e à
psicologia o estudo dos reflexos ou das atividades inconscientes, ou seja, das funções
mentais simples e mecânicas.16 Desde esse período, portanto, Dumas propõe uma divisão

13
A École Normale também tinha a seção de ciências, de modo que muitos combinavam essa formação
com o curso da Faculdade de Ciências. Restrinjo-me aqui à seção de letras.
14
Por exemplo, ambos participam da banca da tese de Revault d’Allones, em 1908, e criticam a falta de um
método objetivo ou de procedimentos de pesquisa científica mais precisos. Cf. Informe da Société française
de philosophie. « Thèses de doctorat. Théses de M. Ravault d’Allones, 7 février 1908. » Supplément de la
Revue de métaphysique et de morale. Année 16, Mars 1908, p. 26-33
15
Georges Dumas, « Le Contage Mentale ». Revue philosophique, v. 71, 1911, p. 225-244 e p. 384-407.
16
“Dissemos que, a nosso ver, explicar psicologicamente um fato era inseri-lo em uma lei biológica, e
demos exemplos deste gênero de explicação. Há, porém, no espírito todo um conjunto de ideias, de crenças,
de pensamento, há símbolos, sinais, toda uma linguagem que a biologia é impotente para explicar. Se se
quiser conhecer o homem na sua totalidade, é preciso conhecê-lo não só pela biologia, mas também pela
sociologia. E aí está por que motivo a sociologia, mais completamente de que a biologia, seria uma ciência
do homem, pois estuda o próprio conteúdo do pensamento”. G. Dumas “A sociologia de Durkheim”.
Correio Paulistano, São Paulo, ed. 17673, 1912, p. 1 (grifo nosso).
8

dos estudos mentais entre a psicologia e a sociologia, com vantagens claras para a última,
proposta que será renovada nos anos 1920. Nessa mesma época, Dumas encomendava
um artigo sobre “psicologia social” a Mauss e não a um dos psicólogos do seu círculo17.
Dumas estava então dirigindo, sob o patrocínio de Ribot, o Traité de Psychologie,
publicado apenas após a Primeira Guerra. Nesse sentido, o diálogo entre Dumas e Mauss
pode ser visto em continuidade ao estabelecido com Durkheim, ainda que, no caso de
Mauss, ambas as partes expressaram publicamente a vontade de colaborar. O tema da
“psicologia das emoções” e/ou da “sociologia dos sentimentos” seria propício a tal
colaboração, como afirmaram alguns à época, porque mostrava o rendimento das duas
abordagens e o caráter complementar das ciências do homem.
O fato é que Dumas manteve diálogo com a sociologia e, particularmente, com
Durkheim, durante toda a vida, a despeito da psicologia ou da sociologia das emoções,
objeto de suas trocas com Mauss. Em sua última obra, publicada em 1946, Le Surnaturel
et les dieux, Dumas retoma as Formes élémentaires de la vie religieuse para debater a
concepção de Durkheim sobre o animismo. Após expor as ideias mestras do sociólogo,
diverge dele sobre as causas da crença na imortalidade da alma, fundando-a não na
sociedade, mas no “desejo de viver e de sobreviver” e no “instinto de conservação”. E
conclui: « Tout en m’inclinant devant le compétence de Durkheim, je garde ma sympathie
à l’hypothèse dont il ne veut pas. »18 Assim, é importante observar que a proposta de
Mauss e Dumas não significou uma adesão completa de Dumas à sociologia
durkheimiana: a dimensão biológica e instintiva, que Durkheim negara como explicação
sociológica, mas aceitava como explicação psicológica, passa a ser sua aposta em um
projeto de colaboração com Mauss.

III – Uma Comunidade de destino: o período entre guerras

A aproximação entre psicólogos e sociólogos nos anos 1920 parece algo


inconteste se comparado ao fim do século XIX: revistas, sociedades científicas,
instituições de ensino e laboratórios de pesquisa congregaram seus praticantes como

17
Cf. anexos 5.2.: Cartas entre Mauss e Dumas. Cartas entre Mauss e Dumas. Fonds Marcel Mauss au
Collège de France. 57CDF61-24
18
G. Dumas, Le Surnaturelle et les dieux. Paris, Alcan, 1946, p. 200.
9

nunca antes ocorrera19. Entre as causas mais gerais de tal aproximação não se pode
negligenciar a situação de precariedade das novas ciências humanas e sociais no período
entre guerras, sem recursos e sem perspectiva de carreira, bem como o contexto político
e científico internacional, o que politizou as carreiras dos professores universitários e
incentivou um ponto de vista nacionalista ou patriótico sobre a produção científica
francesa, que se percebia como “generalista/totalizadora” em oposição à “especialização”
na Alemanha e nos Estados Unidos. É inegável que a Primeira Guerra, por suas
consequências, teve enorme impacto econômico e social na vida acadêmica francesa, pois
a depressão reduziu drasticamente o ritmo de criação de novos postos no ensino superior
e as chances de carreira docente e, com a estagnação das perspectivas, contribuiu para
aproximar as várias ciências do homem20. Não apenas a sociologia e a psicologia, mas
também a história e a geografia ensaiavam publicações conjuntas e/ou buscavam federar
as demais ciências do homem – de modo que as alianças entre diversos grupos de
professores e de pesquisadores podem ser vistas como uma estratégia de sobrevivência.21
Outra saída para tal situação de penúria eram as missões no exterior, o que permitiu
transfigurar a necessidade de colaborar em uma virtude científica francesa. O fato de
Dumas ter prestigiado a sociologia durkheimiana no âmbito das missões francesas na
América Latina sugere a possibilidade de se associar a circulação internacional e a
produção de uma autoimagem segundo a qual a colaboração científica, ao somar vários
pontos de vista, é a melhor maneira de conhecer a realidade.22
Tais fatores, contudo, não explicam integralmente a especificidade da proposta de
colaboração entre Mauss e Dumas, que tem início nos anos 1910, por iniciativa de Dumas,
num momento caracterizado por um primeiro movimento de reconhecimento com a
institucionalização da psicologia e da sociologia no ensino superior. Parece-me, portanto,

19
É preciso considerar que Dumas e Mauss eram « discípulos », respectivamente, de Théodule Ribot e de
Émile Durkheim, e que, portanto, eram herdeiros de dois concorrentes em torno do fim do século XIX.
Durkheim, como sabemos, se recusava a considerar as explicações biológicas e psicológicas dos fatos
sociais, enquanto Ribot preferia a interpsicologia de Gabriel Tarde à sociologia durkheimiana.
20
Ao mesmo tempo, observa-se uma espécie de aproveitamento maior da psicologia, em relação à
sociologia, das oportunidades de institucionalização. Um exemplo é a justificativa para a fundação do
Institut de Psychologie, fundado em 1920, cuja fundação foi solicitada ao governo com o argumento de que
ele visava preencher o vazio deixado, na área de educação, pelo falecimento de Durkheim. Cf. Archives
Nationales, Institut de Psychologie, 20010498/189.
21
Lembre-se que, em 1924, muitas iniciativas, entre as quais do próprio Institut de Sociologie, estão
relacionadas ao recebimento de recursos governamentais. Cf. J. Heilbron. « Note sur l’Institut français de
sociologie (1924-1962) ». Etudes durkheimiennes, 9, 1983, pp. 9-14; L. Pinto, op. cit. 2010.
22
Sobre a atuação dos professores universitários como « embaixadores » da França no exterior, conferir
Christophe Charle. “Ambassadeurs ou chercheurs ? Les relations internationales des professeurs de la
Sorbonne sous la IIIe République ». In Genèses, 14, 94, pp. 42-62.
10

mais rentável explicar tal aproximação a partir das trajetórias dos sociólogos e dos
psicólogos e da posição que Mauss e Dumas ocuparam nesses espaços. Mauss não era
neófito em psicologia. Havia frequentado os cursos de Théodule Ribot, nos anos 1890, e
conhecia os trabalhos de Pierre Janet e de Joseph Babinski, discípulo de Charcot.23 As
cartas trocadas com Dumas, em 1909, revelam seu interesse pelas patologias mentais e
pela observação de pacientes com problemas de linguagem em hospitais psiquiátricos.
Além disso, a correspondência com Henri Delacroix, desde o fim do século XIX, indica
que o diálogo de Mauss com os psicólogos universitários era rotineiro e envolvia tanto
trocas intelectuais quanto projetos de carreira – indicando que as afinidades eram muito
maiores do que as diferenças. Por seu turno, Dumas mantinha contato frequente com
vários sociólogos durkheimianos, além do próprio Mauss, entre os quais Célestin Bouglé,
seu colega na Sorbonne, e Georges Davy, colaborador do Traité de Psychologie. E não
por acaso24.
A trajetória de alguns dos sociólogos e dos psicólogos dos círculos de Dumas e de
Mauss, participantes direta ou indiretamente desse debate, é muito similar, como mostra
a tabela abaixo. Uma análise de algumas das principais propriedades escolares e de
carreira no ensino superior – licença; área de agregação; área do doutorado; instituição de
formação e de carreira docente – basta para dar uma ideia dos vínculos dessa pequena
comunidade de destino, mais estreitos do que sugere o debate teórico que opõe os dois
grupos. Dos doze autores selecionados, seis psicólogos e seis sociólogos, todos são
agrégés em Filosofia e nove têm doutorado em Letras pela Sorbonne. Dentre eles, oito
cursaram a École Normale Supérieure (Ulm) e, entre os restantes, todos cursaram a
Sorbonne, com exceção de Mauss, que cursou a Universidade de Bordeaux, onde
Durkheim era professor. Há pequenas diferenças entre eles em relação à área do
doutorado: metade dos psicólogos têm um segundo doutorado em Medicina e um tem

23
Cf. “Théodule Ribot et les sociologues”. Centenaire Ribot. Paris, Alcan, 1939, 137-138 1939. Segundo
Marcel Fournier: “Ribot, Janet, Dumas: três nomes que ligam Mauss à psicologia. Quando ele discute
psicose, histeria ou instinto, ele se alinha ao lado da escola de psiquiatria e de neurologia francesa, do lado
de Joseph Babinski e de Pierre Janet, dois alunos de Charcot.” Marcel Fournier. Marcel Mauss. Paris,
Fayard, 1994, p. 480.
24
A despeito do que afirma Joly (2016) sobre o apoio que Tarde recebera nos meios universitários, em
particular por iniciativa de Ribot, os professores universitários, portadores de uma formação filosófica e/ou
científica institucionalmente credenciada, jamais igualaram o valor da obra de Tarde à de Durkheim
(Consolim 2008). A apreciação de Henri Delacroix sobre Tarde e Durkheim indica os limites da
credibilidade de uma psicologia que pode ser “conciliadora”, mas autodidata, diante de uma sociologia
considerada talvez “extremista”, mas reconhecida como filosoficamente fundada. Cf. Delacroix à Mauss,
Archives du Collège de France.
11

doutorado em Ciências Naturais (Piéron); entre os sociólogos, a diferenciação se dá pela


área do Direito, titulação de dois deles (Fauconnet e Simiand).
Meyerson e Mauss são portadores das carreiras mais desviantes. Meyerson não
tinha o título de agregação e defendeu o doutorado apenas em 1947, o que prejudicou sua
carreira no ensino superior25. Mauss, apesar de não ter optado pela École Normale
Supérieure, foi aluno do tio em Bordeaux e, se desistiu de defender o doutorado, tinha a
agregação em Filosofia e credenciou-se por meio de cursos realizados na École Pratique
des Hautes Études, onde tornou-se professor e diretor de pesquisa. Não obstante a falta
do título de doutorado, conquistou reconhecimento pelas publicações e pelo trabalho em
L’Année sociologique – motivo pelo qual se credenciou ao Collège de France em 1930.
Como afirmei anteriormente, tanto a École Pratique quanto o Collège eram instituições
mais “livres” por não fornecerem nenhum tipo de certificado ou diploma e, por isso, mais
acessíveis aos pesquisadores desprovidos de títulos acadêmicos. 26
No que diz respeito à carreira docente, não é difícil perceber que há uma relação
de complementaridade entre a Sorbonne e o Collège de France. Aqueles, como Piéron ou
Simiand, impedidos de ingressar na Sorbonne por falta do doutorado em Letras, ou como
Mauss, desprovido de tal título, dirigiam-se naturalmente ao Collège de France,
instituição que também abrigou Pierre Janet, do lado dos psicólogos, e Maurice
Halbwachs, do lado dos sociólogos. Todos os demais, dadas as suas credenciais
acadêmicas, fizeram carreira na Sorbonne, como é o caso de Delacroix que, apesar de
começar a carreira em Montpellier, rapidamente ascendeu à Sorbonne com a ajuda do
próprio Durkheim27.

25
Cf artigo de Noemí Pizarroso neste volume e Cf. Anexo 5.2. Cartas entre Mauss e Meyerson. Referência
das cartas de Mauss a Meyerson: Archives Nationales de France, Archives d’Ignace Meyerson,
19920046/56. Referência das cartas de Meyerson a Mauss: Archives Mauss au Collège de France: MAS
9.14.
26
A École Pratique des Hautes Études foi fundada em 1868, inspirada no ensino alemão – considerado mais
científico, com base em seminários de pesquisa, e trabalho prático, dentro de laboratórios. No início do
século XX era composta por cinco seções: 1. Matemática; 2. Física e Química; 3. Ciências Naturais e
Fisiologia; 4. Ciências Históricas e Filológicas e 5. Ciências Religiosas – a seção de Mauss. Seus
laboratórios eram em geral vinculados a instituições de ensino superior. Mauss foi conferencista na EPHE
desde 1901 até sua nomeação ao Collège de France, em 1930.
27
Cf. Cartas entre Mauss e Delacroix. Manuscritos da Bibliothèque Interuniversitaire de la Sorbonne
(Paris). Fonds Divers Non Inventoriés, Henri Delacroix. Notes et documents. Documento 7999-8004.
Referência das cartas de Delacroix a Mauss: Archives du Collège de France, Marcel Mauss, MAS 3.11.
12

TABELA 1

Licença/ Última Docência no


PSICÓLOGOS Nascimento Agregação 1º Doutorado* 2º Doutorado* Curso
graduação Ensino Superior
Blondel, Charles 1876 ENS Filosofia Medicina Letras Sorbonne Psicologia Experimental
Delacroix, Henri 1873 Sorbonne Filosofia Letras - Sorbonne Psicologia Filosófica
Dumas, Georges 1866 ENS Filosofia Medicina Letras Sorbonne Psicologia Experimental
Psicologia Experimental e
Janet, Pierre 1859 ENS Filosofia Letras Medicina Collège de France
Comparada
Meyerson, Ignace 1888 Sorbonne - Letras - EPHE Psicologia Comparada
Pieron, Henri 1881 Sorbonne Filosofia Ciências - Collège de France Psicologia das Sensações
SOCIÓLOGOS
Bouglé, Celestin 1870 ENS Filosofia Letras - Sorbonne História da Economia Social
Davy, Georges 1883 ENS Filosofia Letras - Sorbonne História da Economia Social
Ciências da Educação e
Fauconnet, Paul 1874 ENS Filosofia Letras Direito Sorbonne
Pedagogia
Psicologia Social
Halbwachs, Maurice 1877 ENS Filosofia Direito Letras Collège de France
(Psychologie collective)
Université de
Mauss, Marcel 1872 Filosofia - - Collège de France Sociologia
Bourdeaux
Simiand, François 1873 ENS Filosofia Direito - Collège de France História do traballho
* Os títulos de doutorado são todos defendidos e obtidos na Université de Paris.

Em primeiro lugar, é importante observar que cada um desses grupos produziu


seus próprios herdeiros: Dumas ocupou a vaga de Janet, na Sorbonne, em 1902;
Fauconnet herdou a cadeira de Durkheim, em 1921; Halbwachs substituiu Bouglé, em
1935, e Fauconnet, em 1939; Blondel ocupou a cadeira de Dumas, em 1937, e Davy
herdou a cadeira de Bouglé, depois da Segunda Guerra. Em razão das propriedades
comuns, a convivência entre psicólogos e sociólogos era rotineira nas instituições em que
construíram suas carreiras: Delacroix, Dumas, Bouglé e Fauconnet eram professores da
Sorbonne desde o início do século, com exceção de Fauconnet, que ingressou em 1921;
Halbwachs e Blondel eram colegas na Universidade de Estrasburgo, desde 1919, e ambos
foram nomeados à Sorbonne nos anos 1930; desde esta última década, Janet, Piéron,
Mauss e Simiand eram colegas no Collège de France. Outro indicador importante da
aliança entre os dois grupos foi o apoio que sociólogos e psicólogos deram uns aos outros
nas suas respectivas eleições: Janet apoiou Mauss ao Collège de France, em 1930; Piéron
apoiou Halbwachs, na mesma instituição, para a cadeira de Psicologia Coletiva, em
194428. Assim, pode-se concluir que todos os debates que envolveram as relações entre a

28
Cf. M. Fournier. « L'élection de Marcel Mauss au Collège de France ». In: Genèses, 22, 1996. La ville :
postures, regards, savoirs. pp. 160-165 e L. Mucchielli & Jacqueline Plunet-Despatin. « Halbwachs au
Collège de France ». Revue d'Histoire des sciences humaines, Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires
du Septentrion, n. 1, p. 179-188, 1999 [tradução : Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, nº 40, p.
13-23. 2001].
13

psicologia e a sociologia, no anos 1920, foram expressões de afinidades estruturais, pois


ancoradas em instituições que deixaram marcas profundas em suas trajetórias.
Por outro lado, não deixa de surpreender o fato de que Mauss, responsável pela
proposta de colaboração pelo lado da sociologia, era também o portador da carreira mais
desviante. Pode-se definir sua posição (periférica) no espaço do ensino superior ao
compará-la, por exemplo, à trajetória de Célestin Bouglé, a partir da oposição entre
“pesquisador” e “professor universitário”, conforme propôs Heilbron ao analisar a
diferenciação do durkheimismo no período entre guerras29. Segundo ele, enquanto o
professor ocupa postos de poder na universidade ou na burocracia estatal, o pesquisador
ocupa posições periféricas no ensino superior, não tem poder institucional e mantém-se à
margem das honrarias mundanas. Além disso, sua produção intelectual também se
diferencia: enquanto os pesquisadores tendem a praticar uma sociologia mais
especializada e rigorosa do ponto de vista do método, ou seja, trabalham pela constituição
da disciplina, os professores universitários, ao se engajarem em compromissos
institucionais e políticos mais amplos, tendem a promover uma sociologia mais inclusiva
em relação às disciplinas dominantes, tais como a filosofia, ou a adotar uma abordagem
eclética dos problemas científicos. Mauss, na figura do pesquisador, trabalhou pela
constituição da sociologia como disciplina, enquanto Bouglé, na figura do professor
universitário, estava mais preocupado com o diálogo entre a sociologia e a filosofia.
Dadas as similaridades indicadas anteriormente entre as trajetórias dos sociólogos
e dos psicólogos, creio ser possível aplicar a leitura de Heilbron também para os
psicólogos, o que permite compreender as diferenças internas entre eles, bem como os
limites da colaboração entre Mauss e Dumas. Assim, pode-se identificar, entre os
psicólogos e os sociólogos, os que seguiram a carreira de “pesquisador”, ou seja, que
ocuparam postos fora da universidade – na École Pratique e/ou no Collège de France:
Mauss, no caso dos sociólogos, e Piéron, no caso dos psicólogos. No outro extremo, estão
os que seguiram a carreira de “professor”: Georges Dumas, no caso dos psicólogos, e
Célestin Bouglé, no caso dos sociólogos – ambos na Sorbonne.30 A partir de tal
configuração, percebe-se uma estrutura formada por duas formas de poder e de prestígio

29
J. Heilbron. Op. cit. 1985.
30
Segundo Heibron, os anos 1920 representam um período de transição entre o período fundador e
inovador, no início do século, e o período de constituição institucional das disciplinas, no período pós 1945.
Não se trata, portanto, de tratar a psicologia e a sociologia como disciplinas constituídas e relativamente
autônomas, motivo pelo qual uma análise das trajetórias e vínculos institucionais me parece mais rentável.
Heilbron, op. cit. 1985; Cf. Hirsch op. cit., 2016.
14

em cada uma das duas ciências: Dumas se opõe à Piéron, no caso da psicologia, assim
como Bouglé à Mauss, no caso da sociologia. Ora, isso significa que Mauss e Dumas
estão em posições opostas e, portanto, sua carreira é orientada por práticas científicas
distintas. Dominado do ponto de vista institucional, Mauss permanece o guardião dos
conceitos principais da Escola Sociológica Francesa e, enquanto “sociólogo puro”, não
abre mão do rigor do método científico. Dominante do ponto de vista institucional, Dumas
pode ser caracterizado como um autor eclético e sem importância do ponto de vista da
constituição de um corpus teórico disciplinar; seus escritos revelam a busca por um
consenso entre autores e abordagens científicas distintas ao minimizar as divergências
teóricas e metodológicas entre eles31. A marca política de sua carreira se mostra através
do papel de embaixador cultural da França, em particular na América Latina, cuja função
era difundir a ciência e a cultura francesas no exterior.32 A adesão à sociologia
durkheimiana e, em consequência, a proposta de colaboração com Mauss, legítimo
herdeiro da Escola, em parte era resultado dessa marca distintiva da “ciência francesa” no
espaço transnacional do período, a da “totalidade”, e em parte do prestígio da escola
durkheimiana fora da França.
Contudo, se Mauss é um pesquisador “puro” e, mais do que isso, herdeiro estrito
da sociologia durkheimiana, como explicar sua adesão a essa colaboração, que soa aos
ouvidos de Piéron, seu homólogo na psicologia, como falta de compromisso com a
ciência? Ora, um olhar atento aos textos de Mauss indica, como assumi no início, que ele
não cogitava ceder espaço à psicologia ou elaborar uma espécie de saber generalista ou
eclético a partir desse diálogo; ao contrário, Dumas é quem, em seu estilo habitual, cedeu
espaço à sociologia no que diz respeito aos limites entre ambas as ciências. Portanto, essa
aliança não surpreende à medida em que, em relação ao histórico dessas disputas,
caracterizou-se pelo recuo da psicologia em relação à sociologia, ou seja, pelo aceite das
demarcações estabelecidas por Durkheim em relação aos objetos de cada ciência: por
exemplo, as “representações coletivas” ou as “funções mentais superiores” deveriam ser,
segundo Dumas, objeto da sociologia e não da psicologia. Ou seja, Mauss não baixou a
guarda na defesa da especificidade da sociologia em relação à psicologia e, ao aceitar

31
Seu melhor amigo, Pierre Janet, reconheceu que sua maior importância foi ser gestor científico e não
propriamente um inovador em termos teóricos. Cf. Discours de P. Janet prononcé à l’occasion du décès de
Georges Dumas à l’Académie des Sciences Morales et Politiques, 1946. Arquivos do Collège de France,
SS COF 18b.
32
Bouglé, por sua vez, tornou-se diretor da École Normale Supérieure. Bouglé incentiva uma “sociologia
dos valores” para nuançar e, por assim dizer, adaptar o traço duro da sociologia durkheimiana (a estrutura
social) ao gosto da filosofia dos anos 1920.
15

dialogar com Dumas, por meio de um tema comum a ambos (a expressão das
emoções/sentimentos), pôs em prática tal divisão de tarefas, mas também uma
delimitação de competências em que o simbólico cabia à sociologia. Assim, a posição de
pesquisador lhe permitiu fazer alianças sem ceder no que diz respeito ao núcleo do projeto
durkheimiano.
De ambos os lados, alguns sociólogos e psicólogos identificaram na iniciativa de
Dumas e de Mauss um projeto imperialista de anexação da disciplina concorrente. O
convite a Mauss para escrever um capítulo sobre “psicologia social” do Traité de
Psychologie não seria um indício de tal estratégia? É difícil dizer até que ponto isso estava
em seus planos, mas o atraso de Mauss, ao ponto de inviabilizar sua colaboração, é
significativo de uma relação feita de avanços e de recuos. Outro indício é o fato de Dumas
apresentar a Escola Sociológica Francesa no Brasil, nos anos 1920, como uma vertente
da psicologia francesa33. Ao mesmo tempo, a conferência de Mauss sobre as relações
entre a psicologia e a sociologia, de 1924, foi recebida com desconfiança em razão de dar
a entender que se tratava de um projeto de anexação da psicologia pela sociologia. A
apropriação da abordagem sociológica pelas demais ciências do homem nesse período foi
uma prática comum, dado o prestígio que tinha entre elas – servindo assim para renovar
a posição que tais indivíduos ocupavam dentro de suas respectivas “disciplinas” 34. Assim,
se todos os psicólogos desse grupo incorporaram, de maneiras distintas, os ensinamentos
da sociologia durkheimiana, Dumas foi inegavelmente o mais radical entre eles. Se
considerarmos que, nos anos 1920, a psicologia científica pode ser subdividida em três
abordagens ou áreas distintas: psicologia fisiológica e patológica (Dumas/Janet);
psicologia experimental e psicotécnica (Piéron/Wallon) e psicologia histórica e das
representações simbólicas (Delacroix/Meyerson), os textos de Dumas claramente
minimizam o papel da última a fim de restringir a psicologia a uma ciência biológica e
experimental. Ainda que Delacroix, por exemplo, tenha sido um dos principais
colaboradores do Traité de Psychologie e do Nouveau Traité de Psychologie de Dumas,
os comentadores da época observaram que Dumas propunha, enquanto diretor dessas
publicações, uma definição particular: a restrição do escopo de objetos psicológicos em
relação aos sociológicos, bem como a recusa do papel explicativo da consciência

33
Dumas, OESP, conferência de 1926.
34
Heilbron analisa os membros do Institut de Psychologie nos anos 1930, quando começou a funcionar
efetivamente. Entre os psicólogos, Dumas e Blondel eram os únicos membros. Heilbron, Institut de
Sociologie, op. cit. 1983.
16

individual em psicologia. Tratava-se, como o próprio Dumas o declarou, de uma defesa


da visão de Comte sobre a psicologia.

IV – A Expressão das Emoções ou dos Sentimentos

No início dos anos 1920, Mauss e Dumas explicitam por meio de cartas e de
artigos uma proposta de colaboração. Após a publicação de um artigo intitulado “Les
Larmes”, de Dumas, em 1920, Mauss envia a ele uma carta mencionando estudos sobre
algumas sociedades primitivas nas quais as “lágrimas” exprimem uma forma de saudação
ou são parte de um ritual funerário35. A partir de então, os dois autores publicam uma
série de artigos no Journal de Psychologie sobre a “expressão das emoções” (Dumas) ou
a “expressão dos sentimentos” (Mauss). No caso de Dumas, trata-se de um conjunto de
quatro artigos, publicados nos anos 1920 e, posteriormente, republicados no Traité e no
Nouveau Traité de Psychologie36. No caso de Mauss, trata-se de três artigos publicados
no Journal de Psychologie Normale et Pathologique de Dumas e Janet.37
Os artigos de Dumas sobre a expressão das emoções seguem o estilo que marca
toda a sua obra: a apresentação de várias teorias, provenientes de saberes distintos, mas
que são consideradas pelo autor áreas específicas da ciência psicológica. Observa-se em
tais artigos teorias fisiológicas, sociológicas e filosóficas; explicações biológicas,
intelectualistas e afetivas; doutrinas individualistas ou sociais. Entre os autores
mencionados podem ser citados Darwin, Pawlow, Wundt e Spencer; James e Lange;
Bechterew e Brissaud; Kant e Schopenhauer; Bergson; Tarde, Durkheim e Mauss. Assim,
seu traço principal é o ecletismo típico de manuais escolares, uma vez que elenca uma

35
A correspondência entre os dois autores encontra-se no Fundo Marcel Mauss depositado atualmente no
Collège de France. Pode-se afirmar, a partir desse arquivo, que Dumas e Mauss iniciam correspondência
em 1909 e esse diálogo perdura até 1939. Durante esses 30 anos, os autores trocaram 11 cartas (7 cartas de
Dumas a Mauss e 4 cartas de Mauss a Dumas) – entre as quais uma que não figura nos arquivos do Collège,
de 1920, publicada pelo próprio Dumas no Traité de Psychologie (2 vol., Paris, Alcan, 1923-1924). Cf.
Anexo: 5.2. Cartas Mauss a Dumas.
36
Os artigos de Dumas sobre a questão são os seguintes: Georges Dumas, «Les larmes». Journal de
Psychologie, v. 17, 1920a p. 45-58; «L’Interpsychologie », no Journal de Psychologie, v. 17, 1920b, p.
515-537 ; «Le Rire», Journal de Psychologie, v. 18, 1921, p. 19-50; «L’expression des émotions», Revue
philosophique, v. 93, 1922 p. 32-72 e p. 235-258. Todos eles foram republicados no Traité (1923) e no
Nouveau Traité de Psychologie (8 vol. Paris, Alcan, 1930-1948). O artigo «L’interpsychologie » é uma
reelaboração do artigo « La Contagion Mentale », op. cit., 1911. Também considero a “Apresentação” ao
Traité – publicada como Conclusão em 1923 e como Introdução em 1930.
37
Os três textos de Mauss que se referem a Dumas e que foram publicados no Journal de Psychologie são:
“L’expression obligatoire des sentiments », Journal de Psychologie, 18, 192, p. 425-434; « Effet physique
chez l’individu de l’idée de mort suggérée par la collectivité (Australie, Nouvelle-Zélande) », Journal de
Psychologie, 23, 1926, p. 653-669; « Les Techniques du corps », Journal de Psychologie, 32, 1935, p. 271-
293.
17

série de autores que tratam da expressão emocional sem a preocupação de isolar um


problema ou uma abordagem específica para tratar mais detidamente. Ora, esse tipo de
procedimento pode ser considerado uma estratégia de fundação da psicologia como
ciência, mas de um ponto de vista “generalista” ou “totalizante”, ou seja, sem considerar
a especialização então em curso nas diversas áreas do conhecimento médico e científico.
A despeito da diversidade dos autores e de teorias, pode-se identificar nesse
conjunto de textos sua preferência por alguns tipos de explicação: 1º Fisiológica: o estudo
da expressão emocional a partir de suas relações com o organismo biológico, cujo ponto
de partida é a crítica aos estudos de Darwin, Spencer e Wundt em razão de sua perspectiva
finalista, em favor de explicações de ordem mecanicista; 2º Sociológica: a expressão das
emoções como produto da regulação e da obrigação social, no sentido durkheimiano, ou
então como resultado de mecanismos de psicologia social. Ainda que ele mencione as
explicações de Bergson para dar espaço a abordagens psicológicas sobre o social, sua
preferência é claramente por Durkheim. Mas a sociologia aparece como um ramo da
psicologia, ainda que não tão explicitamente como ocorre em suas conferências no
exterior.38 Assim, a expressão emocional enquanto fenômeno fisiológico é o resultado de
um conjunto de movimentos reflexos/mecânicos do organismo: por exemplo, a ação de
contrações musculares na produção do riso ou da lágrima. Algumas dessas expressões,
tal como a lágrima, raramente são voluntárias, e daí a ênfase de Dumas nas variações
(depressão ou excitação) neuromusculares. Também o riso pode ser explicável por um
movimento reflexo, ou seja, por reação mecânica, mas sua expressão é em geral
acompanhada por uma “representação”, o que implica a existência de um meio social que
o transforme em linguagem.
No caso da reprodução de comportamentos por indivíduos isolados e que não
formam um “meio social” determinado, Dumas recorre à teoria da “imitação”. Mas
emprega o termo no sentido amplo e não restrito – como queriam Durkheim ou Janet, que

38
Em suas conferências no Brasil, Dumas dividia a psicologia francesa em cinco ou seis correntes distintas:
1. A associacionista (Taine/Ribot); 2. A racionalista (Renouvier/Delacroix); 3. A intuicionista (Bergson);
4. A sintética (Pierre Janet e Frederic Paullan); 5. A psicologia fisiológica (Dumas) e 6. A psicologia
sociológica (Durkheim). Sobre as relações entre a psicologia fisiológica e a psicologia sociológica, afirma:
“Não me resta senão assinalar uma psicologia à qual me prendo: a psicologia fisiológica, que se encontra
em oposição, sobre muitos pontos essenciais, a todas as doutrinas que fazem do espírito uma realidade
primitiva e irredutível, como o racionalismo e o bergsonismo. Em compensação, adapta-se perfeitamente
às tendências sociológicas, e, - se tivesse de definir a psicologia tal como a compreendo – eu me ficaria de
bom grado com a definição de Augusto Comte que partilha o estudo das funções mentais entre a anátomo-
fisiologia cerebral que lhe estuda os órgãos e a sociologia que lhe estuda as conexões recíprocas e a
evolução no meio social.” Dumas, O Estado de S. Paulo, maio de 1926.
18

o reduzem a algo puramente instintivo ou automático – o que implica um estado


intelectual ou afetivo intermediário entre o instinto e a consciência, definição que ele
atribui a Ribot e a Tarde39. “Rimos porque representamos a alegria dos que vemos sorrir”
ou porque “somos cúmplices” do grupo com quem sorrimos, ou seja, o riso resulta de um
estado intelectual ou afetivo em uma situação de interação. Pensar de outro modo seria
misturar o “normal” e o “patológico”, pois a imitação puramente instintiva seria típica
apenas do segundo caso. No que diz respeito à incorporação de tais expressões ao
repertório do indivíduo, Dumas adota a teoria do “reflexo condicionado”, de Pavlov,
segundo a qual isso ocorre pela associação entre um efeito e um evento que lhe é
concomitante e que substituiu sua causa original – por exemplo, a associação entre o riso
e a alegria – e que se transforma posteriormente em hábito: o homem sorri como tira seu
chapéu, afirma, sem se dar conta disso.40 A abordagem “interacionista” da expressão
emocional o aproxima de Bergson: no caso do riso, por exemplo, ele aceita que o riso
cômico seja uma ação com intenção de manter a cumplicidade dentro de um grupo ou
seja expressão de uma censura por um comportamento desviante. Assim, a expressão
emocional exprime em certa medida os vínculos de inclusão/exclusão social entre os
indivíduos. Ora, a incorporação da teoria do riso de Bergson, nos anos 1920, é algo
complexo, pois o bergsonismo estava do lado, por assim dizer, da “criatividade do
indivíduo” contra a “criatividade da sociedade”: era um opositor de Durkheim e, portanto,
de Mauss. A solução adotada por Dumas me parece, nesse sentido, estratégica: a
interpretação de Bergson e a teoria da imitação são recuperadas a fim de dar maior
legitimidade à fundação da psicologia, mas seu uso restringe-se a casos muito específicos,
como não recusaria o próprio Durkheim: explicam as relações efêmeras entre indivíduos
isolados ou o impacto que práticas ou comportamentos sociais exercem sobre cada
indivíduo isoladamente.41

39
O termo “imitação/sugestão” no sentido amplo de Ribot denomina-se “reflexo ideomotor” – nível
intermediário entre o instinto e a vontade, em que a representação engendra o ato sem ser freada por algum
controle ou autoridade moderadora. Cf. G. Dumas, op. cit. 1920b, p. 527-8.
40
“(...) no processo de auto-imitação, estamos profundamente submetidos à influência de modelos coletivos
propostos ou impostos cem cessar a nossas expressões emocionais pelo estado da civilização em que
vivemos, por nossa posição social e nossa educação. (...) Estamos acostumados desde a infância a refrear
os movimentos excessivos ou indecorosos, a executar os que admitidos e, na inibição ou dramatização de
nossa mímica reflexa, estamos submetidos à influência de modelos coletivos. (...) A coletividade pesa sobre
nós e nos impõe seus esquemas até na solidão.” G. Dumas “Expression des émotions”, Traité de
Psychologie, vol. 1, 1923, p. 638-640.
41
Sobre as relações entre Bergson e a sociologia durkheimiana. Cf. Heike. Delitz. « L'impact de Bergson
sur la sociologie et l'ethnologie françaises », L'Année sociologique, 1/2012 (Vol. 62), p. 41-65.
19

Para além das situações de interação, ou seja, uma vez constituída uma
“coletividade” ou um “meio social”, tal coletividade ou meio passa a ser a fonte do
nivelamento ou da homogeneização das expressões emocionais.42 Nesse sentido, a
expressão emocional é considerada por Dumas um “fato social”, no sentido
durkheimiano, pois são socialmente reguladas e constituem uma obrigação social – pelo
costume, pela comunhão de crenças ou pelas instituições sociais. A sociedade regula a
expressão das emoções de duas maneiras opostas: pela censura da coletividade,
desencorajando certas expressões, a tal ponto que os próprios indivíduos dominam suas
reações motoras, ou pelo encorajamento (ou aceitação) de certas expressões emocionais.43
Enquanto criações da sociedade e não do indivíduo, tais expressões têm autonomia em
relação à sua base fisiológica44. Esse ponto é importante porque os textos de Dumas
revelam certa oscilação no que diz respeito à autonomia do “social” diante das funções
orgânicas. Por exemplo, na primeira publicação do artigo “Les Larmes”, o autor afirma
que “a biologia não tem nada mais a dizer” quando se trata da criação social de novas
expressões emocionais; ao republicar esse artigo ele acrescenta o termo “quase” ante do
“nada”.45 Por outro lado, o autor tende a enfatizar progressivamente a perspectiva da
Escola Sociológica Francesa contra os psicólogos que estudam os indivíduos « isolados,
por abstração, do meio social » e assume, praticamente sozinho, que « tudo o que não é
reação do organismo (às excitações do meio externo ou interno) deve se explicar
socialmente» - leia-se, pela sociologia durkheimiana. Nos anos 1930, ao publicar o
Nouveau Traité de Psychologie, Dumas é ainda mais enfático sobre a importância da
explicação sociológica:

« (…) pode-se conceber uma psicologia biossocial que, deixando à Sociedade esse papel de
excitação e de criação que a Escola Sociológica Francesa tão bem apontou, encontra no sistema
cérebro-espinhal as condições mais ou menos localizadas das funções intelectuais e no sistema

42
“Dado que todas as consciências de um mesmo grupo social estão submetidas à ação de causas sociais
semelhantes, que elas se entendem em relação a um certo número de princípios sociais, necessidades
práticas ou teóricas, elas tendem a uma espécie de nivelamento. (...) Mesmo que esse nivelamento seja o
resultado de imitações e de interações anteriores, como pensa Tarde, é preciso considerá-lo como dado em
toda sociedade constituída (...)”. G. Dumas, op. cit. 1920b, p. 528.
43
A influência da sociedade sobre os indivíduos se exerce através « do hábito e da educação ». As lágrimas
se desenvolvem como linguagem por uma associação frequente com a dor moral, o que ocorre até mesmo
na solidão, considerando que choramos porque nos representamos uma cena da vida social. G. Dumas. Op.
cit. 1920a, p. 55.
44
“É preciso observar (…) que, se a expressão [das emoções] em geral tem sentido a partir de sua raiz
biológica, a coletividade aceitou tal sentido, o generalizou e o modificou, além de, em muitos casos, ter
criado por si mesma e com suas próprias forças (religiões, costumes, instituições) gestos que exprimem
sentimentos sobre os quais a biologia não tem nada mais a dizer.” G. Dumas, op. cit. 1920a, p. 55.
45
G. Dumas. “Le rire et le larme”. Traité de Psychologie. V.1. 1923, p. 729
20

endócrino-autônomo as condições mais ou menos localizadas tanto da vida afetiva quanto das
excitações quase contínuas que essa vida traz às funções intelectuais. » 46 (grifos meus)

O que desaparece, nesse quadro, é o poder explicativo da “consciência individual”


sobre a expressão emocional – tomada de posição em sintonia com a conferência de
Mauss sobre as relações entre a psicologia e a sociologia, de 1924. As inúmeras
referências a Auguste Comte não deixam dúvidas a respeito de sua inspiração: para Comte
a psicologia seria a reunião das explicações fisiológica e sociológica, uma vez que a
psicologia teria origem no estudo das localizações cerebrais (psicofisiologia) e
47
desenvolvimento no estudo das determinações sociais (sociologia). Importa,
finalmente, destacar que a partir dos termos opostos “espontâneo-obrigatório”;
“individual-coletivo” ou “voluntário-mecânico”, observa-se que mesmo quando Dumas
aceita a ação da vontade (por exemplo, no caso do riso), trata-se de uma possibilidade
apenas depois da expressão ser incorporada como hábito ou linguagem, ou seja, com
significação social. Não há espaço para a criação de significados no jogo interindividual,
mas apenas usos tópicos de representações sociais já constituídas.

Em 1921, Mauss publica seu primeiro artigo no Journal de Psychologie, chamado


«L’expression obligatoire des sentiments », no qual faz referência ao artigo sobre as
lágrimas de Dumas. Nesse texto, ele pretende mostrar que é possível estabelecer uma
colaboração entre as pesquisas dos fisiologistas, dos psicólogos e dos sociólogos, ainda
que ele reserve o papel principal à Escola Sociológica Francesa. Ao analisar os ritos
funerários de algumas sociedades primitivas e a relação entre tais ritos e a expressão dos
sentimentos pela coletividade, ele conclui que tais expressões – o canto, a dança, o grito
– não são atos espontâneos ou individuais, mas práticas coletivas e obrigatórias. Para
demonstrá-lo, dá indicações de como o canto ou o choro são regulados: são grupos
específicos que os exprimem e não toda a coletividade ou qualquer um e, além do mais,
são expressos em fórmulas (ritmos, épocas do ano etc.) determinadas. Tais práticas têm,
portanto, uma função social.48

46
G. Dumas. Nouveau Traité, v.1, 1930 p. 361.
47
No artigo “l’Expression des émotions” lê-se: “(...) associamos a explicação social à explicação fisiológica
que são fecundas em si mesmas e por sua colaboração. (...). Ao proceder desse modo, é o pensamento de
Comte e à direção que ele inaugurou na explicação dos fenômenos psicológicos que permanecemos fiéis.”
G. Dumas. “L’Expression des émotions”, Traité de Psychologie, v.1, 1923, p. 641
48
M. Mauss, op. cit. 1921, p. 428.
21

No artigo sobre a ideia de morte sugerida pela coletividade, Mauss defende que o
sistema nervoso é também um produto da coletividade, ou seja, que a organização social
determina também a fisiologia de um grupo social, que se identifica, portanto, tanto por
meio de práticas sociais quanto pela própria estrutura neurológica de seus membros. Por
exemplo, os Maori são descritos por ele como mais “histéricos” e “depressivos” do que
os civilizados, mais estáveis emocionalmente.49 Além disso, o fisiológico é função do
sociológico em um outro sentido: Mauss pretende mostrar que o poder de determinação
da sociedade sobre o indivíduo é mais forte do que o chamado instinto de conservação –
o que contraria princípio admitido por Dumas. Trata-se, nesse caso, de uma afirmação
provocadora porque, de uma só vez, Mauss subsumi o fisiológico e o psicológico, ou seja,
a neurologia e a consciência individual, à organização social. Na descrição da
“tanatomania”, o indivíduo se deixa morrer porque é invadido do exterior por algo que
não concebeu e que não pode controlar: “(...) a consciência é então invadida por ideias e
sentimentos de origem coletiva e que não revelam nenhum distúrbio físico. (...) nenhum
elemento de vontade, de escolha ou de ideação voluntária da parte do paciente ou mesmo
de distúrbio mental individual, exceto a própria sugestão coletiva. O indivíduo acredita-
se em enfeitiçado ou julga-se enfeitiçado e morre por essa razão. ” Tal estudo faz menção
à proposta de colaboração com Dumas porque, apesar da captura da dimensão fisiológica
pela sociológica, Mauss inclui estrategicamente a fisiologia (neste caso, o aparelho
neurológico) como objeto de estudo do sociólogo. Além disso, utiliza como fonte (sobre
os Maori) relatos de um médico, o que sugere que a fisiologia tem um ponto de vista que
interessa ao sociólogo – ideia que ele defendeu na proposta de estudo do “homem total”.50
De modo que, se para Dumas a proposta de uma perspectiva biossocial parece antes
sobrepor os dois saberes, pois o “social” não pode ser totalmente reduzido ao fisiológico,
para Mauss o avanço da sociologia sobre a fisiologia tem muito maior alcance.
No artigo sobre as técnicas corporais, do mesmo modo que nos anteriores, Mauss
defende que a educação, ao dominar os instintos, imprime em uma coletividade uma
marca: as técnicas do nado, a escavação, a marcha ou a posição das mãos distinguem, por

49
Não pretendo aqui discutir o lugar da etnografia Maori na obra de Mauss, nem entrar em debate com os
estudos antropológicos e especializados que envolvem as inúmeras interpretações de sua obra. Para uma
análise dessa questão consultar: Lygia Sigaud, “Doxa e Crença entre os Antropólogos”, Novos Estudos, 77,
março 2007, p. 29 -52
50
“(…) como bem observou Dumas, o riso e as lágrimas e, como acrescentei, o grito, em certos rituais,
não são somente expressões dos sentimentos; são também ao mesmo tempo, rigorosamente ao mesmo
tempo, signos e símbolos coletivos; enfim, por outro lado, são manifestações de descarga orgânica tanto
quanto de sentimentos e de ideias.” M. Mauss. “Allocution à la Société de Psychologie”. Journal de
Psychologie, 20, 1923, p. 757
22

meio dos corpos, até mesmo uma nacionalidade. Tais técnicas se transformam conforme
o tempo e o espaço social, mas sua expressão nos corpos, ainda que possa variar segundo
casos individuais, é sempre sinal de uma determinação social pela educação,
conveniência, moda ou prestígio social51. Portanto, assim como no caso da lágrima, do
riso e do canto, os demais movimentos corporais também devem ser explicados pela
sociologia. Mauss não admite, assim como Dumas, que a “consciência individual” seja
capaz de explicar tais fatos, pois sua função é apenas comunicá-los, por assim dizer, desde
o âmbito social até o orgânico: “um conteano afirma que não há intervalo entre o social e
o biológico; (...) vejo os fatos psicológicos como engrenagem, mas não como causa”.52
Assim, se Mauss aparentemente toma, nesse artigo, certa distância de Dumas, pois este
“não deixa grande espaço para o intermediário psicológico”, o conjunto de suas
afirmações indica que ele está totalmente de acordo com a divisão de tarefas entre a
sociologia e a psicologia à medida em que a dimensão simbólica faz parte do domínio da
sociologia.53
Se, como afirmei acima, para Mauss não há na verdade sobreposição ou síntese
entre a psicologia e a sociologia, resta saber o que ele quer dizer pelo estudo do “homem
total”. Em sua conferência à Sociedade de Psicologia, « Les rapports rééls et pratiques de
la sociologie et de la psychologie », de 1924, ele critica a excessiva independência entre
as diversas ciências para reforçar a importância do estudo do « homem total » a partir da
colaboração entre a fisiologia, a psicologia e a sociologia. É preciso entender o que
significa exatamente esse clamor. Ora, em primeiro lugar, é preciso entender que quando
Mauss se refere ao estudo do “concreto” e do “desconhecido”, ele quer dizer que o avanço
da ciência ocorre por meio das zonas de fronteira entre as diversas abordagens científicas,
e não defender a ausência de fronteiras disciplinares. Enquanto tal, essa posição se opõe
ao ponto de vista dos cientistas legítimos, que defendem o progresso pela especialização
do conhecimento, mas também ao ponto de vista dos filósofos, para quem o progresso
científico se faz por referência a um problema filosófico e, por isso, geral. Em segundo
lugar, é preciso considerar que se trata de um texto dirigido aos psicólogos, e por isso

51
A relação entre o indivíduo e a sociedade passa, para Mauss, pela noção de habitus: “Durante anos a
noção da natureza social do habitus me acompanhou. (...). Tais “habitus” variam não apenas entre os
indivíduos e suas imitações, mas sobretudo entre as sociedades [e seus diversos tipos de] educação,
conveniência, moda e prestígio. É preciso entendê-los como técnicas e obra da razão prática coletiva e
individual e não como a alma e as faculdades de repetição.” M. Mauss, op. cit., 1935, p. 275.
52
M. Mauss, op. cit., 1935, p 291-292
53
Apesar de nesse texto aparentemente Mauss atribuir ao indivíduo os momentos de criação e de reforma,
concordo com Thomas Hirsch, uma vez que o próprio Mauss corrige essa afirmação em um texto posterior:
“Fragment d’um plan de sociologie générale descriptive”. Cf. T. Hirsch, op. cit., 2016, p. 135-139.
23

pleno de afirmações ambíguas, típicas dessa relação, em que ele dissimula suas posições
de fato por trás de declarações genéricas. Um exemplo: Mauss afirma nessa conferência
que a noção de “símbolo” seria uma contribuição da psicologia à sociologia e, ao mesmo
tempo, declara que os sociólogos já trabalham com tal noção e que a conhecem melhor
do que os psicólogos. 54 Outro exemplo: ele admite que a sociologia pode ser denominada
uma “psicologia”, mas afirma também que as “representações coletivas” não têm
autonomia, pois não podem prescindir da análise morfológica, estatística e histórica – que
são competência do sociólogo. 55 Em terceiro lugar, é preciso considerar que trata-se de
uma tomada de posição não apenas científica, mas também política, pois em seus escritos
políticos do período ele também propõe a superação das fronteiras nacionais estritas por
meio da progressiva internacionalização das práticas sociais nas regiões de fronteira:
práticas linguísticas, religiosas, técnicas, científicas etc.56. Não se trata, portanto, de
construir uma “ciência francesa” para exportação, nos moldes de Dumas, a partir de uma
concepção eclética ou de síntese entre saberes distintos, mas de manter a unidade de cada
ciência humana, atentando para as contribuições das demais a fim de fazer progredir a
sua própria.
Assim, pode-se concluir que, por um lado, a tomada de posição de Mauss,
compartilhada por todos os praticantes das ciências do homem ou, ao menos, pelos
sociólogos e psicólogos, se explica em parte pela posição intermediária que as ciências
humanas ocupam no espaço disciplinar, entre a Filosofia e as Ciências Naturais. Por outro
lado, a diferença entre as visões de Mauss e de Dumas sobre a colaboração entre a
sociologia e a psicologia deve ser explicada por fatores mais específicos e que dizem
respeito ao fato de Mauss encarnar a trajetória do cientista “puro”, enquanto Dumas a de
professor universitário e embaixador da França na América Latina. Assim, a crítica à
especialização excessiva se resolve de duas formas distintas: pela construção de uma
“ciência francesa” como resultado da sobreposição de vários saberes (Dumas) ou pela
manutenção da especialização incorporando problemas ou aquisições das demais
abordagens em sua própria ciência (Mauss). Se, por um lado, a visão de Dumas foi de
pouca utilidade para solidificar as ciências do homem como uma “totalidade” – dado que

54
“A noção de símbolo é inteiramente nossa [da sociologia], proveniente [dos estudos] de religião e do
direito, não é? Há muito tempo Durkheim e nós mesmos ensinamos que não podemos conviver e comunicar
em grupo a não ser por meio de símbolos.” M. Mauss. “Rapports réels et pratiques de la psychologie et de
la sociologie”. In Journal de Psychologie, 21, 1924, p. 904. As outras noções são “vigor mental”, “psicose”
e “instinto”. Conferir demais artigos deste volume.
55
M. Mauss, op. cit., 1924, p. 899.
56
Cf. Mauss, La Nation. Paris, PUF, 2015
24

tais ciências tenderam a se separar e a se especializar após a Segunda Guerra –, por outro
lado, exprimiu a autonomia inacabada das faculdades de letras, bem como a
diferenciação, dentro da psicologia, entre sua posição e a dos cientistas puros tais como
Piéron. Assim, apesar da parceria entre Dumas e Piéron, uma concepção eclética, típica
do professor estabelecido, conviveu com outra, pura, típica do cientista que faz sua
trajetória em instituições à margem da universidade.57

V. Críticas cruzadas: homólogos em combate

Se, como procuro mostrar, o espaço da psicologia, assim como o da sociologia


durkheimiana, pode ser subdividido em dois subgrupos distintos – o dos
“professores/embaixadores” e o dos “pesquisadores puros” – as críticas que Dumas e
Mauss receberam, respectivamente, dos sociólogos e dos psicólogos, contribuem para
reforçar tal hipótese. As críticas a Dumas vieram principalmente dos colaboradores de
Célestin Bouglé, seu homólogo na sociologia, enquanto os protestos mais significativos
contra Mauss foram feitos justamente de Henri Piéron, seu homólogo na psicologia.
Nenhum psicólogo questionou publicamente Dumas, assim como nenhum sociólogo
criticou diretamente Mauss, o que pode ser considerado uma estratégia para nuançar ou
reformular a concepção de colaboração sem precisar confrontar o colega de “disciplina”.
Entre as críticas a Dumas por parte dos colaboradores de Bouglé, ressalto a de
Marcel Déat, que não era professor universitário, mas aluno de Bouglé na École Normale
Supérieure e co-autor, juntamente com ele, de manuais sobre as ciências sociais58. Déat
considera a colaboração entre a sociologia e a psicologia positiva, mas critica a proposta
de Dumas e pretende reformular as bases sobre as quais ela se estabeleceu. A
reformulação proposta por ele nos informa sobre sua posição como secretário de Bouglé:
Déat critica a concepção comteana ou positivista da psicologia – que a reduz à explicação
fisiológica e à sociológica - e enfatiza aquilo que é negado ou minimizado nesta
concepção, o papel da “consciência individual”: as paixões, afirma, têm como causa
primeira e fundamental o temperamento individual e por causa ocasional o meio social,

57
Cf. Heilbron, op. cit. 1985. Heilbron divide o espaço da sociologia entre os pesquisadores puros, os
universitários e os intermediários. Limito-me, neste artigo, a analisar apenas as duas posições extremas.
58
Marcel Déat (1895-1955) cursou a École Normale Supérieure e era portador do título de agregação em
Filosofia. Foi secretário de Bouglé no Centre de Documentation Social da École Normale. Outros
colaboradores de L’Année sociologique também publicaram críticas a Dumas: Roger Lacombe, Daniel
Essertier e Henri Hubert. Cf. T. Hirsch, op. cit. 2016, pp. 139-141. Para uma análise sobre Essertier, Cf. M.
Joly, La Révolution sociologique, Paris, La Découverte, 2017, pp. 133-149.
25

pois a vida consciente é superior tanto às funções fisiológicas quanto às relativas ao meio
social. Além disso, a passagem do fisiológico ao sociológico não pode prescindir do
psicológico, dado que é preciso uma mediação entre a “natureza bruta” e o “sistema de
signos corporais”. E daí o recado indireto de Déat a Mauss: a sociologia a mais
intransigente não pode prescindir da consciência individual, pois não se pode observar a
consciência coletiva a não ser através desta. Além disso, não se pode reduzir a consciência
coletiva a um conjunto de signos rituais – o que seria um “automatismo constrangedor”
– pois ela é antes de tudo um sistema de crenças sustentado por símbolos cuja função é
exaltar a afetividade e impulsionar à ação. Sua unidade se dá por referência a um ideal. A
sociologia deve, portanto, estudar de maneira objetiva os valores, pois ela prepara o
estudo da psicologia a partir da dimensão supra consciente. No que diz respeito à relação
entre as três “disciplinas”, segundo Déat, é preciso sobrepor os três níveis – fisiologia,
sociologia e psicologia – sem que nenhum esteja acima dos demais. Uma sociologia dos
valores aliada a uma psicologia da consciência individual traduz a nova proposta de
colaboração entre as duas abordagens, que representa não apenas a posição de Déat, mas
a de todo o grupo de autores ligados a Bouglé nesse período, tais como Paul Lacombe,
Daniel Essertier e Paul Lacombe59. Para isso seria preciso abandonar a (antiga) visão
estrita da sociologia, ou seja, que a considera uma espécie de físico-química social60. Tal
proposição, conforme afirma Heilbron, subtrai da sociologia durkheimiana aquilo que
Mauss considera fundamental na análise das representações coletivas: a morfologia,
história e a estatística. Com Déat, defende-se a autonomia relativa do simbólico e do
individual sobre a organização social. A trajetória de Bouglé, orientada a ocupar posições
de poder no ensino superior, estava associada à difusão de uma imagem da sociologia
durkheimiana ao gosto filosófico, ou seja, era conciliatória em relação às disciplinas
dominantes e daí a prioridade do estudo das ideias/valores e do indivíduo/da psicologia.61
Em relação às críticas recebidas por Mauss, destaco a de Piéron, seu homólogo na
psicologia, pois fez carreira nas mesmas instituições do que ele e, portanto, era também
portador de uma trajetória marginal. Ora, a crítica de Piéron é diametralmente oposta à
de Déat: ele questiona a colaboração entre a sociologia e a psicologia e, no caso da

59
Cf. Thomas Hirsch. Les temps des sociétés. Paris Ehess, 2016.
60
Leia-se, a velha sociologia durkheimiana. M. Déat. « Le Traité de Psychologie du Dr. G. Dumas » Revue
philosophique, 1925/1, 1925/2 e 1926/1, p. 93-129, 417-452 e 107-146.
61
Cf. Heilbron, op. cit., 1985. Veja-se, por exemplo, a edição de Filosofia e Sociologia, de 1925, organizada
por Bouglé. Essa seleção é significativa da tentativa de mostrar uma dimensão mais filosófica de Durkheim.
Cf. Émile Durkheim. “Philosophie et Sociologie” Paris, Alcan. 1925
26

definição da sociologia, sugere que esta inclua como objeto não a consciência individual,
mas as sociedades animais. Em relação ao primeiro ponto, não surpreende que Piéron
invista na orientação centrípeta dentro de cada especialidade científica e que coloque sob
suspeição estudos que proponham reunir abordagens distintas – sinal de ecletismo ou de
generalização filosófica – como é o caso, segundo ele, do estudo do “homem total”. Para
alguém que encarna o pesquisador puro, o avanço da ciência é fruto da « especialização
ou da análise » e toda tentativa de síntese correria o risco de dar um passo atrás; assim, a
pesquisa deveria isolar e aprofundar problemas específicos utilizando métodos
especializados. Do mesmo modo, ao sugerir que as sociedades animais fossem tratadas
pela sociologia, minimiza a importância das funções mentais superiores na definição
desta ciência, bem como seu papel na psicologia. Ou seja, uma inversão completa da
crítica feita por Déat e pelo grupo ligado a Bouglé.
Ora, essa tomada de posição está associada à sua trajetória, pois Piéron tinha o
título de doutorado apenas em ciências naturais (e não em filosofia) e orientou suas
pesquisas às áreas de psicologia fisiológica, experimental, psicotécnica e psicologia da
educação. Manteve-se, pois, distante da consagração pelas instâncias científicas mais
conservadores e associadas ao poder social, como o Institut de France e, por outro lado,
foi membro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos – o exato oposto de
Dumas, que foi membro da Academie des Sciences Morales et Politiques e acadêmico
apenas nos países da América Latina.62
Conclui-se, em primeiro lugar, que no período entre guerras as disputas nas
ciências do homem são recortadas por um eixo disciplinar cujos extremos são, de um
lado, a Filosofia e, de outro lado, as Ciências Naturais. E que uma concepção mais
filosófica ou mais naturalista da sociologia e da psicologia depende das trajetórias e do
tipo de intelectual encarnado para cada um dos extremos desse segundo eixo: pesquisador
puro ou professor universitário. Essas duas dimensões explicam não apenas a proposta de
colaboração e seus limites, mas também as críticas e as propostas concorrentes. Assim, o
debate se estrutura segundo duas posições muito distintas: de um lado, aqueles que
defendem a especificidade de suas respectivas ciências (Mauss, no caso da sociologia;

62
A posição dominada da psicologia biológica e fisiológica pode ser atestada por Henri Piéron que, em
1908, afirmava: “Quanto mais eu pensava que as explicações psicológicas podiam ceder espaço às
interpretações fisiológicas, mais eu percebia que minha posição marginal em relação às disciplinas
tradicionais e minhas explorações nos domínios negligenciados da psicobiologia e da psicofisiologia se
mostravam frutuosas. ” Piéron 1907 apud EPHE apud Paul Foulquié. La psychologie contemporaine, Paris,
Presses Univ. De France, 1951, p. 368.
27

Piéron, no caso da psicologia) e, de outro, os que enfatizam uma composição entre a


sociologia e a psicologia, a fim de chegar a uma unidade e totalidade nas ciências
humanas (Dumas, no caso da psicologia; Déat, no caso da sociologia).

Considerações Finais

A partir do que foi dito anteriormente, pode-se fazer um balanço das condições
intelectuais que determinaram a proposta de colaboração entre Dumas e Mauss, bem
como dos limites de tal empreitada. Uma das primeiras conclusões do que foi dito
anteriormente é que, para além da situação de concorrência com a psicanálise, nos anos
1930, a resposta deve ser buscada na própria trajetória dos praticantes das ciências do
homem: sociólogos e psicólogos provinham do mesmo meio escolar parisiense e
compartilharam um conjunto de práticas e de valores muito mais importantes do que
sugerem as divergências teóricas entre eles. Em segundo lugar, é importante frisar que a
iniciativa de Dumas está ligada ao fato de que ele considerava Mauss um continuador
estrito da sociologia durkheimiana e não um inovador em relação à tradição da Escola.
Esse me parece um ponto fundamental, pois permite refutar a tese de que a abordagem
dos trabalhos de Mauss teria sido alterada após o falecimento de Durkheim e, mais ainda,
na direção oposta aos seus ensinamentos, impregnada por uma visão “psicologizante” ou
“individualista”. Ao contrário, a divisão de tarefas acordada entre Mauss e Dumas mostra
que foi a psicologia que sofreu um processo de “sociologização” e não o contrário. E que
foi Dumas, seu ilustre representante, quem propôs excluir os estudos sobre as
representações, as funções mentais superiores ou o simbólico da jurisdição da psicologia,
restringindo seu escopo a problemas de ordem biológica a partir de abordagens
mecanicistas. Em terceiro lugar, é preciso entender que Dumas encontrava-se então em
posição de poder na universidade e no mundo da edição científica, o que o levou a
incorporar nos seus manuais de psicologia várias tendências psicológicas e sociológicas;
contudo, esse ímpeto não impediu que defendesse, em suas manifestações autorais, a
união entre a psicologia fisiológica e a sociologia durkheimiana. Finalmente, é preciso
reconhecer que o movimento das diversas ciências do homem no período entre guerras
não pode ser isolado da condição de precariedade e da falta de perspectiva de seus
praticantes. As alianças e os programas de colaboração, portanto, tiveram uma dimensão
política, nacional e internacional, que não se pode subtrair à medida em que concorreram
para a formulação de estratégias acadêmicas para a obtenção de recursos. Contudo, nem
28

a pura e simples precariedade econômica, nem o genuíno interesse intelectual podem


explicar isoladamente tal movimento.

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